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COACÇÃO
TENTATIVA
DOCUMENTO
EXAME EM AUDIÊNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IN DUBIO PRO REO
Sumário
(da responsabilidade do Relator) I. A exigência do art. 355º, nº 1, do CPP, apenas se prende com a necessidade de evitar que concorram para a formação da convicção do tribunal provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo pelos intervenientes com respeito pelo princípio do contraditório. II. Para que o tribunal de 1ª Instância possa valorar determinada prova documental basta, pois, que a mesma exista no processo com pleno conhecimento dos sujeitos processuais, podendo assim inteirar-se da sua natureza, da sua importância e do seu conteúdo, bem como do seu valor probatório, para que qualquer desses sujeitos possa, em audiência, requerer o que se lhe afigurar sobre ela, examiná-la, contraditá-la e realçar o que, do seu ponto de vista, vale em termos probatórios. III. A impugnação da matéria de facto pode ser efectuada em recurso através de duas modalidades possíveis: a chamada revista alargada (ou impugnação restrita da matéria de facto) e a impugnação ampla da matéria de facto. IV. Quando o Recorrente, no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, invoca um erro de julgamento em relação a vários pontos da matéria de facto dada como provada (e cumpre, na motivação de recurso, os requisitos regulados no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP), o tribunal de recurso tem de reapreciar a prova (a prova indicada pelo Recorrente, por si só ou conjugadamente com as demais provas valoráveis) e emitir um novo juízo em matéria de facto (restrito aos pontos factuais questionados pelo Recorrente), averiguando se tal prova impõe uma decisão diversa da recorrida (concretamente, se tal prova impõe uma versão factual diversa da que foi dada como provada na decisão recorrida). V. O valor probatório do registo clínico é aquele que resulta das normas legais aplicáveis aos documentos particulares, i.e., a força probatória atribuída pelo art. 376º, nº 1, do Código Civil reporta-se à materialidade das declarações documentadas, mas não à sua veracidade ou exactidão. VI. A valoração dos registos clínicos (das declarações aí inseridas) está sujeita ao regime da prova livre, i.e., tais elementos documentais devem se valorados no âmbito da livre apreciação da prova pelo tribunal (podendo recorrer-se a outros elementos de prova como forma de apurar a veracidade das declarações inseridas nos registos clínicos), tal como resulta do disposto nos arts. 125º, 127º e 164º, todos do CPP). VII. Por força do disposto no art. 412º, nº 3, do CPP, não é uma qualquer divergência que pode levar o tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto. VIII. As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com a valoração que o tribunal a quo efectuou, devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados (e não provados). IX. A dúvida que impede o julgamento como provado de determinado facto, por funcionamento do princípio in dubio pro reo, é apenas aquela que o tribunal tiver e não a dúvida que o arguido entende que o tribunal deveria ter tido.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
1. Por sentença proferida no processo supra identificado (processo comum singular), em .../.../2024, julgando-se a acusação pública procedente, foi decidido o seguinte (transcrição parcial do Dispositivo):
“a) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de coação agravada, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º 1, alínea c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão; b) substituir a pena de 1 ano de prisão aplicada ao arguido AA por uma pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 6 (seis) Euros; (…)”.
2. Inconformado, o arguido interpôs recurso do acórdão para o Tribunal da Relação de Lisboa, terminando a sua motivação com a extracção das seguintes Conclusões (transcrição):
“1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que condenou o Arguido pela prática, em autoria material, de um crime de coação agravada na forma tentada, e mais concretamente, da «motivação da decisão de facto» dessa mesma e douta sentença.
2. Sucintamente, e como resulta da acusação, que, em parte, descreve de forma certa a dinâmica de alguns factos, o aqui Arguido ter-se-á dirigido ao Centro de Saúde de ... no dia ... de ... de 2022, pelas 16h00, em virtude de necessitar que lhe fosse emitido certificado de incapacidade temporária (CIT) para o trabalho. Apesar de a acusação referir que o Arguido teria, para tanto, alegado, junto do médico e Ofendido, “que iria viajar para o estrangeiro” (cfr. ponto 3 da acusação), como se verá infra, resultou da audiência de julgamento e bem assim da própria Sentença que terá também, pelo menos, referido uma condição clínica que poderia justificar a atribuição daquela baixa, o que os documentos enviados pelo referido Centro de Saúde, após ter sido oficiado para tanto, vieram evidenciar, e que era uma doença hemorroidária de que padecia à época e que implicou, inclusivamente, a realização de uma cirurgia.
3. Nessa data, e após o médico e aqui Ofendido se ter recusado a emitir o referido CIT, teria o Arguido, nos termos da acusação, praticado o crime pelo qual vem acusado, na medida em que teria, alegadamente, ameaçado o médico em causa com ofensas à sua integridade física e, bem assim, teria retirado o seu Cartão de Cidadão da ranhura em que se encontrava inserido, sendo que, nos termos da Acusação, tal corresponderia, de igual sorte, a um «ato de execução» tendente à prática do crime pelo qual vem acusado, na forma tentada. Entende ainda o MP que o Arguido teria agido de forma «consciente, livre e voluntária».
4. Porém, e conforme resulta das declarações prestadas pelo próprio Arguido em sede de audiência de julgamento, não terá sido essa a dinâmica nem a realidade dos factos.
5. De acordo com a douta sentença ora em crise, decide-se “Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de coação agravada, na forma tentada, p.e.p. pelos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º 1, al. c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do CP, na pena de 1 ano de prisão; substituir a pena de 1 ano de prisão aplicada ao arguido … por uma pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 6 (seis) Euros”.
6. Porém, realizada audiência de julgamento, quer o MP quer a defesa propugnaram pela absolvição do arguido.
7. É caso para perguntar, então, qual o raciocínio que levou o Tribunal a quo, apesar disso, a decidir-se pela condenação do arguido na pena supratranscrita.
8. Como se sabe, requisito da condenação penal de qualquer indivíduo é a designada imputação. A decisão ora recorrida, salvo melhor opinião e o devido respeito, erra quanto à aplicação do direito aos factos no que diz respeito, em particular, à dimensão objetiva da imputação.
9. Segundo o Tribunal a quo, a prova terá sido “livremente valorada, de acordo com critérios de lógica e racionalidade e à luz das regras da experiência comum”.
10. Convém, porém, não esquecer que nos movimentamos num campo que se tem considerado ser de direito constitucional aplicado, onde adquirem relevância determinante – como veremos, também ao nível da imputação objetiva – certos princípios constitucionais, que, não obstante a livre apreciação da prova, o vinculam a certo proceder nessa apreciação.
11. Na imputação objetiva, e como se sabe, do que se trata é de atribuir o resultado do crime ao agente acusado de o praticar.
12. No caso sub judice – em que se trata de um crime de resultado – o resultado que a ordem jurídica reputa de criminalmente censurável é o que consista numa limitação da liberdade de decisão e de ação de outra pessoa, por ser esse o «bem jurídico protegido» com a incriminação em causa, no caso sub judice, é a tentativa de o fazer relativamente ao ofendido, o que se pretende imputar ao Arguido.
13. Há, portanto, que imputar ao agente os factos (definidos pelo objeto do processo), respeitando todos os princípios constitucionais.
14. A partir dos factos que possam relevar, provar que esses factos foram praticados, na forma descrita na acusação, pelo agente que é acusado de o fazer.
15. Surge, nesta sequência, a questão de saber como terá o Tribunal a quo fundamentado essa mesma imputação objetiva, designadamente dos «atos de execução» ao agente/arguido AA, atendendo a que esses «atos de execução», segundo a acusação, teriam sido praticados no dia ... de ... de 2022 e relativamente ao ofendido BB.
16. Ora, resulta da douta sentença que essa imputação foi realizada através quer da valoração meramente parcial das declarações do arguido, quer da valoração integral das declarações do ofendido.
17. Pelo que, de seguida, a questão formulada se converte numa outra: como e porquê se decidiu valorar integralmente umas declarações e desvalorizar parcialmente as outras?
18. Em suma por se ter considerado provada a “conduta de agressividade e de intimidação para com o médico que o atendeu” do arguido. Mas como?
19. Porque, “Oficiado o Centro de Saúde onde o médico BB prestava, então, serviço e onde atendeu o arguido, para que juntasse a documentação clínica deste último, a sua análise permitiu extrair, por um lado, que AA, efetivamente sofria de doença hemorroidária quando ali compareceu, mas também a forma violenta e intimidatória com que lidou com os profissionais de saúde que consigo contactaram” e, rematando, “inclusive com o ofendido”.
20. Porém, e salvo melhor opinião, o objeto deste processo era, exclusivamente, a eventual conduta do arguido perante o ofendido no dia ... de ... de 2022 e não, de forma alguma, e em abstrato, a sua conduta – alegadamente, de intimidação e violência para com diversos profissionais de saúde.
21. Assim, dão-se como provados os factos que a acusação imputava ao arguido por recurso a uma sua conduta de agressividade em abstrato que teria resultado provada.
22. Era preciso, porém que tal conduta tivesse ficado provada, que não ficou.
23. E apenas quanto aos factos que através do presente processo se analisam.
24. Ora, este proceder do douto Tribunal a quo que se acaba de procurar descrever consubstancia-se, salvo melhor opinião, numa flagrante violação do princípio da responsabilidade pelo facto, do direito penal dos factos, subscrevendo – ainda que implicitamente – ou circulando perigosamente perto dos postulados de um direito penal do agente, proscrito à luz dos mais basilares princípios do Direito penal democrático português.
25. É o que resulta do douto Aresto proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Gabriel Catarino, datado de 27/06/2018, no âmbito do proc. n.º 138/16.2GFLLE.E1, onde, e citando o ilustre catedrático de direito penal espanhol, o Dr. Santiago Mir Puig, se afirma que:
26. “… tudo pressupõe [na imputação] que possa estabelecer-se previamente uma determinada conexão entre a lesão ou colocação em perigo típica e a conduta do sujeito. Esta conexão é a que exige a imputação objetiva”, aí se escrevendo ainda que os vários tipos de imputação servem de fundamento “a todas as exigências que entranha a proibição de castigar um inocente (não culpado) num Estado social e democrático respeitador da dignidade humana: o princípio da pessoalidade das penas, que impede fazer responsável o sujeito por delitos alheios (e que se corresponde com a exigência processual da necessidade de rebater a presunção de inocência mediante a prova de que o sujeito realizou materialmente o facto), o princípio da responsabilidade pelo facto, que proscreve a «responsabilidade pelo carácter e o chamado «Direito penal de autor»…” (destacado nosso).
