PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
CRITÉRIOS DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE
IRRECORRIBILIDADE
LEGALIDADE
INTERPRETAÇÃO
RECURSO DE REVISTA
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
QUESTÃO DE FACTO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
QUESTÃO DE DIREITO
DUPLA CONFORME
RECURSO DE REVISTA EXCECIONAL
Sumário


Sumário elaborado pelo relator nos termos do art.º 663.º, n.º 7, do CPC
I.- Em sede dos processos de jurisdição voluntária, não cabe, em regra, recurso de revista das decisões finais tomadas com a predominância de critérios de conveniência ou oportunidade sobre os critérios de estrita legalidade, nos termos do n.º 2 do art.º 988.º do CPC.
II.- No entanto, na interpretação daquela restrição de recorribilidade, importa ter em linha de conta que, em muitos casos, a impugnação por via recursória não se circunscreve aos juízos de oportunidade ou de conveniência adotados pelas instâncias, mas questiona a própria interpretação e aplicação dos critérios normativos em que se baliza a decisão.
III. Quando, no âmbito dessas decisões, estejam em causa a interpretação e aplicação de critérios de legalidade estrita, já a sua impugnação terá cabimento em sede de revista, circunscrita ao invocado erro de direito.
IV. Nessa conformidade, haverá que ajuizar sobre o cabimento e âmbito do recurso de revista das decisões proferidas nos processos de jurisdição voluntária, de forma casuística, em função dos respetivos fundamentos de impugnação, e não com base na mera qualificação abstrata de resolução tomada segundo critérios de conveniência ou de oportunidade.
V. Em sede de revista interposta de acórdão da Relação confirmativo da decisão da 1.ª instância, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, quando seja invocada a violação de disposições processuais no exercício dos poderes de reapreciação da decisão de facto pela Relação, este fundamento não concorre para a formação da dupla conforme prevista no n.º 3 do artigo 671.º do CPC, na medida em que tal violação é imputada apenas à Relação, não ocorrendo, nessa parte, coincidência com a decisão da 1.ª instância.
VI. Porém, caso venha a ser denegada revista no respeitante à alegada violação de disposições processuais, terá então de equacionar-se, subsidiariamente, a ocorrência de dupla conforme quanto à decisão de direito, a começar pela verificação dos invocados pressupostos da revista excecional, para efeitos de levantamento do respetivo impedimento, nos termos do artigo 672.º, n.º 1, do CPC.
VII. No caso presente, tendo-se concluído pela negação da revista quanto à invocada violação das disposições processuais em sede da reapreciação da decisão de facto, ocorrendo dupla conforme no plano da decisão de direito, mas tendo sido a revista interposta, subsidiariamente, a título de revista excecional, ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1, do CPC, há que determinar a remessa do processo à formação dos três juízes do STJ a que se refere o n.º 3 desse artigo, para efeitos de verificação dos pressupostos invocados.
VIII.- O princípio do inquisitório na jurisdição voluntária não afasta o ónus de alegação dos factos e da apresentação de prova pelas partes.

Texto Integral


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I.- Relatório

Recorrente: AA

Recorrida: BB

1.- Nos autos principais, de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, que correram termos no Juízo de Família e Menores de Viseu – Juiz 1, intentado por AA contra BB, veio esta, após ter sido citada para a ação, requerer a atribuição provisória da casa de morada de família.

2.- Na diligência de tentativa de conciliação realizada nesses autos, ambos os cônjuges manifestaram o interesse de que a casa lhes fosse provisoriamente atribuída, tendo sido proferido despacho decidindo, para além do mais, que:

---Na presente audiência, os cônjuges manifestaram o propósito de se divorciarem por mútuo consentimento, tendo apresentado os acordos previstos nos artºs 1775º, al.s a) a d), do Código Civil e artº 994º, nº 1, al.s b), c), d) e f), do Código de Processo Civil, pese embora subsista a questão do destino da casa de morada de família, para efeitos de residência até à venda ou partilha.---

¨¨----Assim, atenta a posição assumida pelas partes, manifestando o sério propósito de não restabelecerem a sociedade conjugal e a vontade de se divorciarem por mútuo consentimento, encontrando-se por isso reunidos todos os pressupostos legais, convolo a presente Ação de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge em Divórcio por Mútuo Consentimento, nos termos do disposto no artº 931º nº 5, do C.P.C..-

----Uma vez que não há acordo quanto ao destino da casa de morada de família e constituindo tal questão uma questão do divórcio, concedo a cada uma das partes o prazo de 10 (dez) dias para fundamentar a sua pretensão relativa ao destino da casa de morada de família e alegar as razões de facto e de direito em que sustentam tal pretensão, devendo, em tais alegações, apresentar logo a prova.

----Cada uma das partes, disporá ainda do prazo de dez dias para se pronunciar acerca do pedido que venha a ser formulado pela parte contrária.---

----Por uma questão de transparência e clareza processual, tal questão será tramitada por apenso, de acordo com as regras aplicáveis aos incidentes da instância, apenas sendo admitidos dois articulados relativa a cada pretensão, devendo as partes indicar/condensar toda a prova a produzir, nos articulados que vierem a ser apresentados.---

----A sentença a decretar o divórcio e a apreciar os acordos nesta data alcançados será proferida depois de resolvida a questão controvertida relativa ao destino da casa de morada de família.---

3.- Foi formado apenso de incidente de atribuição de casa de morada de família, tendo os Requerentes AA e BB, requerido mutuamente que lhe seja atribuída a casa de morada de família, sendo que o primeiro veio alegar que sempre foi vítima de violência doméstica, sendo maltratado pela esposa que se auto-agride para incriminar o marido, que por tais factos já tentou o suicídio, tendo chegado a estar internado, sendo que também sofre de depressão, tristeza e ansiedade, não dispõe de outro local para residir, não tem capacidade financeira para financiar outra residência, não tem apoio dos filhos, diversamente do que sucede com a esposa, que é apoiada pela filha.

Por sua vez, a requerente veio alegar que é vítima de violência doméstica por banda do marido, que este a impede de fruir a casa de morada de família, que não tem recursos económicos para financiar outra habitação e não dispõe de qualquer outra, que não tem carro e que a casa onde vive está próxima de todos os locais que habitualmente frequenta para fazer face às suas necessidades, nomeadamente de saúde, uma vez que padece de diversos problemas de saúde em tratamento.

4.- Foi produzida prova e proferida sentença, decidindo:

Pelo exposto, decido:

- julgar improcedente o pedido formulado por AA e absolver BB de tal pedido,

- julgar procedente o pedido formulado por BB e, em consequência, atribuir o uso da casa de morada da família em exclusivo a BB até à venda ou partilha.

5.- Entretanto, nos autos principais, por decisão já transitada em julgado, o casamento dos Requerentes foi declarado dissolvido por divórcio, onde se diz, para além do mais, que:

Assim, face ao acordo dos cônjuges quanto à conversão da presente acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, à inexistência de filhos menores e de animais de companhia, à prescindibilidade recíproca de alimentos devidos a cônjuges, ao património comum já relacionado, à decisão já proferida acerca do destino da casa de morada de família, ao disposto nos art. 1775º e 1778º do CC, e porque os presentes autos evidenciam o sério propósito de divórcio por parte dos requerentes (vide, a propósito do regime anteriormente vigente, Guilherme de Oliveira, RLJ, ano 130, p. 137 e seg.), o Tribunal declara dissolvido por divórcio o seu casamento de 22.04.1979 (vide assento de casamento de fls. 7) e homologa os acordos supra-referidos, condenando as partes no cumprimento do acordado.-----

6.- O Requerente AA apelou de tal sentença

Em 8 de Abril de 2025 foi proferido acórdão que terminou com o seguinte dispositivo:

Nestes termos, acordam os juízes Desembargadores da 3.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo Apelante art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º n.º 6 e 663.º, todos do C.P.C.”

7.- Novamente inconformado interpor recurso, agora de revista, terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

“Da caducidade do presente procedimento

1. O recorrente e a recorrida encontram-se definitivamente divorciados desde a data de 06/11/2024, na qual transitou em julgado a sentença que decretou a dissolução do casamento entre aqueles.

