CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
DECLARAÇÃO TÁCITA
PEDIDO IMPLÍCITO
TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA
Sumário

(da responsabilidade do Relator)
I. Os requerimentos formulados nos autos pelos intervenientes processuais devem ser interpretados à luz dos princípios e regras gerais de interpretação das declarações negociais, aqui se incluindo o artigo 217º do Código Civil, que tem por epígrafe: «declaração expressa e declaração tácita».
II. Para que se identifique uma «declaração tácita», o que se exige é que, de acordo com um critério prático, empírico, à luz dos usos da vida, haja, quanto aos factos de que se trata, toda a probabilidade de terem sido praticados com uma dada significação negocial, sendo que esta «toda a probabilidade» não exige que esteja absolutamente precludida a possibilidade de outra interpretação; ou seja, para que os factos possam ser vistos como concludentes na evidenciação de uma declaração tácita interessa pois que a revelem com toda a probabilidade à luz dos «usos do ambiente social».
III. Se o Recorrente apresentou queixa contra o Arguido; se o Recorrente pediu apoio judiciário na modalidade de dispensa de custas e nomeação de patrono; se o Recorrente é notificado do despacho de arquivamento do inquérito e nessa notificação consta a expressa referência a que, para lograr a abertura de instrução, tem de requerer a sua constituição como assistente; se a habilitação como assistente constitui condição inequivocamente necessária, de acordo com o Código de Processo Penal, para garantir a legitimidade processual do ofendido para requerer a abertura de instrução; se, ante esse despacho de arquivamento, o ofendido vem efetivamente a apresentar um requerimento de abertura de instrução; e se, nestas circunstâncias, a prática forense evidencia com toda a clareza que o interessado, do mesmo passo que requer a abertura de instrução, requer ainda, como não pode deixar de requerer, a sua constituição como assistente, seja no mesmo documento, seja em documento autónomo apresentado na mesma ocasião; do conjunto desta sequência processual e do «ambiente social» específico em que se integra, retiramos, da parte do Recorrente, uma declaração expressa no sentido de que pretende a abertura de instrução e uma declaração tácita de que pretende necessária e forçosamente a sua prévia constituição como assistente.
IV. E ainda que houvesse dúvidas sérias a esse respeito, a reação judiciária não pode passar por uma liminar e drástica rejeição da abertura de instrução, votando os autos a um definitivo arquivamento.
V. As exigências decorrentes da garantia constitucional de acesso ao direito, ao processo equitativo e à justiça e, neste caso, do direito de o ofendido intervir em processo penal, não afastam, é certo, a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo e é por isso compatível com a imposição de ónus processuais aos interessados.
VI. Todavia, uma coisa é saber quais os requisitos substantivos e processuais para o requerimento de abertura de instrução ou para a habilitação de alguém como assistente no processo; outra é saber o que fazer no caso de, ao tempo em que o juiz é chamado a tomar posição sobre os incidentes – o requerimento de abertura de instrução, o requerimento de constituição como assistente ou ambos – não se acharem observados aqueles requisitos ou algum ou alguns deles.
VII. Num esforço de concretização do juízo de proporcionalidade a atender quando esteja em causa a imposição de ónus processuais aos interessados, há três vetores essenciais a considerar: (i) a justificação da exigência processual em causa; (ii) a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado; (iii) e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus processuais.
VIII. Os direitos ao processo e a uma tutela jurisdicional efetiva impõem que se atribua prevalência à justiça material sobre a justiça formal, evitando-se soluções que, devido à exigência de cumprimento de requisitos processuais, conduzam a uma decisão que poderá traduzir-se numa verdadeira denegação de justiça; e ainda que não possa afirmar-se que a nossa CRP acolha um genérico, irrestrito e ilimitado “direito” dos intervenientes processuais à obtenção de um sistemático convite ao aperfeiçoamento de todas e quaisquer deficiências dos atos por elas praticados em juízo, particularmente quando se trate de erros indesculpáveis, ainda assim, o convite ao aperfeiçoamento tem sentido e justificação quando as deficiências em causa forem de natureza estritamente formal ou secundária, dizendo apenas respeito à “apresentação” ou “formulação”, e já não ao conteúdo da pretensão.
IX. Nada obstaria, portanto, a que, entendendo-se que existia na matéria uma situação de dúvida sobre se o requerente da instrução pretendia ou não ser admitido a intervir como assistente, a que se lhe dirigisse um convite ao esclarecimento da sua posição, em linha, aliás, com o caminho proposto pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 3/2024.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – RELATÓRIO
No Tribunal Central de Instrução Criminal foi proferido despacho em ... de ... de 2025 que rejeitou o requerimento de abertura de instrução formulado pelo queixoso AA, com os demais sinais identificativos constantes dos autos.
Tem esse despacho o seguinte teor:
«Nos presentes autos, findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, ao abrigo do disposto no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (cfr. fls. 45 e segts.).
Notificado de tal despacho, veio o queixoso AA, requerer a abertura de instrução, nos termos constantes do requerimento de fls. 61 e segts..
Decorre do artigo 287.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, que a abertura de instrução pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Publico não tiver deduzido acusação.
Ora, no caso vertente o requerente e ofendido AA nunca se constituiu assistente, pelo que carece de legitimidade para requerer a abertura de instrução.
Assim, e ao abrigo do artigo 287.º, n.ºs. 1, al. b), e 3, do Código de Processo Penal, rejeito, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução apresentado por AA.
Sem custas.
Notifique.»
Inconformado, o queixoso interpôs o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões:
«A. O Recorrente tempestivamente, requereu a abertura de instrução, que lhe foi erradamente negada por não ter manifestado expressamente no Requerimento de abertura de instrução a sua constituição enquanto assistente.
