ADAPTAÇÃO À LIBERDADE CONDICIONAL
LIBERDADE CONDICIONAL
MEIO DA PENA
INCÊNDIO
PREVENÇÃO GERAL
ORDEM PÚBLICA
Sumário

(da responsabilidade do Relator)
I. A medida de adaptação à liberdade condicional, prevista no artº 62º do Código Penal, consiste num período que antecede a concessão de liberdade condicional, durante o qual, por decisão judicial, o condenando é colocado em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica.
II. A adaptação à liberdade condicional é excecional e sempre reportada ao próximo marco do cumprimento da pena que possa dar lugar à concessão da liberdade condicional, sendo que, a “antecipação”, como o próprio nome indica, é concedida por antecipação àquele marco, quando seja de prever que a liberdade condicional virá a ser de concedida a seguir à atribuição da referida concessão.
III. Quando se está já tão próximo do marco de cumprimento da pena que possa levar à concessão da liberdade condicional, é absolutamente inútil, por temporalmente impossível, conceder, em tempo útil, em antecipação à liberdade condicional, a adaptação a tal liberdade.
IV. Por outro lado, sendo a adaptação à liberdade condicional uma medida que antecipa a concessão da liberdade condicional, não sendo de conceder esta em determinado marco da pena, fica inviabilizada a aplicação da medida de adaptação porque pressupõe que se lhe suceda a concessão da liberdade condicional.
V. Perante crime de incêndio, praticado por bombeiro, em zona florestal e na época quente, com gravidade e grande repercussão social, gerador de elevados sentimentos de insegurança na comunidade e intranquilidade pública, a libertação condicional do condenado ao meio do cumprimento da pena é incompatível com a manutenção da ordem e da paz social.
VI. Não sendo de conceder a liberdade condicional reportada ao meio da pena, menos ainda é de antecipar a saída do condenado do estabelecimento prisional por aplicação do mecanismo previsto no artº 62º do Código Penal.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
No processo de liberdade condicional nº 1396/22.9TXLSB-B, do Juízo de Execução das Penas de Lisboa - Juiz 1, por sentença proferida a 06/06/2025, ao condenado AA foi negada a concessão de liberdade condicional ao meio da pena que se encontra a cumprir.
A referida sentença, logo no seu início, julgou “prejudicada a apreciação do pedido de adaptação à liberdade condicional em face da proximidade ao marco do meio da pena que ocorrerá em 28/06/2025”.
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Inconformado, o condenado interpôs o presente recurso, concluindo:
«1. Os autos em reapreciação, iniciaram-se por impulso do recorrente, em 27/01/2025, com o expresso pedido de adaptação à liberdade condicional, de harmonia com o disposto no art.º 62.º do Cód. Penal e uma vez que em 26/06/2025, já o recorrente perfazia o período de meio da pena.
2. Nesses exatos termos, por despacho registado sob a ref.ª 11728107 de 10/03/2025 o pedido para adaptação à liberdade condicional, foi admitido, tendo sido ordenando o prosseguimento dos autos com vista à sua apreciação.
3. O Meríssimo juiz a quo, no entanto, decidiu conduzir o incidente, com a finalidade de avaliar as condições para a liberdade condicional.
4. No escrever da decisão fazendo-o, “ … em benefício do mesmo porquanto a concessão da liberdade condicional sempre seria mais benéfica ao recluso do que a adaptação a tal regime).»
5. Porém, concluindo pelo seu indeferimento, pela desvirtude de o recluso não ter percorridos “etapas” de adaptação ou flexibilização do cumprimento da pena, como sejam as “ … licenças de saída e cumprimento da pena em regime aberto…”.
6. O recorrente, não pode resignar-se, se o pedido de adaptação à liberdade condicional, pressupõe uma análise de critérios menos exigente que o deferimento da liberdade condicional.
7. É a sua antecâmara e um bom percurso preparativo e avaliativo para a obtenção aquela.
8. Se não se vislumbravam quaisquer obstáculos para a sua concessão, como resulta do requerimento apresentado pelo recorrente, com esse específico escopo.