27. Donde resulta, igualmente, a relação entre a violação do princípio da responsabilidade pelo facto, por um lado, com a violação da presunção de inocência, por outro.
28. Para rebater a presunção de inocência – não é o arguido que tem de provar a sua inocência, é a acusação que tem de provar a sua culpabilidade – apoia-se, o Tribunal a quo, em factos não diretamente relacionados com o evento em apreço, violando, salvo melhor opinião e o devido respeito, o princípio da responsabilidade pelo facto.
29. Está, pois, o arguido convencido de que foi condenado em desrespeito de ambas exigências.
30. De resto, há um raciocínio em tudo circular (viciado de petição de princípio) na argumentação do Tribunal a quo. Sucintamente: se o que se pretende é fundamentar o porquê de não se terem valorado, de forma integral, as declarações do arguido, não é argumentativamente (em termos lógico-formais) provar a sua conduta em abstrato para desvalorizar as suas declarações se, precisamente, é através da não valoração das suas declarações que se pretende (e se acaba mesmo por) provar (na decisão recorrida) a sua conduta em concreto perante aquele ofendido naquele dia ... de ... de 2022.
31. Acresce, ainda, que, conforme douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, a 06/01/2010, relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador Alberto Mira, no âmbito do proc. n.º 20/05.9TAAGD.C1 (7 Cfr. em www.dgsi.pt), o artigo 355.º, n.º 1 do CPP, determina que “não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tivessem sido produzidas ou examinadas em audiência, princípio que tem implícita a tutela dos princípios da oralidade, publicidade, contraditório e concentração”.
32. O que está aqui em causa é que, tendo sido oficiado o Centro de Saúde de ...para juntar aos autos documentos clínicos que pudessem confirmar ou negar a doença invocada pelo arguido, veio o mesmo juntar toda a documentação de que dispunha, entre a qual se encontrava – e isto era desconhecido por todos os intervenientes processuais – um outro relatório, que não o redigido pelo ofendido relativo à consulta de dia ... de ... de 2022 (embora esse também de lá constasse – mas esse foi produzido e examinado em audiência de julgamento), mas redigido pela Dra. CC relativo a alegado atendimento prestado ao arguido a ... de ... de 2022. Este não foi nem produzido nem examinado em audiência de julgamento (nos termos do n.º 1 do art. 355.º do CPP) para lá de breve referência que lhe fez o douto Tribunal a quo aquando da inquirição do ofendido.
33. Assim pois não está sequer em causa uma eventual alteração substancial dos factos, mas algo mais grave da perspetiva do arguido: na verdade, a breve referência feita ao referido 2.º relatório na audiência de julgamento, parece ter servido, nos termos da sentença, para desvalorizar as declarações do arguido e, nessa sequência, e para se decidir o douto Tribunal a quo pela sua condenação.
34. Logo, fundamento do presente recurso é também a violação do art. 355.º, n.º 1 do CPP por não ter sido aquele referido relatório, redigido pela Dra. CC e junto aos autos em virtude de ofício do referido centro de saúde, produzido ou examinado em sede de audiência de julgamento, assim tendo sido violadas as garantias de defesa do arguido em virtude da violação dos princípios da oralidade, publicidade, contraditório e concentração (8 Mais grave é, porém, e como se já referiu, o facto de a análise desse 2.º relatório – admita-se agora, por mero dever de patrocínio, que esse relatório foi produzido e examinado em audiência para efeitos do disposto no n.º 1 do art. 355.º do CPP – levar, de forma inteiramente abstrata, porque desligada dos factos concretos em causa perante o objeto deste processo, à condenação do arguido por outros factos, isto que, conforme se disse supra, se constitui como uma intolerável violação do princípio da responsabilidade pelo facto e a adesão – ainda que implícita – a um mais que censurável direito penal do agente.)
35. Pelo exposto deve o referido relatório elaborado pela Dra. CC bem como tudo o mais que conste do ofício do centro de saúde sem relação direta com os factos objeto do presente processo ser desconsiderado enquanto elemento probatório para efeitos da decisão sobre o processo em curso.
36. Mas temos ainda de atentar na forma como foram sobrevalorizadas as declarações do ofendido.
37. Assim, da motivação da decisão de facto da douta Sentença de que ora se recorre resulta que “… ouvido em audiência, BB, ainda que não conseguisse já recordar as exatas expressões usadas pelo arguido, disse estar certo de que aquele o ameaçou, tentando força-lo a emitir a pretendida declaração – ele tentou forçar, fazia ameaças físicas – sic”. De resto, terá confirmado a autoria do registo documental do atendimento ao aqui arguido e, segundo a douta Sentença de que ora se recorre, terá, ainda, confirmado “corresponder à situação por si vivenciada com o arguido naquele dia”.
38. Sobre as declarações do ofendido, tece ainda a douta Sentença recorrida, as seguintes considerações:
39. “Tal testemunho, pela forma desinteressada como depôs – veja-se que o clínico em apreço jamais manifestou interesse nos autos em proceder criminalmente contra o arguido -, aliado ao registo escrito do que se passou no atendimento, também ele objetivo e subscrito imediatamente após os factos, mereceu inteira credibilidade”.
40. Em suma, pois, considerou-se ser de valorar integralmente as declarações do ofendido BB, pelas seguintes ordens de razões: (1) porque o ofendido terá confirmado que redigiu e assinou o registo da consulta e, bem assim, terá, segundo a douta sentença recorrido, confirmado o seu conteúdo; (2) porque depôs de forma «desinteressada»; (3) porque o registo escrito do atendimento se considera «objetivo» (não se compreende bem porquê) e porque (será por isto que se considera «objetivo») terá sido subscrito imediatamente após os factos.
41. Vejamos, então, de forma mais detalhada, recorrendo à gravação da sessão de audiência de julgamento na qual prestou declarações o ofendido, o que efetivamente se poderá ou não retirar dessas declarações (v. supra corpo do recurso).
42. Desde já, vai resultar do conjunto da prova produzida que o motivo indicado pelo arguido para solicitar a baixa, como aliás resulta da sentença recorrida, foi não a alegada viagem invocada pelo ofendido, mas a doença hemorroidária de que padecia.
43. Apontam-se, de resto, incoerências várias no depoimento em causa.
44. E, de qualquer forma, recordaremos que o ofendido afirmou ter saído para o corredor após se ter negado a emitir o CIT. Ora, que interesse teria, inclusive – confabula-se por mero dever de patrocínio -, assumindo que o arguido quisesse constranger a liberdade do médico, forçando-o a emitir a declaração solicitada, retirar da ranhura (se é que assim sucedeu) o CC do médico que se tinha já ausentado da sala?
45. De resto, e mesmo quanto ao «registo escrito» daquele atendimento (se é que se lhe pode chamar assim), como afirmar que esse registo é verdadeiro? Salvo o devido respeito, o que as declarações do ofendido evidenciaram foi a verdadeira indiferença que tem perante um indivíduo que sofria de uma crise grave de hemorroidas à data, dado que do referido registo resulta que o médico entendeu que tal certamente não seria verdade dado que o arguido se sentava «com a maior das desenvolturas» (donde, a operação a que foi submetido posteriormente terá sido fictícia? Ou era desnecessária?) e dado que, em audiência de julgamento, e apesar de primeiramente ter dito não se recordar, afirmou, de novo (logo, nem sequer revisitou o seu próprio registo), e como já transcrevemos, que este indivíduo queria ir viajar (!).
46. E do sistema a que o Sr. Dr. tinha acesso no seu computador, não resultava nada que pudesse esclarecer o motivo pelo qual se encontrava já há bastante tempo o arguido de baixa, sendo que voltou a estar depois deste episódio até ter sido operado?
47. Estas as declarações que o douto Tribunal a quo considera serem de valorar integralmente.
48. De seguida, a M.ª Juiz de Direito confirmou apenas que teria sido o mesmo a redigir o relatório do atendimento, o que o ofendido confirmou. E, ato contínuo, confronta o ofendido com as declarações escritas da Dra. CC que teria, alegadamente, conforme relatórios de atendimento juntos aos autos, presenciado algo de similar com o aqui arguido, mas noutras – diversas – circunstâncias de tempo e de lugar (já supra nos referimos ao facto de considerar o arguido que este proceder viola o princípio da responsabilidade pelo facto).
49. Ou seja, valoram-se as declarações do ofendido de forma integral – apesar das incoerências – incluindo a sua apreciação quanto a um relatório de outra médica que teria – tudo alegadamente apenas – presenciado algo de similar ao que teria ocorrido naquele dia mas noutras circunstâncias de tempo e de lugar.
50. Não pode, nesta sequência, o arguido de facto conformar-se com a valorização integral das declarações do ofendido.
51. O arguido, como veremos infra, mantém a sua versão dos factos e considera injusta a condenação de que foi alvo.
52. De resto, como saber – dado que ninguém à exceção dos intervenientes referidos presenciou a situação sob análise – que se passou o que o ofendido diz – com incongruências e esquecimentos – que se passou? Quem sabe se não foi o ofendido que, não agradado com alguma qualquer situação, foi, eventualmente, desagradável com o arguido? Quem sabe se efetivamente o arguido disse o que o relatório de atendimento do médico ofendido diz que ele disse? Quem sabe, afinal, porque motivo e com que intenção – se é que com alguma – o arguido se apropriou do CC do médico?