2. A questão colocada na apelação foi a da caducidade da atribuição provisória da casa de mora de família, em consequência do trânsito em julgado da sentença de divórcio.

3. O acórdão recorrido do TRC defendeu que os efeitos da decisão proferida na pendência da ação de divórcio que, à luz do incidente previsto no n.º 7 do art.931º do CPC, fixa o regime provisório de utilização da casa de morada de família, não caducam (automaticamente) com o trânsito da sentença que decretou o divórcio entre os cônjuges, mas tão-só com o trânsito em julgado da sentença proferida na ação instaurada (por qualquer um deles), ao abrigo art.º 990.º do CPC, destinada a fixar/regular definitivamente aquela utilização ou então com a partilha dos bens do dissolvido casal.

4. Numa errada interpretação do art.1775º, nº2, do Código Civil, o acórdão recorrido do TRC entendeu que a sentença da primeira instância que decretou o divórcio é equiparável, no que ao caso interessa, àquela que homologa o acordo sobre o destino da casa de morada de família a que alude a al.d), do nº1, do cit. art.1775º do Código Civil e art.994º, nº 1, al. f), do Código de Processo Civil.

5. Contudo, em parte alguma do dispositivo da sentença de divórcio o Tribunal a quo fez substituir o inexistente acordo sobre o destino da casa de morada de família pela decisão proferida neste incidente, nem condenou o Recorrente, nos autos de divórcio, a cumprir a decisão aqui proferida quanto ao destino da casa de morada de família. A decisão transitada que decretou o divórcio não teve sequer como objeto a atribuição da casa de morada de família.

6. Em parte alguma da sentença de divórcio se refere que a decisão provisória substitui o acordo quanto ao destino da casa de morada de família, nem essa leitura é consentida pelo texto e fundamentação da sentença, tanto assim que a homologação do referido acordo, na sentença de divórcio por mútuo consentimento, tem carácter definitivo até à partilha do bem comum do dissolvido casal, dispensando qualquer ação a instaurar (por qualquer um deles), ao abrigo art.990º do CPC, destinada a fixar/regular definitivamente aquela utilização.

7. Conforme decidido pelo Supremo de Tribunal de Justiça, o alcance da regulação provisória fixada judicialmente no incidente a que alude o nº 7 do artigo 931º do CPC é “(…) temporalmente delimitado (a pendência do processo de divórcio) e, encontrando-se as partes já definitivamente divorciadas, a regulação provisória perdeu a sua eficácia (…)”. – Cfr. Acórdão do STJ de 23-11-2017, proc.º 1448/15.1T8VNG.P2.S2, Rel. António Joaquim Piçarra). disponível em www.dgsi.pt.

8. Diferente do processo de jurisdição voluntária regulado pelo artigo 990º do CPC, no que tange à eficácia da decisão proferida no incidente de atribuição provisória da casa de família, tem sido entendido que a mesma “…visa regular a utilização da casa de morada de família durante a pendência do processo de divórcio, nos termos previstos no artigo 931.º, do CPC.”, conforme Ac RE 11.07.2019, no processo nº 8214/16.5T8STB-B.E1 (Relatora: Isabel Peixoto Imaginário), disponível em www.dgsi.pt.

9. À luz do entendimento jurisprudencial acolhido nos preditos Arestos, a caducidade ou perda de eficácia da decisão provisória de atribuição da casa de morada de família proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, ao abrigo do n.º 7 do artigo 931.º do CPC, deveria ter sido reconhecida e declarada pelo acórdão recorrido do TRC de 8 de abril de 2025 (referência ......91), o que, contudo, não sucedeu.

10. O entendimento sufragado pelo acórdão recorrido do TRC de 8 de abril de 2025 está em OSTENSIVA CONTRADIÇÃO com o que foi doutamente decidido por ac STJ 6.05.2021, processo nº 4905/19.7T8MTS.P1.S1, Rel. Manuel Capelo, e no Ac TRE 11.07.2019, no processo nº 8214/16.5T8STB-B.E1 (Relatora: Isabel Peixoto Imaginário), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, cujas cópias se juntam e que constituem, para os efeitos do presente recurso de revista, Acórdãos Fundamento, cf. al. c) do n.º 2 do artigo 672.º do CPC.

11. Nestes Acórdãos fundamento, ao invés daquele ora recorrido, sufragou-se o entendimento que na ação de divórcio sem consentimento em que os cônjuges tenham acordado quanto ao propósito de se divorciar, o tribunal pode, nos termos do art. 931.º, n.º 7, do CPC, por iniciativa sua ou a requerimento do cônjuge, atribuir a utilização da casa de família, decisão que vigorará apenas na pendência da ação e até ao trânsito em julgado da sentença que decrete o divórcio, o que é precisamente a situação dos autos.

12. Ainda no mesmo sentido, contrário ao acórdão recorrido do TRC de 8 de abril de 2025, manifestou-se o acórdão Fundamento do STJ de 20/10/2005 (proc. n.º 05B2152), cuja cópia se junta, que considerou que a decisão de caráter provisório fixada a respeito da utilização da casa de família deverá tão-só vigorar na pendência da ação de divórcio e até ao trânsito em julgado da sentença que o decrete.

13. Também o entendimento seguido na doutrina supra mencionada, que aqui se dá por inteiramente reproduzida, conduz à mesma solução, visto que no caso concreto a Requerida nunca propôs a ação prevista no artigo 990º do CPC, da qual a dita providência depende, designadamente no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio.

14. Apesar de os respetivos sentidos e fundamentos de decisão serem diametralmente opostos, tanto o Acórdão recorrido como os Acórdãos fundamentos foram proferido no domínio da mesma legislação – i.e., no cotejo entre o disposto no n.º 7 do artigo 931.º e o disposto no artigo 990.º, ambos do CPC.

15. O Acórdão recorrido e os Acórdãos fundamentos têm por objeto a mesma questão fundamental de direito: o âmbito de vigência da decisão proferida ao abrigo do referido n.º 7 do artigo 931.º do CPC.

16. Razão pela qual se mostra preenchido o requisito de admissibilidade do presente recurso de revista excecional (alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do Código Processo Civil), ainda que se considere que a atribuição da casa de mora de família a um dos ex-cônjuges, com exclusão e afastamento do outro, tem subjacente a proteção constitucional da dignidade da pessoa humana e do direito à habitação previstos nos art.s 1º e 65º, da C.R.P., interesses de particular relevância social (alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do Código Processo Civil.

17. É também fundamento da presente revista excecional, em face do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, a circunstância de estarmos perante uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, conforme supra se explana.

18. Apesar de a quaestio atinente à delimitação da eficácia e validade temporal da decisão proferida no âmbito do incidente de atribuição provisória da casa de morada de família previsto no n.º 7 do artigo 931.º do CPC ter dado azo a algumas decisões judiciais, verifica-se, todavia, que não há, ainda, um lastro relevante de decisões e, menos ainda, uma firme orientação jurisprudencial, o que naturalmente gera incerteza e de dúvida, quer nos julgadores, quer nas partes, e que convoca a intervenção de vocação uniformizadora do Supremo Tribunal de Justiça.

19. Razão pela qual, e ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, também o presente recurso de revista excecional deverá ser admitido.

20. A questão controvertida contende com matéria atinente ao direito da família, conjugado com o direito (constitucionalmente protegido) à habitação e a consequente proteção dos cônjuges, no âmbito de um processo de divórcio, o que faz com que a questão cuja apreciação é submetida a este Alto Tribunal extravase largamente os estritos limites do caso concreto, assumindo inequívoca ressonância social.

21. A questão atinente à validade e vigência da decisão de atribuição provisória da casa de morada de família, prolatada ao abrigo do disposto no n.º 7 do artigo 931.º do Código Processo Civil, é uma questão que se reveste de particular relevância social que convoca e legitima a presente revista excecional, a qual deve ser admitida ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

22. Em face do teor dos Acórdãos Fundamentos, é entendimento do recorrente que, ao invés do decido pelo acórdão recorrido do TRC de 8 de abril de 2025 (referência ......91), a decisão proferida pela Exma. Senhora Juiz de 1.ª Instância, ao abrigo do n.º 7 do artigo 931.º do CPC, é uma decisão cuja eficácia se encontra limitada à vigência do processo de divórcio, no âmbito do qual foi proferida.