B. O Recorrente é ofendido, procedeu à formalização da queixa e por ter interesse em acompanhar a ação penal, num crime de natureza semipública, requereu apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
C. O Recorrente estava representado por Advogado (patrono oficioso) e tendo isenção de custas e demais despesas processuais, naturalmente omitiu o comprovativo de pagamento de taxa de justiça devida pois a ela não estava obrigado por força do apoio judiciário concedido.
D. A condição de assistente não deve exigir a formulação explícita do pedido, quando todas as ações levadas a cabo o manifestam per si.
E. Mesmo em sede processual deverá prevalecer a substância sobre a forma.
F. O critério de atribuição de legitimidade para a constituição do assistente previsto no art. 68º nº 1 al. a) do CPP, desdobra-se em dos aspetos cumulativos: a condição de ofendido, no sentido de pessoa que sofreu os prejuízos resultantes da prática do crime e a titularidade de direitos ou interesses diretamente implicados no bem jurídico visado pela incriminação.
G. O regime jurídico atinente à figura do assistente alicerça-se na constatação de que o reconhecimento ao ofendido do direito de intervir no processo, nos termos da lei, deve ser uma das garantias do processo criminal (art. 32º nº 7 da CRP).
H. Ao não admitir a abertura de instrução, nem a sua constituição de assistente ou não ter sequer convidado o mesmo a aperfeiçoar o requerimento conforme seu entendimento, o juiz a quo violou os artigos 68º, nº 3 e 4 e 287º, nº 1 e 3 do CPP e o artigo 6º, nº 2 e 7 do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do artigo 4º do CPP.
Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência ser o douto despacho revogado e substituído por outro no qual seja admitido o Requerimento de Abertura de Instrução e declarada ao Recorrente a condição de Assistente, fazendo-se assim a Costumada JUSTIÇA!»
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
Alega para o efeito que o Recorrente, à data em que apresentou o requerimento de abertura de instrução, estava em tempo para requerer a sua constituição como assistente e que, não o tendo feito, não lhe assiste legitimidade para lograr a abertura de instrução.
Mais refere que, por força do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/2005, é legalmente inadmissível a prolação de um despacho de aperfeiçoamento.
O Arguido BB, mais bem identificado nos autos, não apresentou resposta ao recurso.
Chegados os autos a esta Relação, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta lavrou douto parecer, acompanhando a resposta que fora apresentada pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância, concluindo, em síntese, que a constituição como assistente requer uma manifestação de vontade inequívoca nesse sentido, por requerimento próprio.
Não foi apresentada qualquer resposta a este parecer.
Os autos foram aos vistos e realizou-se a conferência.
*
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Questões a decidir
Sem prejuízo da eventual existência de problemáticas de apreciação oficiosa, são as conclusões do Recorrente, como é consabido, que delimitam o objeto do recurso.
Nessa medida, o que importa tratar é saber se deve ou não ser reconhecida legitimidade ao Recorrente para requerer a abertura de instrução, apesar de não ter formulado expressamente requerimento de constituição como assistente.
2.2 Factos processuais
Com potencial relevo para a decisão, resultam dos autos os seguintes factos processuais:
2.2.1 Os presentes autos iniciaram-se com a exposição assinada por AA, datada de ... de ... de 2023, na qual declara, entre o mais, o seguinte: «(…) Venho por este meio (…) denunciar o Sr. BB de ser o autor moral da tentativa de homicídio que sofri na madrugada de ... na ... , e as razões pelas quais o acuso (…). A PSP de Alcântara perguntou se eu queria apresentar queixa, não o fiz porque fui ameaçado de morte e fui para Espanha fugido daqui (…). Quando voltei para casa e novamente fui vítima às mãos deste senhor. Ele foi o autor moral de duas tentativas de homicídio contra mim (…). O motivo desta comunicação é acuso o BB de ser o autor moral das duas tentativas de homicídio de que fui vítima uma em finais de ... e outra em ... de ... de 2014 e agora novamente ameaçar a minha vida aqui internamente e no futuro. (…)»
2.2.2 Por despacho de ... de ... de 2023 o Ministério Público determinou o registo, distribuição e autuação do inquérito.
2.2.3 Por despacho de ... de ... de 2024 o Ministério Público viria a arquivar o inquérito, nos seguintes termos:
«I. Dos factos:
Na origem do presente inquérito está a denúncia, de fls. 2ss., na qual AA se queixa de BB.
*
II. Da qualificação jurídica:
Tais factos, abstratamente considerados, são suscetíveis de integrar a prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo disposto nos artigos 153.º e 154.º do Código Penal.
*
III. Da fundamentação:
Em sede de inquérito foram realizadas as diligências tidas por úteis e necessárias ao esclarecimento dos factos.
AA confirmou a denúncia por se sentir ameaçado pelos factos ocorridos no Estabelecimento Prisional ..., em Lisboa, e que soube de conversas entre outros reclusos (cfr. fls. 30-31). BB refutou tais factos, dizendo que são falsos (cfr. fls. 40-41).
Não foram indicados outros elementos de prova nem testemunhas.
Compulsando todos os elementos probatórios carreados nos autos, cumpre apreciar e decidir sobre o desfecho do presente inquérito.
Concluídas as diligências probatórias e em cumprimento do disposto no artigo 276.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público encerra o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação.
No momento de encerramento do inquérito, a decisão do Ministério Público surge orientada por duas diretrizes fundamentais: por um lado, a da admissibilidade legal do procedimento e suas condições legais; por outro lado, a da suficiência do inquérito ou realização integral da investigação.
Com particular relevo para o caso sob apreciação e estando reunidos todos os pressupostos legais de que depende o prosseguimento dos autos, centremo-nos naquela segunda diretriz, de juízo de suficiência do inquérito ou realização integral da investigação.
Mostram-se realizadas todas as diligências tidas por úteis e necessárias ao esclarecimento da factualidade em apreço. Assim, segundo o comando normativo presente no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o inquérito é arquivado se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação do crime ou de quem foram os seus agentes. Tal significa, a contrario senso, que a suficiência de indícios sobre a prática do crime e da identificação do seu autor determina uma decisão final de acusação, ao abrigo do disposto no artigo 283.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Da noção legal conferida pelo n.º 2 do referido artigo 283.º do Código de Processo Penal, consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.