53. Não deveria prevalecer o princípio in dubio pro reu? Pode condenar-se um cidadão sem qualquer tipo de certeza sobre o que se tenha passado quanto aos factos que se lhe imputam? Convirá porventura relembrar que não compete ao arguido provar a sua inocência mas, ao invés, à acusação provar a sua culpabilidade
54. Não parece que as declarações do ofendido acabadas de transcrever, juntamente com um relatório por este elaborado e do qual mal se recorda (com diversas indicações incongruentes – designadamente quanto ao motivo pelo qual solicitava o arguido a baixa), juntamente com um documento relativo a outros factos (o documento subscrito pela Dra. CC), que, de resto, não foi sequer «produzido» ou «examinado» em audiência possam servir para ilidir essa mesma presunção de inocência.
55. De resto, e isto não é pouco, o próprio MP considerou que as supra transcritas declarações do ofendido não bastavam para a prova do tipo objetivo de crime em causa, tendo, nessa sequência, pedido a absolvição do arguido!
56. O que não se esperava era, efetivamente, uma condenação à revelia da própria acusação!
57. De resto, e concluindo, o arguido, tendo prestado declarações negou tudo (o que o podia incriminar) do que resultava da versão do ofendido, respondeu a todas as questões que lhe foram colocadas de forma coerente e determinada.
58. Disse o arguido não ter compreendido o motivo pelo qual lhe teria sido recusada a baixa, não lhe ter sido explicado sequer esse motivo, tendo, porém, presumido que poderia estar relacionado com o facto de não ter levado consigo os documentos clínicos que atestavam da sua doença. Mas o médico ofendido nada disso lhe explicou.
59. Que não houve exaltação de ânimos, tendo simplesmente o ofendido saído do gabinete e, de seguida, o arguido também, com as particularidades já narradas a propósito de se ter apercebido, já em casa, de que levava consigo o CC do ofendido.
60. De tal forma era a sua doença real e grave – o que o ofendido, inclusive em julgamento, de alguma forma questiona – que foi operado cerca de 1 ano depois dos factos aqui em causa.
61. Assim terá inclusivamente voltado àquele mesmo CS no dia seguinte, onde lhe foi emitido o correspondente CIT, com base nesse mesmo motivo.
62. Em suma, as declarações do arguido contrariam em tudo o que resulta das declarações do ofendido (se é que delas se pode retirar alguma coisa) e, bem assim, o que resulta do relatório redigido naquele ... de ... de 2022 pelo último.
63. Francamente, como é que sabemos quem conta a verdade?
64. Sem subscrever um direito penal do agente, que, e conforme se demonstrou, está implícito no raciocínio subjacente à «motivação da decisão de facto» na douta sentença recorrida, não sabemos.
65. E por isso mesmo deveria ter-se absolvido o arguido em homenagem à presunção de inocência.
66. Tudo em violação do disposto nos artigos 32.º, n.ºs 2 e 5 da CRP e do princípio da responsabilidade pelo facto; em violação, ainda, do disposto no art. 355.º, n.º 1 do CPP e, em consequência, em violação dos princípios da imediação, oralidade, publicidade, contraditório e concentração, relativamente à forma como foi produzida e valorada a prova.
67. Face ao exposto, deveria a douta sentença ter concluído, ao invés do que sucedeu, pela absolvição do arguido AA pelo crime do qual vinha acusado.
68. Deve, para o efeito, e através do presente recurso – é o que se requer a V. Exas. – ser revogada, por tudo o que se expôs, a presente sentença ser revogada e substituída por outra que absolva o arguido do crime pelo qual vinha acusado, assim homenageando quer a posição da defesa, quer a da própria acusação, quer, ainda, e fundamentalmente, as garantias processuais que a CRP atribui ao arguido.
69. Requer-se, assim, e nos termos do art. 431.º do CPP, que seja modificada a decisão sobre a matéria de facto constante da douta sentença recorrida, após ter a prova sido renovada, se assim se entender, de molde que resulte da decisão não se ter logrado provar a prática dos atos de execução originariamente imputados pela acusação ao arguido, em função da presunção de inocência e do princípio da responsabilidade pelo facto.
70. E requer-se, ainda, que seja, nessa sequência, revogada a decisão ora recorrida e substituída por outra em que se conclua pela absolvição do arguido AA do crime pelo qual vinha acusado.
Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a sentença revogada, modificando-se a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos do art. 431.º do CPP, e, ainda, a sua substituição por outra que, por conseguinte, absolva o arguido AA do crime pelo qual vinha acusado.”.
3. Admitido o recurso, foi apresentada resposta pelo Ministério Público, na qual extraiu as seguintes Conclusões (transcrição):
“1- A sentença efectuou uma correcta avaliação da prova nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal.
2- Inexiste qualquer preterição de formalidades, que violem a lei designadamente do artigo 355º do Código de Processo Penal.
3- A decisão não merece censura devendo ser mantida na íntegra.”.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no qual, declarando acompanhar os fundamentos da resposta do Ministério Público junto da 1ª instância, defendeu a improcedência do recurso.
5. Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do CPP, não foi apresentada resposta.
6. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
7. Nada obsta ao conhecimento do recurso.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objecto do recurso.
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, onde sintetiza as razões do pedido, que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal superior (art. 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
O essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso estão contidos nas conclusões (sendo certo que os recursos servem para apreciar questões e não razões e não visam criar decisões sobre matéria nova), exceptuadas as questões de conhecimento oficioso.
As questões de conhecimento oficioso prendem-se com (i) a detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no art. 410.º, n.º 2, do CPP (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal n.º 7/95, de 19-10- 95, Proc. n.º 46580, publicado no DR, I Série-A, n.º 298, de 28-12-95, que fixou jurisprudência então obrigatória: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”) e (ii) a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos arts. 379.º, n.º 2, e 410.º, n.º 3, do CPP.
Face às conclusões extraídas pelo Recorrente da motivação apresentada (salientando-se que as conclusões não primam pela concisão legalmente pressuposta, sem que, no entanto, se vislumbre utilidade em formular um convite para a correcção de tais conclusões), as questões a conhecer são as seguintes:
- Violação do disposto no art. 355º, nº 1, do CPP (falta de exame em audiência de julgamento de documento / relatório junto aos autos);
- Impugnação (ampla) da decisão sobre a matéria de facto provada.
Importa ainda conhecer, a título oficioso, da existência de erros de escrita na sentença recorrida.
2. Enumeração dos factos provados e respectiva motivação, tal como constam da Sentença recorrida (transcrição).
“II. FUNDAMENTAÇÃO
Factos Provados:
Apreciada a prova produzida em audiência, com relevância para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. Desde data não concretamente apurada, mas anterior a ... de ... de 2022, que DD (doravante BB) é médico do Serviço Nacional de Saúde e desempenha funções no Centro de Saúde de ..., sito na ....
2. No dia ... de ... de 2022, pelas 16h00, o arguido AA deslocou-se ao Centro de Saúde de...
3. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido entrou no gabinete do médico BB e, alegando que iria viajar para o estrangeiro, solicitou ao ofendido lhe que emitisse uma baixa médica.
4. Subsequentemente, porquanto o arguido não reunia as condições médico/legais para lhe ser determinada uma baixa médica, o arguido viu a sua pretensão ser-lhe negada por parte do ofendido.
5. Após, AA disse a BB que não saía do seu gabinete enquanto não lhe fosse emitida a baixa médica que pretendia.
6. Ato contínuo, com foros de seriedade, o arguido AA dirigiu ao ofendido BB a expressão:
7. - “Vou-te às trombas se não me deres a baixa”.
8. Após, o ofendido teve necessidade de abandonar o seu gabinete, com a finalidade de conseguir dar as remanescentes consultas agendadas aos demais utentes do Centro de Saúde, o que não conseguiu, porquanto o arguido lhe retirou o seu cartão de cidadão que se encontrava inserido no leitor de cartões.
9. Com a conduta descrita, agiu o arguido AA com a intenção de constranger o ofendido BB, bem sabendo que, através de ameaças contra a sua integridade física, e imposição da sua presença no seu gabinete, com a finalidade de o mesmo lhe emitir uma baixa médica que não era devida, tal era adequado a limitar a sua liberdade de determinação pessoal, aproveitando-se assim do medo que provocou no ofendido, bem sabendo que o mesmo era o Médico do Serviço Nacional de Saúde e, portanto, funcionário público, intentos que apenas não logrou alcançar, por motivos alheios à sua vontade.
10. O arguido AA, de forma consciente, livre, e voluntária, representou e quis dirigir ao ofendido BB as expressões constantes do ponto 6, e agir conforme referido no ponto 5, bem sabendo que tais expressões e modo de atuação, com prenúncio de prática de um mal futuro contra a integridade física, eram aptas, como foram e são, a provocar medo e inquietação, e ainda assim não se coibiu de as proferir.
11. O arguido agiu sempre de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Mais se provou que:
12. Nas circunstâncias acima descritas em 3, o arguido informou, ainda, o médico BB, de que se encontrava afetado por hemorroidas incapacitantes.
13. O arguido padecia, à data, de doença hemorroidal e veio a ser submetido a cirurgia hemorroidal em ........2022, no Hospital ....
14. O arguido vive com a sua companheira e o filho de 11 anos em casa de familiares.
15. Tal como a companheira, trabalha como lojista, auferindo, cada um deles, € 800, 00 por mês.
16. O arguido tem o 10.º ano de escolaridade.
17. O arguido regista os seguintes antecedentes criminais:
- Por decisão transitada em julgado em ........2014, foi condenado pelas autoridades do ... pela prática, em ........2014, de crime contra a ordem pública, em pena de multa e pena acessória de injunção judiciária;
- Por decisão transitada em julgado em ........2017, foi condenado pelas autoridades do ... pela prática, em ........2017, de crime de ameaça em pena de prisão e de multa;
- Por decisão transitada em julgado em ........2017, foi condenado pelas autoridades do ... pela prática, em ........2017, de crime de furto, em pena de multa e pena acessória de injunção judiciária;
- Por decisão transitada em julgado em ........2018, foi condenado pelas autoridades do ... pela prática, em ........2017, de crime de consumo ilícito de drogas, em pena de multa e pena acessória de injunção judiciária;
2. Com relevância para a decisão não resultaram factos não provados.
Motivação da decisão de facto:
O Tribunal formou a sua convicção, a partir da análise crítica da prova produzida em audiência, a qual foi livremente valorada, de acordo com critérios de lógica e de racionalidade e à luz das regras da experiência comum.