23. Com o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio entre o recorrente e a recorrida, esgotou-se a eficácia da decisão proferida no dito incidente, o que determina, em termos processuais, a caducidade daquela, circunstância à qual o Tribunal recorrido foi totalmente insensível.

24. O que deverá agora reconhecer-se, revogando-se o acórdão do TRC de 8 de abril de 2025 (referência ......91), por violação do art.990º, n.º 7 e 9 do artigo 931.º, art.994º, nº 1, al. f), do Código Processo Civil, conjugados com al.d), do nº1 e nº2, do art.1775º, do Código Civil, e com os art.s 1º e 65º, da C.R.P., substituindo-se o mesmo por douto Acórdão que declare, com os fundamentos supra expostos, que a decisão proferida ao abrigo do n.º 7 do artigo 931.º do CPC cessou efeitos no dia 06/11/2024 com o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio entre as partes.

Da atribuição da casa de morada de família a ambos os ex-cônjuges

25. O juiz a quo, apesar de nenhuma das partes lho ter solicitado, deveria ter averiguado, por sua iniciativa, se a casa poderia ou não ser utilizada de forma autónoma por ambos os cônjuges, sendo atribuída aos dois, já que comprovadamente ambos dela necessitam.

26. Consequentemente, o recorrente requereu na apelação que os autos baixassem à 1ª instância para que se proceda a tal averiguação.

27. Defendeu o acórdão recorrido do TRC de 8 de abril de 2025 que não assiste razão ao Recorrente, uma vez que o princípio do inquisitório na jurisdição voluntária não afasta o ónus de alegação dos factos e da apresentação de prova pelas partes.

28. Não se compreende que o acórdão recorrido do TRC, confirmando a sentença de primeira instância, tenha determinado o afastamento do Requerente da casa de morada de família e, pior, sem qualquer contrapartida, a mero pretexto da Requerida não estar obrigada a uma comunhão forçada com aquele.

29. Isto não obstante o acórdão recorrido do TRC reconhecer que ambos os ex- cônjuges, com a provecta idade de 68 e 69 anos, são pessoas com poucos recursos económicos e com graves problemas de saúde que necessitam da casa para viver.

30. Justamente porque o tribunal não podia adivinhar que a casa de família podia albergar os dois ex-cônjuges, impunha-se que o indagasse, ao invés de ter violado os art.s 662.°, n.º. 2, al. c), 931.º, n.º 7, 986º, nº2, todos do Código Processo Civil.

31. Sem essa indagação, o acórdão recorrido do TRC não podia afirmar, senão num exercício de adivinhação que ali se diz recusar, que a atribuição da casa a ambos acaba por não servir a nenhum deles.

32. O art.1793º, nº1, do Código Civil, à luz da interpretação normativa conjugada com os art.1º e 65 da C.R.P.. que assegura a todos os cidadãos uma habitação condigna, não obsta a que o tribunal atribua a casa de morada de família a ambos os cônjuges quando, em função dos fatores relevantes de atribuição (idade, estado de saúde e insuficiência económica), baseado nas concretas circunstâncias do caso, os dois necessitem dela para residir, em face da situação patrimonial de cada um deles.

33. Ainda que as partes não o tivessem alegado, o tribunal a quo não estava dispensado, no âmbito do processo de jurisdição voluntária, de averiguar se a casa de morada de família tinha, como efetivamente tem, condições para ambos os cônjuges nela residirem autonomamente, por ser essa uma das soluções que o caso impunha como conveniente, equitativa e oportuna para caso dos autos.

34. Excecionalmente é de admitir, como é o caso concreto, a entrega da casa a ambos os cônjuges quando seja premente a necessidade de ambos e a casa tenha caraterísticas que permita que cada uma das partes ali desenvolva uma residência autónoma e independente enquanto perdurar a medida.

35. Assim decidiu, num caso semelhante ao dos autos, o acórdão fundamento do Tribunal da Relação do Porto, no acórdão de 29 de Setembro de 2022, proferido no processo nº 17360/21.2T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt, que: “Excecionalmente, será de admitir a entrega da casa a ambos os cônjuges quando seja premente a necessidade de ambos e a casa tenha caraterísticas peculiares no sentido de que funciona como se de duas residências se tratasse, cada uma delas com autonomia física e funcional, de tal modo que permita que cada uma das partes desenvolva uma residência autónoma e independente enquanto perdurar a medida”.

36. Ademais, a providência de atribuição da casa de morada de família a um dos ex-cônjuges pode ser decidida com matéria de facto não alegada pelo requerente ou pelo requerido.

37. Na verdade, tal providência (cfr. art.º 1793.º, n.º 1, do Código Civil e 3.º, n.º 1, do CPC) tem natureza de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal podia e devia investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes (cfr. art.ºs 1409.º, n.º 2, e 1413.º do CPC - 986º e 990º NCPC), em consequência do que o ónus de alegação pelos interessados dos factos necessários à decisão da “providência”, bem como a sua prova, possam ser oficiosamente supridos.

38. Não tendo o juiz "a quo" tomado a iniciativa de suprir a insuficiência de factos e não constando do processo todos os elementos de prova que permitam a (re)apreciação da matéria de facto, nos termos do disposto no art.º 662.°. n.º. 2, al. c) do NCPC, devia o acórdão recorrido do TRC anular a decisão proferida pela 1.ª instância, devendo o Tribunal "a quo" ordenar, oficiosamente, a realização das diligências necessárias, com vista a alcançar a verdade material, também no âmbito do poder-dever de direção do processo, produzindo decisão de conformidade, conforme acórdão doutrina seguida no ac TRC 11.06.2019 (processo 3607/17.3T8PBL-A.C1), disponível em www.dgsi.pt.

39. Demonstrado que ambos os ex-cônjuges necessitam daquela casa para habitar, o tribunal de recurso deveria ordenar ao tribunal a quo que indagasse das condições reais existentes na mesma para albergar autonomamente os dois, assim acautelando o direito à habitação de ambos, já que os dois dela necessitam para viver, pois nenhum deles dispõe de habitação alternativa, nem condições económicas, idade e saúde para a conseguir.

40. No entanto, o acórdão recorrido do TRC subverteu a prevalência do princípio inquisitório sobre o princípio dispositivo (artigo 986.º, n.º 2, do Código Processo Civil), nos processos de jurisdição voluntária.

41. No “âmbito dos processos de jurisdição voluntária, o tribunal não está dependente dos factos direta ou indiretamente alegados pelas partes, seja qual for a função que os mesmos desempenhem no processo, dispondo de ampla iniciativa probatória e apenas admitindo as provas que entenda necessárias (artigo 986.º, n.º 2 do mesmo Código).

42. Assim, quer se trate “factos integrantes da causa de pedir ou das exceções, de factos complementares ou concretizadores desses factos essenciais, ou de factos instrumentais ou indiciários (…) na jurisdição voluntária, os poderes de cognição do tribunal não dependem do cumprimento de nenhum ónus de alegação” na medida em que o tribunal pode “conhecê-los oficiosamente, investigando-os por sua iniciativa, ou em consequência da alegação dos interessados”.

43. Os factos essenciais integradores do pedido e da causa de pedir reconduzem-se aqui à necessidade da casa de morada de família para algum ou ambos os ex-cônjuges e não à possibilidade física e funcional de autonomização daquela como residências distintas.

44. A circunstância de cada um dos ex-cônjuges pedir a atribuição da casa com exclusão do outro, sem que tenha sido possível a conciliação de ambos nesse particular, assim como a circunstância de apenas um deles ali habitar de momento, não obstava a que o tribunal optasse, no apuramento da verdade material e na justa composição do litígio, pela sua atribuição partilhada, já que ambos a pediram e dela necessitam para viver, sem que disponham de alternativa de habitação para o efeito, nem condições para a conseguir.

45. Por conseguinte, estando o tribunal libertado da fundamentação exclusiva na matéria de facto alegada pelas partes e na medida em que pode socorrer-se de factos que o juiz tenha apurado livremente, conforme ac TRL 19.10.1999, processo n.º 4432/99 (Sousa Magalhães), pp. 130-131, impunha-se - justamente por isso - que o acórdão recorrido do TRC, a coberto do art.662.°. n.º. 2, al. c), conjugado com o art. 986º, nº2, ambos do Código Processo Civil, tivesse ordenado a baixa do processo para indagar das condições reais da casa de família para albergar autonomamente os dois ex-cônjuges e decidir em conformidade.