9. Não podia, o Meritíssimo julgador, afastar a análise do pedido do recorrente para “adaptação à liberdade condicional”, que foi na verdade a única pretensão aduzida pelo recorrente no seu requerimento.
10. Muito menos, justificando-o, sem mais fundamentação, na circunstância de a liberdade condicional, já naturalmente perspetivada e pensada como inviável, ser optada em “benefício” do recluso, por lhe ser mais “benéfico”.
11. Gerando afinal goradas e, por conseguinte, falsas, expetativas.
12. Para finalmente decapitar a aparente e ilusória realidade criada na mente do recorrente.
13. O que no ver do recorrente exibe uma violação do princípio da confiança, ínsito no artigo 2.º da CRP, uma vez que, naturalmente, do seu asserto, teria de extrair-se para o recorrente uma confiança legítima que as coisas se passariam em seu benefício ou de modo benéfico.
14. Quando afinal, o pedido deduzido pelo recorrente, foi postergado e afigurava-se desde sempre o mais apropriado à situação do recorrente.
15. Seguindo o raciocínio lavrado na sentença recorrida, as contrariedades do não registo de etapas de adaptação ou flexibilização do cumprimento da pena, seriam colmatadas com a adaptação à liberdade condicional, o formulado pelo recorrente.
16. Desta feita, nos termos percorridos, a ausência de pronúncia sobre o pedido de adaptação à liberdade condicional, inquina a decisão, por vicio de nulidade, nos termos dos art.º’s 97.º n.º 5 e 379.º n.º 1 al. c) do CPP.
17. Com o requerimento impulsionador do incidente, datado de 27/01/2025, o recorrente arrolou prova, documental e testemunhal.
18. Independentemente de a decisão recair sobre a “adaptação à liberdade condicional” ou “liberdade condicional”, o recorrente requereu e é-lhe legalmente reconhecido, um direito à prova, como dispõem os art.º 176.º n.º 2 e 3 e 188.º n.º 6 do CEPMPL.
19. Ademais, como garantia constitucional de um direito exercido no âmbito de um processo criminal e para demonstrar factos pertinentes à conversão da sua situação relativa à forma mais gravosa de privação da liberdade, a prisão efetiva.
20. A total inexistência de pronúncia sobre o exercício do direito à prova e, a intrínseca e lacuna de fundamentação, constitui uma nulidade de procedimento, por violação dos art.º 176.º n.º 2 e 3 e 188.º n.º 6 do CEPMPL e art.º 32.º n.º 1 da CRP, que igual e cumulativamente, expressamente se invoca.
21. Sem deixar de se inferir claramente da douta sentença, a real e aconselhada valência que no caso assumiria a concessão da “adaptação à liberdade condicional”, que efetiva e unicamente, foi o objeto do requerimento do recorrente.
22. A sentença recorrida, orientou-se por um parecer do Conselho Técnico, cujos fundamentos são totalmente desconhecidos pelo recorrente.
23. A sentença recorrida, opõe como motivo do indeferimento, a falta de licenças de saída por parte do recorrente, as quais, no entanto, lhe são negadas.
24. Em concreto, como resulta do apenso C), no dia 08/05/2025, o recorrente formulou um pedido de licença jurisdicional que, assente em informações e considerações genéricas, foi-lhe recusado por decisão de 05/06/2025, portanto, na véspera da decisão objeto do recurso.
25. A incongruência é indefetível, se o recorrente não pode beneficiar de liberdade condicional, por falta de licenças de saída e, se lhe são negadas as licenças de saída, nunca o recorrente terá oportunidade de comprovar a sua evolução, no sentido de que, readaptado e reintegrado, norteará a sua vida no exterior de acordo com o direito!
26. Fazendo-nos no limite retornar à casa de partida, e considerar o pedido de adaptação à liberdade condicional.
27. No que concerne ao requisito material da prevenção geral, a decisão descreve apontamentos de carácter genérico, sem esboçar uma palavra sobre a situação concreta, sobre a comunidade da residência do recorrente, do local onde o ato criminoso foi praticado e sobre o sentimento e o pulsar da sociedade.
28. Factos passiveis de concretizar e passiveis de prova, sobre os quais o recorrente requereu a inquirição de testemunhas, que lhe foi negada, sem qualquer fundamentação, ou melhor, sem pronúncia, o que motivou a nulidade supra invocada.
