IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PRESUNÇÃO JUDICIAL
ILOGICIDADE DA PRESUNÇÃO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
MATÉRIA DE FACTO
FACTOS NÃO PROVADOS
CONTRADIÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
SEGURADORA
VEÍCULO
AUTOMÓVEL
INCÊNDIO
Sumário


I. A decisão de facto é da competência das Instâncias, pelo que, o Supremo Tribunal de Justiça não pode, nem deve, interferir na decisão de facto, somente importando a respetiva intervenção, quando haja erro de direito, isto é, quando o acórdão recorrido viole o direito probatório.
II. Constitui jurisprudência consolidada de que é lícito aos Tribunais de Instância tirarem conclusões ou ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, e fazer a sua interpretação e esclarecimento, desde que, sem a alterarem, antes nela se apoiando, se limitem a desenvolvê-la.
III. Consubstanciando o juízo presuntivo um julgamento da matéria de facto, encontra-se o Supremo Tribunal de Justiça impedido de apurar a extração da presunção judicial pela Relação, exceto nos casos de violação de lei e das normas disciplinadoras do instituto, designadamente, sempre que ocorra ilogicidade e/ou a alteração da factualidade adquirida processualmente, ou seja, quando a presunção parta de factos não provados.
IV. Há contradição entre respostas à facticidade alegada quando a resposta dada a um determinado facto colide com a(s) resposta(s) dada(s) a outro ou outros factos alegados, ou seja, a resposta a um alegado facto é contraditória quando o sentido nela expresso exclua
V. A resposta negativa a determinada facticidade alegada, precisamente porque afirma que nada da sua matéria se provou, não pode enfermar de qualquer vício, ou seja, as respostas de não provado dadas pelo Tribunal à matéria alegada, não prova, nem deixa de provar o facto dele constante.ecessariamente a resposta dada a outro ou a outros factos.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA instaurou ação, com processo

comum, contra Companhia de Seguros Allianz, Portugal, S.A., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe as seguintes quantias:

“a) 122.600,00€ pelo prejuízo sofrido com a perda da viatura AG-..-VX;

b) 25.200,00€ a título de indemnização pela privação do uso da viatura desde a data do incêndio até hoje;

c) 125,00€ a título de indemnização pela não disponibilização de veículo de substituição;

d) 6.223,06€ a título de juros de mora vencidos desde a data do respetivo vencimento até hoje;

e) todas as quantias que se vencerem desde a citação até efetivo e integral pagamento, bem como os respetivos juros de mora vincendos.”

Articula, com utilidade, a sua pretensão num incêndio, ocorrido em 23/12/2021, num veículo de que era proprietário e quando o mesmo se encontrava estacionado (em França) e num contrato de seguro celebrado com a Ré que teve por objeto esse veículo e que incluía a cobertura, não só do valor do veículo (pelo capital de 122.600,00€), mas também a privação do respetivo uso à razão diária de 60,00€/dia, e carro de substituição pelo período de cinco dias.

Mais alega que, por força do incêndio, o veículo (cujo valor era superior ao capital contratado) ficou totalmente destruído e que está privado do respetivo uso desde a data do incêndio, sem que a Ré lhe tivesse disponibilizado qualquer veículo de substituição.

2. Regularmente citada, contestou a Ré, aceitando a celebração do contrato de seguro, alegando, contudo, que o sinistro não tinha cobertura nas condições da apólice, uma vez que não resultou de caso fortuito ou avaria, mas sim de ato doloso (ato de vandalismo) e, em relação a estes atos, a cobertura, nos termos da apólice e do contrato, estava limitada a sinistros ocorridos em Portugal, não incluindo, portanto, o sinistro aqui em causa que ocorreu em França.

Mais alega, no que toca à cláusula facultativa de privação de uso, que ela só teria aplicação se estivesse obrigada ao pagamento de uma indemnização ao seu segurado, ao abrigo de alguma das coberturas contratualmente contratadas, o que, no caso, não acontecia pelas razões acima mencionadas e que, além do mais, essa indemnização sempre estaria limitada, nos termos do contrato, ao máximo de 60,00€ no máximo de 10 dias.

Alega, por último, que a cláusula referente ao veículo de substituição apenas tem aplicação quando se verifique uma paralisação temporária (até à reparação), não sendo aplicável quando exista uma perda total do veículo como aconteceu no caso.

3. Foi realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, foi fixado o objeto do litígio e delimitados os temas da prova.

4. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência: “...condenar a ré, “Companhia de Seguros Allianz, Portugal, S.A.” a pagar ao autor, AA, a importância de €123.200,00 (cento e vinte e três mil e duzentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% desde a citação até efetivo e integral pagamento (artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil)”.

5. Inconformados, apelaram a Ré/Companhia de Seguros Allianz, Portugal, S.A. e o Autor/AA, tendo o Tribunal a quo conhecido do recurso, proferindo acórdão em cujo dispositivo enunciou:

“Pelo exposto, decide-se:

Julgar procedente o recurso interposto pela Ré, revogando-se a sentença recorrida e determinando-se a total improcedência da acção e a absolvição da Ré do pedido contra ela formulado;

Julgar prejudicada a apreciação do recurso interposto pelo Autor.”

6. É contra este acórdão, proferido no Tribunal da Relação de Coimbra, que o Autor/AA se insurge, formulando as seguintes conclusões:

“A. Antes de mais é consabido, que o S.T.J. pode sindicar a aplicação da lei adjectiva pela Relação em qualquer das dimensões relativas à decisão da matéria de facto provada e não provada (arts. 662.º, n.os 1 e 2, 674.º, n.º 1, al. b), do C.P.C.) - não uso ou uso deficiente ou patológico dos poderes-deveres em segundo grau - com as restrições do art. 662.º, n.º 4 e do art.º 674.º, n.º 4 do C.P.C. De facto,

B. o Tribunal recorrido violou o disposto no art.º 662.º, n.º 1 pois fez incorrecto uso dos poderes-deveres que lhe assistem quanto à reapreciação da matéria de facto, pois que em vez de apreciar o julgamento da matéria de facto feito pelo Primeira Instância, à luz das alegações recursivas da Ré e controlar e aferir se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tinha suporte razoável nos elementos probatórios constantes dos autos, atentos os princípios e regras que presidem ao julgamento da causa, mormente o da livre apreciação da prova, da imediação, do convencimento lógico e motivado que o Tribunal extraiu da prova, conjugado, com os parâmetros da lógica e do homem médico e das regras da experiência comum de que lançou mão, a Relação fez total tábua rasa do julgamento de Primeira Instância e extrapolou essa missão de fiscalização e de eventual censura na apreciação mais flagrante de algum elemento probatório que entendesse erroneamente apreciado e fez um novo julgamento da causa, com total reapreciação dos elementos de prova com base nas conjecturas e opiniões da Ré. De facto,