Assim, as declarações do arguido foram parcialmente valoradas, na medida em que admitiu ter estado no gabinete do médico ofendido e ter-lhe solicitado que o mesmo lhe passasse uma declaração de incapacidade para o serviço (baixa); disse, porém, não ter referido que pretendia deslocar-se para o estrangeiro mas sim feito alusão ao seu problema hemorroidal, ao que, segundo explicou, o médico foi indiferente. Quanto à retirada do cartão de identificação daquele profissional, disse tê-la feito por distração, da qual só se apercebeu mais tarde, em casa, vindo a proceder à sua devolução.
Ora, ainda que os problemas de saúde do arguido tenham sido comprovados em audiência, também a sua conduta de agressividade e de intimidação para com o médico que o atendeu, o foi, a par da intencionalidade desse comportamento. Por tal razão, a negação dos factos pelo arguido e as explicações dadas para a sua apropriação do cartão do médico, não mereceram credibilidade.
Vejamos.
Oficiado o Centro de Saúde onde o médico BB prestava, então, serviço e onde atendeu o arguido, para que juntasse a documentação clínica deste último, a sua análise permitiu extrair, por um lado, que AA, efetivamente sofria de doença hemorroidária quando ali compareceu, mas também a forma violenta e intimidatória com que lidou com os profissionais de saúde que consigo contactaram, inclusivamente com o ofendido.
Com efeito, tal como resulta dessa documentação, o arguido havia já assumido idêntico comportamento com uma outra médica, Dra CC, mais uma vez, a pretexto do pretendido CIT (certificado de incapacidade para o trabalho).
Ora, e ouvido em audiência, BB, ainda que não conseguisse já recordar as exatas expressões usadas pelo arguido, disse estar certo de que aquele o ameaçou, tentando força-lo a emitir a pretendida declaração – ele tentou forçar; fazia ameaças físicas – sic.
Confrontando, então, com o registo documental do seu atendimento ao arguido, com o texto: utente planeia ausentar-se do país, diz estar afetado por hemorroidas incapacitantes mas senta-se com a maior das desenvolturas na cedeira em frente do médico, alega ter sido avaliado na urgência mas deixou os papeis no domicílio, exige baixa com data de início indicado por ele e com o número de dias por ele ditados, faz ameaças de violência física “vou-te às trombas”, acaba roubando o cartão do médico, necessário à prossecução da consulta – BB confirmou ser da sua autoria e corresponder à situação por si vivenciada com o arguido naquele dia.
Tal testemunho, pela forma desinteressada como depôs – veja-se que o clínico em apreço jamais manifestou interesse nos autos em proceder criminalmente contra o arguido -, aliado ao registo escrito do que se passou no seu atendimento, também ele objetivo e subscrito imediatamente após os factos, mereceu inteira credibilidade.
Também foi inquirido EE, agente da PSP chamado ao local, e que confirmou as circunstâncias de tempo e lugar em que os factos ocorreram, já não se encontrado o arguido no Centro de Saúde quando aí chegou, mas sim, o médico desapossado do seu cartão de identificação.
Aqui chegados, ficou o Tribunal absolutamente convencido de que o arguido, fazendo uso da intimidação do médico pela força e da subtração de um documento essencial ao exercício da função pelo mesmo (sendo o cartão de cidadão do clínico do centro de saúde necessário à realização das suas consultas, conforme explicado pro BB em audiência e dado como assente) visou, assim, força-lo a subscrever a sua pretendida declaração de incapacidade. O que apenas não logrou conseguir, pelo facto de o clínico em apreço ter resistido à sua ação, optando por chamar as autoridades policiais.
As condições económicas e pessoais do arguido extraíram-se das suas declarações. E do certificado de registo criminal as suas condenações criminais no ... – país onde, de acordo com a documentação clínica remetida pelo Centro de Saúde, seria aquele para o qual o arguido pretenderia viajar, quando ali se apresentou.”.
3. Apreciação do mérito do recurso.
Cumpre agora conhecer das questões / pretensões recursivas suscitadas pelo Recorrente (acima assinaladas), bem como, previamente, de uma questão de conhecimento oficioso, respeitantes à sentença proferida nos autos, observando-se uma ordem lógica de conhecimento.
3.1. Existência de erro de escrita na sentença recorrida.
A primeira questão a conhecer é a que se prende com a existência de erros de escrita na sentença recorrida, questão não suscitada pelos demais sujeitos processuais, mas que resulta inequívoca da análise dos autos e que urge conhecer, por este tribunal, a título oficioso.
Nos factos provados nºs 1 e 2 é a referida a data “... de ... de 2022”, data que, de resto, já constava da acusação deduzida nos autos.
No facto provado nº 13 é a referida a data “.../.../2022”.
De acordo com o disposto no art. 380º, nº 1, al. b), do CPP, o tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
De acordo com o nº 2 do mesmo artigo, se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.
Desde logo, para a aplicação do instituto da correcção da sentença mostra-se necessário que se verifique um erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade.
Depois, constituindo princípio elementar de direito adjectivo o do imediato esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa após a prolação do acto decisório (cfr. art. 613º, nº 1, do CPC), ainda que este princípio não seja absoluto, a correcção da sentença só é admissível quando não importe modificação essencial (quer da decisão, quer da fundamentação).
Os erros de escrita ou de cálculo (por exemplo, na descrição dos factos provados e não provados) correspondem aos mencionados no art. 249º do Código Civil e pressupõem que a vontade declarada do juiz não corresponde à sua vontade real, i.e., o juiz escreveu uma coisa quando queria escrever outra.
A correcção só se justificará em face de um erro que seja evidente, patente, indiscutível, captável com imediação e não se aplica a erros de julgamento.
Dito doutro modo, só cabem no art. 380º os erros e contradições que não tenham relevância para caber no art. 410º, nº 2, do CPP (sendo excluídos, portanto, os erros susceptíveis de fundar o direito ao recurso) (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque (Org.), «Comentário do Código de Processo Penal», Vol. II, 2023, anotação ao art. 380º, pags. 496/497).
No caso dos autos, tendo em conta a data que consta do «Auto de Notícia» e também do «Registo Clínico da Consulta» elaborado pelo Dr. FF (que consta da documentação enviada aos autos pela «Unidade de Saúde Ucsp...»: email de .../.../2024 – refª 25804389), resulta evidente que a data correcta a constar dos factos provados nºs 1 e 2 não é “... de ... de 2022”, mas antes “... de ... de 2022”.
Trata-se de lapso de escrita, cuja correcção não representa modificação essencial (da decisão ou da fundamentação), decorrente, desde logo, de tal data estar igualmente referida na acusação deduzida nos autos e de o tribunal a quo não ter atentado em tal lapso quando elaborou a sentença recorrida.
Por outro lado, tendo em conta a já referida documentação enviada aos autos pela «Unidade de Saúde Ucsp ...» (email de .../.../2024 – refª 25804389), resulta evidente que a data correcta a constar do facto provado nº 13 não é “[...”, mas antes “[...”. Impõe-se, portanto, a correcção dos apontados lapsos, ao abrigo do disposto no art. 380º, nº 1, al. b), e nº 2, do CPP, nos seguintes termos: nos factos provados nºs 1 e 2, onde consta «... de ... de 2022» passará a constar «... de ... de 2022»; no facto provado nº 13, onde consta «........2022» passará a constar «........2023».
3.2. Violação do disposto no art. 355º, nº 1, do CPP (falta de exame em audiência de julgamento de documento / relatório junto aos autos).
Uma das vertentes da pretensão recursiva do Recorrente é constituída pela invocação da violação do art. 355º, nº 1, do CPP, por não ter sido produzido ou examinado em audiência de julgamento um relatório que foi junto aos autos (conclusões 31 a 35).
Sucintamente, o Recorrente alega que foi oficiado o Centro de Saúde de ... para juntar aos autos documentos clínicos que pudessem confirmar ou negar a doença invocada pelo arguido e esta Entidade juntou toda a documentação de que dispunha, entre a qual se encontrava – e isto era desconhecido por todos os intervenientes processuais – um outro relatório, que não o redigido pelo ofendido relativo à consulta de dia ... (a referência a ... constitui lapso, devendo referir-se ..., conforme atrás analisado) de ... (embora esse também de lá constasse – mas esse foi produzido e examinado em audiência de julgamento), mas redigido pela Dra. CC relativo a alegado atendimento prestado ao arguido a ... de ... de 2022.
Este último relatório não foi nem produzido nem examinado em audiência de julgamento (nos termos do n.º 1 do art. 355.º do CPP), para lá de breve referência que lhe fez o douto Tribunal a quo aquando da inquirição do ofendido.
Assim, foram violadas as garantias de defesa do arguido em virtude da violação dos princípios da oralidade, publicidade, contraditório e concentração, devendo o referido relatório elaborado pela Dra. CC, bem como tudo o mais que conste do ofício do centro de saúde sem relação direta com os factos objeto do presente processo, ser desconsiderado enquanto elemento probatório para efeitos da decisão sobre o processo em curso.
O Recorrido (Ministério Público) defende não ter existido qualquer preterição de formalidades que violem a lei, designadamente, do art. 355º do CPP.
Vejamos.
Na sessão da audiência de julgamento de .../.../2024 foi proferido o seguinte despacho (conforme transcrição por súmula constante da respectiva acta): “(…) mais entende ser útil à descoberta da verdade que seja oficiado o mesmo centro de saúde para que, em prazo não superior a 10 dias, remeta a estes autos comprovativo da documentação aí existente referente ao arguido, em concreto as baixas médicas que ao mesmo terão sido prestadas entre os meses de ... e ... (art.º 340.º do CPP).”.
A «Unidade de Saúde Ucsp ...» juntou aos autos (email de .../.../2024 – refª 25804389) documentação que qualificou como informação referente ao utente daquela Unidade (o Recorrente).