29. E da iluminada doutrina aludida na sentença recorrida, além de igualmente uma natureza abstrata, sem se debruçar sobre o caso que acompanhamos.
30. Tem de dizer-se, que mesmo sábios, os ensinamentos do insigne professor, não podem de per se revogar os prazos legais para o deferimento da liberdade condicional.
31. Em suma substância, o recorrente infere da sentença um paradigma decisório: Atenta a sua gravidade, os crimes de incêndio não permitem a liberdade condicional, ainda que o arguido já tenha cumprido metade da pena.
32. Sem, todavia, encontrar respaldo na lei, nem se lobrigar da mente e intenção do legislador.
33. Pelo que, a rejeição da adaptação à liberdade condicional ou à liberdade condicional, equivale realmente a uma pena acrescida de manutenção da prisão, à pena de prisão em curso.
34. Por errada interpretação e aplicação, a sentença recorrida, violou o regime instituído pelos art.º’s 61.º e 62.º do Cód. Penal, assim como, os valores e finalidades que a lei, pautada pelos valores humanos e na procura de uma efetiva ressocialização do condenado, visa alcançar»
Termina pedindo que seja “a decisão recorrida anulada e/ou revogada”.
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O recurso foi admitido com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
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O Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:
«- o tribunal pronunciou-se sobre o pedido de adaptação à liberdade condicional, tendo considerado – e bem – que ficou prejudicada a sua apreciação (em face da proximidade ao marco do meio da pena), pelo que não se verifica a nulidade prevista no art.º 379.º n.º 1 al. c) do CPP.;
- o oferecimento de provas pelo recluso (a ocorrer) acontece no decurso da sua audição, sendo nessa ocasião que o juiz decide sobre a admissão das provas (artº 176º, nº 3, do CEPMPL);
- durante a sua audição, o recorrente não ofereceu provas, pelo que o tribunal não tinha que se pronunciar sobre a sua admissibilidade, não se verificando, assim, qualquer nulidade de procedimento (nomeadamente, por violação dos art.º 176.º n.º 2 e 3 e 188.º n.º 6 do CEPMPL e art.º 32.º n.º 1 da CRP);
- a decisão recorrida não concedeu a liberdade condicional ao ora recorrente, por referência ao meio da pena1 (atingido em 28/06/2025), estando em causa a prática de um crime de incêndio florestal agravado;
- há que considerar as exigências de prevenção especial, porquanto será necessária a consolidação do seu percurso penitenciário, para uma melhor avaliação da real motivação e capacidade para a mudança comportamental, devendo o recorrente evoluir no sentido colmatar as suas fragilidades pessoais e interiorizar o sentido da pena e a gravidade da sua conduta, de forma a não a repetir, para além de ser testado em meio livre através do gozo de licenças de saída, a iniciar;
- o recorrente está a cumprir pena pela prática de crime grave, pelo que deve demonstrar um percurso prisional consolidado, devidamente testado e revelador de que atingiu as diversas etapas do tratamento penitenciário;
- as necessidades de prevenção geral são elevadas, atenta a natureza do crime em causa, a frequência da sua prática e as suas repercussões ao nível da comunidade em geral, tornando-se necessário dissuadir a prática deste tipo de condutas e premente a reposição da confiança dos cidadãos no efeito tutelar das normas violadas;
- a continuação da execução da pena impõe-se para que haja consolidação do efeito de pacificação, decorrente da tranquilização da consciência jurídica geral, iniciada com a imposição de sanção adequada;
- assim, exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico impedem para já a liberdade, ainda que condicionada, a qual seria mal tolerada pela comunidade globalmente considerada;
- a concessão da medida, antecipando a liberdade quando ainda faltam pouco menos de 3 anos para o termo da pena, não seria compreendida pelo cidadão comum e afrontaria, sem dúvida, as finalidades que devem presidir à execução da pena de prisão, deixando sem tutela eficaz os bens jurídicos protegidos;
- a decisão recorrida fez correta interpretação e aplicação do direito, mormente, do art. 61º n.ºs 2 als. a) e b) do Código Penal, mostrando-se devidamente fundamentada.»
