INVENTÁRIO
BENFEITORIA
AVALIAÇÃO
CONFERÊNCIA DE INTERESSADOS
Sumário

Sumário (elaborado pela Relatora)
I – A avaliação de uma benfeitoria em sede de inventário configura uma perícia que “(…) tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem (…)” (artigo 388º do Código Civil).
II – Nos termos do artigo 1114º, nº 1 do Código de Processo Civil “Até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído.”
III – Deve ser admitida a perícia sobre uma benfeitoria requerida em sede de conferência de interessados, antes de realizadas as licitações, quando entre a decisão proferida sobre o incidente de reclamação à relação de bens e a realização de conferência medeia um lapso de tempo significativo.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
AA, intentou junto do Cartório Notarial processo especial de inventário com vista à partilha dos bens comuns do ex-casal, sendo Requerido BB.
No requerimento inicial a Requerente refere, entre outros, que desconhece o valor real dos bens a partilhar no presente inventário, sendo que os mesmos terão de ser alvo de avaliação, nomeadamente a benfeitoria urbana que será alvo de partilhas.
O Requerido, nomeado cabeça de casal, apresentou relação de bens, a qual foi alvo de reclamação por parte da interessada.
*
No dia 25 de Fevereiro de 2022 foi proferida decisão sobre o incidente de reclamação à relação de bens nos seguintes termos:
“(…)
SENTENÇA
(…)
Quanto à verba n.º 1:
No caso vertente, e considerando ter a reclamante o ónus da prova, resultou provado que o prédio rustico com a área de 390 m2 sito à …, freguesia da Tabua, Concelho da Ribeira Brava inscrito na matriz sob o artigo … com o valor patrimonial era pertença da interessada e que sobre esse prédio foi construída uma moradia dando assim origem ao prédio Urbano localizado no Sítio da …, freguesia da Tabua, concelho da Ribeira Brava, inscrito na respectiva matriz sob o artigo n.º … no qual figura como titular a interessada AA.
Ora no regime de comunhão de adquiridos, são bens próprios dos cônjuges “os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento” (artigo 1722º, alínea a) do Código Civil).
Se o terreno já pertencia a um dos cônjuges antes do casamento, mantém a natureza de bem próprio.
Se alguém tiver um terreno e outra pessoa construir, nesse terreno, de boa fé, uma moradia, essa pessoa que constrói poderá adquirir a propriedade do terreno, por via da acessão.
É o que diz o artigo 1340º, nº1, do Código Civil: “Se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a totalidade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações”
Antes da celebração do casamento entre a interessada e o cabeça de casal, sobre aquele prédio rústico, iniciou-se a construção de um prédio urbano.
Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Volume III, 2ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1984, pág.163) ensinam que: “A benfeitoria e a acessão, embora objectivamente se apresentem com caracteres idênticos, pois há sempre um benefício material para a coisa, constituem realidades jurídicas distintas. A benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela. (…). São benfeitorias os melhoramentos feitos na coisa pelo proprietário, pelo possuidor (artigos 1273º a 1275º), pelo comodatário (artº 1138º) e pelo usufrutuário (artº 1450º); são acessões os melhoramentos feitos por qualquer terceiro, não relacionado juridicamente com a coisa, podendo esse terceiro ser um simples detentor ocasional.
Porque as benfeitorias estão sempre dependentes de uma relação jurídica (posse, locação, comodato, usufruto), elas têm o aspecto de excepcionais em relação à acessão, que seria a regra. Trata-se de uma mera aparência, que não corresponde ao fundamento jurídico ou lógico das duas espécies de melhoramentos. As benfeitorias e a acessão constituem fenómenos paralelos que se distinguem pela existência ou inexistência de uma relação jurídica que vincule à pessoa a coisa beneficiada”.
Para Vaz Serra (RLJ Ano 108, pág. 266) “parece que o critério distintivo deve fundar-se na finalidade e no regime jurídico de ambas as figuras: no caso de simples benfeitorias, atribui a lei ao autor delas um direito de levantamento (ius tollendi) ou um direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada (Código Civil artº 1273º), não, porém, um direito de propriedade sobre a coisa, pois a benfeitoria não se destina senão a conservar ou melhorar a coisa: no caso de acessão, diversamente, não se trata apenas de conservar ou melhorar uma coisa de outrem, mas de construir uma coisa nova, mediante alteração da substância daquele em que a obra é feita, atribuindo, assim, a lei, em certas condições, ao autor da acessão a propriedade da coisa”.
