I - Apesar de a escritura pública o designar por compra e venda, os outorgantes celebram um contrato de doação quando um transmite para o outro o direito de propriedade de bens imóveis e o outro aceita essa transmissão, acordando ambos que, não obstante o que consta da escritura pública, não há lugar ao pagamento de qualquer preço
II- Tendo os outorgantes acordado, no âmbito do contrato celebrado, que o adquirente, enquanto o desejasse, teria o direito de habitar no imóvel transmitido que era a sua casa de habitação, estamos perante uma doação modal.
III- Essa qualificação não é impedida pelo facto de em anterior acção instaurada pelo transmitente para obter a declaração da invalidade do contrato por vícios da vontade, já julgada improcedente por decisão transitada em julgado, o contrato ter sido qualificado pelas partes e pelo tribunal como de compra e venda.
IV- Actua em abuso de direito o transmitente que, apesar de ter celebrado com o adquirente aquele acordo, uma vez proprietário do imóvel exige do adquirente a entrega do imóvel em que se obrigou a permitir-lhe que continuasse a ter a sua habitação.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
1. AA instaurou acção judicial contra BB, formulando contra este os seguintes pedidos:
- declarar-se que os prédios identificados no artigo 1.º da petição inicial são propriedade do autor e o réu detém-nos de forma ilegítima;
- condenar-se o réu:
i) a restituir ao autor, no prazo de 10 dias, esses prédios, sob pena da sanção pecuniária compulsória de €200,00 por cada dia de atraso na entrega do imóvel, livre de pessoas e bens;
ii) a abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização dos prédios pelo autor;
iii) a pagar ao autor € 5.000 de indemnização pelos prejuízos patrimoniais causados pela não entrega dos prédios.
Para fundamentar o seu pedido alegou, em súmula, que por escritura pública de compra e venda outorgada em 04.08.2014 declarou vender ao autor e este declarou comprar os prédios urbanos descritos na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro sob os ns.º ... e ..., os quais se encontram inscritos nesse registo a favor do autor; aquando da escritura o autor consentiu que o réu continuasse a residir no segundo desses prédios atenta a relação familiar existente entre ambos (o réu foi casado com uma tia do autor entretanto falecida) e uma vez que a casa de morada de família do réu se situara até então nesse prédio; algum tempo depois o autor e o réu desentenderam-se, cortando relações; o autor solicitou ao réu a entrega dos prédios, o que réu se recusa a fazer, não obstante não possuir qualquer título que legitime a sua permanência nos imóveis, causando prejuízos aos autor.
2. O réu foi citado e apresentou contestação defendendo a improcedência da acção, para o que impugnou factos alegados pelo autor e excepcionou: i) a nulidade da compra e venda por falta de consciência da declaração, simulação relativa, erro e dolo; ii) a anulabilidade da compra e venda por negócio usurário; iii) o direito de retenção até ao pagamento do preço dos imóveis declarado na escritura.
A título de reconvenção, pede que se declare a existência de um contrato gratuito de comodato até à morte do réu e se condene o autor a pagar ao réu o valor das obras feitas por este num dos prédios, no montante de €40.000,00, acrescido de juros legais desde a notificação até integral pagamento.
3. Na réplica, o autor arguiu a excepção de caso julgado quanto aos fundamentos da defesa do réu.
4. No despacho saneador, a excepção de caso julgado foi julgada parcialmente procedente quanto à invalidade da compra e venda por falta de vontade, vício na formação da vontade e negócio usurário, bem como quanto ao direito de retenção, tendo o autor sido absolvido da instância em relação a estes meios de defesa.
5. Realizado julgamento foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente e a reconvenção totalmente improcedente; em consequência foi declarado que o autor é o proprietário do prédios urbanos por si identificados e o réu foi condenado a restituí-los no prazo de 10 dias ao autor, a abster-se de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização dos prédios pelo autor, a pagar €5.000,00 de indemnização ao autor.