Termina pedindo a manutenção da decisão recorrida
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Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto e fundamentado parecer no sentido da improcedência do recurso.
O condenando não respondeu.
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Foi proferido despacho a efetuar o exame preliminar, mantendo o efeito e regime de subida do recurso.
Após os vistos, foram os autos à conferência, nada obstando à prolação de acórdão.
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II. OBJETO DO RECURSO
Em conformidade com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J. de 19/10/1995 (in D.R., série I-A, de 28/12/1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Atendendo às conclusões apresentadas, importa decidir se a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia, violação do princípio da confiança e violação do direito à prova, e se estão verificados os requisitos materiais de que depende a concessão, ao condenado, de liberdade condicional reportada ao meio do cumprimento da pena.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
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A) DECISÃO RECORRIDA
A sentença recorrida estabeleceu os seguintes factos provados:
«1. O recluso encontra-se a cumprir a pena de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão efetiva à ordem do processo 308/22.4... do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo Central Criminal de Loures - Juiz 6, pela prática de um crime de incêndio florestal agravado.
2. O recluso tem outra condenação averbada no CRC pela prática de um crime de condução sem habilitação legal.
3. Está privado da liberdade desde 28/07/2022, atinge o marco de ½ da pena em 28/06/2025, sendo que os 2/3 da pena estão definidos por reporte a 17/06/2026 e o termo encontra-se previsto para 28/05/2028.
4. É a sua primeira reclusão.
5. O recluso ainda não beneficiou de qualquer LSJ.
6. Em relação ao seu enquadramento familiar e habitacional, o recluso perspetiva residir na habitação dos progenitores, com a companheira e os dois filhos do casal.
7. Como perspetiva laboral de futuro, o recluso perspetiva trabalhar com ajudante de armazém num ferro velho em ... (empresa ... e ...).
8. Não regista infrações disciplinares.
9. Encontra-se a cumprir pena em regime comum.
10. Está inativo no EP.
11 O recluso assume a prática criminal, referindo estar arrependido e refere ter-se tratado de um erro.
12. Segundo a avaliação realizada pelos serviços da DGRSP, aposta a escrito no respetivo relatório, “AA é esquivo ao relatar a motivação que o terá levado a cometer os ilícitos, ressalvando o facto de ter escolhido a profissão de bombeiro com convicção e que desempenhava há cerca de doze anos (…) Apesar de verbalizar vontade de não mais reincidir em comportamentos criminais, o condenado denota ainda necessidades de consolidar competências pessoais e emocionais e reforçar o sentido critico, sendo benéfico que adira a um acompanhamento psicológico”.»
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O condenando, aquando da sua audição, realizada a 14/05/2025, declarou “que aceita a liberdade condicional por referência ao marco do 1/2 das penas, em face à proximidade do mesmo que irá ocorrer em 28/06/2025, ficando o presente pedido de adaptação à liberdade condicional sem efeito”.
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A sentença recorrida fundamentou de direito (quanto aos requisitos materiais) a decisão tomada, da seguinte forma:
«(…)
Por sua vez, na aferição dos pressupostos materiais, não é possível, nesta fase, ao tribunal formular um juízo de prognose favorável no sentido de que o condenado irá, de futuro, após colocado em situação de liberdade, nortear a sua vida de acordo com o direito.
Vejamos.
Conforme bem propugna o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 02/07/2024, proc. 591/20.0TXPRT-L.L1-5, Rel. Sandra Oliveira Pinto, “O pressuposto dito substancial ou material, previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 61º do Código Penal, aplicável por remissão do nº 3 do mesmo preceito legal, assegura uma finalidade de prevenção especial, de socialização. A concessão da liberdade condicional, neste caso, depende, assim, no essencial, da formulação de um juízo de prognose favorável especial-preventivamente orientado, assente na ponderação de razões de prevenção especial”.
O tribunal considera, em consonância com entendimento explanado pelo Conselho Técnico e pelo Ministério Público, que o recluso necessita de consolidação no seu percurso em contexto de reclusão por forma a interiorizar integralmente o desvalor da sua conduta.