«Constitui indiciação suficiente o conjunto de elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo vingar a convicção de que este virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado.» (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-11-2002, relator Clemente Lima, in www.dgsi.pt.)
Neste sentido decidiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 21 de Maio de 2003, afirmando que: “I- Constituem indícios suficientes os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, traduzidos em vestígios, suspeitas, presunções, sinais e indicações aptos para convencer que existe um crime e de que alguém determinado é responsável; II- Tais elementos, logicamente relacionados e conjugados, hão-de formar uma presunção da existência do facto e da responsabilidade do agente, criando a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação.” (relator Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt).
Como refere o Professor Figueiredo Dias «... os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.» (in Direito Processual Penal, 1.º vol., 1974, pág. 133).
Por todas estas razões e com particular relevo para a situação sob apreciação, afirmar a suficiência de indícios deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação. De contrário, não logrando atingir essa convicção, o Ministério Público deve arquivar o inquérito.
No caso sob análise, dos elementos probatórios recolhidos e não obstante as diligências realizadas, entendemos não estar suficientemente indiciada a factualidade denunciada, uma vez que não foram coligidos elementos mormente de natureza testemunhal e/ou documental que permitam corroborar a versão carreada pelo denunciante.
O Denunciado, inquirido na qualidade de testemunha, refutou a participação efetuada.
Assim e tudo ponderado, somos a concluir que o conjunto probatório recolhido não é, de per si, suficiente para, segundo o juízo de suficiência indiciária que supra se expôs, indiciar a prática de qualquer de crime, tal como denunciado, não sendo os elementos carreados para os autos suficientes para, a manterem-se em sede de julgamento, determinarem a aplicação de uma pena ou medida de segurança.
Em suma, em face dos elementos de prova recolhidos, não resultam indícios suficientes da prática dos factos investigados que permitam a dedução de acusação.
*
IV. Da decisão:
Pelo exposto, determino o arquivamento dos autos, por insuficiência de indícios, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
*
V. Das notificações/comunicações:
Cumpra o disposto no artigo 277.º, n.º 3 e 4, al. c), do Código de Processo Penal.
(…)»
2.2.4 O queixoso foi notificado desse despacho de arquivamento no dia ... de ... de 2024, no Estabelecimento Prisional ..., onde se encontra como recluso, constando dessa notificação, entre o mais, a referência a que tinha 20 dias para requerer a abertura de instrução e de que, nesse caso, teria que se constituir assistente.
2.2.5 Com data de ... de ... de 2024 foi expedida carta de notificação desse mesmo despacho à Ilustre Patrona nomeada ao queixoso, a Dra. CC, constando dessa notificação, entre o mais, a referência aos prazos previstos pelos arts. 278º e 287º do Código de Processo Penal e a que deveria observar o disposto no art. 68º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal.
2.2.6 No dia ... de ... de 2024 deu entrada nos autos requerimento assinado pela mencionada Ilustre Patrona, o qual tem o seguinte teor:
«AA, queixoso nos autos à margem referenciados e neles melhor identificado, não se conformando com o Despacho de Arquivamento, vem nos termos do disposto no artigo 287.º, nº 1 do Código de Processo Penal, requerer a
ABERTURA DE INSTRUÇÃO,
Nos termos e com os fundamentos seguintes:
I. DA INSTRUÇÃO

Destina-se a instrução à comprovação judicial da decisão de arquivamento proferida pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público.

O queixoso considera que não foram realizadas todas as diligências tendentes ao apuramento dos factos.
Posto isto,
II. DOS FACTOS

O queixoso ora requerente apresentou queixa contra BB.
Porquanto,

No dia ... de ... de 2023, cerca das 10:30 enquanto o queixoso se encontrava na sua cela – cela 38 do Estabelecimento Prisional ... foi ameaçado de morte pelo denunciado.

O denunciado encontrava-se no pátio 15 do Estabelecimento Prisional ....

Não obstante, o denunciado ter negado os factos pelos quais foi denunciado existem gravações feitas pelo sistema de vigilância do Estabelecimento Prisional ... que mostram exatamente o contrário.

Razão pela qual se torna determinante para o apuramento da verdade, o visionamento das gravações em vídeo do sistema de vigilância especificamente na câmara colocada junto à cela 38.
III DO DIREITO

O crime de ameaça agravado constitui um tipo autónomo relativamente ao crime de ameaça simples, por implicar uma maior perturbação da paz individual e da liberdade de determinação do ofendido.

Pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/2013, de 20 de Março: “A ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no nº 1 do art.º 153º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do nº 1 do art.º 155º do mesmo diploma legal.”
10º
O queixoso teme pela sua vida, pelo que se entende que só há lugar a desistência quando esgotadas todas as possibilidades de fazer prova quanto à ameaça que sofreu.
Nestes termos e nos melhores de direito que V.Exa. doutamente suprirá, requer-se a V.Exa. se digne ordenar a abertura de instrução, nos termos do disposto na alínea a) do nº 1 do art. 287.º do Código Penal, com vista à realização dos atos de instrução que ora se requer, e consequente debate instrutório, sendo a final proferido despacho de pronúncia.
REQUER as seguintes diligências instrutórias:
Requisição e visionamento das gravações do sistema de videovigilância captadas pela câmara junto à cela 38 e pátio 15 do Estabelecimento Prisional ... no dia ........2023 pelas 10:30.
A Defensora Oficiosa
(…)»
2.2.7 O Ministério Público remeteu os autos à distribuição, como Instrução, vindo então a ser proferido o despacho recorrido.