6. Do assim decidido, o réu interpôs recurso de apelação.
7. O recurso foi recebido e o Tribunal da Relação proferiu acórdão cujo segmento decisório diz:
“Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida na parte em que condena o réu a restituir ao autor o prédio urbano sito na Rua dos Pousios, n.º 52, Águas Boas, Oiã, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3995 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro com o número ..., condena o réu a abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização desse prédio pelo autor, e condena o réu a pagar ao autor a indemnização de €5.000,00 pela retenção desse prédio, absolvendo o réu desses pedidos e confirmando no mais a sentença.
Custas do recurso por autor e réu na proporção do respectivo decaimento.”
8. Não se conformando com o acórdão, veio interposto recurso de revista, pelo A. (AA), no qual constam as seguintes conclusões:
A. A razão principal subjacente ao presente recurso prende-se pelo excesso de pronúncia do tribunal a quo porquanto o acórdão proferido excede, extravasa, ultrapassa os limites dos seus poderes de cognição, aniquilando todo o juízo probatório e jurídico realizado em primeira instância.
B. Ao objecto do recurso apresentado ao tribunal a quo que se mostra claramente definido, entendeu o tribunal a quo aditar factos, requalificar um contrato outorgado entre as partes, alterar matéria assente, admitida pelas partes e consolidada na sua esfera jurídica, violando os princípios elementares do processo civil da segurança jurídica, do dispositivo e da preclusão.
C. Mostra-se derrogada a sentença proferida em primeira instância e resulta ignorada toda a matéria de facto assente, transitada e julgada e que culminou quer com uma decisão anteriormente proferida e já transitada em julgado – Processo 1603/15.4T8AVR – confirmada por Acórdão deste Tribunal datado de 24/04/2018, da qual resultam factos provados que não podem agora trazer-se novamente à discussão como seja a validade do negócio jurídico celebrado entre as partes,
D. Quer porque não se tem em consideração a decisão proferida em sede de Despacho Saneador datado de 19/11/2021.
E. O acórdão a quo padece de nulidade por violação do disposto no artigo 615.º, n.º1 al. d) e e) do Código de Processo Civil, sendo clarividente das alegações do recurso interposto pelo ali Recorrente e o Acórdão proferido que há o conhecimento de questões sobre as quais o tribunal a quo não podia conhecer, talqualmente advém do acórdão proferido uma decisão desfavorável ao ora recorrente em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
F. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente não podendo o tribunal de recurso conhecer sobre matérias nelas não incluídas a não ser, evidentemente, que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, conforme resulta do disposto nos artigos 635.º, n.º 3 e 4 e 639.º, n.º 1 e 2 do CPC.
G. De acordo com as conclusões do recurso interposto eram as seguintes as questões a dirimir, conforme resulta expressamente da conclusão B do recurso: “B. Manifesta-se a óbvia discordância do recorrente relativamente ao entendimento expresso na decisão recorrida numa tripla vertente, a impugnação da matéria de facto, a crítica ao entendimento jurídico que o Tribunal realiza quanto à restituição da coisa / denúncia do contrato de comodato e a crítica ao entendimento jurídico que o Tribunal realiza quanto ao direito do Réu às benfeitorias realizadas no imóvel”.
H. No que respeita à terceira questão suscitada em recurso – “(…) crítica ao entendimento jurídico que o Tribunal realiza quanto ao direito do Réu às benfeitorias realizadas no imóvel (…)”- nada há a trazer agora à cognição do tribunal porquanto o tribunal a quo confirmou a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância.
I. No que tange à impugnação da matéria de facto a divergência do ali Recorrente relaciona-se com o facto de ser dado como não provado que “b) O Autor autorizou o Réu a residir naquele imóvel até à usa morte”.