C. é ponto assente em ambas as instâncias que “ninguém presenciou as circunstâncias em que ocorreu o incêndio e/ou o modo como deflagrou” e que “não há prova directa dos factos.” Sendo certo que, a Primeira Instância fez uma análise crítica e ponderada da prova constantes dos autos, ponderando a alegada incoerência na circunstância da traseira do veículo BMW não ter sido totalmente afetada pelo incêndio, conjugando-a com as regras da lógica, na normalidade e da experiência comum, nomeadamente a questão da verificação de “muitos outros factores, designadamente nas condições climatéricas, como v.g.. vento e o incêndio ter-se propagado de um veículo para o outro e ter sido extinto de modo assaz rápido”. No entanto,

D. o Tribunal da Relação, limitando-se a invocar essa “incoerência”, ponderada pela Primeira Instância e desacompanhada doutros elementos probatórios, e ignorando o julgamento daquele Tribunal, estribou-se nas meras opiniões e conjecturas da Ré, consubstanciadas na discordância com a valoração que a Primeira Instância fez dos documentos por si juntos aos autos, e sem qualquer segurança e/ou certeza jurídica socorreu-se das seguintes expressões:

a) “pensamos ser altamente improvável que o incêndio tivesse tido origem num dos veículos e que se tivesse propagado ao outro (…)”

b) “sendo altamente improvável a ocorrência, em simultâneo, de avaria ou curto circuito em cada um dos veículos (…)”

c) “(…) parece impor-se a conclusão de que tais actos resultaram de acção humana intencional que, (…)”

d) “essa percepção – que colhemos das fotografias e do estado dos veículos (…)

e) “É certo que não temos – nem podemos ter – a certeza (absoluta) de que as coisas aconteceram desse modo e é certo, como se diz na decisão recorrida, que poderão sempre existir, em teoria, potenciais razões que expliquem o facto de, nas circunstâncias descritas, o incêndio ter tido origem num dos veículos (por curto circuito ou avaria) e se ter propagado ao outro e que, como tal, não tivesse resultado de um acto de vandalismo.”

f) “Mas aquilo que se pede ao julgador no âmbito do julgamento da matéria de facto não é – não pode ser – um juízo de certeza sobre a realidade dos factos; isso seria a negação do Direito porque, em boa verdade, o julgador raramente pode ter a certeza acerca da realidade dos factos e, portanto, raramente os julgaria provados”

g) “Ora, ainda que os elementos probatórios constantes dos autos não nos permitam atingir a certeza absoluta e não nos permitam excluir, em absoluto, a possibilidade de as coisas terem ocorrido de outro modo, eles permitem-nos, pelas razões acima mencionadas, alcançar aquela “certeza relativa” ou alto grau de probabilidade que é necessário à formação da nossa convicção no que diz respeito ao facto de o incêndio aqui em causa ter resultado de acto intencional de terceiro (vandalismo).”

h) “é altamente improvável que, nas circunstâncias referidas, o incêndio se tenha propagado de um veículo para o outro e, estando em causa dois incêndios com início autónomo, também seria altamente improvável que eles se tivessem despoletado por qualquer avaria ou curto circuito que tivesse ocorrido, em simultâneo, em cada um dos veículos”

i) “Nas circunstâncias referidas, não existindo qualquer indicio de ocorrência de avaria, curto-circuito ou outro evento ou caso fortuito e tendo em conta as regras de experiência e a normalidade da vida, tudo aponta para o facto de os incêndios em causa terem sido provocados por acto intencional de terceiro.”; com as quais ousou alterar a matéria de facto, com a introdução de um novo ponto com o seguinte teor: “O incêndio a que se reporta o ponto 4 da matéria de facto foi provocado por acto intencional de terceiro (acto de vandalismo),” sem a necessária segurança, de que a prova produzida e constante dos autos, apontasse nesse sentido de forma inequívoca, distinta aquela que foi dada como provado pelo Tribunal de Primeira Instância.

E. O Tribunal da Relação fez errada aplicação da jurisprudência que invocou, pois a mesma pode servir de base à Primeira Instância para julgar a causa, mas já não pode servir de sustentação à Segunda Instância para, sem qualquer certeza ou segurança da realidade dos factos, ousar alterar a decisão de facto da Primeira Instância, fazendo um completo novo julgamento da causa. Pelo que,

F. deve ser determinada a eliminação desse novo ponto da matéria de facto mais devendo o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que mantenha no sentido decisório da Sentença proferida em Primeira Instância, mais devendo os autos seguir os seus ulteriores termos para apreciação e julgamento interposto pelo A..

G. Dispõe o art.º 674.º, n.º 3 do C.P.C. que o “erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”. Ora, a Segunda Instância violou os arts.º 342.º, n.º 2 e 503.º, n.º 1 do C.C. e o teor do contrato de seguro, ao fazer errada reapreciação da prova documental e testemunhal, e ao dar como provado que: “O incêndio a que se reporta o ponto 4 da matéria de facto foi provocado por acto intencional de terceiro (acto de vandalismo)”. De facto,

H. jamais a Segunda Instância poderia dar como provada a referida factualidade, uma vez que:

a) o incêndio em causa nos autos não foi presenciado por ninguém;

b) ponto assente é que o veículo do A. se incendiou e ardeu, o que deixou o veículo totalmente destruído, conforme dado como provado nos pontos 4 e 5 da matéria de facto.