Cumpre ainda levar em linha de conta que o recluso ainda não beneficiou de qualquer licença de saída jurisdicional, fator que obsta a que o tribunal efetue, nesta fase, um juízo de prognose favorável no sentido da adequabilidade da sua reaproximação ao meio livre.
Note-se que a adoção de medidas de flexibilização da pena e a gradual demonstração por parte do condenado de que assimilação o desvalor da sua conduta, com provas dadas no que tange à capacidade para nortear a sua vida no exterior de acordo com o direito, constitui um elemento determinante para a concessão da liberdade condicional.
Os reclusos devem trilhar um caminho lógico e sequencial no decurso da pena, ultrapassando etapas sucessivas através do cumprimento das regras instituídas e demonstrando a sua evolução, quer em relação à consciência do mal inerente à conduta anterior que conduziu à reclusão, quer na constatação fática de que são capazes de se reintegrar na sociedade sem o cometimento de novos crimes.
Em concreto, a circunstância de o recluso não ter passado pelas aludidas etapas de flexibilização do cumprimento da pena afigura-se como um óbice fundamental para a construção de um juízo de prognose favorável.
Veja-se a este propósito o recentíssimo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/03/2025, proc. 869/16.7TXLSB-H.L1-5, Rel. João Grilo Amaral, que cabalmente nos elucida nos seguintes termos:
“I. A dimensão humana apenas se revela verdadeiramente quando não sente constrangimentos, como é o caso do contexto prisional, e só fora do mesmo é possível aquilatar de forma segura se existe um quadro evolucional em termos comportamentais que demonstrem a assunção pelo recluso, com carácter permanente, de uma personalidade que em contexto semelhante ao da prática dos factos pelos quais foi condenado, se irá comportar de forma socialmente responsável e não voltar a delinquir.
II. Na verdade, não basta para a concessão da liberdade condicional que o condenado tenha em reclusão bom comportamento e que aparente uma perspetiva de vida de acordo com as regras sociais, para se poder concluir pelo necessário juízo de prognose favorável.
III. As licenças de saída e o cumprimento de pena em regimes abertos constituem etapas indispensáveis para que o recluso possa ser testado através de contactos e solicitações vindas do exterior, o que no caso assume particular relevância, considerando a personalidade evidenciada pelo recluso, decorrente da prática dos factos pelos quais foi condenado.”.
Por seu turno, no que tange ao preenchimento do requisito substancial (ou material) da concessão da liberdade condicional de reporte às finalidades de prevenção geral, igualmente este se tem igualmente por inviável in casu.
De facto, a prevenção geral – aquela que para o juiz é, também, um exercício de análise e ponderação sobre os fatores, níveis e exteriorizações do pulsar de coração social, do sentir coletivo e do querer comum da sociedade em cada momento, gerando, deste modo, uma necessidade de constante atualização sobre esses expressares bem como uma contínua e sólida visão do sentido de regra de experiência de vida – não está assegurada nas suas exigências no presente momento em termos de neutralização do efeito negativo do crime na comunidade, da dissuasão e do fortalecimento do seu sentimento de justiça e de confiança na validade da norma violada, considerando a natureza e gravidade do crime praticado.
O legislador exige, para situações como a dos presentes autos, que a libertação do recluso se revele compatível com a defesa da ordem e paz social. Pretende-se, pois, dar ênfase à prevenção geral, traduzida na proteção dos bens jurídicos e na expectativa que a comunidade deposita no funcionamento do sistema penal.
Como muito bem refere o Prof. Figueiredo Dias (in Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, pág. 540), "O reingresso do condenado no seu meio social, apenas cumprida metade da pena a que foi condenado, pode perturbar gravemente a paz social e pôr assim em causa as expectativas comunitárias na validade da norma violada".
Está em causa uma tipologia de crime que potencia o surgimento/incremento ano após ano de incêndios ao longo do território nacional, com efeitos devastadores quer a nível ambiental quer a nível de destruição da propriedade das populações. O ato de causar tais efeitos resulta agravado no caso em concreto porquanto o recluso desempenhava as funções de bombeiro, sendo sua tarefa evitar e combater os incêndios e não os causar. A sua conduta desprestigia a profissão que exercia e gera na sociedade inquietação, emergindo a necessidade de reforçar a validade da norma jurídica violada.