J. Resulta da sentença proferida em 1.ª Instância que “19. A não prova do enunciado sob a alínea b) decorre da circunstância de esse facto ter sido apenas referido pelo Réu, durante as declarações prestadas na primeira sessão da audiência final, sem que encontrem corroboração suficiente noutro meio de prova”.
K. Para impugnação do juízo valorativo que levou à condução de tal facto ao conjunto de factos não provados, é colocada em causa a apreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, delimitada aos depoimentos ali prestados.
L. Encontra-se pois vedada a possibilidade de convocar meios probatórios adicionais, uma vez que, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 640.º, n.º 1, al. b) do CPC, não se traz à discussão quaisquer outros meios de prova que permitam outra conclusão.
M. Sucede porém que entendeu o tribunal a quo ampliar a matéria de facto ao ponto de não só dar o dito facto como provado como ainda aditar outros – que apelida de complementares, concretizadores e instrumentais -, mas que não o são de todo, sendo antes factos novos e estranhos ao caso in decidindo.
N. O objecto principal da discussão é, efetivamente, o direito do aqui Recorrente à restituição do seu imóvel, e não a forma e validade do negócio jurídico celebrado que permitiu a sua aquisição, como infra melhor se irá concretizar.
O. Os factos novos aditados, nomeadamente o facto b1, d1, d2 e f1, relacionados com a forma de aquisição do direito de propriedade do aqui Recorrente não se mostram incluídos no objecto do litigio, além de em momento algum serem abordados pelo Recorrente, não resultam da prova produzida nos presentes autos nem se mostram essenciais para o objecto do litígio.
P. Não podia o Tribunal da Relação do Porto ter ampliado a matéria de facto conforme o fez, não havendo qualquer fundamento para tal, sendo pois claro o excesso de pronúncia e consequentemente a nulidade do acórdão.
Q. O acórdão recorrido mostra-se ainda ferido de nulidade porquanto o tribunal a quo se pronuncia sobre “questões de que não podia tomar conhecimento” (615, n.º d) do CPC), considerando desde logo a falta de sindicância do despacho saneador e o caso julgado que recai sobre o processo n.º 1603/15.4T8AVR.
R. No âmbito dos presentes autos foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes alguns dos pedidos deduzidos em sede de reconvenção e sobre o qual não recaiu qualquer reclamação, reparo e sobretudo recurso sobre o qual possa recair decisão contrária.
S. Pelo que todas questões relacionadas com a validade do negócio jurídico – escritura de compra e venda – que investiu o ora Recorrente na veste de proprietário dos imoveis, incluindo aquele cuja restituição se requer não poderá ser objecto de qualquer juízo ou apreciação.
T. O negócio jurídico que permitiu a propriedade do Recorrente é uma compra e venda com as suas particularidades, mas a mesma não pode ser objecto de qualquer outra qualificação jurídica.
U. Nesta confluência entende o Recorrente que existe uma violação ao caso julgado assente na decisão proferida em sede de Despacho-Saneador, ferindo uma vez mais o Acórdão de nulidade.
V. O Tribunal a quo pretende conhecer da qualificação jurídica do negócio celebrado entre as partes, questão não é trazida ao conhecimento do tribunal a quo que, oficiosamente, entende ignorar o já estabelecido e concretizado na esfera jurídica das partes por sentença proferida no âmbito do processo 1603/15.T8AVR e que de resto veio a ser confirmada por Acórdão deste tribunal proferido 24 de Abril de 2018.
W. Os factos aditados pelo tribunal a quo alteram a matéria de facto que ali é dada como provada, sendo certo que existe, quantos aos mesmos, caso julgado.
X. O Tribunal a quo não pode alterar a validade e a forma jurídica que foi dada ao negócio celebrado entre as partes.
Y. A violação de caso julgado, conforme supra se demonstra, motivando o tribunal a quo a conhecer de matéria que “não podia conhecer” (artigo 615.º, n.º 1 al. d) do CPC), constitui assim uma nulidade processual, o que desde já se invoca para os devidos e legais efeitos.