*
3. Conhecendo do mérito do recurso
O despacho recorrido rejeitou o requerimento de abertura de instrução por falta de legitimidade do Recorrente, dado que este não se mostra constituído como assistente.
O Recorrente, por sua vez, sustenta em síntese que é da sua vontade intervir nos autos como assistente, para o que reúne todos os pressupostos legais, e que apenas não o requereu de forma expressa; e que deve portanto o despacho recorrido ser substituído por outro que declare ao Recorrente a condição de Assistente e admita a abertura de instrução, ou pelo menos que o convide a aperfeiçoar o seu requerimento.
Vejamos.
É manifesto que, ante um despacho de arquivamento, apenas o assistente tem legitimidade para lograr, a seu requerimento, a abertura de instrução - art. 287º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal.
Ora, a qualidade de assistente adquire-se por via de despacho judicial (art. 68º, nº 4 do Código de Processo Penal).
E o deferimento judicial de uma tal qualidade processual, para que possa ocorrer, demanda, nos termos que decorrem dos arts. 68º, nºs 1, 3 e 4 e 70º, nº 1 do Código de Processo Penal e 4º e 8º, nºs 1, 4 e 5 do Regulamento das Custas Processuais:
i. que haja um requerimento nesse sentido;
ii. que esse requerimento provenha de pessoa que para tanto disponha de legitimidade;
iii. que o requerimento seja apresentado em tempo;
iv. que se mostre liquidada a taxa de justiça ou se verifique dela dispensa ou isenção;
v. que o/a requerente esteja representado por advogado;
vi. que tenha sido dado cumprimento ao contraditório ao Ministério Público e ao/à arguido/a, se o/a houver nos autos.
Desde já se adiante que, não tendo o Tribunal de 1ª Instância reconhecido a existência de um requerimento de constituição como assistente e não tendo determinado, nessa sequência, o cumprimento do contraditório a que aludimos, especificamente previsto pelo art. 68º, nº 4 do Código de Processo Penal, o desfecho deste recurso nunca poderia ser o que o Recorrente pretende em via principal: a substituição do despacho recorrido por outro que o admita a intervir como Assistente e defira a abertura de instrução.
Na eventualidade de neste recurso ser entendido que devia a 1ª Instância ter considerado que o Recorrente formulara implicitamente um requerimento de constituição como assistente atendível, o que aqui poderá determinar-se será apenas a baixa dos autos para que seja dado andamento a esse requerimento, cumprindo-se o assinalado contraditório, só depois podendo ser proferido despacho a apreciar o mérito da pretendida constituição como assistente e, concomitantemente ou na sequência disso, a apreciar a requerida abertura de instrução.
Dito isto, a problemática que se nos põe é então a de saber se houve ou não na 1ª Instância, por parte do Recorrente, um requerimento implícito de constituição como assistente, bastante para despoletar o incidente correspondente ou, pelo menos, para a prolação de despacho contendo um convite ao aperfeiçoamento, a formular em moldes que consintam ao Recorrente suprir a sua falta de legitimidade para requerer a abertura de instrução.
Em abono da sua pretensão diz o Recorrente, em suma, que não é exigível a formulação explícita do requerimento para ser admitido como assistente, quando todas as ações manifestam essa sua pretensão, sendo que, no caso, ele é ofendido, apresentou queixa por crime de natureza semi-pública, está representado por advogado, solicitou apoio judiciário, que lhe foi concedido, e requereu a abertura de instrução; para além disso, sustenta que o reconhecimento ao ofendido do direito de intervir no processo deve ser uma das garantias do processo criminal, à luz do art. 32º, nº 7 da Constituição da República Portuguesa; e que, mesmo em sede processual, a substância deve prevalecer sobre a forma.
Cita o Recorrente, para o efeito, um Acórdão da Relação de Évora, datado de 5 de novembro de 2009 (proferido no âmbito do Proc. nº 36/07.0TASLV-A.E1, relatado por Correia Pinto www.dgsi.pttodos os acórdãos que doravante mencionarmos sem indicação de outra fonte devem ser reportados a este sítio).
Terá razão?
Ponto prévio: o citado Acórdão da Relação de Évora. Nele tratava-se de uma situação em que o ofendido também não requerera explicitamente a sua constituição como assistente; porém, aí apresentara o ofendido uma acusação nos termos previstos no art. 284º do Código de Processo Penal e, no que respeita à parte em que o Ministério Público lavrara despacho de arquivamento, requerera também a abertura de instrução, sendo que, seja naquela acusação, seja neste requerimento de abertura de instrução, o ofendido autointitulara-se de «assistente». Tendo isso em atenção e mostrando-se que o ofendido reunia todas as condições legais para poder ser habilitado a intervir como assistente, decidiu então a Relação de Évora que a 1ª Instância devia ter considerado que existira um requerimento implícito de constituição como assistente.
Bem se vê que há aqui uma diferença com algum significado, à semelhança aliás de uma outra decisão que aquele acórdão da Relação de Évora convoca (da Relação de Lisboa de 6/06/2007, cujo sumário foi dito constar na base de dados da Procuradora-Geral da República de Lisboa): ao contrário do que aí sucedera, o ofendido nos nossos autos nenhuma referência faz à figura do assistente, nunca como tal se autointitulando.
Continuando a olhar para aquele douto acórdão da Relação de Évora, vê-se que nele são ainda mencionadas outras decisões, além da já referida; nenhuma delas participa, porém, de uma realidade exatamente transponível para a situação aqui em causa:
- no acórdão da Relação de Lisboa de 2/10/2002 (CJ 2002, tomo IV, pg. 131), o ofendido requer a sua intervenção como assistente, mas não estava representado por advogado e não pagara a taxa de justiça, circunstância em que se entendeu que devia ser convidado a suprir essas omissões antes de indeferido o requerimento – aí, ao contrário do que sucede nestes nossos autos, o ofendido requerera efetivamente a sua intervenção como assistente;
- nos acórdãos da Relação de Coimbra de 20/10/1999 e da Relação de Lisboa de 4/03/1998, o ofendido requereu a abertura de instrução sem requerer do mesmo passo a sua constituição como assistente, e entendeu-se que devia ser-lhe dirigido convite a que fizesse este requerimento, caso ainda esteja em curso o prazo previsto no n.º 1 do artigo 287.º, devendo o requerimento subsequente a tal convite ser apresentado antes do termo final do prazo previsto para requerer a instrução – assumiu-se aí que nada obstava à formulação de um convite, mas apenas, no fundo, se o ofendido pudesse ainda formular em tempo um requerimento de constituição como assistente, o que não sucede na situação de que aqui tratamos.