c) No mais, isto é, como aconteceu, se por mão humana, se intencional, se por acidente, nada apurou nem provou, e tudo o que a esse propósito se possa dizer serão, pois, meras conjecturas e não mais do que isso;

d) o doc. 3 é um documento particular, elaborado a pedido da Ré e impugnado pelo A.;

e) observação do veículo incendiado, feita pelo técnico que elaborou o relatório, não foi feita no local do sinistro, foi feita no dia 11.01.2022, 19 dias após a ocorrência do incêndio no dia 23.12.2021, na oficina mecânica que recolheu a viatura do local do sinistro, ou seja, no “Reparador” e, o veículo já não se encontrava nas mesmas condições do momento em que se encontrava aquando do sinistro: “o veículo mudou de estado entre o incêndio e a sua perícia o éts Depann Auto. O veículo foi saquedo: as rodas, os travões estão ausentes durante a avaliação.” Acresce ainda que,

f) não foi feita qualquer perícia judicial aos veículos, nos presentes autos, em sede de julgamento. Sendo certo que,

g) o perito que fez o referido relatório declarou o seguinte: “após o sinistro é impossível identificar quaisquer indícios de vandalismo anteriores”; “Danos Total devido a incêndio”; “O impacto 31 térmico mais significativo revelou-se na parte da frente propagando-se para o habitáculo”; “As linhas de propagação reveladas nas aberturas demonstram que o incêndio se iniciou na parte da frente do habitáculo”;

h) nas fotografias juntas pela Ré como doc. 4 à contestação, é bem visível a destruição da traseira do BMW quer do seu interior (mala), quer do pará-choques que, na fotografia, se vê colocado no tejadilho do carro incendiado. No entanto,

i) o técnico que observou e analisou a viatura e que tem especiais conhecimentos automóveis não descobriu qual a causa concreta para o incêndio. Mas mais,

j) o relatório de inquérito junto como doc. 2 à contestação pela Ré, a que se refere o ponto 13 da matéria de facto dada como provada, é também ele um documento particular, na exata medida em que foi elaborado, em 14.01.2022, a pedido da Ré, por um investigador francês de direito privado, e não por nenhuma entidade oficial/policial francesa e cujo teor foi impugnado pelo A.;

k) o Tribunal da Relação fez errada interpretação e valoração da participação apresentada pelo A. junto das autoridades francesas, junta como doc. 1 à contestação e bem assim, das declarações de parte do A., pois que na aludida participação o A. nada referiu quanto a atos de vandalismo, conforme dado como provado em 10 e 11 da matéria de facto. Sendo que, foi a Ré, que, por sua iniciativa, à revelia do A., bem sabendo da exclusão da cobertura do contrato de seguro de “atos de vandalismo” cometidos fora de território nacional, usou de refinada habilidade e introduziu e registou a participação do A., no seu sistema, como ato de vandalismo, conforme o Tribunal deu como provado no ponto 12 da matéria. De facto. Assim,

l) não só não se provou a origem humana do incêndio, como não se provou se ela foi dolosa ou acidental, pelo que, o incêndio ocorrido está a coberto pelos riscos próprios do veículo nos termos do disposto no art.º 503.º, n.º 1 e art.º 342.º, n.º 2 do C.C..

Pelo que,

I. ao abrigo do art.º 674.º, n.º 3 do C.P.C., deve o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que mantenha a apreciação e valoração dos elementos probatórios constantes dos autos feita pelo Tribunal de Primeira Instância e também nos termos aqui vertidos supra e que consequentemente, mantenha a factualidade dada como provada pela Primeira instância e consequente aplicação do disposto no art.º 503.º, n.º 1 do C.Civil e das regras do ónus da prova previstas no art.º 342.º do C.Civil, assim mantendo o sentido condenatório da sentença de primeira instância, mais ordenando o prosseguimento dos autos, com o conhecimento do mérito do recurso interposto pelo A.

J. O douto acórdão recorrido tem que ser declarado nulo e ser revogado com todas as legais consequências., ao abrigo do disposto nos art.º 674.º, 666.º, n.º 1 art.º 615.º. n.º 1, als. b) e c) do C.P.C., pois que se verifica contradição o entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto não provada, e a solução jurídica dada pelo Tribunal ao caso concreto, na exata medida em que:

a) calcorreando o seu teor constata-se que o mesmo não invoca ou não se estriba numa única norma de direito que fundamente a alteração à decisão da matéria de facto nem a nova solução jurídica dada ao caso concreto,

b) adita à matéria de facto e dá como provada a seguinte factualidade: “O incêndio a que se reporta o ponto 4 da matéria de facto foi provocado por acto intencional de terceiro (acto de vandalismo).” Mas, mantém inalterada a decisão proferida pela Primeira Instância, nomeadamente que: “g. O incêndio não ocorreu de um caso fortuito ou de uma avaria de uma das viaturas, mas sim de um acto doloso, intencional, ou seja, de um acto de vandalismo”.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e em consequência ordenar-se a eliminação do ponto da matéria de facto aditado pelo Tribunal da Relação, mais se mantendo o teor da douta sentença recorrida, mais se determinando o prosseguimento dos autos com o conhecimento do mérito do recurso interposto pelo A..”

7. A Ré/Companhia de Seguros Allianz, Portugal, S.A. apresentou contra-alegações, aduzindo as seguintes conclusões:

“i. O recurso deve ser julgado inadmissível quanto às conclusões A a I, uma vez que o Recorrente limita-se a discordar da alteração da matéria de facto e da valoração da prova realizada pela Relação, matéria que não é recorrível.

ii. O acórdão não padece de qualquer nulidade, uma vez que que não só a fundamentação existe, como foi perfeitamente clara sobre qual a matéria de facto que deve ser julgada como provada, não existindo margem para dúvidas de que o Tribunal da Relação considerou que no caso concreto sub judice o incêndio em apreço foi provocado por acto intencional de terceiro (acto de vandalismo).

iii. Os poderes-deveres da Relação excedem o de mero fiscal/revisor, podendo analisar e apreciar a prova produzida e decidir de acordo com a mesma, demonstrando o caminho feito para alcançar determinada conclusão, bem como os concretos meios de prova tidos em conta.

iv. Os artigos 342.º n.º 2 e 503.º n.º 1 do CC não correspondem a disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, pelo que é manifesto que a Relação, ao ter decidido de forma contrária à pretendida pelo Recorrente, não violou o disposto no artigo 674.º n.º 3 do CPC.

v. Destarte, ressalvado o devido respeito por opinião contrária, o douto acórdão proferido nos presentes autos pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra não padece dos defeitos apontados pelo Recorrente, estando devidamente fundamentado e aplicando a lei com total acerto.