Z. Do invocado caso julgado resulta pois que a compra e venda e os efeitos dela decorrentes está consolidada na esfera jurídica das partes.
AA. No que respeita à posse do imóvel, é o próprio Réu/ora Recorrido que peticiona em sede de reconvenção: “D Celebração entre Autor e Réu/Reconvinte de um contrato de comodato em relação ao imóvel identificado no artigo 1.º, al. b) da petição inicial;”
BB. A sentença proferida em primeira instância concluir: “25. As partes convergem quanto ao uso do imóvel, à gratuitidade desse uso e em não se ter fixado um prazo certo; já quanto à necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, são apresentadas pelas partes limites diferentes de duração do contrato: o Autor alega que apenas autorizou o Réu a morar na habitação em questão (prédio identificado na alínea d) dos Factos Provados) enquanto este não regressasse à Alemanha, por ser intenção do Réu regressar a esse país no prazo de um a dois anos contados desde a data de celebração da escritura de compra e venda (4 de agosto de 2014); enquanto o Réu considera que o Autor o autorizou a residir naquele imóvel até à sua morte.”
CC. Apesar de nenhuma das partes colocar em causa tal “matéria de facto dada como provada”, entende o tribunal a quo que “nas relações jurídicos entre o autor e o réu existem contornos que tornam a qualificação dos contratos uma tarefa mais complexa e a qualificação que as partes e o tribunal lhes dão menos óbvia.”, achando assim que pode oficiosamente, e fora daquilo que é o objecto do recurso tal como delimitado pelas conclusões do Réu/ Recorrente à Relação do Porto, pronunciar-se quanto aos contratos celebrados entre as partes.
DD. O tribunal a quo, uma vez mais, conhece de matéria de que não podia tomar conhecimento, decidindo em objeto diverso do pedido (artigo 615.º, n.º 1, al. d) e e) do CPC).
EE. O caso julgado produz efeitos em duas vertentes: uma negativa, enquanto excepção material dilatória, no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada;
FF. E outra positiva, enquanto autoridade de caso julgado e que vincula o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas, obstando a que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo, neste caso, a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 581º do CPC – impondo-se, in casu, esta última vertente positiva ao tribunal a quo.
GG. Não pode proceder a alegação de que estamos perante uma doação modal desde logo porque as obrigações decorrentes invocada condição para a entrega do imóvel, contrariam e violam a autoridade de caso julgado quanto à qualificação jurídica, pressupostos e suas inerentes obrigações do contrato validado por decisão, transitada, no âmbito do aludido Processo n.º 1603/15.4T8AVR, igualmente aferida e reiterada pelo Despacho Saneador proferido nos presentes autos.
HH. A não entrega do preço, facto provado e assente pelas partes, não conduz à conclusão de que tenha sido condição – e tal não resulta de qualquer meio de prova constante dos autos – para a outorga da escritura de compra e venda.
II. O tribunal de primeira instância – em raciocínio que não merece qualquer reparo a não ser o mérito da sua decisão conclui o seguinte silogismo judiciário:
25. As partes convergem quanto ao uso do imóvel, à gratuitidade desse uso e em não se ter fixado um prazo certo; já quanto à necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, são apresentadas pelas partes limites diferentes de duração do contrato: o Autor alega que apenas autorizou o Réu a morar na habitação em questão (prédio identificado na alínea d) dos Factos Provados) enquanto este não regressasse à Alemanha, por ser intenção do Réu regressar a esse país no prazo de um a dois anos contados desde a data de celebração da escritura de compra e venda (4 de agosto de 2014); enquanto o Réu considera que o Autor o autorizou a residir naquele imóvel até à sua morte. Conforme melhor flui da motivação da matéria de facto, qualquer destas delimitações temporais da necessidade habitacional do Réu foi julgada como não provada. Isto significa que as partes, para além de não terem convencionado um prazo certo para a restituição do imóvel, também não delimitaram a necessidade temporal que o comodato visava satisfazer, apenas acordando que o Réu podia continuar a viver na casa “enquanto o desejasse”.