Neste sentido, conforme superiormente propugna o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 15/07/2020, proc. 415/19.0JAVRL.S1, Rel. Raul Borges, “As razões e necessidades de prevenção geral positiva ou de integração - que satisfaz a necessidade comunitária de afirmação ou mesmo reforço da norma jurídica violada, dando corpo à vertente da proteção de bens jurídicos, finalidade primeira da punição - são elevadas, fazendo-se especialmente sentir no incêndio florestal, tendo em conta os bens jurídicos violados no crime em questão, com componentes de ordem pessoal e patrimonial e impostas pela frequência do fenómeno no Verão e do conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam e das conhecidas consequências para a comunidade, sendo considerados fenómenos criminais de prevenção prioritária, tendo por vezes terríveis efeitos colaterais, justificando resposta punitiva firme.”
Libertando-se neste momento o recluso, face à natureza do crime, ficariam frustradas as expectativas da comunidade.
A libertação antecipada não deixaria de ter reflexos negativos na comunidade, designadamente quanto à confiança na validade das normas da ordem jurídica que pelo recluso foram violadas, além de deixar a proteção dos bens jurídicos a um nível que não é comunitariamente suportável.
Portanto, em face das necessidades de prevenção especial evidenciadas supra e à necessidade de validação da norma violada que determinou a sua condenação, entendemos que, também aos olhos do critério de prevenção geral, sempre seria prematura a sua libertação neste momento.
Por tais motivos, o tribunal entende que deverá o recluso continuar o cumprimento da pena em contexto prisional, por forma a fomentar o seu investimento pessoal, interiorizando o desvalor da sua conduta anterior à reclusão e de maneira a beneficiar de medidas de flexibilização da pena no futuro que venham a demonstrar a sua capacidade de integração em meio livre.
Destarte, o juízo de prognose efetuado pelo tribunal é, nesta fase, desfavorável, por força das razões de prevenção geral e especial esmiuçadas supra, as quais subsistem, acompanhando-se o parecer unânime do Conselho Técnico e o douto parecer emitido pela Digna Magistrada do Ministério Público, no sentido de que não estão reunidas condições para que seja concedida ao recluso, neste momento, a liberdade condicional.»
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B) APRECIAÇÃO DO RECURSO
Conforme acima enunciado, face às conclusões do recorrente, importa decidir se a sentença recorrida é nula por omissão de pronuncia, violação do princípio da confiança e violação do direito à prova, e se estão verificados os requisitos materiais de que depende a concessão, ao condenado, de liberdade condicional reportada ao meio do cumprimento da pena.
Vejamos.
Da leitura da própria motivação do recurso resulta o caráter manifestamente infundado da nulidade processual ensaiada, uma vez que o Tribunal recorrido não deixou de se pronunciar sobre o pedido do condenado de adaptação à liberdade condicional, só não o fez foi no sentido por si pretendido.
Na verdade, o Tribunal recorrido pronunciou-se sobre tal pedido e fê-lo com o expresso fundamento de que a sua apreciação tinha ficado prejudicada “em face da proximidade ao marco do meio da pena que ocorrerá em 28/06/2025”.
E bem se compreende que assim seja, porquanto, conforme flui do seu regime jurídico (artº 62º do Código Penal) a adaptação à liberdade condicional é sempre reportada ao próximo marco do cumprimento da pena que possa dar lugar à concessão da liberdade condicional, sendo que, a “antecipação”, como o próprio nome indica, é concedida por antecipação àquele marco, quando seja de prever que a liberdade condicional virá a ser de concedida a seguir à atribuição da referida concessão.
Assim, quando se está já tão próximo do marco que possa levar à concessão da liberdade condicional, é absolutamente inútil, por temporalmente impossível, conceder, em tempo útil, em antecipação à liberdade condicional, a adaptação a tal liberdade. De igual modo, sendo a adaptação à liberdade condicional uma medida que antecipa a concessão de liberdade condicional, não sendo de conceder esta em determinado marco da pena, fica inviabilizada a aplicação da medida de adaptação porque pressupõe que se lhe suceda a concessão da liberdade condicional.