Como tal, devem ser julgadas totalmente improcedentes as conclusões do recurso de revista. TERMOS EM QUE, sem prejuízo do sempre douto suprimento que se espera de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado parcialmente inadmissível e totalmente improcedente e, em consequência, manter-se o douto acórdão recorrido.”

8. Foram cumpridos os vistos.

9. Cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. Além do conhecimento da questão prévia invocada pela Recorrida/Ré/Companhia de Seguros Allianz, Portugal, S.A. atinente à admissibilidade do recurso de revista, as questões a resolver, recortadas das alegações do Recorrente/Autor/AA, consistem em saber se:

1. O acórdão sob escrutínio enferma de erro no julgamento da matéria de facto, porquanto (i) fez incorreto uso dos poderes-deveres que lhe assistem quanto à reapreciação da matéria de facto, deixando de controlar e aferir se a convicção expressa pela 1ª Instância tinha suporte razoável nos elementos probatórios constantes dos autos, atentos os princípios e regras que presidem ao julgamento da causa, mormente o da livre apreciação da prova, da imediação, do convencimento lógico e motivado que o Tribunal extraiu da prova, devendo ser determinada a eliminação do aditado novo ponto da matéria de facto, qual seja, “O incêndio a que se reporta o ponto 4 da matéria de facto foi provocado por acto intencional de terceiro (acto de vandalismo)”, (ii) a par de que o aresto recorrido tem que ser declarado nulo dada a contradição entre a aditada e aludida matéria de facto dada como provada e a matéria de facto não provada, (iii) impondo-se sentenciamento diversa da causa?

II. 2. Da Matéria de Facto

Factos Provados:

“1. O Autor é dono do veículo de marca BMW, modelo Série 4, de cor azul, com a matrícula AG-..-VX, que adquiriu por compra à sociedade BMW Portugal, Lda.

2. A propriedade de tal veículo encontra-se registada a favor do Autor, desde 16.06.2021.

3. Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...98, em 14.05.2021, o Autor transferiu para a Ré a responsabilidade civil emergente dos riscos da circulação rodoviária do veículo, bem como o risco de incêndio, raio e explosão.

4. Em hora não concretamente apurada, do dia 23 de Dezembro de 2021, ocorreu um incêndio no veículo de matrícula AG-..-VX, que se encontrava estacionado na Rua ..., em França.

5. Em resultado do incêndio, o veículo ficou destruído e o Autor sofreu um prejuízo correspondente, pelo menos, ao valor venal do referido veículo.

6. À data do incendio, o veículo encontrava-se em estado de praticamente novo, tendo sido sempre assistido em oficina da marca.

7. Desde a data do incêndio, o Autor ficou impossibilitado de usar e circular com o sobredito veículo.

8. Entre Autor e Ré foi celebrado um contrato de seguro do ramo automóvel relativo ao veículo com matrícula AG-..-VX, titulado pela apólice nº ...98, o qual teve o seu início a partir das 00:00 de 14/05/2021 até às 24:00 horas de 30/04/2022, automática e anualmente renovável, a partir de 01/05/2022.

9. No âmbito do referido contrato de seguro, as partes fixaram o capital seguro em €122.600,00, por ser este o valor comercial do veículo.

10. Na sequência supra mencionado, no dia 24 de Dezembro de 2021, o Autor apresentou às autoridades policiais participação contra desconhecidos com fundamento em “degradação por incendio.”

11. No dia 27 de Dezembro de 2021, a Ré recepcionou a participação do sinistro, através de seu mediador, a qual se traduziu no envio da participação que o Autor havia efectuado junto das autoridades policiais francesas, relativo a um incendio sofrido pelo veículo seguro.

12. Participação que deu entrada no sistema da Ré como “ato de vandalismo”.

13. Recebida tal participação, com vista a determinar a causa do incendio, a Ré solicitou às entidades Francesas o envio do relatório de inquérito de fls. 53 a 56, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, do qual consta o seguinte: o Autor “(…) na qualidade de proprietário do veículo com matrícula AG-..-VX, no dia 24 de dezembro de 2021, apresentou queixa contra autor desconhecido na esquadra de ..., pelo incendio do referido veículo. (…) “um segundo veículo queimado, RANGE ROVER Evoque nº FT-...-NN (…) foi também levado nas proximidades da BMW M4. E estado dos veículos (…) faz presumir que foram ambos incendiados em vez de se considerar a propagação do fogo de um para o outro.”

14. Paralelamente a Ré solicitou o relatório de peritagem, junto nos autos a fls. 60 verso a 62, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, do qual consta, para além do mais, que: “(…) O veiculo mudou de estado entre o incendio e a sua perícia. (…) o veículo está danificado na frente, a parte traseira está em relativas boas condições. No entanto, atrás deste veículo estava outro veículo (…) que está queimado na totalidade. O problema neste caso é que os veículos não estão posicionados normalmente: A traseira do BMW deveria ter sido carbonizada e não a dianteira. Por conseguinte, existe uma incoerência.”

15. Na fotografia junta a fls. 40 verso, o veículo Range Rover encontra-se estacionado atrás do BMW com a frente virada para a traseira deste.

16. Em consequência do mencionado incendio, o veículo Range Rover ficou totalmente calcinado.

17. O veículo BMW ficou com a parte da frente calcinada e a traseira, parte do veículo que se encontrava junto do Range Rover, não ardeu.

18. No âmbito do referido contrato de seguro estão cobertos, entre outros, os riscos de “incêndio, raio ou explosão” do veículo segurado, com o capital seguro inicial de € 122.600,00.

19. Das condições contratuais relativas à apólice ...98, juntas aos autos a fls. 8 verso a 39, consta que a garantia de incendio, raio ou explosão “compreende os danos causados ao veículo seguro em consequência de incendio, queda de raio ou explosão causal, quer o veículo se encontre em marcha, parado ou estacionado.”

20. Das mencionadas condições contratuais, consta também a cobertura dos riscos decorrentes de actos de vandalismo e de terrorismo, sendo que o âmbito territorial desta cobertura fica, salvo convenção em contrário, limitada a sinistros ocorridos em Portugal, cfr. fls. 29.