Nesta hipótese (não tendo sido convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa emprestada), prevê-se a atribuição ao proprietário do direito de exigir, em qualquer momento, essa restituição, mediante prévia interpelação do comodatário (cf. n.º 2 do art. 1137.º, CC), o que significa que este terá de restituir a coisa logo que tal lhe seja exigido.
JJ. A alegada autorização do aqui Recorrente para que o Réu, ora Recorrido, pudesse residir na casa até à sua morte, para além da falta de suporte documental, falta de corroboração testemunhal e, como dita a decisão recorrida, unicamente referida pelo próprio interessado (Réu), não se mostra clara e inequívoca, assentando naquilo que o mesmo percepcionara como sendo a vontade da sua falecida esposa e/ou alegadamente conversado com esta e não numa hipotética conversa/acordo com o Autor.
KK. Resulta da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento que o alegado acordo ou a alegada autorização para ficar a morar na casa até à sua morte teria sido, antes, conversado com a Sra. CC (namorada do Autor, à data do falecimento falecida esposa do Réu) e não com o Autor/Recorrido.
LL. A vinculação à matéria de facto julgada provada no âmbito do Processo n.º 1603/15.4T8AVR, confirmada por Acordão proferido neste tribunal, o facto provado sob o ponto 19 nesses autos – “E acordaram verbalmente que o R. podia continuar a viver na casa de morada de família, como se fosse sua, enquanto o desejasse” – não contraria a apreciação feita pelo Tribunal de 1ªInstância relativamente ao quesito constante da alínea b) dos factos não provados nestes autos.
MM. A expressão “…enquanto desejasse”, temporal e contratualmente, não é o mesmo que “…até à sua morte” –, inexistindo qualquer falta de concretização e/ou valoração errónea dada pelo Tribunal a quo quanto a este ponto.
NN. Inexistindo a determinação de prazo para a entrega do imóvel, procede o direito à restituição do imóvel, nos termos e para os efeitos do artigo 1137, n.º 2 e bem assim do n.º 1 interpretado de harmonia com o artigo 237.º do mesmo Código.
OO. Verificada a nulidade do acórdão proferido a quo, e bem assim havendo lugar a um novo acordão sobre o objecto do recurso, importa pois a confirmação da decisão da primeira instância.
PP. A qualificação do negócio como doação modal não tem lugar por remissão à figura do abuso do direito, instituto que é de conhecimento oficioso e para cujo conhecimento se avisaram antecipadamente as partes.
QQ. A alegação do abuso de direito decorre do silogismo judiciário excessivo que se faz e adveniente do excesso de pronuncia do tribunal a quo que, além do mais, aditou matéria de facto para lhe servir de suporte a uma versão romantizada – e que diaboliza o Autor (mau cristão!) - da realidade vivenciada e que não resulta alicerçada em qualquer meio probatório carreados ao recurso interposto pelo Réu /ora Recorrido.
RR. O Réu/Recorrente não impugnou qualquer matéria de facto ou de direito constante do aresto decisório quanto a esta matéria, conformando-se com o mesmo com a sentença proferida em sede de primeira instância,
SS. Sendo que a oficiosidade do conhecimento do tribunal é limitada à verificação do conjunto dos factos alegados e provados, e se dos mesmos resultarem provados os respectivos pressupostos legais, o que in casu, até por força de tudo quanto acima se expôs e daí decorrente, não sucede.”