46. O dever de realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio não integra uma simples faculdade de uso discricionário, mas um indeclinável compromisso legal do juiz (poder-dever) com a verdade material e a justa composição do litígio, mormente relativamente aos factos não integrantes da causa de pedir no domínio dos processos de jurisdição voluntária.

47. Consabidamente, no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, no qual o princípio inquisitório prevalece sobre o princípio dispositivo, o tribunal não está, em princípio, dependente dos factos direta ou indiretamente alegados pelos interessados, seja qual for a função que aqueles desempenhem no processo, dispondo de ampla iniciativa probatória, não estando dependente de qualquer ónus de alegação e apenas admitindo as provas que entenda necessárias (artigo 986.º, n.º 2 do mesmo Código).

48. No âmbito dos processos de jurisdição voluntária, por força da predominância que o princípio do inquisitório assume neste tipo de processo especial, permitindo que o tribunal conheça de todas as questões de facto e direito que relevam para a decisão dos autos e concedendo mais ampla margem de atuação do tribunal na definição da solução justa para o objeto da causa, sem estar sujeito à concreta pretensão das partes, conforme vemos defendido no acórdão do TRG 19-12-2023, processo 4490/15.9T8BRG-G.G1, Sandra Melo, www.dgsi.pt , aqui indicado como Acórdão fundamento proferido no domínio da mesma legislação (artigo 986.º, n.º 2 do mesmo Código) em sentido contrário ao acórdão recorrido do TRC (art.672º, nº1, al.c) do Código Processo Civil.

49. A maior flexibilização no processo é ainda potenciada pela natureza dos interesses em jogo – a proteção do direito fundamental à habitação, imperando a atual tendência do predomínio da justiça material sobre a justiça formal.

50. Nos processos de jurisdição voluntária, as decisões não estão vinculadas ao pedido das partes, ao contrário do que vemos defendido no acórdão recorrido do TRC, conforme Acórdãos fundamento do TRG 19-12-2023, processo 4490/15.9T8BRG-G.G1, Sandra Melo, e acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 01/10/2023, no processo 1281/19.1T8VCD.P1.S1, Manuel Capelo, ambos www.dgsi.pt, cujas cópias se juntam e aqui se dão por inteiramente reproduzidas.

51. Como se pode ler no citado acórdão Fundamento do STJ 01/10/2023, “É admissível nos processos de jurisdição voluntária a decisão mais conveniente e oportuna que o Tribunal entenda dever proferir ainda que não seja aquela decisão que foi pedida, importando, no entanto, que haja uma conexão ao nível da decisão entre o que se decidiu e o que se pediu, quando, assim procedendo, se tenha como objetivo realizado uma solução mais adequada para o litígio”, ainda que salvaguardado o respeito pelo princípio do contraditório para acautelar o efeito de uma decisão surpresa.

52. Contudo, como sumariado no citado acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 01/10/2023, no processo 1281/19.1T8VCD.P1.S1, Manuel Capelo, www.dgsi.pt: “II- Nos processos de jurisdição voluntária não é absoluta a regra do artigo 609º nº 1 do CPC tendo sido já admitida (desde há muito) a condenação ultra petitum designadamente no âmbito de processo tutelares cíveis embora essa possibilidade de não restrinja aos que tenham esse objeto. III. Porque o tribunal nos processos de jurisdição voluntária não está sujeito a critérios de legalidade estrita tal liberdade de ação pode implicar uma condenação qualitativamente diversa justificada por a latitude na indagação e fixação dos factos e a obrigação de uma solução equitativa não pode estar limitada pelo pedido, o qual deve entender-se ser uma indicação”.

53. Sabidos que os ex-cônjuges têm idade avançada, são pessoas com poucos recursos económicos e com graves problemas de saúde, sem uma habitação alternativa, os poderes instrutórios previstos no art.986º, nº2, do Código Processo Civil, sem vinculação ao pedido das partes no processo de jurisdição voluntária, não se esgotava na questão de saber quem mais precisava da casa de família, quando ambos têm comprovada necessidade imperiosa de nela viver, mas primeiramente se esta tem condições para os dois nela habitarem, sendo ao caso totalmente irrelevante se, após a recorrida a deixar, o recorrente nela permaneceu sozinho.

54. A ligeira diferença de rendimentos conhecidos entre os ex-cônjuges, no quadro da insuficiência económica de cada um deles, não significa que o Requerente possa acautelar as suas necessidades de habitação se despojado fosse da sua casa e menos ainda que disponha de condições físicas e de saúde para continuar a trabalhar na agricultura e nas obras, hoje com 69 anos de idade, ideação suicida, depressões, problemas neurológicos, diabetes, colesterol elevado, etc, tudo associado à medicação e acompanhamento psiquiatra que comprovadamente faz.

55. Não é por a Requerente estar carecida da casa de morada de família, atentas as suas condições de saúde, incapacidade para auferir mais rendimentos e sua situação económica, que deixa de ser premente a necessidade do Requerente também ocupar aquela casa para condignamente viver, dada a comprovada situação pessoal e económica em que se encontra.

56. Mesmo que a situação pessoal e económica do Requerente fosse menos difícil do que a da Requerente, o que só em tese abstrata se aceita, tal não significa que consiga pagar a renda de uma casa para viver e, portanto, não necessite da sua casa para o efeito, a mais que – a manter-se a sentença recorrida - nenhuma renda receberia da Requerente.

57. Em parte alguma dos factos provados resulta que o Requerente tivesse despejado a Requerente da casa de morada de família, mas apenas que desde abril de 2024 esta passou a residir com a filha na sequência dos factos participados por violência doméstica, dos quais ambos são vítimas e denunciados (pontos 13 e 15 dos factos provados).

58. Se em consequência disso o Requerente desde abril de 2024 passou a beneficiar, sem qualquer contrapartida, da fruição da casa de ambos por inteiro, tal não legitima que deva agora ser prejudicado e o outro beneficiado.

59. Argumentar com esse benefício, sem que esteja provado ter sido imposição do Requerente afastar a ex-mulher de sua casa, quando ambos têm o estatuto de vítimas entre e contra si, é um entendimento justiceiro que, à margem do critério legal da necessidade de habitação de ambos (art.1793º, do Código Civil) procura compensar aquela com o prejuízo que a decisão agora impõe ao ex-marido, desalojando-o, sem qualquer contrapartida.

60. Tudo isto apesar da idade, a insuficiência económica e o estado de saúde do Requerente o tornarem incapaz de suportar uma alternativa habitacional minimamente condigna a que todos têm direito (art.s 1º e 65º, da C.R.P.).

61. Argumentar que a perduração na casa pela requerente mulher, sem qualquer contrapartida, até à sua venda ou partilha, equivalerá ao período de tempo que decorreu desde abril de 2024 até à sentença recorrida, é um exercício absolutamente especulativo que abre a porta, isso sim, a expedientes dilatórios da Requerente motivados pela decisão injusta e infundada que lhe atribui a casa e gratuitamente, mais em jeito de castigo do outro, do que fundada no critério legal da necessidade de habitação previsto no art.1793º, nº1 e 2, do Código Civil.

62. Da opção de um dos cônjuges sair da casa comum, aquando da separação, e da sua inércia em requerer a atribuição da casa de morada de família, durante escassos meses, não decorre que seja abusivo o exercício do direito do outro a utilizar com exclusividade ou sequer que dela deva agora sair para compensar a ex-mulher que dela se ausentou, não obstante as necessidades e possibilidades atuais deficitárias de ambos.

63. Competindo à jurisdição penal e não à jurisdição da família, se for caso disso, acautelar os perigos que a convivência de ambos eventualmente possa suscitar, aquando da ponderação das medidas coativas aplicar, o que até à data não se mostrou necessário (art.24º dos factos provados), não se compreende que o tribunal a quo tenha determinado o afastamento do Requerente da casa de morada de família e, pior, sem qualquer contrapartida.

64. Ressalvada a decisão de que se recorre, a nenhum dos cônjuges foi judicialmente imposto o afastamento da residência da família.