Nessa documentação consta um «Registo Clínico de Consulta», datado de .../.../2022, da autoria da Dra. CC, com as seguintes temáticas, respeitantes ao atendimento do utente (o Recorrente): “HEMORRÓIDAS; A » Hemorróidas (K96)” e “PROBLEMA POR AGRESSÃO / ACONTECIMENTO VIOLENTO; A » Problema Por Agressão / Acontecimento Violento (Z25)”.
Depois da junção aos autos da já referida documentação foi realizada uma sessão da audiência de julgamento, em .../.../2024, na qual, além do mais, foi ouvida a testemunha / ofendido FF (afirmando o Recorrente que, aquando da inquirição do ofendido, foi feita uma breve referência ao mencionado relatório da Dra. CC pelo Tribunal a quo) e foram produzidas as alegações orais.
Na fundamentação da sentença recorrida, o tribunal a quo valorou a mencionada documentação proveniente da Unidade de Saúde (documentação clínica do Recorrente), referindo, a propósito, que:
“(…) a sua análise permitiu extrair, por um lado, que AA, efectivamente sofria de doença hemorroidária quando ali compareceu, mas também a forma violenta e intimidatória com que lidou com os profissionais de saúde que consigo contactaram, inclusivamente com o ofendido. Com efeito, tal como resulta dessa documentação, o arguido havia já assumido idêntico comportamento com uma outra médica, Dra. CC, mais uma vez, a pretexto do pretendido CIT (certificado de incapacidade para o trabalho).”.
O Recorrente mostra-se inconformado com o facto de a sentença recorrida ter valorado aquela documentação clínica, concretamente, o referido relatório elaborado pela Dra. CC, porquanto, alega o Recorrente, o mesmo não foi nem produzido (!) nem examinado em audiência de julgamento (nos termos do n.º 1 do art. 355.º do CPP), para lá de breve referência que lhe fez o douto Tribunal a quo aquando da inquirição do ofendido.
É manifesto que não assiste razão ao Recorrente.
De acordo com o disposto no art. 355º («proibição de valoração de provas»): 1 - Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. 2 - Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes.
Esta disposição, sede do princípio da imediação no processo penal português, proíbe que a convicção do tribunal se funde em provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência, ou seja, em contraditório perante o juiz que há-de proferir a decisão.
Contudo, se a jurisprudência e doutrina dominantes sublinham a importância da imediação no domínio das provas pessoais ou por declarações (devendo ser produzidos em audiência, salvo os casos legalmente excepcionados, os testemunhos e declarações do arguido, do assistente ou das partes civis, sob pena de os mesmos não poderem ser valorados), também sublinham a mitigação de tal exigência em relação às provas não declarativas (bastando que sejam examinadas em audiência os documentos, a reconstituição do facto, o reconhecimento de pessoas ou objectos, as buscas, revistas e apreensões, as escutas telefónicas, os exames e as perícias).
De resto, a jurisprudência constitucional admite a valoração de documentos constantes do processo e indicados pela acusação como meio de prova, ainda que não se tenha procedido à sua leitura (ou ao seu expresso exame) em audiência, assim como a consideração oficiosa de documentos constantes do processo desde o inquérito, ainda que não indicados pela acusação como meio de prova, se se tiver procedido ao seu exame em audiência (cfr. Ac. TC nº 87/99 e 110/2011, ambos citados por Paulo Pinto Albuquerque (Org.), in «Comentário do Código de Processo Penal», 5ª Ed., 2023, pags. 381 a 386, cuja exposição temos seguido de muito perto).
Efectivamente, a exigência do art. 355º, nº 1, do CPP, apenas se prende com a necessidade de evitar que concorram para a formação da convicção do tribunal provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo pelos intervenientes com respeito pelo princípio do contraditório. Basta, pois, que existam no processo com pleno conhecimento dos sujeitos processuais, podendo assim inteirar-se da sua natureza, da sua importância e do seu conteúdo, bem como do seu valor probatório, para que qualquer desses sujeitos possa, em audiência, requerer o que se lhe afigurar sobre elas, examiná-las, contraditá-las e realçar o que, do seu ponto de vista, valem em termos probatórios (cfr. Ac. STJ, de 17/09/2009; relator Rodrigues da Costa; in www.dgsi.pt).
Em relação à prova documental, por exemplo, considerar que o tribunal de 1ª Instância apenas poderia valorá-la uma vez lida e examinada na própria audiência de julgamento, perante todos os sujeitos processuais, configuraria uma formalidade excessiva e as mais das vezes desnecessária, que o princípio do contraditório e as normas processuais não demandam, e que apenas alongaria injustificadamente as audiências de julgamento.
Ora, a documentação clínica em análise, concretamente, o referido relatório elaborado pela Dra. CC, foi junta aos autos no decurso da audiência de julgamento, após despacho do tribunal a quo a solicitar tal junção à Unidade de Saúde competente (conforme acima referido), sendo que os sujeitos processuais tiveram conhecimento de tal junção e tiveram a oportunidade de o discutir e contraditar na audiência de julgamento, nada obstando, assim, a que tal documentação fosse valorada para a formação da convicção do tribunal a quo, sem necessidade do seu exame em audiência.
Decerto que o tribunal de 1ª Instância podia, oficiosamente ou a requerimento, ter entendido que se justificava confrontar o arguido ou até alguma das testemunhas com o conteúdo de tal prova documental, se considerasse que essa confrontação era útil para o apuramento da verdade material. Não tendo essa confrontação sido determinada, nem tão pouco requerida (sublinhando-se, contudo, que o próprio Recorrente parece admitir ter existido o exame de tal documentação em audiência de julgamento, porquanto refere, na sua motivação de recurso, que há uma breve referência ao mencionado relatório, feita pelo tribunal a quo, aquando da inquirição do ofendido), a valoração do acervo probatório correspondente não deixa por isso de ser possível, pelas razões acima adiantadas.
Questão diversa (diferente da possibilidade de uso de tal documentação) é a que se prende com a aptidão probatória de tal documentação, mas tal questão não está aqui em apreciação (tal apreciação será feita mais à frente).
Em suma, improcede, nesta parte, a pretensão recursiva.
3.3. Impugnação da matéria de facto.
O principal segmento da pretensão recursiva do Recorrente é o que se prende com a insurgência contra a decisão da matéria de facto.
Os poderes de cognição deste Tribunal abrangem a matéria de facto e de direito, nos termos do artigo 428º do Código Processo Penal (CPP).
Como se sabe, a forma e a extensão com que a impugnação da matéria de facto pode ser efectuada em recurso assume duas modalidades possíveis: a chamada revista alargada (ou impugnação restrita da matéria de facto) e a impugnação ampla da matéria de facto.
Na primeira modalidade (revista alargada ou impugnação restrita), está em causa a arguição dos vícios decisórios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, fazendo-se o escrutínio da decisão recorrida sem extravasar o texto decisório em si mesmo, ou seja, os vícios decisórios (traduzidos em falha, erro, omissão ou contradição) somente podem ser verificados em face do teor da decisão, «por si só ou conjugada com as regras de experiência comum», posto que não é admissível a valoração de elementos externos à decisão (nomeadamente, a avaliação das provas produzidas em audiência de julgamento).
Neste caso, o recorrente não tem mais que invocar a existência dos mencionados vícios (se o recurso apenas tiver como objecto tais vícios, os mesmos têm de ser invocados, sob pena de ausência de objecto; se o recurso tiver como objecto outro fundamento, tal invocação nem sequer é essencial), impondo-se ao tribunal, por dever de ofício, deles conhecer (pois que são os vícios extremos, em absoluto não tolerados pela ordem jurídica), desde que os mesmos sejam patentes e resultem da simples leitura da decisão recorrida.
Na segunda modalidade (impugnação ampla), prevista no art. 412º, nºs 3, 4 e 6, do CPP, está em causa uma reapreciação da decisão recorrida não restringida ao texto da decisão, mas através das provas que esta também apreciou e, consequentemente, a formulação de um juízo crítico autónomo pelo tribunal de recurso sobre a factualidade que deve ser dada como provada e não provada.
Cabem aqui todos os casos de erro (não notório) na apreciação da prova de que o tribunal de recurso se aperceba na reanálise dos pontos de facto apreciados e permitidos pelo recurso em matéria de facto. Entram neste campo o error in judicando (erro de julgamento), no qual se inclui o erro na apreciação das declarações orais prestadas em audiência e devidamente documentadas e a não ponderação ou errada ponderação de prova documental, erros que, não sendo notórios, impõem uma diversa ponderação. Assim como o uso inadequado de presunções naturais, conhecimentos científicos, regras de experiência comum ou simples lógica.
Neste caso, o recorrente tem de obedecer, na motivação de recurso, a um conjunto de requisitos pormenorizadamente regulados no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP. Com efeito, o recorrente que pretenda impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto deve obrigatoriamente especificar (desconsiderando aqui a questão da renovação da prova, que não se coloca no caso em apreciação): (i) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e (ii) as concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida, devendo esta segunda especificação ser feita, no caso de prova gravada, por referência ao consignado na acta, com indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação.
Em consonância, o art. 431º, al. b), do CPP estabelece que a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada se a prova tiver sido impugnada nos termos do nº 3 do art. 412º.
O recorrente tem, assim, o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa. Tal ónus (de impugnação especificada) tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo o recorrente indicar, em relação a cada facto, as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referir qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
Este modo de impugnação não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, ou seja, não pressupõe uma reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes constitui um mero remédio (jurídico) para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, isto é, trata-se de uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados.
Quer dizer, não obstante as mudanças que o sistema de recursos foi sofrendo nas sucessivas alterações legislativas (em cumprimento da garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto), o princípio estruturante do Código de Processo Penal permanece intocado: o verdadeiro julgamento é o da primeira instância e a apreciação da decisão sobre a matéria de facto pelo Tribunal da Relação é limitada (servindo a imposição de impugnação especificada como contrapartida da ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância).