No entanto importa analisar a questão à luz do direito matrimonial e há que convocar o disposto no artigo 1726º nº 1 do Código Civil, que preceitua: “Os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações”.
Há que ter ainda em atenção o disposto no artigo 1724º (Bens integrados na comunhão), segundo o qual:
“Fazem parte da comunhão:
a) O produto do trabalho dos cônjuges;
b) Os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei”.
A alínea b) desse artigo, por sua vez, contextualizada perante os restantes preceitos aplicáveis à comunhão de adquiridos (entre os quais o artigo 1733º nº 2), refere-se aos bens adquiridos pelos cônjuges durante o casamento, onerosamente, não excetuados por lei [Pires de Lima e Antunes Varela, Volume IV, 2ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1992, pág. 42].
Anotando o artigo 1726º nº 1 do Código Civil, os mesmos autores ensinam o seguinte [Ob cit, pág. 430-431]: “Prevê-se e regula-se no artigo 1726º a hipótese de certa coisa ser adquirida com dinheiro ou outros bens próprios de um dos cônjuges e com dinheiro ou outros bens comuns. É o caso de um prédio urbano ter sido comprado, em parte com dinheiro próprio de um dos cônjuges, e noutra parte com dinheiro comum (v.g., sobras dos vencimentos) … Aplicando à hipótese os critérios fixados nas disposições anteriores (artigos 1723º alª c) e 1724, alª b)), o prédio seria em parte coisa própria, e em parte coisa comum, proporcionalmente ao valor das duas parcelas integradoras do preço. Reconheceu-se, porém, a vantagem da solução que atribua a mesma natureza a toda a coisa adquirida; e, para esse efeito, considerou a lei o maior valor das duas prestações em confronto como o critério decisivo na qualificação dos bens”.
Ora, o prédio urbano não é um bem adquirido onerosamente na constância do matrimónio.
A única relevância jurídica da construção da edificação reside na atribuição do valor da despesa material de construção ao património comum do casal, valor esse que é bem comum a partilhar.
O prédio urbano, esse, é bem próprio do dono do prédio rústico.
O prédio não é bem comum do casal e ao seguir o regime das benfeitorias, deve-se relacionar como bem comum (crédito do património comum) o valor da construção enquanto benfeitoria. (seguindo de perto acórdão do STJ de 30 de Abril de 2019, in www.direitoemdia.pt).
Assim neste particular a reclamação terá de ser julgada procedente, devendo ser atribuído às benfeitorias o valor de €150,000,00 (correspondente ao valor mutuado referido no facto provado 9).
(…)
Decisão
Face ao exposto, julga-se o presente incidente parcialmente procedente e em consequência determina-se que a relação de bens apresentada seja alterada nos termos supra determinados:
-Alterando a verba 1) do ativo;
- Mantendo a verba 1) do passivo
- excluindo as demais.
(…)”.
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Notificado para apresentar a relação de bens rectificada, o cabeça de casal nada disse.
Foi deduzido incidente de remoção de cabeça de casal, o qual foi julgado procedente e nomeada como cabeça de casal a Requerente.
A cabeça de casal apresentou relação de bens rectificada da qual fez constar como verba 1 as benfeitorias no valor de €150.000,00.
*
No dia 19 de Março de 2024 foi proferido o seguinte despacho:
“Face à decisão proferida quanto à reclamação á relação de bens mostram-se resolvidas as questões que poderiam influir na partilha, estando definidos os bens que constituem o acervo a partilhar, bem como o respetivo valor – artigo 1110º, n.º 1 al. a) do Código de Processo Civil na redação introduzida pela lei n.º 117/2019, de 13 de setembro.
Assim notifique os interessados nos termos e para os efeitos do disposto da al. b) do n.º 1 do citado normativo legal.
(…)”.
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Apresentada forma à partilha, procedeu-se à realização de conferência de interessados.
Em sede de conferência de interessados veio o Requerido interessado requerer a realização de perícia – avaliação – alegando que o valor atribuído à benfeitoria não corresponde ao valor actual da benfeitoria.