21. Das condições contratuais relativas à apólice ...98, juntas aos autos a fls. 8 verso a 39, consta que pela privação de uso por sinistro está garantido:

“a) o aluguer de um veículo pelo período máximo de 30 dias. Este período é adicional aos 5 dias previstos no âmbito da cobertura de veículo de substituição.

b) o pagamento de um valor diário nas seguintes situações:

i) impossibilidade de disponibilização de veículo equivalente ao veículo sinistrado;

ii) recusa fundamentada do tomador do seguro em aceitar o veículo alternativo disponibilizado pelo segurador;

iii) não reparação imediata do veículo, por responsabilidade do segurador (…);

iv) em caso de perda total (com exceção do roubo) pelo período máximo de 10 dias, sempre que haja tomada de posição com direito a pagamento de indemnização por parte do segurador.

(…) Sempre que exista atribuição de veículo de substituição ou cortesia não haverá lugar ao pagamento de qualquer valor diário.

O capital é de 60,00€/dia, num limite de 30 dias por anuidade.”

22. O incêndio a que se reporta o ponto 4 da matéria de facto foi provocado por acto intencional de terceiro (acto de vandalismo).”

Factos Não Provados:

“a) a assinatura aposta na declaração de venda a “Índices e Abreviaturas Unipessoal Lda.” é do punho do Autor;

b) a “Índices e Abreviaturas Unipessoal Lda.” fechou negócio de venda do Porsche, a 13/12/2021, com BB, data em que lhe entregou o Requerimento de Registo Automóvel – Documento Único Automóvel devidamente assinado e reconhecido;

c) com o Requerimento de Registo Automóvel em mãos, BB pagou o preço de € 36.000,00 mediante quatro (4) pagamentos de €9.000,00 cada;

d) já com os pagamentos feitos, BB fechava negócio com a “Fasquia Exemplar”:

- € 15.000,00 que a “Fasquia Exemplar” havia pago a BB à data de 30.10.2021 para a aquisição de um outro veículo (feita a troca);

- € 10.000,00 à data 10.01.2022,

- € 11.500,00 à data 07.03.2021.”

II. 3. Do Direito

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recorrente/Autor/AA, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjetivo civil - artºs. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

II. 3.1. O acórdão sob escrutínio enferma de erro no julgamento da matéria de facto, porquanto (i) fez incorreto uso dos poderes-deveres que lhe assistem quanto à reapreciação da matéria de facto, deixando de controlar e aferir se a convicção expressa pela 1ª Instância tinha suporte razoável nos elementos probatórios constantes dos autos, atentos os princípios e regras que presidem ao julgamento da causa, mormente o da livre apreciação da prova, da imediação, do convencimento lógico e motivado que o Tribunal extraiu da prova, devendo ser determinada a eliminação do aditado novo ponto da matéria de facto, qual seja, “O incêndio a que se reporta o ponto 4 da matéria de facto foi provocado por acto intencional de terceiro (acto de vandalismo)”, (ii) a par de que o aresto recorrido tem que ser declarado nulo dada a contradição entre a aditada e aludida matéria de facto dada como provada e a matéria de facto não provada, (iii) impondo-se sentenciamente diversa da causa? (1)

Questão prévia

Antes mesmo de conhecer do recurso interposto impõe-se a apreciação da questão preliminar suscitada pela Recorrida/Ré/Companhia de Seguros Allianz, Portugal, S.A. atinente à admissibilidade da revista interposta.

Articula, com utilidade, que o recurso deve ser julgado inadmissível quanto às conclusões A a I, uma vez que o Recorrente se limita a discordar da alteração da matéria de facto e da valoração da prova realizada pela Relação, sendo que os invocados artºs. 342º n.º 2 e 503º n.º 1, ambos do Código Civil não correspondem a disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, pelo que é manifesto que a Relação, ao ter decidido de forma contrária à pretendida pelo Recorrente, não violou o disposto no art.º 674º n.º 3 do Código de Processo Civil, daí a inadmissibilidade da revista.

A previsão expressa dos tribunais de recurso na Lei Fundamental, leva-nos a reconhecer que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática, todavia, já não está impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões.

A lei processual civil estabelece regras quanto à admissibilidade e formalidades próprias de cada recurso, reconhecendo-se que a admissibilidade dum recurso depende do preenchimento cumulativo de três requisitos fundamentais, quais sejam, a legitimidade de quem recorre, ser a decisão proferida recorrível e ser o recurso interposto dentro do prazo legalmente estabelecido para o efeito.

No caso que nos ocupa é pacífica a tempestividade do interposto recurso, outrossim, a legitimidade do Recorrente/Autor/AA (o acórdão recorrido

revogou a sentença proferida em 1ª Instância, consignado no respetivo dispositivo: “Pelo exposto, decide-se: Julgar procedente o recurso interposto pela Ré, revogando-se a sentença recorrida e determinando-se a total improcedência da acção e a absolvição da Ré do pedido contra ela formulado; Julgar prejudicada a apreciação do recurso interposto pelo Autor.”

Encontra-se, pois, a dissensão quanto a ser a decisão proferida recorrível.

Ora, conquanto se admita que a questão suscitada, conhecimento da apreciação da impugnação da matéria de facto, levada a cabo pela Relação, possa não ser sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, soçobrando, nessa medida, a argumentação esgrimida com vista á alteração do decidido no Tribunal recorrido, importa a este Tribunal ad quem pronunciar-se sobre o objeto da revista, cumpridos que estejam os pressuposto da revista, não se acompanhando, por isso, a pretensão da Recorrida/Ré/Companhia de Seguros Allianz, Portugal, S.A. ao reclamar que o Supremo Tribunal de Justiça não admita, liminarmente, o conhecimento desta questão, objeto de revista.

Assim, cumprindo o presente recurso de revista interposto os pressupostos da legitimidade do art.º 631º do Código de Processo Civil; da recorribilidade (art.º 671º do Código de Processo Civil, uma vez que a decisão em escrutínio, conheceu do mérito da causa), incluindo quanto ao valor da causa e sucumbência, conforme prevenido art.º 629º do Código de Processo Civil; e da respetiva tempestividade, decorrente do art.º 638° do Código de Processo Civil, nada obsta à admissibilidade da revista, reunidas que estão respetivas as condições de admissibilidade, na interpretação acabada de consignar.

Tudo visto, reconhecida a admissibilidade de recurso de revista, impõe-se conhecer das questões, objeto da presente revista.