No cumprimento da imposição de impugnação especificada, a censura quanto ao modo de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente por não existirem os dados objetivos que se apontam na motivação ou por se terem violado os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou ainda por não ter existido liberdade de formação da convicção. Doutra forma ocorreria uma inversão de posição das personagens do processo, mediante a substituição da convicção de quem tem de julgar pela convicção de quem espera a decisão (cfr. Acs. STJ, de 05/06/2008, proc. 06P3649, de 14-05-2009, proc. 1182/06.3PAALM.S1, de 29-10-2008, proc. 07P1016, e de 20-11-2008, proc. 08P3269; Ac. RC, de 24/02/2010, proc. 138/06.0GBSTR.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt; Cfr. Ac. TC nº 198/2004, de 24/03/2004, in DR, II S, de 01/06/2004; Cfr. Paulo Pinto Albuquerque, «Comentário do Código de Processo Penal», Vol. II, 2023, anotações ao art. 412º, pags. 676 e ss., e ao art. 428º, pags. 713 e ss.; cfr. João Pedro Baptista / Sérgio Maia Tavares Marques, “O recurso do arguido sobre a matéria de facto no processo penal português e o critério da imposição de decisão diversa da recorrida. Estudo à luz dos princípios in dúbio pro reo e da culpa provada, na Constituição e no Direito da União Europeia.”, in «Estudos em Homenagem ao Conselheiro Presidente Manuel da Costa Andrade», Volume I, 2023, pags. 1001 e ss.). No recurso dos presentes autos, a impugnação da matéria de facto inclui apenas a segunda das duas formas acima referidas (impugnação ampla), impondo-se, assim, a respectiva apreciação (esta conclusão não é afastada pelo facto de o Recorrente referir, na conclusão 1 da sua motivação, que o recurso é interposto, mais concretamente, da «motivação da decisão de facto» (o que aponta para a impugnação do texto da sentença recorrida em si mesmo); é certo que a sindicância da fundamentação da decisão recorrida é típica da impugnação restrita; contudo, por um lado, o Recorrente não invoca os vícios do art. 410º, nº 2, do CPP e, por outro lado, invoca as provas que, em seu entender, conduzem à modificação da decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida, aceitando-se, assim, que a impugnação da motivação da decisão de facto, referida pelo Recorrente, significa a sindicância das provas que originaram a decisão de facto). Da impugnação ampla da matéria de facto.
A pretensão recursiva do Recorrente integra a invocação de erro de julgamento em relação à matéria de facto dada como provada (factos provados nºs 3 [parcial], 5, 6, 7, 9, 10 e 11), pretendendo que o tribunal de recurso, no âmbito dos seus poderes de sindicância quanto à matéria de facto, profira decisão modificativa da decisão recorrida (revogue a decisão recorrida), estabelecendo versão factual (e jurídica) diferente daquela que o tribunal a quo considerou provada, e, assim, julgue não provada a matéria de facto que impugnou e, em consequência, o absolva da prática do crime pelo qual foi condenado (um crime de coacção agravada na forma tentada).
Para sustentar tal conclusão (fáctico-jurídica), o Recorrente invoca os factos que considera incorrectamente julgados (acima referidos) e manifesta discordância relativamente à argumentação que o tribunal a quo explanou para justificar o juízo probatório que realizou, rebatendo, no essencial, a conclusão probatória retirada pelo tribunal a quo, assente, no entender do Recorrente, (i) na sobrevalorização do depoimento do ofendido, (ii) na desvalorização das declarações do arguido / recorrente, (iii) na valoração de factos que não dizem directamente respeito à situação jurídico-problemática em apreciação (constantes da documentação clínica do arguido / recorrente e cuja valoração implica uma flagrante violação do princípio da responsabilidade pelo facto, do direito penal dos factos, e a adesão a um proscrito direito penal do agente) e (iv) na violação do princípio in dubio pro reo.
O Recorrido (MºPº), por seu turno, defende que a sentença recorrida efectuou uma correcta avaliação da prova, nos termos do art. 127º do CPP, não merecendo censura e devendo ser mantida na íntegra.
Vejamos.
A) Como já referido, a sindicância da decisão de facto, no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, implica a reapreciação da decisão de facto pelas provas, não havendo uma mera sindicância da fundamentação da decisão recorrida (típica da impugnação restrita).
A sindicância de um juízo sobre a prova – ou seja, a sindicância de uma convicção alheia, do juiz de julgamento – só se concretiza reapreciando a mesma prova, pois só esta desempenha as funções de mediação entre o facto e o juiz (cfr. Ana Barata Brito, “Os poderes de cognição das Relações em matéria de facto em processo penal”, in www.tre.tribunais.org.pt).
Assim, a reapreciação da decisão de facto pelas provas envolve necessariamente uma nova apreciação das provas produzidas e a emissão de um novo juízo em matéria de facto (pedindo-se ao tribunal de recurso que sindique a convicção alheia, para perceber se, perante as provas produzidas, essa era a convicção probatória correcta e que se impunha existir, não constituindo óbice relevante para alcançar tal desiderato a circunstância de o tribunal de recurso não ter podido intervir no processo de produção de algumas das provas), embora rigorosamente restrito aos pontos questionados pelo recorrente.
Neste caso, como já referido, o recorrente tem de obedecer, na motivação de recurso, a um conjunto de requisitos pormenorizadamente regulados no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP.
Com efeito, o recorrente que pretenda impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto deve obrigatoriamente especificar (desconsiderando aqui a questão da renovação da prova, que não se coloca no caso em apreciação): (i) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e (ii) as concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida, devendo esta segunda especificação ser feita, no caso de prova gravada, por referência ao consignado na acta, com indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação.
Tal ónus (de impugnação especificada) tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo o recorrente indicar, em relação a cada facto, as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referir qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
Este ónus cumpre, assim, a dupla função de definição da extensão da dissidência do recorrente relativamente à decisão recorrida e de delimitação dos poderes cognitivos do tribunal de recurso. Uma vez observados pelo recorrente os requisitos previstos no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP, o tribunal de recurso tem de averiguar se as provas indicadas pelo recorrente, por si só ou conjugadamente com as demais provas valoráveis, impõem uma decisão diversa da recorrida (concretamente, se tais provas impõem uma versão factual diversa daquela dada como provada na decisão recorrida).
B) O Recorrente pretende a revisão dos «factos provados nºs 3 [parcial], 5, 6, 7, 9, 10 e 11».
O Recorrente cumpriu minimamente o formalismo previsto no art. 412º, nº 3 (e nº 4), do CPP, especificando quais os factos que considera incorrectamente julgados e indicando as questões probatórias (e as provas) – acima já identificadas – cuja procedência implica a modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto (nos termos do art. 431º do CPP), substituindo-a por outra que, por conseguinte, o absolva do crime pelo qual vinha acusado (um crime de coacção agravada na forma tentada).
Assim, como já referido, impõe-se que este Tribunal aprecie as questões probatórias invocadas pelo Recorrente e, nessa medida, reaprecie a prova (in casu, a prova indicada pelo Recorrente, por si só ou conjugadamente com as demais provas valoráveis), emitindo, depois, um novo juízo em matéria de facto (restrito aos pontos factuais questionados pelo Recorrente), em que conclua (i) pela correcção da convicção probatória levada a cabo pelo tribunal a quo e consequente manutenção da versão factual fixada na decisão recorrida ou (ii) pela incorrecção da convicção probatória levada a cabo pelo tribunal a quo e consequente (imposição de) alteração da versão factual fixada na decisão recorrida.
C) A primeira questão probatória que importa analisar consiste na invocação pelo Recorrente do erro de julgamento do tribunal a quo traduzido na valoração de factos que não dizem directamente respeito à situação jurídico-problemática em apreciação (constantes da documentação clínica do arguido / recorrente e cuja valoração implica uma flagrante violação do princípio da responsabilidade pelo facto, do direito penal dos factos, e a adesão a um proscrito direito penal do agente).
Sustenta o Recorrente que o tribunal a quo, para dar como provada a conduta de agressividade e de intimidação do Recorrente para com o médico que o atendeu (o ofendido) (e, por conseguinte, para desvalorizar probatoriamente as declarações prestadas pelo Recorrente em julgamento), valorou idênticos / similares comportamentos alegadamente praticados pelo Recorrente noutras circunstâncias, resultando tal valoração do tribunal a quo da circunstância de ter levado em consideração o teor da documentação clínica do Recorrente que foi junta aos autos após ofício, nesse sentido, que o tribunal a quo dirigiu à respectiva Unidade de Saúde.
Está em causa (conforme já foi assinalado na análise que se fez à possibilidade de uso da documentação clínica do Recorrente que foi junta aos autos em sede de julgamento) a questão da aptidão probatória de tal documentação clínica.
Conforme resulta dos autos, na sequência de despacho proferido na sessão de julgamento de .../.../2024, a «Unidade de Saúde Ucsp ...» juntou aos autos (email de .../.../2024 – refª 25804389) documentação que qualificou como informação referente ao utente daquela Unidade (o Recorrente).
Nessa documentação constam vários documentos e, no que agora releva, dois documentos qualificados como «Registo Clínico de Consulta», um de .../.../2022 (da autoria do ofendido Dr. FF) e outro de .../.../2022 (da autoria da Dra. CC).
No que respeita ao «Registo Clínico de Consulta» datado de .../.../2022, da autoria da Dra. CC, o mesmo contém as seguintes temáticas, respeitantes ao atendimento do utente (o Recorrente): “HEMORRÓIDAS; A » Hemorróidas (K96)” e “PROBLEMA POR AGRESSÃO / ACONTECIMENTO VIOLENTO; A » Problema Por Agressão / Acontecimento Violento (Z25)”.
Neste «Registo Clínico de Consulta» consta, além do mais, o seguinte:
“... AC Agudização dç hemorroidária com analgia com prurido Teve consulta de cirurgia no ... em .......22 e estará em lista de espera ... utente muito conflituoso, mal educado, que exige CIT, diz muitas asneiras e recusa sair do gabinete após eu ter dito que teria de marcar consulta de doença aguda na UCSP de ... em horário 8-20h Contactei 112 que enviaram agentes da PSP, identificaram utente que verbalizou precisar da baixa para ir para ... Mudei de gabinete até utente abandonar as instalações do ... P HEMORRÓIDAS PROBLEMA POR AGRESSÃO / ACONTECIMENTO VIOLENTO (…)”.