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No dia 17 de Março de 2025, em sede de conferência de interessados, foi proferido o seguinte despacho:
“Não se tendo logrado a obtenção de acordo quanto à partilha dos bens relacionados e uma vez que ainda não foi requerida nem realizada nenhuma avaliação aos bens a partilhar nos presentes autos, defere-se a avaliação requerida pelo interessado BB, à verba nº 1 da Relação de bens - Benfeitorias.
A Perícia será efetuada por perito singular a indicar pelo Tribunal, o qual fica desde já nomeado, caso não haja oposição das partes presentes, tendo as mesma sido advertidas para facultarem o acesso ao perito do imóvel - benfeitorias, a avaliar.
Se nada for requerido, o perito indicado deverá ser notificado para que efectue a avaliação requerida, após o pagamento antecipado de encargos, para o efeito.
(…)”.
*
Inconformada, veio a cabeça de casal interpor recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
“1) A Recorrente não se conforma com o despacho proferido na Conferência de Interessados, realizada em 17/03/2025 (ref. Citius 568635519).
2) Resulta do art. 1114º, nº 1 do C.P.C. que: “Até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído”, porem, salvo melhor opinião, o Recorrente não indicou motivo, adequadamente fundamentado, para a não aceitação do valor atribuído à verba 1, não cabendo na previsão deste artigo a mera discordância do mesmo.
3) Salvo melhor opinião, a avaliação prevista no art. 1114.º, nº1 do C.P.C. não corresponde a um direito incondicional, estando a sua realização dependente de o requerente indicar as razões apenas porque discorda do valor pelo qual os bens estão relacionados.
4) O valor da verba 1 foi alvo de reclamação pela Recorrida, tendo sido proferida sentença datada de 25/02/2022, ref. Citius 51101264, que julgou a reclamação procedente e decidiu que: “este particular a reclamação terá de ser julgada procedente, devendo ser atribuído às benfeitorias o valor de € 150,000,00 (correspondente ao valor mutuado referido no facto provado 9)”
5) O Recorrido, na qualidade de Cabeça de Casal, tinha o poder/dever de apresentar a Relação de Bens, em conformidade com aquela decisão, o que, apesar de devidamente notificado, nunca fez.
6) A Recorrente após ser nomeada Cabeça de Casal, por despacho de 27/01/2024, ref. Citius 54752712, foi notificada para “no prazo de 10 (dez) dias, vir aos autos juntar relação de bens retificada (na sequência da sentença proferida em 25 de fevereiro de 2022 quanto à reclamação da relação de bens).”
7) Em 06/02/2024, por requerimento com a ref. Citius 5625174 e em cumprimento do despacho datado de 27/01/2024, a Recorrente apresentou Relação de Bens, a qual não foi alvo de reclamação, nos termos do artigo 1104.º, nº 1 alínea d), do C.P.C.
8) Decorrido o prazo para apresentação de reclamação à Relação de Bens, por parte do Recorrido, foi proferido, em 19/03/2024, o despacho com a referência 55027660, de onde resultou que “Face à decisão proferida quanto à reclamação á relação de bens mostram-se resolvidas as questões que poderiam influir na partilha, estando definidos os bens que constituem o acervo a partilhar, bem como o respetivo valor – artigo 1110º, n.º 1 al. a) do Código de Processo Civil na redação introduzida pela lei n.º 117/2019, de 13 de setembro.
9) Os despachos e decisões proferidas pelo Tribunal a quo, que sempre prosseguiu uma gestão processual adequada, criaram na Recorrente a firme convicção de que a instância estaria estabilizada, porquanto resulta dos mesmos que estavam resolvidas todas as questões capazes de influir na partilha, sem que o Recorrido se opusesse a essa conclusão.
10) Entende a Recorrente que, na sequência da sentença datada de 25/02/2022, com a ref. Citius 51101264, conjugada com o teor do despacho de 19/03/2024, com a referência 55027660, estavam resolvidas todas as questões que podiam influir na partilha.
11) Assim, salvo melhor opinião, deve ser revogado o despacho recorrido proferido pelo Tribunal a quo, porquanto deferiu, quando não devia, o requerimento, infundado, efectuado pelo Recorrido.