(i) O acórdão sob escrutínio enferma de erro no julgamento da matéria de facto, porquanto (i) fez incorreto uso dos poderes-deveres que lhe assistem quanto à reapreciação da matéria de facto, deixando de controlar e aferir se a convicção expressa pela 1ª Instância tinha suporte razoável nos elementos probatórios constantes dos autos, atentos os princípios e regras que presidem ao julgamento da causa, mormente o da livre apreciação da prova, da imediação, do convencimento lógico e motivado que o Tribunal extraiu da prova, devendo ser determinada a eliminação do aditado novo ponto da matéria de facto, qual seja, “O incêndio a que se reporta o ponto 4 da matéria de facto foi provocado por acto intencional de terceiro (acto de vandalismo)”, (ii) a par de que o aresto recorrido tem que ser declarado nulo dada a contradição entre a aditada e aludida matéria de facto dada como provada e a matéria de facto não provada, (iii) impondo-se sentenciamente diversa da causa?

Os poderes do Tribunal da Relação quanto à modificabilidade da decisão de facto estão enunciados no art.º 662º do Código de Processo Civil, sendo que este Tribunal não está dispensado do ónus de fundamentação da matéria de facto, mormente a aditada ou a modificada, tal como imposto pelo n.º 4 do art.º 607º do Código de Processo Civil, na medida em que, a fundamentação da decisão, maxime, a de facto, para além de ser decorrência do art.º 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, consubstancia causa de legitimidade e legitimação das decisões dos Tribunais, porquanto permite ao destinatário da decisão compreender os fundamentos da decisão e os meios de prova em que eles de alicerçam.

Problematiza-se o conhecimento, por parte da Relação, da impugnação da decisão de facto, cumprindo decidir se o Tribunal a quo violou as normas processuais relativas à modificabilidade da decisão de facto.

Como sabemos, o Supremo Tribunal de Justiça, no que respeita às decisões da Relação sobre a matéria de facto, não pode alterar tais decisões, sendo estas decisões de facto, em regra, irrecorríveis.

A este propósito, estatui o art.º 662º n.º 4 do Código Processo Civil que “das decisões da Relação previstas nos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça” estabelecendo, por seu turno, o art.º 674º n.º 3 do Código Processo Civil “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”, de igual modo, prescreve o art.º 682º n.º 2 do Código Processo Civil que a “decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 3 do artigo 674º”, donde se colhe, com meridiana clareza, que o Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar o modo como a Relação decide sobre a impugnação da decisão de facto, quando ancorada em meios de prova, sujeitos à livre apreciação, acentuando-se, que o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode intervir nos casos em que seja invocado, e reconhecido, erro de direito, por violação de lei adjetiva civil ou a ofensa a disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova, ou que fixe a força de determinado meio de prova, com força probatória plena.

Anota-se, de igual modo, constituir jurisprudência consolidada de que é lícito aos Tribunais de Instância tirarem conclusões ou ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, e fazer a sua interpretação e esclarecimento, desde que, sem a alterarem, antes nela se apoiando, se limitem a desenvolvê-la.

Na medida em que o juízo presuntivo consubstancia um julgamento da matéria de facto, encontra-se o Supremo Tribunal de Justiça impedido de apurar a extração da presunção judicial pela Relação, exceto nos casos de violação de lei e das normas disciplinadoras do instituto, designadamente, sempre que ocorra ilogicidade e/ou a alteração da factualidade adquirida processualmente, ou seja, quando a presunção parta de factos não provados.

A decisão de facto é, pois, da competência das Instâncias, pelo que, o Supremo Tribunal de Justiça não pode, nem deve, interferir na decisão de facto, somente importando a respetiva intervenção, quando haja erro de direito, isto é, quando o acórdão recorrido viole o direito probatório, afrontando disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto, nomeadamente, a prova documental ou por confissão, ou que fixe a força de determinado meio de prova, por exemplo, acordo das partes, confissão, documento, com força probatória plena.

No caso trazido a Juízo, uma vez cotejadas as conclusões apresentadas pelo Recorrente/Autor/AA, reconhecemos, com facilidade, que a impugnação da decisão de facto, contende com a circunstância de, em sua opinião, o Tribunal recorrido ter deixado de valorar corretamente os meios de prova oferecidos para formar a sua convicção, considerando como demonstrado o novo ponto da matéria de facto, qual seja, “O incêndio a que se reporta o ponto 4 da matéria de facto foi provocado por acto intencional de terceiro (acto de vandalismo)”

O Tribunal recorrido para alterar a decisão de facto da 1ª Instância, sustentou, com utilidade:

“A Ré impugna a decisão que julgou provado o facto constante do ponto 10 e a decisão que não julgou provados os factos constantes das alíneas a) a g).

(…)

Dispensando pormenores de facto sem grande relevo, aquilo que, com efectiva relevância para a decisão da causa, está em causa na impugnação deduzida é o facto de o incêndio no veículo ter sido provocado por terceiro de forma intencional, tendo, portanto, origem criminosa e correspondendo a um acto de vandalismo

A decisão recorrida não julgou provado esse facto, por ter entendido que a prova produzida não era suficiente para firmar qualquer convicção no que toca à origem do incêndio e, mais concretamente, se ele havia resultado de avaria ou caso fortuito ou se havia resultado de acto de vandalismo, justificando a sua posição e a resposta negativa aos factos constantes das referidas alíneas nos seguintes termos:

“Relativamente aos factos não provados, os mesmos resultaram ou da prova produzida em sentido contrario nos termos supra descritos ou da falta ou insuficiência da prova quanto aos mesmos produzida sendo que não se produziu em julgamento qualquer prova que permitisse dar como demonstrados outros factos para lá dos que nessa qualidade se descreveram. Com efeito, da prova produzida resulta que ninguém presenciou as circunstâncias em que ocorreu o incendio e/ou o modo como deflagrou.

Por outro lado, a prova documental mobilizada para os autos não é suscetível de, por si só, permitir concluir que o incendio ocorreu na sequência de um ato de vandalismo, sendo que a posição dos veículos e os damos ocorridos nos mesmos não permitem alcançar tal conclusão. Com efeito, o relatório de inquérito de fls. 53 a 56, não conseguiu determinar a causa do incendio deflagrado no veículo propriedade do autor.