65. Assim não decidindo, o acórdão recorrido do TRC violou o disposto no art.1793º, nº1 e 2, do Código Civil, conjugado com o art.1º e 65 da C.R.P.., bem assim os art.s 662.°. n.º. 2, al. c), 931.º, n.º 7, 986º, nº2 e 990º NCPC, o que deverá agora reconhecer-se, revogando-se o acórdão do TRC de 8 de abril de 2025 (referência ......91), substituindo-se o mesmo por outro que, anulando a sentença da primeira instância, determine a baixa do processo para indagação das condições reais existentes na casa de família do ex-casal para albergar autonomamente os dois ex-cônjuges.

66. Apesar de os respetivos sentidos e fundamentos de decisão serem diametralmente opostos, tanto o Acórdão recorrido como os Acórdãos fundamentos foram proferidos no domínio da mesma legislação – i.e., no cotejo entre o disposto no n.º 7 do artigo 931.º e o disposto no artigo 986º, nº2, ambos do CPC.

67. O Acórdão recorrido e os Acórdãos fundamentos têm por objeto a mesma questão fundamental de direito: o conteúdo e limites do princípio inquisitório na jurisdição voluntária ao abrigo do referido artigo 986º, nº2, ambos do CPC.

68. Razão pela qual se mostra preenchido o requisito de admissibilidade do presente recurso de revista excecional (alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do Código processo Civil), ainda que, também neste prisma, se considere que a atribuição da casa de mora de família a um dos ex-cônjuges, com exclusão e afastamento do outro, tem subjacente a proteção constitucional da dignidade da pessoa humana e do direito à habitação previstos nos art.s 1º e 65º, da C.R.P., interesses de particular relevância social (alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do Código Processo Civil).

69. Também nesta perfectiva é fundamento de revista excecional, em face do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, a circunstância de estarmos perante uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito conforme supra se explana.

70. Apesar de a quaestio atinente ao conteúdo e limites do princípio inquisitório na jurisdição voluntária, ter dado azo a algumas decisões judiciais, verifica-se, todavia, que não há, ainda, um lastro relevante de decisões e, menos ainda, uma firme orientação jurisprudencial, o que naturalmente gera incerteza e de dúvida, quer nos julgadores, quer nas partes, e que convoca a intervenção de vocação uniformizadora do Supremo Tribunal de Justiça.

71. Razão pela qual, também neste enquadramento, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, o presente recurso de revista excecional deverá ser admitido.

72. Nestes termos e nos melhores de direito, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, nessa conformidade, ser revogado o acórdão recorrido do TRC de 8 de abril de 2025 nos precisos termos e fundamentos sobreditos.

Assim se fazendo a sempre douta, sã e elementar Justiça!”

8.- Feita a notificação a que alude o art.º 221.º, do C.P.C., respondeu a recorrida terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

“1. O presente recurso de revista é interposto, invocando, para o efeito, o recorrente o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672º e nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 674º, do CPC.

2. Com fundamento nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 674º, entende a ora recorrida que, nessa parte o recurso não pode ser admitido, porque a lei prevê expressamente a não admissibilidade de recurso, n.º 3 do artigo 671º e n.º 2 do artigo 988º do CPC.

3. Quanto aos fundamentos invocados nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672º entende a recorrida que a questão da caducidade da atribuição da casa de morada de família é efetivamente uma questão cuja apreciação, pela respetiva relevância jurídica, se torna necessária para uma melhor aplicação do direito.

4. Tem sido proferida Jurisprudência contraditória relativamente a tal questão.

5. Devendo por isso o julgamento do presente recurso, na parte em que versa sobre a caducidade da atribuição da casa de morada de família, ser realizado com intervenção do pleno das secções cíveis com vista a assegurar a uniformidade da jurisprudência, o que se requer a V.ªs Excelências.

6. Contudo, o presente recurso deve subir em separado.

7. E com efeito meramente devolutivo.

8. Ao incidente de atribuição da casa de morada de família não são aplicáveis as normas previstas para os procedimentos cautelares.

9. Tal incidente não caduca com o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio.

10.A decisão recorrida não viola qualquer norma legal, nomeadamente as invocadas pelo recorrente.

11.Termos em que deve o julgamento do presente recurso ser realizado com intervenção do pleno das secções cíveis com vista a assegurar a uniformidade da jurisprudência, decidindo no sentido de que “os efeitos da decisão em causa, que fixou o referido regime provisório, apenas deverão caducar – não existindo entretanto acordo alcançado sobre a matéria pelos (ex)cônjuges - com a partilha dos bens do casal dissolvido, exceto se, entretanto, for intentada a ação, ao abrigo do artº. 990.º do CPC, com vista à atribuição (em definitivo) da casa de morada de família (artº. 1793º do CC) ou à transmissão do direito ao arrendamento sobre a mesma (artº. 1105º do CC), situação em que a providência provisória deverá caducar automaticamente com o trânsito em julgado da decisão proferida nessa ação.”

12. Mantendo-se a decisão recorrida.

13.Assim se fazendo JUSTIÇA!”

9.- Em 23/5/2025 foi proferido despacho admitir o recurso do seguinte teor:

O recurso interposto é tempestivo – artº 638º, nº 1, do Código de Processo Civil. Subam os autos ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça – artº 672º, nº 3, do Código de Processo Civil.

Notifique e remeta os autos”.

II

Questão prévia

Refere a recorrida que a revista interposta nos termos do n.º 1, do art.º 671.º, do C.P.C. e alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 674º, (que no fundo é a revista normal), ainda que nem recorrente e recorrida o afirmem expressamente, não deve ser admitido, porque a lei prevê expressamente a não admissibilidade de recurso, n.º 3 do artigo 671º e n.º 2 do artigo 988º do CPC).

Caso venha a ser admitido deve ter efeito devolutivo e subida em separado.

Notificado o recorrente, nos termos do art.º 221.º, do C.P.C., nada disse.

Porém, refere a recorrida, que o recurso interposto nos termos das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672º (que no fundo é a revista excecional), o mesmo deve ser admitido, e, que, a questão da caducidade da atribuição da casa de morada de família, por ser, uma questão cuja apreciação, pela respetiva relevância jurídica, se torna necessária para uma melhor aplicação do direito e, por ter sido proferida Jurisprudência contraditória relativamente a tal questão, deve sobre tal matéria, realizada com intervenção do pleno das secções cíveis com vista a assegurar a uniformidade da jurisprudência, (questão que não será apreciada, neste acórdão, caso o recurso, interposto com base no art.º 671.º, do C.P.C. e alíneas a) e b), do n.º 1, do art.º 674.º, do mesmo diploma venha a ser admitido, ao que se opõe a recorrida, como já referimos e julgado improcedente), por a matéria da admissibilidade da revista excecional, ser da competência da Formação (cfr. n.º 3, do art.º 672.º, n.º 3, do C.P.C.).

Dito isto, passaremos analisar a questão.

A recorrida, no fundo, colocada duas questões, uma sobre a não admissibilidade da revista, (que iremos designar, como ponto i), e outra efeito e subida, caso o recurso seja admitido, (que iremos designar como ponto ii).

Assim, por uma questão de método iremos analisar cada questão de per si.

Ponto i)

Quanto ao mesmo temos para nós, não assistir razão à recorrida.

É verdade, o que nem é posto em causa, que no caso em apreço, estamos no domínio do processo de jurisdição voluntária, regulado no art.º 990.º, do C.P.C., (atribuição da casa de morada de família) e subordinado a regime no qual se integra o artigo 988.º, n.º 2, do CPC, segundo o qual “[d]as resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.

Ou seja, o que resulta do preceito, mormente do n.º 2 é que não cabe recurso para o S.T.J., das decisões, tomadas e proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade, o que, não é manifestamente o caso, pois, basta atentar na motivação e nas conclusões de recurso (sendo estas que delimitam o objecto do recurso cfr. art.º n.º 4, do art.º 635.º, do C.P.C.), onde o recorrente coloca a questão da violação da alínea c), do n.º 2, do art.º 662.º, do C.P.C.).