Não ocorreu, assim, a apontada omissão de pronúncia.
Acresce que, o próprio condenado, aquando da sua audição, realizada a 14/05/2025, já tinha desistido do pedido de adaptação à liberdade condicional, tendo expressamente pedido que o mesmo ficasse “sem efeito”. E se consequentemente, também as provas indicadas pelo condenando em tal requerimento, para a finalidade com o mesmo visada, tendo desistido desta, desistiu implicitamente daquelas. Vale por dizer que, não ocorreu, assim, qualquer violação do direito do condenado à prova.
E se foi o próprio condenado que desistiu de tal pretensão, manifestamente não ocorreu a mínima violação do princípio da confiança.
Improcedem, assim, nesta parte, e de forma, aliás, manifesta os segmentos recursos acabados de analisar.
Vejamos agora os requisitos materiais
A liberdade condicional, consistindo num incidente da execução da pena de prisão, visa facilitar o regresso, de forma integrada, do condenado ao seio da comunidade, criando “um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recuperar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão” (ponto 9 do Preambulo do Código Penal – 1982).
Para a sua concessão torna-se necessária a verificação de um conjunto de requisitos de ordem formal e de ordem substancial ou material.
Uma vez que o presente recurso não tem por objeto a apreciação dos requisitos de ordem formal, avancemos para os de ordem material.
Nos termos do artº 61º, nº 2 do Código Penal, “o tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social”.
Para a concessão da liberdade condicional ao meio da pena é, pois, necessária a verificação cumulativa dos requisitos materiais (ou também denominados como substanciais) previstos nas duas alíneas do nº 2 do artº 61º do Código Penal, que no essencial se reconduzem, os da alínea a) a finalidades de prevenção especial, e os da alínea b) a finalidades de prevenção geral.
Assim, a concessão de liberdade condicional ao meio da pena “reveste-se sempre de um caráter excecional e não automático, estando condicionada à evolução da personalidade do condenado e fortemente limitada pelas finalidades das penas, em cada caso concreto” (cfr Acórdão do. Tribunal da Relação de Lisboa de 27/01/2022, proferido no processo nº 2093/15.7TXLSB-K.L1-9, relatado por Francisco Sousa Pereira, acessível em dgsi.pt).
Como se explica no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/07/2022 (acessível em dgsi.pt e também citado no acórdão referido no parágrafo anterior), “na análise dos pressupostos da aplicação da liberdade condicional quando se encontra cumprida metade da pena, a avaliação da compatibilidade da libertação do condenado com a defesa da ordem e da paz social remete para elementos como a neutralização do efeito negativo do crime na comunidade, a dissuasão e fortalecimento do seu sentimento de justiça e de confiança na validade da norma jurídica violada e, portanto, para a natureza e gravidade do crime praticado; em caso de conflito entre os vetores da prevenção geral e de prevenção especial, o primado pertence à prevenção geral”.
Entende o recorrente que se verificam ambos os requisitos substanciais, insurgindo-se contra a decisão recorrida, que entendeu não se verificar qualquer deles.
Vejamos se assim é.
Para a verificação do requisito previsto na alínea a), do nº 2 do artº 61º do Código Penal, atinente às necessidades de prevenção especial, é necessário que seja possível formular um juízo de prognose no sentido de que o condenado, quando estiver em liberdade, “conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”. Tal juízo de prognose favorável, por expressa imposição legal, tem de ser sólido e bem ancorado nas “circunstâncias do caso”, na “vida anterior do agente”, na “sua personalidade” e na “evolução desta durante a execução da pena de prisão”.
Assim, importa ter em conta a gravidade do crime, atentas as suas circunstâncias e especial perigosidade (incendio, ateado por através de duas ignições, em local ermo, de noite e em pleno mês quente de julho e porque quem é bombeiro, revelando grave violação não só dos seus deveres gerais de cidadão, mas também dos seus especiais deveres de bombeiro, atuando com uma energia criminosa intensa), e a personalidade demonstrada pelo arguido. Mas também que o condenado, para além da pena de cumpre, não tem (outros) antecedentes criminais relevantes (apenas uma condenação em pena de admoestação pela prática do crime de condução sem habilitação legal), durante a sua reclusão não tem estado laboralmente ativo, nem beneficiou ainda de qualquer medida de flexibilização (designadamente de saídas), mostra-se arrependido do crime cometido e não regista infrações em meio prisional.