9. Foram apresentadas contra-alegações, nas quais se conclui:
“a. Quanto à invocada nulidade do acórdão proferido por excesso de pronúncia não pode colher a argumentação do Recorrente.
b. Na verdade, antes de ser proferido o douto acórdão, as partes foram notificadas por despacho datado de 13.01.2025, donde resulta que o tribunal a quo estudou o processo e ouviu a gravação da prova produzida
c. não esta vedado ao tribunal quo dar como provado o facto em causa - facto não provado sob a alínea b) na sentença proferida em primeira instância
d. Diz-nos o artigo 662.º n.º 1 do CPC: A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa
e. No caso dos autos foi posta em causa, pelo ora Recorrido matéria de facto.
f. sede de Recurso, o Tribunal da Relação pode e deve reger-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova
g. Podia o Tribunal a quo no uso dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto concluir, como fez, pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnado
h. O Tribunal a quo procedeu à audição da prova gravada e conclui no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância.
i. Concluiu com base essencialmente nas declarações das Autor e Réu, das testemunhas e da prova documental junta aos autos, bem como dos factos dados como provados na anterior ação.
j. O facto dado como não provado na primeira instância tem a seguinte redação: b) “o autor autorizou o réu a residir naquele imóvel até à sua morte”
k. Este facto, como bem salienta o douto acórdão, está relacionado com o facto que foi julgado provado no ponto f., segundo o qual, em 4 de Agosto de 2014, data da escritura de compra e venda, “o autor consentiu que o réu continuasse a residir no prédio … atenta a relação familiar existente entre ambos e uma vez que aquele prédio havia sido a casa de morada de família do réu até então”.
l. o tribunal de primeira instância julgou provado que o réu foi autorizado a continuar a residir no prédio que era a respectiva casa de morada de família, mas julgou não provado que essa autorização fosse até à sua morte
m. A sentença proferida pelo tribunal de primeira instância, julgou não provados dois factos relativos à referida autorização. Vejamos:
n. Na alínea a) julgou não provado que a autorização fosse para «morar na habitação … enquanto … não regressasse à Alemanha, por ser intenção do réu regressar a esse país num prazo de um a dois anos contados desde aquela data»;
o. na alínea b) já referida não provado que a autorização fosse para «residir naquele imóvel até à sua morte».
p. foi com base na prova oferecida nos autos que o tribunal a quo no uso das competências decidiu dar razão ao então recorrente, confirmando que o facto não provado sob a alínea b) deve ser considerado provado fundamentado essa alteração.
q. Já quanto aos factos b1, d1, d2 e f1 não alteram o objecto do litígio – são simplesmente um aditamento aos factos provados em virtude da prova produzida.
r. Os factos b1, d1, d2 e f1 concretizam factos provados que resultaram de forma clara da prova produzida em audiência de discussão e julgamento e também dos factos provados no âmbito da anterior ação.
s. pode o Recorrente querer o melhor dos dois mundos - aceitar apenas os factos provados e que lhe são favoráveis no âmbito do processo Proc. No 1603/15.4T8AVR e não aceitar outros (desfavoráveis).
t. resultou do depoimento do Réu e das testemunhas DD e EE que acordou com o Autor ficar a viver na casa até morrer e que esse acordo foi feito aquando da outorga da (simulada escritura de compra e venda)
u. foi com base nessa convicção que anuiu assinar a escritura de compra e venda. v. Caso contrário não teria assinado a escritura.
w. resulta também claro que acordaram isso no dia que foi outorgada a escritura de compra e venda.
x. ambas as testemunhas foram perentórias ao afirmar que a intenção do Réu nunca foi voltar a Alemanha, pois estava já enraizado em Portugal, tendo amigos e sendo muito querido na zona.
y. Resultou suficientemente provado, pelas declarações do Réu, pelas declarações das testemunhas que o Autor autorizou o Réu a residir no imóvel até à sua morte.
z. Sem esquecer que tal prova vem concretizada nos factos dados como provados no âmbito do processo Proc. No 1603/15.4T8AVR (factos 11 a 19).