12) Acresce que o despacho recorrido enferma de manifesto erro, porquanto não especifica os fundamentos de facto e de Direito que justificam a decisão tomada, o que acarreta nulidade do mesmo, nos termos do art. 615.º, nº 1 alínea b) do C.P.C.
13) Por outro lado, nos termos do art. 615.º nº 1, alínea c), do C.P.C. enferma de nulidade por estar em contradição com outra decisão já tomada no processo
Nestes termos, e sobretudo nos que serão objecto do douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser admitido o recurso interposto pela Recorrente, revogando-se o despacho recorrido, com todas as legais consequências,
Como é de Direito e Justiça!”
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Não foram apresentadas contra alegações.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, em separado e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. O objecto e a delimitação do recurso
O objecto do recurso é definido pelas conclusões da recorrente nos termos dos artigos 5º, 635º, nº3 e 639º nºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil.
A delimitação objectiva do recurso tem sempre que se balizar pelo teor das conclusões da recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso, porquanto os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova.
No recurso, enquanto meio impugnatório de decisões judiciais, só tem de se suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal de 1ª instância.
Acresce ainda que o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio, mas sim uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Partindo desta premissa, o recorrente tem o ónus de alegar e de indicar, de acordo com o seu entendimento, as razões porque a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Por último, o Tribunal de recurso não está vinculado à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Efectuada esta breve exposição e ponderadas as conclusões apresentadas, as questões a dirimir são:
- da nulidade do despacho;
- da cessão de créditos a vários cessionários e consequências;
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III. Os factos
Factos ou actos processuais referidos e datados no relatório que antecede.
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IV. O Direito
Defende a Recorrente que a previsão plasmada no artigo 1114º, nº 1 do Código de Processo Civil, impõe que o requerente alegue quais as razões que o levam a discordar do valor pelo qual os bens estão relacionados.
Quanto ao valor da verba nº 1 (benfeitoria) entende a Recorrente que este valor foi alvo de reclamação e objecto de decisão. A sentença proferida por referência ao incidente de reclamação à relação de bens fixou o valor a atribuir à benfeitoria em €150,000,00, que correspondente ao valor mutuado.
A Recorrente, após ser nomeada cabeça de casal, foi notificada para juntar aos autos a relação de bens rectificada, o que fez.
Notificado, o Recorrido nada disse.
Assim, na sequência dos despachos e decisões proferidos pelo Tribunal de 1ª Instância, a Recorrente ficou firmemente convicta que a instância estaria estabilizada, porquanto resulta dos mesmos que estavam resolvidas todas as questões capazes de influir na partilha, sem que o Recorrido se opusesse a essa conclusão, nomeadamente a questão atinente ao valor da verba nº 1.
Conclui a Recorrente que a avaliação deveria ter sido indeferida uma vez que o Recorrido não fundamenta tal pedido e, por outro lado, o despacho que deferiu a realização da avaliação da verba nº 1 enferma de manifesto erro, porquanto não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão tomada, o que acarreta nulidade do mesmo, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil e ainda enferma de nulidade nos termos da alínea c) do mesmo normativo por estar em contradição com outra decisão já tomada no processo
a) Da nulidade do despacho com fundamento nas alíneas b) e c) e do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil
A questão que aqui cumpre dirimir respeita à alegada nulidade do despacho nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, al. b) e c) do Código de Processo Civil.
Dispõe o artigo 615º do Código de Processo Civil que:
“1. É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.”
A nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil apenas se verifica quando haja falta absoluta de fundamentos e não quando a fundamentação se mostra deficiente, errada ou incompleta.
Doutrinariamente, na falta de fundamentação que constitui causa de nulidade da sentença, como ensina Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil anotado, Vol. V, pág.140, “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade (…)”.
Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil anotado, Vol. V, pág.140, defende que “há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação.
Também Teixeira de Sousa, in Estudos sobre Processo Civil, pág. 221, escreveu que “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (…)”.
Na nossa jurisprudência é pacifico que a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, apenas se verifica quando exista falta absoluta de fundamentos e não quando a fundamentação se mostra deficiente, errada ou incompleta (neste sentido vide entre outros Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Maio de 2024; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de Maio de 2015; e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Janeiro de 2024, todos in www.dgsi.pt.