Assim, nesta medida o recurso tem de ser admitido, falecendo o argumento da recorrida, aliás, tem sido este o entendimento deste Tribunal (cfr. entre outros, Ac.s do STJ, de 25/6/2012, proc.º n.º 10102/09.2TCLRS.L1.S1, relatado por Sebastião Póvoas, ainda que tirado no domínio do C.P.C., revogado, que mantem atualidade; de 25/5/2017, proc.º n.º 945/13.8T2AMD-A.L1.S1, relatado por Tomé Gomes; de 17/12/2019, proc.º n.º 4630/17.3T8FNC-A.L1.S1, relatado por Maria João Vaz Tomé; de 21/4/2022, proc.º n.º 87/12.3TBNRD-E.L1.S1, relatado por Fernando Batista, de 3/4/2025, proc.º n.º 2300/22.0T8LSB.L1.S1, relatado por Catarina Serra e de 29/4/2025, 248/23.0T8TMR.E1.S1, por nós relatado).

Acresce, por outro lado, que este Tribunal, senão por unanimidade, por grande maioria, que a dupla conforme, não se verifica, quando é posto em causa, violação de nomas referentes à apreciação da matéria de facto, podendo este Tribunal apreciar a questão, a fim de aquilatar se houve violação de qualquer norma, sobre a questão da prova, no caso em apreço, saber se a alínea c), do n.º 2, do art.º 662.º, do C.P.C., foi ou não violada (cfr. entre outros Ac.s do STJ de 22/1/2015, proc.º n.º 24/09.2TBMDA.C2.S2, relatado por Maria dos Prazeres Beleza, in www.dgsi, de 30-05-2019, proc.º n.º 156/16.0T8BCL.G1.S1, relatado por Catarina Serra, in www.dgsi, de 3/11/2021, proc.º n.º 4096/18.VFR.P1.S1, relatado por Ricardo Costa, in www.dgsi, de 14/9/2023, proc.º n.º 895/21.4T8FNC-A.L1.S1, relatado por Catarina Serra, e de 7/7/2021, proc.º n.º 5835/18.5T8BRG.G1.S1, relatado por Ricardo Costa).

Assim, nada obsta à apreciação do mérito da revista, como recebida pelo tribunal “a quo”

Assim, face ao exposto e pelas razões explanadas, nesta vertente, não assiste razão à recorrida e admitimos o recurso.

Visto este ponto, passemos ao seguinte.

Ponto ii)

Quanto a este ponto será sob dividido em dois pontos, saber se o recurso deve ter efeito devolutivo (sob ponto a) e com subida em separado (sob ponto b).

Apreciemos cada um dos sob pontos.

Sob ponto a).

Refere a recorrida que sendo admitido o recurso ao mesmo deve ser fixado efeito devolutivo.

Temos para nós, que lhe assiste razão.

Temos para nós, que ao caso não é aplicado o n.º 4, do art.º 991.º, do C.P.C., que alude ao efeito suspensivo, mas tal preceito, diz respeito à fixação ou alteração da residência da família, o que não é o caso.

No caso em apreço estamos perante o caso do art.º 990.º, do C.P.C., atribuição da casa de morada de família.

É verdade que o n.º 4, deste preceito, alude a efeito suspensivo, porém, apenas aludindo ao caso de apelação.

Ora, no caso em apreço, estamos perante um recurso de revista, pelo que, quanto a nós, teremos de aplicar o preceito aplicável às revistas (art.º 676.º, do C.P.C.), que refere, desde logo, que o recurso de revista tem efeito devolutivo, exceto nos processos sobre estado de pessoas, (cfr.º n.º 1, do preceito), que não é o caso, pois aqui estamos perante uma situação de atribuição de casa de morada de família.

Visto o sob ponto a), passemos ao sob ponto seguinte.

Sob ponto b)

Refere a recorrida que a subida deve ser em separado.

Afigura-se-nos que neste ponto falece de razão.

Nos termos do n.º 1, do art.º 675.º, do C.P.C., - “Sobem nos próprios autos as revistas interpostas das decisões previstas no n.º 1 do artigo 671.º”, e preceitua o n.º 1, deste preceito “- Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”.

No caso em apreço, estamos perante um processo de jurisdição voluntária (atribuição da casa da morada de família), que como se sabe, a decisão pode ser alterada se os pressupostos, se alterarem, ou seja nos processos de jurisdição voluntária, o conhecimento do objeto do processo, não pode ser visto, nos mesmos termos, em que é visto nos processos de jurisdição não voluntária.

Mas isso, não implica, nem pode implicar que nos processos de jurisdição voluntária, não há um conhecimento do mérito da causa, o método é conhecido, pode é ser alterado, face à natureza do processo em causa.

Assim, temos para nós, que a situação, em apreço é abrangida pelo n.º 1, do art.º 671.º, do C.P.C.

Face ao exposto, nesta vertente não assiste razão à recorrida.

Aqui chegados, passemos à análise do objeto do recurso.

III

Objeto do recurso

Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), a questão a decidir consiste em saber:

Se houve violação da al.ª c), do n.º 2, do art.º 662.º, do C.P.C.

IV

Fundamentação

1.- As instâncias deram como provada a seguinte matéria.

1 – As partes contraíram entre si casamento católico, sem convenção antenupcial, no dia 22.04.1979, na Capela Pública do Localização 1, freguesia de São João de Lourosa, concelho de Viseu, tendo a nubente, à data, a idade de 23 anos e tendo o nubente, à data, a idade de 24 anos.

2 – A 11.02.2024, foi atribuído a BB o estatuto de vítima especialmente vulnerável em inquérito criminal por ela instaurado contra o marido, por factos passíveis de consubstanciarem o crime de violência doméstica contra ela perpetrado.

3 - A 31.03.2024, foi atribuído a AA o estatuto de vítima especialmente vulnerável em inquérito criminal por ele instaurado contra a esposa, por factos passíveis de consubstanciarem o crime de violência doméstica contra ele perpetrado.

4 – No ano de 2023, BBauferiu pensões de velhice no montante global de 5013,66€ (cinco mil e treze euros e sessenta e seis cêntimos), recebendo, no decurso do corrente ano de 2024, o montante mensal de 385,97€ (trezentos e oitenta e cinco euros e noventa e sete cêntimos), a título de pensão de velhice.

5 – Por referência ao ano de 2023, AA declarou, para efeitos fiscais, um rendimento de 6351,92€ (seis mil trezentos e cinquenta e um euros e noventa e dois cêntimos), proveniente de pensões, bem como um rendimento de 2258,16€ (dois mil duzentos e cinquenta e oito euros e dezasseis cêntimos) obtido no estrangeiro.

6 - Por referência ao ano de 2023, BB declarou, para efeitos fiscais, um rendimento de 5013,66€ (cinco mil e treze euros e sessenta e seis cêntimos), proveniente de pensões.

7 - No processo de divórcio, as partes relacionaram, a título de património comum do casal, um prédio urbano (casa de morada de família) inscrito na matriz sob o nº ..., da União de Freguesias de Santar e Moreira, com o valor patrimonial de trinta e oito mil e vinte e um euros e noventa cêntimos, para além de três prédios rústicos sitos na mesma freguesia.

7 - No processo de divórcio, ambos os cônjuges declararam prescindir de alimentos devidos a cônjuge.

8 – Para efeitos de intervenção no processo de divórcio, foi concedida a BB protecção jurídica na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

9 - AA esteve internado em contexto hospitalar desde 11.02.2024 até 29.02.2024, na sequência de entrada no Serviço de Urgência do Hospital de Viseu após intoxicação voluntária com cerca de 200 ml de produto herbicida, com vista ao suicídio, na sequência de conflito conjugal.

10 – AA encontra-se sujeito a medicação antidepressiva, neuroléptica, antidislipidemiante e antidiabética, tendo-lhe ainda sido prescrita a 29.02.2024 a seguinte medicação: mirtazapina 15 mg (0+0+0+1), risperidona 1 mg (1/2+0+0+0), Vitaminas do complexo B 1 comp ao PA, lorazepam 2.5 mg 1 comp. em SOS.

11 - AA é seguido em consultas no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de Viseu.

12 - AA não se relaciona com os filhos, já maiores de idade e com vidas autónomas dos pais, tendo os filhos cortado relações com o pai.