Todas as decisões que vimos de mencionar seguiram um rumo, como aponta o Recorrente, que privilegiou a substância em detrimento da forma – isso é certo; mas as circunstâncias subjacentes, como vimos, não têm estrito paralelo nos nossos autos. Isto porque, ao contrário do que aqui sucede, ou o ofendido requerera explicitamente a sua constituição como assistente, faltando apenas, para deferimento do mesmo, a observância de pressupostos formais (a representação por advogado ou o pagamento da taxa de justiça); ou o ofendido, reunindo todas as condições legais para requerer a sua constituição como assistente, assumia-se já abertamente como tal, no fundo incorrendo no equívoco de considerar que já fora habilitado nesse papel; ou, requerendo a abertura de instrução sem requerer do mesmo passo a sua constituição como assistente, estava ainda em tempo de o fazer.
Não reconhecemos, em suma, suficiente peso argumentativo, para o caso que nos ocupa, no douto Acórdão da Relação de Évora que o Recorrente cita, nem nos demais apoios jurisprudenciais que nele constam.
Dito isto, que solução acolher neste nosso caso?
Primeiro aspeto: houve ou não nos autos um requerimento implícito de constituição como assistente?
O Recorrente diz que sim, sustentando que essa inferência deve retirar-se da circunstância de reunir todas as condições para ser habilitado como assistente e de ter requerido a abertura de instrução, ato este carecido de uma tal habilitação.
Esta linha de raciocínio merece ser ponderada com atenção.
Não há qualquer norma no Código de Processo Penal, nem no Código de Processo Civil (que se lhe aplica subsidiariamente, nos termos do art. 4º do primeiro), que nos enuncie os critérios de interpretação dos requerimentos formulados nos autos pelos intervenientes processuais.
Se é assim, temos por incontornável recorrer para este efeito aos princípios e regras gerais de interpretação das «declarações negociais», constantes do Código Civil, face ao que nos diz o seu art. 295º (entre outros, vejam-se a este propósito os Acs. do STA de 27/04/2016 e da RL de 15/01/2013); e nesse contexto justifica-se sublinhar o art. 217º, que sob a epígrafe «declaração expressa e declaração tácita» tem o seguinte teor:
«1. A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.
2. O carácter formal da declaração não impede que ela seja emitida tacitamente, desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz.»
A declaração é expressa quando exprime direta, imediata e frontalmente uma vontade; e é tácita quando o conteúdo direto da declaração é um, mas implica e torna cognoscível, a partir de factos concludentes, um outro, em via lateral, oblíqua e mediata (Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, pgs. 422 e sg.).
Importa sublinhar, quanto à definição de «declaração tácita», que a redação da norma substituiu a palavra «necessariamente», que constava do art. 648º do Código Civil de 1867, pela expressão «com toda a probabilidade», o que vem sendo interpretado como querendo significar que foi vontade do legislador não pôr de parte a figura da declaração tácita nos casos suscetíveis de duas interpretações. O que se exige é que, de acordo com um critério prático, empírico, à luz dos usos da vida, haja, quanto aos factos de que se trata, toda a probabilidade de os factos terem sido praticados com dada significação negocial; «toda a probabilidade», no sentido de grau de certeza que basta na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões, ainda que não esteja absolutamente precludida a possibilidade de outra interpretação (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Coimbra, 1987, pg. 132; e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, 1987, pg. 209).
Para que os factos possam ser vistos como concludentes na evidenciação de uma declaração tácita interessa pois que a revelem com toda a probabilidade à luz dos «usos do ambiente social» (Carlos Alberto da Mota Pinto, ob. cit., pg. 423).
Ora, se o Recorrente apresentou queixa contra o Arguido; se o Recorrente pediu apoio judiciário na modalidade de dispensa de custas e nomeação de patrono; se o Recorrente é notificado do despacho de arquivamento e nessa notificação consta a expressa referência a que, para lograr a abertura de instrução, tem de requerer a sua constituição como assistente; se a habilitação como assistente constitui condição inequivocamente necessária, de acordo com o Código de Processo Penal, para garantir a legitimidade processual do ofendido para requerer a abertura de instrução; se, ante esse despacho de arquivamento, o ofendido vem efetivamente a apresentar um requerimento de abertura de instrução; e se, nestas circunstâncias, a prática forense evidencia com toda a clareza que o interessado, do mesmo passo que requer a abertura de instrução, requer ainda, como não pode deixar de requerer, a sua constituição como assistente, seja no mesmo documento, seja em documento autónomo apresentado na mesma ocasião;
do conjunto desta sequência processual e do «ambiente social» específico em que se integra, retiramos, da parte do Recorrente, uma declaração expressa no sentido de que pretende a abertura de instrução e uma declaração tácita de que pretende necessária e forçosamente a sua prévia constituição como assistente.
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E ainda que houvesse dúvidas sérias a esse respeito, estamos em crer que a reação judiciária não pode passar por uma liminar e drástica rejeição da abertura de instrução, votando os autos, como neste caso sucederia, a um definitivo arquivamento. Entendendo-se que dúvidas sérias havia sobre se o Recorrente, ao tempo em que requereu a abertura de instrução, pretendia ou não que o tribunal considerasse admiti-lo a intervir como assistente, entendemos que deve proferir-se despacho convidando-o, em prazo curto, a esclarecer a sua pretensão ou mesmo a requerer a sua admissão como assistente.