De igual modo, analisado o teor do relatório de peritagem de fls. 60 verso a 62 não podemos concluir pela ocorrência de um ato de vandalismo sobre o veículo seguro pela ré. Com efeito, muito embora aí conste a existência de uma incoerência na circunstancia da traseira do veículo BMW não ter sido afetada pelo incendio, o certo é que, como acima aludimos, tal incoerência, por si só, desacompanhada de outros elementos probatórios, não permite concluir, com a necessária segurança, pela verificação de um ato de vandalismo perpetrado sobre o veículo do autor, podendo tal incoerência residir em muitos outros fatores, designadamente nas condições climatéricas, como v.g. vento e o incendio ter-se propagado de um veículo para o outro e ter sido extinto de modo assaz rápido”.

A Ré/Apelante tem opinião diferente, sustentando que os documentos juntos aos autos (queixa apresentada pelo Autor, relatório de inquérito, relatório de peritagem e fotografias) constituem prova bastante de que os veículos (o veículo do Autor e aquele que estava estacionado atrás dele) foram incendiados em separado, sem que tivesse ocorrido propagação do fogo de um para o outro e que, nessa medida, a única causa compatível é a ocorrência de acto de vandalismo.

Pensamos que assiste razão à Apelante.

Vejamos.

Partimos, desde logo, da constatação de que não há prova directa dos factos, sendo certo que os mesmos não foram presenciados por ninguém que tivesse sido identificado e que, nessa medida, pudesse ser inquirido.

Pensamos, apesar de tudo, que há elementos suficientes para fundar a convicção de que o incêndio teve origem em acto intencional de terceiro.

Constam dos autos fotografias colhidas após o incêndio, onde é possível constatar que o veículo do Autor (BMW azul) se encontrava estacionado à frente (e a curta distância) de outro veículo (Range Rover) e é possível constatar que o veículo que se encontrava atrás está totalmente calcinado (como, aliás, se julgou provado no ponto 16) sendo certo que – como se julgou provado no ponto 17 – o veículo do Autor (que estava à frente) ficou apenas com a parte da frente calcinada, sendo que a traseira (ou seja, a parte do veículo que se encontrava junto do Range Rover) não ardeu.

Nas circunstâncias descritas, pensamos ser altamente improvável que o incêndio tivesse tido origem num dos veículos e que se tivesse propagado ao outro. Com efeito, se o incêndio tivesse tido origem na parte da frente do veículo do Autor seria difícil que ele se tivesse propagado ao veículo que estava atrás sem que a sua traseira tivesse sido atingida (como, de facto, não foi) e se ele tivesse tido origem no Range Rover dificilmente se teria propagado directamente para a frente do veículo do Autor sem afectar a parte traseira que estava mais próxima.

E os relatórios juntos aos autos (relatório de inquérito e relatório de peritagem – documentos 2 e 3 juntos com a contestação) confirmam essa “incongruência” ou dificuldade prática, concluindo-se no primeiro relatório que “o estado dos veículos (...) faz presumir que foram ambos incendiados em vez de considerarem a propagação do fogo de um para o outro” (conforme se diz no ponto 13 da matéria de facto) e aludindo-se no segundo relatório a “suspeita de vandalismo”, concluindo-se que “(…) o veículo está ainda danificado na frente, a parte traseira está em relativas boas condições. No entanto, atrás deste veículo estava outro veículo (…) este outro veículo está queimado na totalidade. O problema neste caso é que os veículos não estão posicionados normalmente: A traseira do BMW deveria ter sido carbonizada e não a dianteira. Por conseguinte, existe uma incoerência” (cfr. ponto 14 da matéria de facto), mais se afirmando neste relatório que o dano “resulta de um ato de vandalismo”.

É certo, portanto, que, tendo em conta as regras de experiência, o estado e a posição dos veículos são dificilmente compatíveis com o facto de o incêndio se ter iniciado num dos veículos e propagado ao outro, tudo apontando para o facto de estarem em causa dois incêndios com origem autónoma: um que se iniciou no veículo do Autor e consumiu a sua dianteira e outro que se iniciou no veículo que estava atrás (o Range Rover) e que o consumiu na sua totalidade.

Nessas circunstâncias e sendo altamente improvável a ocorrência, em simultâneo, de avaria ou curto circuito em cada um dos veículos (que, por coincidência, se encontravam estacionados no mesmo local) que tivesse originado o respectivo incêndio e não existindo, sequer, qualquer indicio de ocorrência de algum desses eventos, parece impor-se a conclusão de que tais actos resultaram de acção humana intencional que, sem motivo aparente, provocou cada um dos incêndios, num acto que poderemos, de facto, designar como acto de vandalismo. Aliás, essa percepção – que colhemos das fotografias e do estado dos veículos – coincide, ao que tudo indica, com a percepção do próprio Autor quando chegou ao local porque, se assim não fosse, não teria apresentado queixa às autoridades policiais como, de facto, apresentou. Refira-se que, apesar de ter aludido, nas declarações que prestou em tribunal, a um eventual curto-circuito como sendo a origem do incêndio, não deixa de dizer que essa hipótese/possibilidade só lhe foi adiantada mais tarde pela polícia para afastar a sua ideia de que teriam “deitado fogo” ao carro (ainda que esse facto não esteja comprovado), sendo certo, portanto, que aquilo que pensou inicialmente foi que tinham “deitado fogo” ao veículo.

É certo que não temos – nem podemos ter – a certeza (absoluta) de que as coisas aconteceram desse modo e é certo, como se diz na decisão recorrida, que poderão sempre existir, em teoria, potenciais razões que expliquem o facto de, nas circunstâncias descritas, o incêndio ter tido origem num dos veículos (por curto circuito ou avaria) e se ter propagado ao outro e que, como tal, não tivesse resultado de um acto de vandalismo.

Mas aquilo que se pede ao julgador no âmbito do julgamento da matéria de facto não é – não pode ser – um juízo de certeza sobre a realidade dos factos; isso seria a negação do Direito porque, em boa verdade, o julgador raramente pode ter a certeza acerca da realidade dos factos e, portanto, raramente os julgaria provados.

(…)

Ora, ainda que os elementos probatórios constantes dos autos não nos permitam atingir a certeza absoluta e não nos permitam excluir, em absoluto, a possibilidade de as coisas terem ocorrido de outro modo, eles permitem-nos, pelas razões acima mencionadas, alcançar aquela “certeza relativa” ou alto grau de probabilidade que é necessário à formação da nossa convicção no que diz respeito ao facto de o incêndio aqui em causa ter resultado de acto intencional de terceiro (vandalismo).