13 – Na sequência dos factos participados no inquérito por violência doméstica que corre termos contra AA, a esposa passou a residir, provisoriamente, a partir de Abril de 2024, na casa da filha em Viseu, a qual não manifesta disponibilidade para acolher a mãe na sua casa em termos definitivos.

14 – A casa da filha das partes apenas dispõe de três quartos para a pernoita da filha das partes, do marido e dos dois filhos, os quais tiveram de alterar a sua organização familiar para permitir a pernoita de BB na sua casa, com perda de conforto e de privacidade do agregado familiar.

15 – Antes de Abril de 2024, as partes residiam no prédio urbano inscrito na matriz sob o nº ..., da União de Freguesias de Santar e Moreira, descrito na CRP de Nelas sob o nº 462/19960312, o qual passou a ser fruído exclusivamente por AA desde então.

16 - BB sofre há anos de depressão e artrites, sendo acompanhada em consultas de neurologia e medicina física e reabilitação, frequenta a hidroginástica e toma medicação regular.

17 – Cada consulta de neurologia, em número não superior a duas por ano, importa um custo de cem euros.

18 - As consultas de Medicina Física e Reabilitação são gratuitas, assim como a hidroginástica.

19 – Entre a casa de morada de família e a piscina, onde frequenta a hidroginástica três vezes por semana, BB gasta em cada viagem 2,45€ (dois euros e quarenta e cinco cêntimos), gastando semanalmente quantia não inferior a 14,40€ (catorze euros e quarenta cêntimos) nessas deslocações.

20 - BB gasta em medicação, cerca de 50,00€ (cinquenta euros) mensais, tendo despendido, no ano de 2023, 847,34€ (oitocentos e quarenta e sete euros e trinta e quatro cêntimos) em despesas de saúde.

21 - AA realiza, quando surgem, trabalhos remunerados, e fiscalmente não declarados, na agricultura e na construção civil por conta de terceiros.

22 - AA tem carta de condução e conduz veículo automóvel.

23 – No dia 08.03.2024, AA emitiu declaração de venda, em benefício de terceiro, para fins de registo, do veículo automóvel de marca Opel que costuma conduzir.

24 – Nos inquéritos instaurados contra as ora partes, por factos passíveis de consubstanciarem o crime de violência doméstica, ainda não foi aplicada medida de coacção.

25 – As partes sempre tiveram uma relação conjugal conflituosa, com muitas discussões e berros, e já aconteceu o requerente chamar “puta” à esposa.

26 – Os problemas de saúde de BB impedem-na de desenvolver actividades que importem esforço físico.

27 - BB não desenvolve actividade remunerada.

Factos julgados não provados na sentença recorrida:

- AA despenda sessenta e cinco euros mensais com medicação, deslocações para consultas ao Hospital Psiquiátrico de Abraveses

- AA não tenha meios financeiros/rendimentos para arrendar um alojamento ou não consiga realojar-se por qualquer outra forma,

- AA agrida fisicamente a esposa e a chame de “esgadelhada” e “gatuna”,

- AA feche a água da companhia, desligue o gás do esquentador, coloque a chave da porta no interior da porta da casa, retire a chave do correio do seu local habitual para impedir que a esposa possa fruir da casa de morada de família,

- a requerente se auto-agrida para incriminar o marido, - a requerente disponha de qualquer outra habitação, para além da casa de morada de família, onde possa residir em permanência, com condições de conforto adequadas à sua condição física.

2- Direito

Segundo o recorrente o tribunal “a quo” violou a alínea c), do n.º 2, do art.º 662.º, do C.P.C., porquanto, o tribunal "a quo" não tomou a iniciativa de suprir a insuficiência de factos e não constando do processo todos os elementos de prova que permitam a (re)apreciação da matéria de facto, nos termos do disposto no art.º 662.°. n.º. 2, al. c) do NCPC, devia o acórdão recorrido anular a decisão proferida pela 1.ª instância, devendo o Tribunal "a quo" ordenar, oficiosamente, a realização das diligências necessárias, com vista a alcançar a verdade material, também no âmbito do poder-dever de direção do processo. A demonstrar que ambos os ex-cônjuges necessitam daquela casa para habitar, o tribunal de recurso deveria ordenar ao tribunal a quo que indagasse das condições reais existentes na mesma para albergar autonomamente os dois, assim acautelando o direito à habitação de ambos, já que os dois dela necessitam para viver, pois nenhum deles dispõe de habitação alternativa, nem condições económicas, idade e saúde para a conseguir.

Opinião oposta tem a recorrida que pugna pela manutenção do acórdão recorrido

Sobre esta matéria refere o acórdão recorrido:

Entende o Recorrente que o juiz a quo, apenar de nenhuma das partes lho ter solicitado, deveria ter averiguado, por sua iniciativa, se a casa poderia ou não ser utilizada de forma autónoma por ambos os cônjuges, sendo atribuída aos dois.

Consequentemente, requer que os autos baixem à 1ª instância para que se proceda a tal averiguação. Também aqui o Recorrente carece de razão, uma vez que o princípio do inquisitório na jurisdição voluntária não afasta o ónus de alegação dos factos e da apresentação de prova pelas partes.

Como nos diz António José Fialho, “Conteúdo e limites do princípio inquisitório na jurisdição voluntária”, Petrony, 2017, pág. 85: Na verdade, mesmo num processo inquisitório pleno, a instrumentalidade de um procedimento de natureza cognitiva e vinculado a uma função decisória, não pode deixar de ter em conta a pretensão formulada e "a definição exata e concreta do litígio trazido a juízo❞. Em função de outros elementos recolhidos no processo, da própria iniciativa dos interessados e dos fins que visa alcançar, os poderes de investigação oficiosa do juiz apenas devem ser exercidos quando demonstrem a existência de "uma utilidade presumida", ou seja, que sejam adequados e necessários "à descoberta da verdade material e à correta decisão da causa". Deste modo, o objetivo prosseguido com o processo especial escolhido e que se mostre adequado à finalidade pretendida deve constituir um limite ao poder inquisitório do tribunal. Ver também, entre outros, o recente acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 14 de Janeiro de 2025, proferido no processo nº 5642/18.5T8VIS-J.C1, disponível em www.dgsi.pt, onde se diz: I – Prevalecendo nos processos de jurisdição voluntária, o princípio do inquisitório, o poder de conhecimento dos factos está dependente da sua alegação pelas partes ou de que os mesmos cheguem ao seu conhecimento no decurso da instrução do processo, ainda que por indagação oficiosa.

Ou, num sentido ainda mais restritivo, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Maio de 2021, supra referido: VI - O poder o juiz ordenar realizar de diligências nos termos do art. 931.º, n.º 7, do CPC e 1778.º-A, n.º 4, do CC, resulta de ser da sua iniciativa fixar um regime provisório quanto a alimentos, à regulação das responsabilidades parentais ou quanto à utilização da casa de família, pois, se não o fez oficiosamente, cabe em regra a quem requeira essa fixação o ónus de alegar os factos e a presentar prova.

Também António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, “Código de Processo Civil anotado”, volume II, Almedina, 2021, pág. 377: 13. Os poderes instrutórios atribuídos na parte final do nº 7 não se destinam a dispensar o ónus da prova das partes, que se mantém, mas a possibilitar uma decisão mais equitativa quanto às pretensões formuladas, dada a natureza dos interesses em causa. Tais poderes instrutórios atribuídos ao juiz permitem completar a prova oferecida pelas partes, mas não substituí-la (RP 16-1-14, 228/13).

Acresce que, neste caso, não tendo as partes dito em lugar algum que a casa poderia ser utilizada por ambos os ex-cônjuges, não estando de facto a ser utilizada por ambos, tendo ambos requerido a sua atribuição em exclusivo e sendo da normalidade da vida que as casas, em regra, não permitem diversas utilizações autónomas, só com verdadeiros poderes da adivinhação poderia o juiz a quo lembrar-se de averiguar tal facto. Assim, também nesta parte, improcede o recurso”.

Apreciando.

No fundo o que está em causa é saber até onde vai ou não vai o princípio do inquisitório, nos processos, mormente, nos processos de jurisdição voluntária, como é o caso em apreço.

Cabe, em primeiro lugar dizer algo a respeito de tal matéria.

Como é consabido, o princípio do dispositivo é aquele que se afirma por oposição ao princípio do inquisitório ou da oficialidade.