aa. neste ponto deve improceder a nulidade invocada pelo Recorrente, dado que o Tribunal da Relação, ao abrigo do preceituado no número 1 do artigo 662.º do CPC , depois de ouvir a prova gravada e depois de notificar as partes, decidiu, outros, complementares, dar como provado o facto supra indicado e aditar outros, complementares.
bb. Quanto à alegada violação de caso julgado por referência ao despacho saneador proferido em 24.11.2021 não pode colher a argumentação do Recorrente.
cc. Não podemos olvidar que no objeto do litigio (do despacho saneador) tem um ponto que refere que: Reconvenção D) - Celebração entre autor e réu/reconvinte de um contrato de comodato em relação ao imóvel identificado no artigo 1º, al. b) da petição inicial
dd. E nos temas da prova enumera os seguintes pontos: Apurar se o autor e réu acordaram em que o segundo poderia continuar a habitar o imóvel identificado no artigo 1º, al. b) da PI, por ser intenção do réu regressar à Alemanha num prazo de 1 a 2 anos contados da data da outorga da escritura e
ee. No despacho saneador o decidido é que não se pode discutir (novamente) sobre a anulabilidade ou nulidade da escritura de compra e venda, nada mais.
ff. Nada impede, com o devido respeito que o tribunal a quo, com os factos provados, com a prova produzida entenda, como bem entendeu, que estamos perante uma doação.
gg. Sabe bem o Recorrente que ao não pagar o preço da escritura de compra e venda (simulada) e ao admitir que o seu tio, ora recorrido podia ficar a viver a casa enquanto assim desejasse (confessado e provado na anterior ação) nunca poderia verdadeiramente aplicar as regras da compra e venda e despejar o tio !
hh. Nada diz acerca do acordo celebrado entre recorrente e recorrido.
ii. nada impede que o tribunal a quo veja com clareza o contrato que as partes verdadeiramente quiseram celebrar.
jj. Pelo que também neste ponto deve improceder a invocada violação de caso julgado relativamente ao despacho saneador.
kk. Alega ainda o recorrente que o tribunal a quo ofende novamente o caso julgado e ignora o já estabelecido e concretizado na esfera jurídica das partes por sentença proferida no âmbito do processo 1603/15.4T8AVR.
ll. Conforme refere, bem o douto acórdão o objecto da anterior ação eram apenas os vícios de vontade alegados pelo autor para pedir a declaração da invalidade do negócio jurídico celebrado,
mm. Na anterior ação não se discutiu, nem se decidiu se o aqui réu tinha um título válido para continuar a morar na casa, pelo que sobre essa questão ou sobre os respectivo fundamentos a anterior sentença não formou caso julgado.
nn. O caso julgado dessa sentença não abrange, pois, o julgamento dos factos alegados na ação que não constituíam fundamento de facto das questões jurídicas ali apreciadas e decididas, não estando as partes, por isso mesmo, vinculadas por esses factos ou impedidas de demonstrar factos diferentes e/ou incompatíveis em qualquer nova ação com outro objecto.
oo. Parece evidente que o tribunal a quo entendeu que o recorrente claramente enganou o recorrido, dado que analisou toda a prova e os motivos pelos quais o recorrente sempre pretendeu celebrar uma escritura de compra e venda,
pp. Não podemos olvidar que, a vontade da falecida e que resulta dos escritos juntos aos autos, era que o recorrido ficasse a viver na casa
qq. E não podemos também esquecer que o recorrente tem outros filhos, de uma outra relação.
rr. Sendo certo que a falecida não pretendia que os bens, após a morte de ambos fosse para os filhos do recorrido, a residir na Alemanha.
ss. E se é certo que também sentia carinho pelo recorrente, que sentido faz com o devido respeito, o Recorrente vender a sua casa, casa de morada de família que ajudou a contruir, sem receber qualquer valor e ser obrigado a sair porque foi enganado pelo Recorrente?
tt. Esta é a verdadeira história que o Tribunal da Relação do Porto percebeu e por esse motivo qualificou o contrato como uma doação pois este é o único que contrato que salvaguarda e protege o Recorrido.