Revela uma personalidade que aparenta ter evoluído recentemente no sentido do cumprimento das regras da vida em sociedade e da interiorização da gravidade do crime cometido, sendo que esta evolução positiva por muito recente, encontra-se ainda incompleta (veja-se, nomeadamente, que o recluso continua laboralmente inativo em meio prisional e sem beneficiar de qualquer saída ou de outras medidas de flexibilização do cumprimento da pena) em fase de consolidação, atento o reduzido período que o condenado ainda leva de reclusão. Vale por dizer que, a manter-se o percurso registado pelo condenado, ao qual deverão acrescer algumas melhorias, poderá vir a ser possível, a breve trecho, formular-se um juízo sólido e seguro de que, uma vez em liberdade, manterá uma conduta consentânea com as regras sociais e não voltará a cometer crimes.
Quanto à verificação do requisito previsto na alínea b), do nº 2 do artº 61º do Código Penal, atinente às necessidades de prevenção geral, ou seja, para se apurar se a libertação do condenado se revela ou não “compatível com a defesa da ordem e da paz social”, importa atender ao sentimento geral que se geraria na comunidade com a libertação antecipada do condenado, face às concretas circunstâncias e aos concretos contornos do concreto crime cometido.
Como bem se refere no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/10/2023 (relatado por Paulo Costa, proferido no processo nº 288/15.2TXPRT-X.P1 e acessível em dgsi.pt) “na decisão sobre a concessão da liberdade condicional, tem de se atender ao sentimento que toda a comunidade possui ao ser confrontada com a libertação do condenado e aos crimes que fizeram com que estivesse em cumprimento de pena de prisão”.
No caso em apreço, estamos perante a prática dos crimes de incendio florestal, sendo um deles agravado, de cujas circunstâncias concretas, em termos temporais e geográficos (em pleno Verão, à noite e em zona florestal), e praticados por bombeiro para além de revelarem elevada e persistente energia criminosa por parte do seu agente, revestem-se de grande gravidade e não menor repercussão social.
Estamos, assim, não só perante um crime de não despicienda gravidade absoluta (em comparação com outros tipos de crime), mas também relativa (em comparação com outros crimes ainda compreendidos no mesmo tipo legal) e gera, atenta a época do ano e o local onde ocorreu elevado sentimento de insegurança na comunidade e intranquilidade pública.
Não se trata de entender que determinados tipos de crime, em abstrato, não comportam a concessão de liberdade condicional ao meio da pena, como simplisticamente já vimos ser defendido. Trata-se, na realidade, de concluir que, atentos os contornos concretos dos factos praticados pelo condenado, neste caso concreto (mas não necessariamente noutros crimes de incêndio, designadamente em diferente época do ano, em locais diversos de zonas florestais) a libertação do arguido é incompatível com a manutenção da ordem e da paz social. Pois, de outro modo, a mensagem que este Tribunal estaria à passar à comunidade seria a de que o cometimento, pelo arguido, deste crime, compensou largamente face às suas diminutas consequências penais, o que seria manifestamente contrário às necessidades de prevenção geral que no caso se fazem sentir, com particular acuidade, face ao flagelo dos incêndios que todos os anos assola o nosso país, em especial no Verão.
É, assim, evidente, que, a libertação do condenado ao meio da pena, é completamente incompatível com a defesa da ordem e da paz social, porquanto, atenta a gravidade do crime por si cometido, em concreto e face às suas circunstâncias específicas, geraria seguramente na comunidade um sentimento de insegurança e de completa falta de confiança na validade e eficácia da norma jurídica violada pela condenada.
Importa, assim, concluir pela improcedência do recurso, também nesta parte.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordamos em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, a douta sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 (quatro) U.C. a taxa de justiça devida.
Comunique de imediato à 1ª instância.
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Lisboa, 25 de setembro de 2025
Os Juízes Desembargadores,
Eduardo de Sousa Paiva
Maria de Fátima R. Marques Bessa
Cristina Luísa da Encarnação Santana