Afigura-se-nos que existe sustentação jurídica para esse caminho; aliás, afigura-se-nos que esse é o caminho mais conforme à Constituição da República Portuguesa (CRP), mesmo na eventualidade de se entender que o Recorrente pura e simplesmente se esqueceu de requerer a sua constituição como assistente aquando da apresentação do requerimento de abertura de instrução. Porquê?
Diz-nos o art. 32º, nº 7 da CRP que «o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei». Trata-se de uma garantia do processo criminal que, por um lado, afirma constitucionalmente o direito de o ofendido intervir no processo, do mesmo passo concretizando, neste universo, os direitos de acesso ao direito, a uma tutela jurisdicional efetiva e a um processo equitativo, previstos pelo art. 20º, nºs 1 e 4 da CRP; mas por outro lado relega para a lei ordinária a densificação dos contornos exatos desse direito de intervenção.
Nesta densificação a operar pelo direito ordinário, é ponto assente que as exigências decorrentes da garantia constitucional de acesso ao direito, ao processo equitativo e à justiça e, neste caso, do direito de o ofendido intervir em processo penal, não afastam a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo e é por isso compatível com a imposição de ónus processuais aos interessados (Acs. do TC nºs 122/02 e 46/05, in www.tribunalconstitucional.pt – todos os acórdãos do TC que citarmos estão disponíveis neste sítio).
No plano abstrato a CRP não impede, portanto, a legislação comum de impor condições específicas para que o ofendido possa impulsionar os autos requerendo a abertura de instrução, exigindo-lhe a qualidade de «assistente», como não impede que a habilitação como tal seja feita depender da observância de certos requisitos; é todavia mister que de qualquer das condições ou dos requisitos impostos ou da sua conjugação não resulte, em termos prático-jurídicos, uma restrição desadequada, desnecessária ou arbitrária ao «direito de intervir no processo» (Germano Marques da Silva e Henrique Salinas, ob. cit., pg. 735).
No que especificamente respeita à constituição como assistente, nada obsta, por exemplo, a que se exija, em geral, a representação por advogado (Ac. do TC nºs 338/06); como nada obsta à caracterização do conceito de ofendido, para estes efeitos, como sendo apenas o titular dos «interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação» (Ac. do TC nº 76/02); como nada obsta, acrescente-se, a que a lei exija um requerimento do interessado, como plasmado claramente no art. 68º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal e se pressupõe ainda no art. 8º, nº 3 do Regulamento das Custas Judiciais, requerimento esse que prefigura o necessário impulso deste incidente processual (Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo I, Almedina, 2019, pgs. 808 e sg.).
Seja para lograr a abertura de instrução, seja para lograr a constituição como assistente, até onde puder reconhecer-se, como referimos, que as soluções normativas consagradas na legislação ordinária não traduzem uma restrição desadequada, desnecessária ou arbitrária do direito de intervenção do ofendido no processo penal, tais soluções passam, desse ponto de vista, o crivo constitucional.
Todavia, uma coisa é saber quais os requisitos substantivos e processuais para o requerimento de abertura de instrução ou para a habilitação de alguém como assistente no processo; outra é saber o que fazer no caso de, ao tempo em que o juiz é chamado a tomar posição sobre os incidentes – o requerimento de abertura de instrução, o requerimento de constituição como assistente ou ambos – não se acharem observados aqueles requisitos ou algum ou alguns deles.
A referência que consta do art. 32º, nº 7 da CRP, «[a]os termos da lei», não significa que o legislador ordinário tenha liberdade total na delimitação concreta dos ónus processuais, no sentido em que estes, como já adiantamos, e por força nomeadamente dos arts. 13º e 18º, nºs 2 e 3 da CRP, não poderão impossibilitar ou dificultar excessivamente a intervenção dos interessados; nem as cominações ou preclusões previstas, por irremediáveis ou insupríveis, poderão revelar-se totalmente desproporcionadas face à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta cometida, por qualquer das vias colocando em causa o direito de acesso aos tribunais, a uma tutela jurisdicional efetiva e, no caso específico em apreço, o direito de o ofendido intervir no processo penal [Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 4ª edição, 2007, pgs. 523 e sg.; e Germano Marques da Silva e Henrique Salinas, Constituição Portuguesa Anotada (org. de Jorge Miranda e Rui Medeiros), tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, pgs. 735 e sg.; veja-se ainda, com interesse geral nesta temática, a jurisprudência constitucional plasmada, entre outros, nos Acs. do TC nºs 462/2016, 639/14 e 760/13].
Num esforço de concretização do juízo de proporcionalidade a atender quando esteja em causa a imposição de ónus processuais aos interessados, tem sido dito pelo nosso Tribunal Constitucional que há três vetores essenciais a considerar (por todos, veja-se o Ac. nº 462/2016, já citado, que seguimos de perto):
- a justificação da exigência processual em causa;
- a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado;
- e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus processuais.
Na situação que aqui nos ocupa, a legitimidade para requerer a abertura de instrução está dependente da habilitação como assistente, de tal sorte que a constituição como assistente constitui pressuposto processual necessário para lograr aquela abertura de instrução.
Não vemos nenhuma dificuldade em reconhecer a justificação de uma tal exigência processual: fez o legislador a opção, razoável, dentro da discricionariedade de que goza, de outorgar o direito de requerer a abertura da instrução, ante um despacho de arquivamento, apenas a quem tenha e manifeste de um certo modo uma especial ligação à matéria em debate nos autos, corporizada na figura do assistente.
Como não vemos nenhuma dificuldade em reconhecer que o ónus imposto de se constituir como assistente, observando para tanto os requisitos conhecidos para o efeito e que atrás indicámos, se não traduz em uma qualquer particular ou intransponível onerosidade para o interessado.