Enquanto no primeiro, o que é decisivo, é a vontade das partes, no segundo, o que releva no processo é a vontade do juiz.

O princípio do dispositivo identifica-se essencialmente em três vectores fundamentais, e que são os seguintes:

- As partes determinam o início do processo. É o princípio do pedido, cabendo às partes o impulso inicial do processo, expressamente consagrado no art. 3º do CPC;

- As partes têm a disponibilidade do objecto do processo;

- As partes têm a disponibilidade do termo do processo, podendo prevenir a decisão por compromisso arbitral, desistência, confissão ou transacção.

Porém, dada a natureza pública do processo civil, os interesses públicos inerentes á administração da justiça e ao funcionamento das instituições judiciárias, o interesse de protecção de partes mais fracas, expostas a eventuais notórias desigualdades de recursos, o interesse da prevalência da justiça substantiva sobre a justiça adjectiva, muitas correcções vêm sendo introduzidas ao funcionamento do princípio dispositivo.

Como se refere na exposição de motivos do novo Código de Processo Civil, deu-se prevalência ao “princípio da prevalência do mérito sobre meras questões de forma” que, “em conjugação com o assinalado reforço dos poderes de direcção, agilização, adequação e gestão processual do juiz” deve conduzir a que toda a actividade processual seja orientada para propiciar a obtenção de decisões que privilegiem o mérito ou a substância sobre a forma, cabendo suprir-se o erro na qualificação pela parte do meio processual utilizado e evitar deficiências ou irregularidades puramente adjectivas que impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais.

Assim, em diversas oportunidades, o juiz, à luz desse princípio do inquisitório, vê ampliados os termos da sua intervenção.

Desta forma, é restabelecido o equilíbrio entre os princípios do dispositivo e do inquisitório no que respeita ao domínio da factualidade em discussão na causa, prescreve-se no artigo 5.º, do C.P.C., que em certa forma corresponde ao art.º 264.º, do C.P.C., revogado, sob a epígrafe “Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal”, o seguinte:

- Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.
- Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:

a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;

c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

- O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.”

É também neste contexto que se entende o disposto no artigo 6.º, do C.P.C., que, em certa medida corresponde ao art.º 266.º, do C.P.C., revogado, no qual se consagra, à luz do princípio do inquisitório e da oficialidade, um Dever de Gestão Processual, aí se prescrevendo, designadamente, que cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

Logo, por via desta norma o tribunal não está dependente da alegação das partes e pode servir-se perfeitamente de factos que não hajam sido alegados por estas e resultem apenas da instrução do processo e dos seus incidentes.

Porém, neste caso, temos para nós, que a parte deve dizer que pretende utilizar tais factos, por forma a que a outra parte, possa exercer o contraditório, ou como refere o Ac. do S.T.J. de 7/12/2023, proc.º n.º 2017/11.0TVLSB.L1.S1, relatado por João Cura Mariano, “A sua invocação nas alegações do recurso de apelação, com a consequente possibilidade da parte contrária, na resposta, se pronunciar sobre a pretensão de aditamento de facto não alegado mas que sobressaiu na instrução da causa, não é suficiente para que encontre garantido o contraditório exigido na parte final da alínea b), do n.º 2, do artigo 5.º, do Código de Processo Civil, não sendo, pois, permitido ao tribunal da Relação, nos casos em que o contraditório não foi assegurado na 1.ª instância, valorar a prova aí produzida, e decidir que o mesmo se encontra provado, aditando-o à lista dos factos provados”.

A respeito desta matéria referiu-se no Ac. da Rel. de Coimbra, de 12/4/2013, proc.º n.º 604/17.2T8LMG.C1, relatado por Henrique Antunes, propósito de um processo de jurisdição voluntária: “consabidamente, a causa de pedir é constituída, apenas, pelos factos necessários para a individualização a pretensão material alegada pelo autor e, portanto, não é integrada por todos os factos de que depende, de harmonia com a norma substantiva aplicável, a procedência da acção. Dito doutro modo: a causa petendi não é integrada pelos factos complementares, i.e., por aqueles factos que se limitam a concretizar ou a complementar aquela causa de pedir (art.° 5.°, n.°s 1 e 2, b), do CPC). Apesar de não participarem na causa de pedir, o autor não está dispensado do ónus de os alegar, dado que, sem a sua alegação - e prova - a acção não pode ser julgada procedente, embora a omissão da sua alegação não tenha um efeito preclusivo, porque tais factos podem ser adquiridos durante a instrução e a discussão da causa (art.° 5.°, n.° 2, b), do CPC)”

No caso em apreço, como bem se refere no acórdão recorrido, “não tendo as partes dito em lugar algum que a casa poderia ser utilizada por ambos os ex-cônjuges, não estando de facto a ser utilizada por ambos, tendo ambos requerido a sua atribuição em exclusivo e sendo da normalidade da vida que as casas, em regra, não permitem diversas utilizações autónomas, só com verdadeiros poderes da adivinhação poderia o juiz a quo lembrar-se de averiguar tal facto. Assim, também nesta parte, improcede o recurso”.

Ou seja, nem o recorrente nem a recorrida alegam factos nesse sentido, nem formulam qualquer pedido nesse sentido, assim, também nós não vislumbramos a possibilidade neste caso, de o tribunal apreciar tal questão.

É certo que a propósito da instrução do processo, se prescreve no artigo 411º, do C.P.C., sob a epígrafe, “Princípio do Inquisitório”, que “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.

Ou seja, impõe este preceito que o juiz realize ou ordene, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer – isto é, os factos instrumentais, ainda que não alegados pelas partes, nos termos do nº. 2 al a), do artº. 5º., do C.P.C., e os factos essenciais que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam alegado, verificados os pressupostos referidos no nº. 2, al. b), do mesmo preceito legal.

Porém, para o fazer é necessário, que, pelo menos, os factos tenham sido alegados, ou resultarem da instrução do processo, o que como já dissemos não é o caso, como bem se refere no acórdão recorrido, dando sempre a possibilidade, à outra parte do contraditório.

Assim, face ao exposto, não vislumbramos que nesta vertente assista razão ao recorrente, ou seja, não vislumbramos a violação do art.º 662.º, do C.P.C., mormente a al.ª c), do seu n.º 2.

Diga-se, também, que nesta vertente, também não vislumbramos a violação dos art.º 1.º e 65.º, da CRP, que o recorrente parece invocar, quanto a esta matéria.

Aqui chegados, face à ocorrência de dupla conforme, nesta parte, nos termos do n.º 3 do citado artigo 671.º, importa agora que sejam verificados os invocados pressupostos da revista excecional, para o que é competente a formação dos três juízes deste Supremo Tribunal de Justiça a que se refere o n.º 3 do artigo 672.º do mesmo Código.

Assim, e por ter havido pedido subsidiário de revista excecional, remete à formação, nos termos do n.º 3, do art.º 672.º, do C.P.C., (Provimento nº 23/2019 da Presidência do STJ), para apreciação da sua admissibilidade como revista excecional, interposta com apelo aos fundamentos previstos no nº 1 alªs a), b) e c) (estar em causa matéria de relevância jurídica e de interesse de particular relevância e contradição entre acórdãos), para apreciação da sua admissibilidade como revista excecional, interposta a titulo subsidiário, por verificados os pressupostos da admissibilidade normal.

V- Decisão

Face ao exposto, julga-se improcedente e nessa medida decide-se:

a).- Não haver violação ao art.º 662.º do C.P.C., mormente, a al.ª c), do n.º 2, face às razões supra expostas, não violação dos art.ºs 1 e 65, da CRP, na vertente supra referida.

b).- Determinar a remessa dos autos à formação a que se refere o artigo 672.º, n.º 3, do CPC para verificação dos invocados pressupostos da revista excecional.

Custas a cargo do recorrente, pela sucumbência do recurso e por a mesma de harmonia com o princípio da causalidade, torna-os responsáveis pelas respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), em que vai condenado, caso de não admissão da revista excecional; caso contrário, serão determinadas em função do que vier a ser decidido a final.

Lisboa, 16/9/2025

Pires Robalo (relator)

Nelson Borges Carneiro (adjunto)

Jorge Leal (adjunto)