Pelas razões já mencionadas é altamente improvável que, nas circunstâncias referidas, o incêndio se tenha propagado de um veículo para o outro e, estando em causa dois incêndios com início autónomo, também seria altamente improvável que eles se tivessem despoletado por qualquer avaria ou curto circuito que tivesse ocorrido, em simultâneo, em cada um dos veículos. Nas circunstâncias referidas, não existindo qualquer indicio de ocorrência de avaria, curto-circuito ou outro evento ou caso fortuito e tendo em conta as regras de experiência e a normalidade da vida, tudo aponta para o facto de os incêndios em causa terem sido provocados por acto intencional de terceiro.

É essa, portanto, a nossa convicção (assente, não na certeza absoluta do facto, mas sim na certeza subjectiva ou relativa de que acima se falou) com base na qual julgamos provado o aludido facto. Assim e desconsiderando os restantes pormenores factuais que constam dos pontos de facto em análise e que não têm relevância directa para a decisão, julgamos provado – e aditamos, consequentemente, à matéria de facto provada – o seguinte facto: O incêndio a que se reporta o ponto 4 da matéria de facto foi provocado por acto intencional de terceiro (acto de vandalismo).

A matéria de facto provada – a considerar – será, portanto, a que foi acima enunciada – e que nos dispensamos de reproduzir novamente – à qual acresce o facto agora aditado, ou seja: O incêndio a que se reporta o ponto 4 da matéria de facto foi provocado por acto intencional de terceiro (acto de vandalismo).”

Revertendo ao caso trazido a Juízo, importa dizer que ao cotejarmos a apreciação da impugnação da decisão de facto por parte da Relação, distinguimos que o Tribunal recorrido, ao decidir sobre a impugnação da decisão de facto, consignando a respetiva exposição decisória, sindicou a decisão de facto levada a cabo na 1ª Instância, ancorado em meios de prova, sujeitos à livre apreciação, não se descortinando que no contexto do apuramento da matéria de facto provada, haja violação de norma legal impositiva em matéria de meios de prova, tampouco padeça a decisão de facto de ilogicidade ou tenha partido de factos não provados, conforme decorre do respetivo enquadramento jurídico que profusa e detalhadamente analisa a facticidade adquirida processualmente, fundamentando, devida e criticamente, a decisão tomada.

Como sobejamos já discreteamos, o Supremo Tribunal de Justiça não pode controlar a prudência ou a imprudência da convicção das Instâncias sobre a prova produzida sempre que se trate de provas submetidas ao princípio da liberdade de apreciação, ou seja, que assenta na prudente convicção que o Tribunal recorrido tenha adquirido das provas produzidas, apenas dispondo de competência decisória para controlar a atuação da Relação nos casos de prova vinculada ou tarifada, ou seja, quando está em causa um erro de direito.

Não cuidando, enquanto Tribunal de revista, de tecer juízos de valor acerca da valoração da prova, da competência das Instâncias, reconhecemos, por um lado, que este Tribunal de recurso não está confrontado com qualquer erro de direito na apreciação da decisão de facto, afirmando-se que as estatuídas regras de direito probatório, reconhecidas na arquitetura da tramitação recursiva, atinente à impugnação da decisão de facto foram cumpridas, rejeitando-se, outrossim, que os invocados artºs. 342º n.º 2 e 503º n.º 1, ambos do Código Civil, correspondam a disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Tudo visto, concluímos estar vedado a este Tribunal ad quem conhecer da bondade da decisão sobre a impugnação da decisão de facto.

(ii) Ademais, não colhe sustentação a invocação de que o Tribunal a quo incorreu em contradição ao decidir de facto, entre a aditada e aludida matéria de facto dada como provada e a matéria de facto não provada, impondo-se sentenciamente diversa da causa?

Há contradição entre respostas à facticidade alegada quando a resposta dada a um determinado facto colide com a(s) resposta(s) dada(s) a outro ou outros factos alegados, ou seja, a resposta a um alegado facto é contraditória quando o sentido nela expresso colidir com a resposta dada a outro ou a outros factos.

Existe contradição nas respostas dadas aos alegados factos sempre que delas resulta um facto que exclua necessariamente o outro, isto é, quando, seguindo um raciocínio lógico, os factos neles referidos não possam coexistir ente si ou com outro já assente.

Outrossim, uma vez abordada esta temática atinente à contradição entre a matéria dada como provada, importa adiantar que uma resposta negativa e uma resposta positiva não podem entrar em contradição.

Na verdade, a resposta negativa a determinada facticidade alegada, precisamente porque afirma que nada da sua matéria se provou, não pode enfermar de qualquer vício.

As respostas de “não provado” dadas pelo Tribunal à matéria alegada, não prova, nem deixa de provar, o facto dele constante.

Donde, estando em confronto a aditada matéria de facto, dada como provada, e a matéria de facto não provada, impõe-se reconhecer, como vimos de discretear, a improcedência da invocada nulidade.

(iii) Inalterada a factualidade adquirida processualmente, uma vez que está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça controlar a prudência ou a imprudência da convicção das Instâncias sobre a prova produzida, tratando-se, no caso trazido a Juízo de provas submetidas ao princípio da liberdade de apreciação, também inalterada fica a solução jurídica dada ao caso, a qual, sustentada, em termos breves, enuncia que, porque a cobertura do risco em questão (atos de vandalismo) estava limitada aos sinistros ocorridos em Portugal e porque o sinistro em causa nos autos ocorreu em França, concluiu que tal sinistro não está abrangido pela cobertura do ajuizado contrato de seguro, não podendo ser atribuída à Ré qualquer responsabilidade, significando que a pretensão deduzida não pode proceder.

Tudo visto, na improcedência das conclusões retiradas das alegações trazidas à discussão pelo Recorrente/Autor/AA, não reconhecemos à respetiva argumentação, virtualidade bastante no sentido de alterar o destino da demanda, traçado no Tribunal recorrido.

III. DECISÃO

Pelo exposto, os Juízes que constituem este Tribunal, julgam improcedente o recurso interposto pelo Recorrente/Autor/AA, negando a revista, mantendo o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente/Autor/AA.

Notifique.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 18 de setembro de 2025

Oliveira Abreu (relator)

Maria de deus Correia

Ferreira Lopes


SUMÁRIO (art.º 663º n.º 7 do Código de Processo Civil)