Resta a questão das consequências ligadas ao incumprimento do ónus.
Os direitos ao processo e a uma tutela jurisdicional efetiva impõem que se atribua prevalência à justiça material sobre a justiça formal, evitando-se soluções que, devido à exigência de cumprimento de requisitos processuais, conduzam a uma decisão que poderá traduzir-se numa verdadeira denegação de justiça; e ainda que não possa afirmar-se que a nossa CRP acolha um genérico, irrestrito e ilimitado “direito” dos intervenientes processuais à obtenção de um sistemático convite ao aperfeiçoamento de todas e quaisquer deficiências dos atos por elas praticados em juízo, particularmente quando se trate de erros indesculpáveis, ainda assim, dizíamos, o convite ao aperfeiçoamento tem sentido e justificação quando as deficiências em causa forem de natureza estritamente formal ou secundária, dizendo apenas respeito à “apresentação” ou “formulação”, e já não ao conteúdo da pretensão (Ac. do TC nº 462/2016).
É certo que o estatuto do assistente não se circunscreve ao direito de requerer a abertura de instrução – vai muito além disso, nos termos que decorrem, desde logo, do art. 69º do Código de Processo Penal. Porém, no ponto em que se encontram os autos, a habilitação como assistente é apenas requisito processual necessário para requerer a abertura de instrução. É esta – a abertura de instrução, pelas razões de facto e de direito que constam do requerimento correspondente – a pretensão do Recorrente. Significa isto que um eventual convite ao aperfeiçoamento não se dirigiria ao conteúdo substantivo da pretensão do Recorrente, a saber, ao conteúdo substantivo do requerimento de abertura de instrução, no plano de facto ou no plano de direito, mas antes e apenas a um passo processual ou procedimental necessário em ordem a que o mérito daquele requerimento possa vir a ser apreciado.
E por aqui se vê que não há qualquer desrespeito, nesta nossa posição, ao Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/2005, convocado pela Sra. Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer, de acordo com o qual será inadmissível dirigir ao requerente um convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução.
Esse convite, na lógica do que vimos de expor, não incidiria sobre o conteúdo de facto (ou de direito) do requerimento de abertura de instrução: dirigir-se-ia a saber, à luz da sequência processual havida e das iniciativas assumidas pelo Recorrente nos autos, se era ou não sua vontade ser admitido a intervir como Assistente. É em relação àquele conteúdo de facto, e não mais, que o Acórdão de Fixação de Jurisprudência tomou posição, em sentido, aliás, congruente com jurisprudência constitucional sedimentada (Acs. do TC nºs 358/2004, 389/2005, 636/2011, 35/2012, 981/2018 e 405/2022).
De resto, acrescente-se que o Supremo Tribunal de Justiça veio entretanto a assumir abertamente a possibilidade de ser dirigido um convite ao aperfeiçoamento dos requerimentos de abertura de instrução, no que diz respeito a situações em que as insuficiências e omissões detetadas na peça processual se reportem a aspetos formais ou secundários, relativamente aos quais a perda definitiva do direito, sem convite prévio ao aperfeiçoamento, poderia traduzir-se - aqui regressamos - numa consequência desproporcionada e, em última análise, numa verdadeira denegação de justiça (Ac. do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 3/2024; seguindo no mesmo sentido, vide Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, 4ª edição, Almedina, 2022, pg. 973, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, pg. 782; com interesse, vide ainda os Acs. do TC nºs 215/2007 e 485/2008).
Rematemos este ponto com a transcrição de duas passagens da jurisprudência constitucional:
- do Ac. do TC nº 462/2016: «os ónus impostos [aos sujeitos processuais] não poderão, por força dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, impossibilitar ou dificultar, de forma arbitrária ou excessiva, a atuação procedimental das partes, nem as cominações ou preclusões previstas, por irremediáveis ou insupríveis, poderão revelar-se totalmente desproporcionadas face à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta cometida, colocando assim em causa o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva» (sublinhado nosso);
- e do Ac. do TC nº 126/2023: «a desproporção não resulta propriamente da consequência [no caso, rejeição do recurso], mas sim do seu caráter imediato, com efeitos definitivos, sem intermediação de uma oportunidade de suprimento. (…)».
No caso, é inequívoco que o ofendido pretende a abertura de instrução; para tanto, é para todos óbvio, entre o mais, que há um pressuposto processual a observar – a sua habilitação como assistente; e é claro ainda, tanto quanto é possível dizê-lo nesta fase, que tudo indica que o Recorrente observa, para o efeito, todas as condições substantivas e processuais; apenas faltou o requerimento expresso, explícito, claro, nesse sentido, requerimento esse de ordem tão simples quanto isto: apenas tinha de, aquando do requerimento de abertura de instrução, escrever algo como, e nada mais, sublinhe-se - «requer a sua constituição como assistente».
Nestas circunstâncias, rejeitar, insuprível e inapelavelmente, a abertura de instrução, traduz-se numa reação desproporcionada do sistema de justiça: por um razão marcadamente formal, procedimental, secundária, de muito fácil preenchimento, liquidar-se-ia, sem oportunidade de correção ou retorno, a apreciação do direito substantivo do caso, na medida em não se olharia sequer para o conteúdo de facto e de direito do requerimento de abertura de instrução (nesta linha, ainda que numa situação diversa, veja-se o Ac. do TC nº 126/2023).
Desse ponto de vista, cremos que a decisão recorrida transporta uma visão que se distancia da justiça material do caso de uma forma excessiva, desnecessária e injustificada.
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Refira-se, por fim, que não vemos em que medida alguma das garantias de defesa do arguido resulte beliscada com a solução que acolhemos. Aliás, a abordagem de princípio que se defende, nas suas linhas gerais, é totalmente transponível para os requerimentos que o próprio arguido poderá formular nos autos e cuja apreciação substantiva também careça da observância de requisitos formais óbvios e de fácil preenchimento (neste sentido, veja-se o Ac. do TC nº 126/2023).