[Depois da junção aos autos da já referida documentação foi realizada uma sessão da audiência de julgamento, em .../.../2024, na qual, além do mais, foi ouvida a testemunha / ofendido FF (afirmando o Recorrente que, aquando da inquirição do ofendido, foi feita uma breve referência ao mencionado relatório da Dra. CC pelo Tribunal a quo) e foram produzidas as alegações orais.]
Na fundamentação da sentença recorrida, o tribunal a quo valorou a mencionada documentação proveniente da Unidade de Saúde (documentação clínica do Recorrente), referindo, a propósito, que:
“(…) a sua análise permitiu extrair, por um lado, que AA, efectivamente sofria de doença hemorroidária quando ali compareceu, mas também a forma violenta e intimidatória com que lidou com os profissionais de saúde que consigo contactaram, inclusivamente com o ofendido. Com efeito, tal como resulta dessa documentação, o arguido havia já assumido idêntico comportamento com uma outra médica, Dra. CC, mais uma vez, a pretexto do pretendido CIT (certificado de incapacidade para o trabalho).”.
Resulta evidente, portanto, que o tribunal a quo teve em consideração, na formação da sua convicção sobre a matéria de facto em discussão, o teor (i.e., o relato factual que aí consta) da já mencionada documentação clínica, concretamente, o «Registo Clínico de Consulta» datado de .../.../2022, da autoria da Dra. CC.
Ora, sejamos claros, não vemos que tal actuação do tribunal a quo (ter em consideração o teor do referido «Registo Clínico de Consulta») configure qualquer vício, concretamente, uma flagrante violação do princípio da responsabilidade pelo facto, do direito penal dos factos, e a adesão a um proscrito direito penal do agente.
É pacífico que os médicos e os hospitais estão obrigados a proceder à documentação e registo da actividade clínica (por várias razões, nomeadamente, para garantir o direito do utente de acesso à informação clínica).
A Lei nº 12/2005, de 26-01 (Define o conceito de Informação Genética Pessoal e Informação de Saúde), no seu art. 5º, para além de referir que a informação médica “é a informação de saúde destinada a ser utilizada em prestações de cuidados ou tratamentos de saúde”, estabelece o conceito de processo clínico como “qualquer registo, informatizado ou não, que contenha informação de saúde sobre doentes ou seus familiares”, que deve conter toda a informação médica disponível que diga respeito à pessoa.
Incumbe aos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde, independentemente da sua natureza – singular ou colectiva, pública ou privada –, o dever de criar, manter, actualizar e conservar em arquivo ficheiros adequados, relativos aos processos clínicos dos seus utentes (embora o processo clínico seja propriedade do utente, são os estabelecimentos de saúde os depositários da informação e, portanto, é sobre eles que recai o dever de o proteger).
Quer dizer, a existência de registos clínicos, como os «Registos Clínicos de Consulta» juntos aos autos, resulta de um verdadeiro dever jurídico de documentação.
Conforme resulta da análise dos vários «Registos Clínicos de Consulta» juntos aos autos, existe até um procedimento uniformizado de preenchimento de tais registos clínicos: o método ....
O método ..., amplamente utilizado em diversos contextos de saúde, incluindo Medicina Geral e Familiar, e frequentemente associado a sistemas de registo clínico eletrónico, constitui um sistema estruturado de registo clínico utilizado para organizar informações sobre um paciente durante uma consulta ou avaliação.
O método ... divide as informações em quatro categorias: Subjetivo (S), Objetivo (O), Avaliação (A) e Plano (P):
Subjetivo (S): Inclui as informações relatadas pelo paciente sobre os seus sintomas, histórico da queixa e percepções sobre a sua condição de saúde.
Objetivo (O): Contém os dados objetivos colectados pelo profissional de saúde, como resultados de exames físicos, sinais vitais e resultados de exames complementares.
Avaliação (A): É a interpretação dos dados subjetivos e objetivos, resultando num diagnóstico ou hipótese diagnóstica.
Plano (P): Descreve as próximas etapas do cuidado do paciente, incluindo tratamentos, encaminhamentos e acompanhamento.
O método ... facilita a comunicação entre os profissionais de saúde, garantindo que todos tenham acesso às mesmas informações sobre o paciente, ajuda a organizar os dados da consulta de forma lógica e sistemática, evitando informações perdidas e redundantes, permite um melhor acompanhamento da evolução do paciente ao longo do tempo, pois os dados são registados de maneira estruturada, e serve como um registo detalhado da consulta, importante para fins de documentação clínica e possíveis necessidades futuras.
No caso dos autos, foi utilizado o método ... nos vários «Registos Clínicos de Consulta» respeitantes ao Recorrente, com inclusão uniformizada, nos dois «Registos» que agora relevam (do ofendido e da Dra. CC), da mesma menção, na parte respeitante à avaliação (...P): “PROBLEMA POR AGRESSÃO / ACONTECIMENTO VIOLENTO”, aceitando-se que tal menção (ela própria uniformizada, como referido) tenha de ser consignada quando suceda algo no atendimento médico que se enquadre nesta temática.
Em resumo, a existência dos mencionados «Registos Clínicos de Consulta» (com as inerentes menções) apresenta-se como algo revestido de normalidade, decorrente do cumprimento de uma obrigação legal.
É evidente que estes «Registos Clínicos de Consulta», apesar de sujeitos a regras próprias legalmente impostas, constituem documentos particulares, cujo valor probatório é o que resulta das normas legais aplicáveis aos documentos particulares.
Assim, de acordo com a regra do nº 1 do art. 376º do Código Civil, o documento particular prova plenamente que a pessoa a quem é atribuído fez as declarações dele constantes, isto é, prova a materialidade da declaração. Porém, tal força probatória plena não significa que os factos documentados sejam todos eles verdadeiros ou que se hajam de considerar provados. No que respeita à realidade dos factos afirmados ou, para utilizar as palavras da lei, dos «factos compreendidos na declaração», vale a regra do nº 2 do art. 376º do Código Civil, considerando-se tais factos provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (sendo certo que esta norma não tem aplicação ao caso dos autos, uma vez que o declarado nos documentos / registos clínicos de consulta não contém qualquer confissão escrita de factos desfavoráveis).
Quer dizer, saber se o que está documentado ocorreu, de facto, é matéria que não se encontra abrangida pela força probatória do documento em causa, que, nessa parte, pode ser livremente apreciado pelo juiz.
A valoração dos registos clínicos (das declarações aí inseridas) está sujeita ao regime da prova livre, i.e., tais elementos documentais devem se valorados no âmbito da livre apreciação da prova pelo tribunal (podendo recorrer-se a outros elementos de prova como forma de apurar a veracidade das declarações inseridas nos registos clínicos), tal como resulta do disposto nos arts. 125º, 127º e 164º, todos do CPP).
Em consequência, nada obstava a que os «Registos Clínicos de Consulta» juntos aos autos, atrás identificados, fossem valorados, como foram (em conjugação com outros elementos de prova, conforme resulta da motivação da sentença recorrida), para a formação da convicção do tribunal a quo, no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, sem que tal valoração probatória configure qualquer vício, concretamente, uma flagrante violação do princípio da responsabilidade pelo facto, do direito penal dos factos, e a adesão a um proscrito direito penal do agente.
Em suma, improcede, nesta parte, a pretensão recursiva.
D) A segunda questão probatória que importa analisar consiste na invocação pelo Recorrente do erro de julgamento do tribunal a quo traduzido na sobrevalorização do depoimento do ofendido e na desvalorização das declarações do arguido / recorrente.
Sustenta o Recorrente que o depoimento do ofendido apresenta incoerências várias, que não é possível afirmar que o registo escrito do atendimento é verdadeiro e que não é possível valorar a apreciação que o ofendido fez do relatório / registo clínico elaborado por outra médica.
Sustenta o Recorrente, por outro lado, que as suas declarações contrariam em tudo o que resulta do depoimento do ofendido e, bem assim, o que resulta do relatório / registo clínico redigido pelo ofendido em ... de ... de 2022, não sendo possível saber quem conta a verdade e, por isso, deveria ter-se absolvido o Recorrente, em homenagem ao princípio da presunção de inocência.
O Recorrido (MºPº) defende que a sentença recorrida efectuou uma correcta avaliação da prova, nos termos do art. 127º do CPP, não merecendo censura.
Vejamos, então, se as provas indicadas pelo Recorrente (depoimento do ofendido e declarações do arguido / recorrente, bem como a prova documental [registos clínicos] existente nos autos, que, no fundo, constituem provas que o tribunal a quo igualmente usou na formação da sua convicção), por si só ou conjugadamente com as demais provas valoráveis, impõem uma decisão diversa da recorrida (concretamente, se tais provas impõem uma versão factual diversa daquela dada como provada na decisão recorrida).
A resposta, em nosso entender, não pode deixar de ser negativa.
Como já referido, por força do disposto no art. 412º, nº 3, do CPP, não é uma qualquer divergência que pode levar o tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto.
As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com a valoração que o tribunal a quo efectuou, devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados (e não provados).
Ou seja, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo. Na verdade, são frequentes os julgamentos onde estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações de arguido, seja com base em declarações de assistente, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.
Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.
É necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento (ou melhor, a prova existente nos autos susceptível de ser valorada) só poderia ter conduzido à solução por si pugnada em sede de elenco de matéria de facto provada (e não provada) e não à consignada pelo tribunal a quo.
E na análise da prova que apresenta na sua impugnação da matéria de facto (alargada) tem o recorrente de argumentar fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova, conforme já foi atrás analisado.
Este formalismo recursivo, como já referido, vai ao encontro da ideia de que o reexame da matéria de facto não se destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1ª Instância.