Seguindo este entendimento não podemos considerar que o despacho sob recurso padece de nulidade porquanto, ainda que de modo resumido, o despacho foi fundamentado invocando, por um lado, o alegado pelo Recorrido e, por outro, o facto da verba ainda não ter sido objecto de perícia de avaliação.
Improcede, nesta parte, a arguida nulidade.
Invocam ainda os Recorrentes a nulidade do despacho ao abrigo do disposto no artigo 615º, nº 1, al. c) do Código de Processo Civil.
A nulidade prevista na alínea c) reconduz-se a vícios formais que respeitam à estrutura da sentença.
No caso em apreço é manifesto que o despacho não padece do vicio a que alude a referida alínea c) porquanto não existe qualquer contradição que o afecte do ponto de vista de erro lógico na conclusão do raciocínio jurídico.
Por outro lado, a alegada contradição existente entre dois despacho conforme defende a Recorrente, que em nosso entender não existe, não se insere neste elenco de causas de nulidade.
Improcede, também, nesta a parte a nulidade invocada.
b) Do erro jurídico
Os presentes autos de inventário com vista à partilha dos bens comuns do ex-casal, seguem o estabelecido nos artigos 1082º a 1135º do Código de Processo Civil.
O novo regime de inventário visou a introdução de uma maior vinculação e objectividade, mais célere e com base no princípio da concentração e na auto responsabilização das partes na condução do processo.
Com estas alterações ao regime de inventário o legislador pretendeu que as questões sejam suscitadas em momento processual adequado de modo a evitar prejuízos na celeridade dos autos e eficácia da realização da partilha dos bens.
No caso em apreço, a Recorrente, quando ainda possuía a qualidade de interessada, foi notificada da relação de bens apresentada pelo então cabeça de casal e impugnou o valor atribuído à verba 1.
Por decisão sobre o incidente de reclamação veio o Tribunal atribuir às benfeitorias arroladas sob a verba nº 1 o valor de €150,000,00 (correspondente ao valor mutuado), sem que tivesse sido ordenada ou requerida qualquer avaliação.
A decisão foi proferida em 25 de Fevereiro de 2022 e a conferência de interessados foi realizada no ano de 2025.
Nesta conferência veio o Recorrido requerer a realização de avaliação à benfeitoria por entender que o seu valor actual era superior ao valor fixado de €150.000,00.
A avaliação requerida configura uma perícia.
Dispõe o artigo 388º do Código Civil que “A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.”
Preceitua ainda o artigo 1114º do Código de Processo Civil que:
“1 - Até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído.
2 - O deferimento do requerimento de avaliação suspende as licitações até à fixação definitiva do valor dos bens.
3 - A avaliação dos bens é, em regra, realizada por um único perito, nomeado pelo tribunal, salvo se:
a) O juiz entender necessário, face à complexidade da diligência, a realização de perícia colegial;
b) Os interessados requererem perícia colegial e indicarem, por unanimidade, os outros dois peritos que vão realizar a avaliação dos bens.
4 - A avaliação dos bens deve ser realizada no prazo de 30 dias, salvo se o juiz considerar adequada a fixação de prazo diverso.”
Conforme se alcança dos autos entre a decisão sobre o incidente de reclamação à relação de bens e a realização de audiência prévia decorreram três anos.
Durante estes três anos é um facto notório que o mercado imobiliário atingiu valores exorbitantes e, como tal, é inteiramente justificável a realização de perícia – avaliação – com vista a apurar qual o valor actual da benfeitoria.
Mais se refira, sem necessidade de maiores considerações, que o despacho proferido em 19 de Março de 2024 deve ser considerado como um despacho “tabelar” que em nada prejudica a realização da perícia nos termos requeridos.
Improcede o recurso e consequentemente é de manter o despacho recorrido.
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V. Decisão
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em julgar improcedente a apelação e consequentemente:
a) Manter o despacho recorrido.
Custas pela apelada por ter ficado vencida – tendo oferecido contra-alegação (artigo 527º do Código de Processo Civil).

Lisboa, 25 de Setembro de 2025
Cláudia Barata
Maria Teresa F. Mascarenhas Garcia
Nuno Lopes Ribeiro