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Em suma, revogar-se-á o despacho, determinando-se a sua substituição por outro que dê seguimento ao requerimento (tácito) de constituição como assistente e, oportunamente o decidindo, aprecie ainda, quanto ao mais, a admissibilidade do requerimento de abertura de instrução.
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3 – DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decidimos julgar o recurso parcialmente procedente, nos seguintes termos:
3.1 revoga-se o despacho recorrido, determinando-se a sua substituição por outro que dê seguimento ao requerimento (tácito) de constituição como assistente e, oportunamente o decidindo, aprecie ainda, quanto ao mais, a admissibilidade do requerimento de abertura de instrução;
3.2 julga-se no mais improcedente o recurso.
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Custas pelo Recorrente [art. 515º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal], fixando-se a taxa de justiça em três unidades de conta (art. 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III anexa), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
Registe e notifique.
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Lisboa, 11 de setembro de 2025
Os Juízes Desembargadores (processado a computador pelo Relator e por todos revisto; assinatura eletrónica)
Jorge Rosas de Castro
Rosa Maria Cardoso Saraiva – com voto de vencida
Marlene Fortuna

Voto de vencida nos seguintes termos:
Diferentemente da solução preconizada no Acórdão, não se vislumbra qualquer elemento constante dos autos que permita que se considere que existiu um pedido implícito de constituição como assistente por parte do queixoso e requerente da abertura de instrução.
Na realidade, o mesmo, no requerimento que apresentou a solicitar a abertura de instrução, até se intitula queixoso, sendo nessa qualidade que faz o requerimento em causa.
Por outro lado, o facto de beneficiar de apoio judiciário também em nada permite dizer que existiu um qualquer pedido implícito de constituição como assistente, na medida em que tal pedido também seria necessário para o queixoso ser representado por patrono e ficar isento do pagamento de custas, nomeadamente para efeitos de um eventual pedido de indemnização civil.
Ora, sendo assim, não pode deixar de se considerar que não tendo efectuado qualquer pedido de constituição como assistente, no prazo fixado na lei (em simultâneo com a apresentação do requerimento de abertura de instrução – cfr. art. 68º, 3, al. b) do CPPenal), se mostra afastada a possibilidade da dita constituição.
Na verdade, a lei é expressa quando refere que o prazo para tal requerimento é o mesmo do da abertura de instrução, sendo também incontornável que apenas o assistente (e já não o queixoso/ofendido) pode usar tal faculdade (cfr. art. 287º, 1, al. b), do CPP).
Aliás, um convite ao queixoso para requerer a sua constituição como assistente, depois de decorrido o prazo para esse efeito, não tem cabimento legal, dado que não se mostra previsto na lei qualquer convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução ou de reunião dos pressupostos que o texto legal elenca para tanto.
Ou seja, a realização de um tal convite constituiria, na prática, a concessão de um novo prazo para o recorrente efectuar um pedido de constituição como assistente que não havia tempestivamente apresentado.
Por outro lado, ainda no que tange a tal possibilidade, a estrutura acusatória do processo penal nacional, conforme decorre do artigo 32º da Constituição, impõe aos Tribunais deveres de isenção, objectividade e imparcialidade inconciliáveis com sugestões de adopção de comportamentos aos sujeitos/intervenientes processuais. Ora, tal hipotético comportamento será tanto mais de evitar quando possa repercutir-se na fragilização da posição processual do arguido – como seria, manifestamente, o caso na presente hipótese.
Assim, sendo manteria na íntegra a decisão objecto de recurso na medida em que é indubitável que o recorrente na sua qualidade de queixoso/ofendido não gozava da legitimidade para requerer a abertura de instrução, sendo essa falha autenticamente insuprível.
Na realidade, o direito de o denunciante se constituir assistente caducou, para efeitos de requerer a abertura de instrução, ao não ter tempestivamente adoptado o impulso necessário – simplesmente requerer a intervenção nessa qualidade, para abrir instrução.
Aliás, isso mesmo se decidiu no Acórdão do S.T.J. de Fixação de Jurisprudência, n.º 1/2011, Diário da República, 1.ª série - N.º 18 - 26 de Janeiro de 2011, a propósito da inobservância do prazo para a constituição como assistente, em procedimento dependente de acusação particular quando aí se refere “Extinguiu-se, caducando, o poder de causar quaisquer efeitos jurídicos através do acto que só era possível dentro do prazo”.
No Acórdão faz-se referência à circunstância de apesar de a lei – a que alude o art. 32º, 7 da CRPortuguesa – permitir que se definam regras, nomeadamente com fixação de prazo preclusivos para um requerimento de abertura de instrução – se dever efectuar, no caso concreto, um juízo de proporcionalidade que tenha designadamente em conta a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus processuais.
Ora, relativamente a tal matéria deve dizer-se que, no caso concreto, também o citado argumento não convence, quer pela refracção que acarretaria nos direitos de defesa do arguido quer pela absoluta carência de cobertura legal, quer, finalmente, pela inescapável impossibilidade do requerimento apresentado cumprir o desiderato que lhe é assacado. Na realidade, tal requerimento – de abertura de instrução – nem sequer reúne os pressupostos que permitiriam a sua admissibilidade.
Com efeito, do mesmo não constam os factos, devidamente individualizados e concretizados que permitissem a imputação objectiva e subjectiva de um ilícito criminal ao arguido.
Ora, sendo assim, a decisão proferida, acabará por redundar na prática de um acto inútil – o que é proibido por lei nos termos do disposto no art. 130º do CPCivel, aplicável, ex vi art. 4º do CPPenal – já que mesmo constituindo-se o queixoso como assistente, nunca o requerimento de abertura de instrução poderá ser admitido, por falta dos necessários pressupostos.
Face ao exposto e como supra já se disse manter-se-ia a decisão objecto de recurso.