Ora, analisada a prova existente nos autos, indicada pelo Recorrente (depoimento do ofendido e declarações do arguido), no âmbito da questão probatória por este colocada perante este tribunal de recurso (a conduta do Recorrente traduzida, sucintamente, em constranger o ofendido, através de ameaças contra a sua integridade física e imposição da sua presença no seu gabinete, a emitir uma baixa médica que não era devida, bem sabendo que o mesmo era médico do SNS e, portanto, funcionário público, intento que apenas não logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade), concatenada com a apreciação da prova levada a cabo pelo tribunal a quo, nos termos vertidos na fundamentação, sendo que a prova é apreciada pelo tribunal segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º do CPP), conclui-se pela inexistência de qualquer erro de julgamento do tribunal a quo (incorrecta valoração da prova e/ou fixação factual sem sustentáculo probatório).
Vejamos.
Em matéria de recurso da decisão final, a «peça chave» para aquilatar, em primeira linha, da viabilidade de qualquer sindicância é a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Isto também é assim mesmo que o recurso tenha por objecto a reapreciação da prova gravada, pois a fundamentação é, em regra, o «sismógrafo» do bom ou mau julgamento da matéria de facto.
Contudo, uma sentença bem motivada, na parte que aqui interessa (da motivação da matéria de facto), apenas explica adequada e suficientemente a razão do convencimento do juiz, não garantindo, por si só, que o juiz se convenceu bem (mas, uma sentença bem motivada indicia, em geral, a inexistência de incorrecção no juízo probatório realizado pelo tribunal).
É este controlo – o de averiguar se o juiz se convenceu bem – que o recurso da matéria de facto viabiliza, competindo ao tribunal de recurso – de acordo com o pedido do recorrente – detectar e reparar (se existir) o erro de facto, não apenas o notório, o evidente ou grosseiro.
Ora, perante versões contraditórias dos factos, o tribunal a quo fez uma opção probatória que consistiu, essencialmente, em valorizar positivamente determinada prova (o depoimento do ofendido que, no entender do tribunal a quo, mereceu inteira credibilidade) em detrimento de outras provas carreadas para os autos (maxime, as declarações do arguido, referindo o tribunal a quo, além do mais, que a negação dos factos pelo arguido e as explicações dadas para a sua apropriação do cartão do médico, não mereceram credibilidade).
Sublinhe-se, o tribunal a quo explicitou devidamente as razões de tal opção, sendo certo que tal explicitação tem respaldo na prova existente nos autos.
Quer dizer, a alegação recursiva do Recorrente, quando confrontada com a prova existente nos autos (que este tribunal analisou), não impõe uma versão factual diversa da que foi dada como provada na sentença recorrida.
Pelo contrário, a exuberância probatória presente nos autos impõe que se mantenha a versão factual dada como provada na sentença recorrida.
É evidente, perante a prova existente nos autos, não ser possível afirmar que a conduta do Recorrente, plasmada nos factos provados da sentença recorrida, não ocorreu.
Desde logo, conforme acima decidido, em contrário ao pretendido pelo Recorrente, nada obstava a que os «Registos Clínicos de Consulta» juntos aos autos, atrás identificados, fossem valorados, como foram (em conjugação com outros elementos de prova, conforme resulta da motivação da sentença recorrida), para a formação da convicção do tribunal a quo, no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, resultando de tais registos clínicos “a forma violenta e intimidatória com que lidou com os profissionais de saúde que consigo contactaram, inclusivamente com o ofendido”.
Depois, as razões invocadas pelo tribunal a quo para conferir inteira credibilidade ao depoimento do ofendido (e não conferir credibilidade às declarações do arguido / recorrente) têm conforto na prova existente nos autos (no depoimento do ofendido, por si e na parte em que confirma a autoria do registo clínico do seu atendimento ao arguido / recorrente e a veracidade dos factos aí relatados).
Por fim, há que fazer referência ao depoimento da testemunha EE, agente da PSP chamado ao local no dia dos acontecimentos. É certo que esta testemunha não presenciou os factos (como é referido na sentença recorrida, o arguido já não se encontrava no Centro de Saúde quando ali chegou), mas esteve no local com o ofendido, que se encontrava desapossado do seu cartão de identificação, servindo este testemunho para confirmar, de acordo com as regras da experiência, que algo ocorreu naquele dia e àquela hora (os factos confirmados pelo ofendido e negados pelo arguido / recorrente) e que até determinou o chamada da autoridade policial.
Em suma, improcede, nesta parte, a pretensão recursiva.
E) A terceira questão probatória que importa analisar consiste na invocação pelo Recorrente do erro de julgamento do tribunal a quo traduzido na violação do princípio in dubio pro reo.
Como fundamento da aplicação, in casu, do princípio da presunção de inocência e in dubio pro reo, o Recorrente invoca, essencialmente, a insuficiência probatória para a decisão da matéria de facto provada, referindo, a propósito, que as incoerências do depoimento do ofendido e a coerência das suas declarações, conduzem a que não se saiba “quem conta a verdade”, aparecendo a sua absolvição como a única atitude legítima a adoptar e representando a sua condenação uma violação do art. 32º, nº 2, da CRP.
O Recorrido (MºPº) defende que a sentença recorrida efectuou uma correcta avaliação da prova, nos termos do art. 127º do CPP, não merecendo censura.
O princípio in dubio pro reo – corolário do princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32º, nº 2, da CRP) – determina a absolvição em caso em caso de dúvida do julgador sobre a culpabilidade do acusado, i.e., o juiz deve pronunciar-se de forma favorável ao réu / acusado, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa
O tribunal só lança mão do princípio in dubio pro reo se a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras da experiência e da liberdade de apreciação (art. 127º do CPP), tiver conduzido à subsistência, no espírito do julgador, de uma dúvida positiva invencível sobre a verificação ou inexistência de um facto relevante para a descoberta da verdade.
O princípio da livre apreciação da prova, entendido como esforço para alcançar a verdade material, como tensão de objectividade, encontra assim no “in dubio pro reo” o seu limite normativo: ao mesmo tempo que transmite o carácter objectivo à dúvida que acciona este último. Livre convicção e dúvida que impede a sua formação são face e contra-face de uma mesma intenção: a de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva.
Entendidos, assim, objectivamente, os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, sempre será de considerar este princípio violado quando o tribunal dá como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que o tribunal não tenha manifestado ou sentido a dúvida que, porém, resulta de uma análise e apreciação objectiva da prova produzida à luz das regras da experiência e/ou de regras legais ou princípios válidos em matéria de direito probatório (cfr. art. 127º do CPP) (cfr. Ac. RE, de 30/01/2007; relator: António João Latas; in www.dgsi.pt).
O campo de aplicação privilegiada do mencionado princípio é o da impugnação ampla da matéria de facto, como é óbvio.
No âmbito da impugnação restrita da matéria de facto, a aplicação do referido princípio conduz apenas a averiguar se o tribunal manifestou alguma dúvida probatória na fundamentação da decisão e, por erro de raciocínio ou por juízo ilógico, valorou tal dúvida em desfavor do arguido.
O in dubio pro reo é um princípio processual penal circunscrito à matéria de facto. Trata-se de uma regra de valoração probatória dirigida ao tribunal do julgamento, não o obrigando a duvidar, mas sim a absolver, quando, valoradas todos os elementos de prova produzidos, persistam dúvidas razoáveis sobre os factos e/ou a responsabilidade do acusado.
Quer isto dizer que a sua verificação pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, sendo certo, todavia, que a simples existência de versões díspares e até contraditórias sobre os factos relevantes, não implica que se aplique, sem mais, o princípio in dubio pro reo.
Para fazer desencadear a aplicação deste princípio será necessário que a versão do arguido seja plausível e demonstrável, pois só uma versão credível subjaz a uma dúvida racional. Não basta a mera plausibilidade e verosimilhança da sua versão para que surja sem mais, a dúvida séria e razoável.
A dúvida só pode surgir de uma versão plausível dos factos minimamente fundada e sustentada.
Se da decisão recorrida resultar que o tribunal chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido, há que concluir pela violação de tal princípio.
Importa, assim, indagar se, no caso, a regra da absolvição na dúvida foi, ou não, violada.
E a resposta a dar depende da apreciação que se fizer sobre se merece censura o processo lógico e racional, subjacente à formação da afirmada convicção. Depende do facto de se poder, ou não, considerar como suficiente e bastante a fundamentação. Depende do facto de se poder, ou não, afirmar que o tribunal errou na apreciação e na valoração que fez da prova.
O que nos remete para a formulação da questão de saber qual o grau de certeza exigível para que se dê determinado facto como provado.
Isto, porque a certeza que se visa alcançar será sempre uma certeza possível, uma firme persuasão da verdade e nunca a certeza absoluta, mas antes a verdade lógica, racional e processualmente válida resultante da concreta prova produzida nos autos.
Ora, da análise atrás empreendida, resultou claro não ter o tribunal a quo errado na apreciação e valoração que fez da prova, ficando igualmente claro que nenhuma dúvida assolou o tribunal a quo sobre o modo como os factos se passaram e sobre a culpabilidade do arguido / recorrente, sendo certo que “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida” (cfr. Claus Roxin, “Derecho Procesal Penal”, Buenos Aires, ..., pag. 111).
E a dúvida, que impede o julgamento como provado de determinado facto, é apenas aquela que o tribunal tiver e não a dúvida que o arguido entende que o tribunal deveria ter tido.
Em suma, improcede o recurso, nesta parte, por não se mostrar violado o princípio in dubio pro reo.
III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 9ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa, na apreciação do recurso interposto pelo arguido / recorrente AA, em:
a) Proceder, nos termos do art. 380º, nº 1, al. b) e nº 2, do CPP, à rectificação dos lapsos de escrita existentes na sentença recorrida, nos seguintes termos: nos factos provados nºs 1 e 2, onde consta «... de ... de 2022» passará a constar «... de ... de 2022»; no facto provado nº 13, onde consta «........2022» passará a constar «........2023»;
b) Julgar improcedente tal recurso, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça (art. 513º, nºs 1 e 3, do CPP e art. 8º, nº 9, do RCP, por referência à Tabela III anexa).
Notifique.
Certifica-se que foi dado cumprimento ao disposto no art. 94º, nº 2, do CPP.
Lisboa, 25 de Setembro de 2025
Nuno Matos
Eduardo de Sousa Paiva
Maria de Fátima R. Marques Bessa