uu. O recorrente via, no entanto, mais longe, é que nesta ação o recorrente deixa de esclarecer que isso sucedeu «em respeito pelo desejo da falecida esposa do autor e tia do réu» e «como contrapartida do negócio celebrado» e deixa de referir que a autorização foi dada para o autor «se quisesse, poderia continuar a residir naquela que foi a morada de família do casal.»
vv. e na réplica vai ainda mais longe dado que alarga o que alegou na petição inicial e afirma que permitiu que o réu continuasse a viver naquela que era a sua casa de morada de família (artigo 74.º e 75.º) e esclarece que isso foi porque o réu pretendia regressar à Alemanha e ele não necessitava no imediato da casa para si (artigos 76.º e 77.º), concluindo que «autorizou e permitiu que o réu … continuasse a residir na casa que havia sido até então a sua casa de morada de família, até que o mesmo regressasse à Alemanha ou em momento anterior se assim entendesse mudar-se»
ww. conforme referido na anterior ação não se discutiu, nem se decidiu se o aqui réu tinha um título válido para continuar a morar na casa,
xx. pelo que sobre essa questão ou sobre os respectivo fundamentos a anterior sentença não formou caso julgado, pelo que também nesta parte deve improceder o recurso.
yy. Quanto à qualificação jurídica, refere o recorrente que o tribunal confirma a propriedade do recorre, mas depois alega, novamente, o excesso de pronúncia.
zz. entendeu bem o tribunal a quo quando, face ao histórico de acontecimentos e à prova produzida, bem como os factos provados no âmbito da outra ação, também à prova documental junta nos presentes autos, nomeadamente os escritos deixados pela falecida, que as partes quiseram cumprir com a sua vontade.
aaa. Resulta evidente e resulta dos factos provados (mais que provados) que o preço nunca foi pago.
bbb. Pelo que não tendo sido o preço pago, acordaram - recorrente e recorrido - que este poderia ficar a viver na casa.
ccc. Não pode vir o réu dizer apenas nesta ação, como fez e só agora se lembrou, que o Recorrido podia ficar na casa até ir para a Alemanha para dar a entender que o Recorrido tinha “prazo” para entregar a casa.
ddd. Na verdade, tal como resultou da prova testemunhal a questão da ida para a Alemanha nunca foi uma questão e nunca foi invocada pelo recorrente em momento algum tendo só aparecido neste processo e já em sede de Réplica.
eee. Como refere bem o douto acórdão: Como se viu, não foi produzida nenhuma prova que corrobore esta segunda hipótese, razão pela qual a decisão de a julgar não provada não é sequer impugnada. Mas, afastada a tese defendia pelo autor de que o réu pretendia regressar à Alemanha (decorridos estes anos ainda não regressou), pergunta-se: - porque haveria o réu de prescindir do seu património sem qualquer contrapartida e a favor de quem não lhe era nada?, porque haveria o réu de declarar vender o seu património sem receber o respectivo preço (nisso ambas as partes estão de acordo e o autor inclusivamente parece defender … em simultâneo a validade - e os efeitos - da compra e venda e a inexistência da obrigação de pagamento do preço, como se pudesse haver compra e venda sem … preço!)? - porque haveria o réu de fazer tudo isso e inclusivamente ficar sem casa para viver, ter de abandonar sem qualquer contrapartida a casa de morada de família que tinha e cuja propriedade exclusiva havia adquirido por herança da mulher? A resposta, fazendo apelo às regras da experiência e presumindo um declarante medianamente esclarecido e atento, mas actuando como um ser dotado da inteligência própria dos seres humanos, é a de que isso só sucedeu porque, tal como desejou e expressou a pessoa que, com boa intenção, acabou por estar na origem do problema criado (a anterior proprietária dos imóveis falecida, a qual como assinalámos até chegou a querer dispor que o marido seja cremado … quando morrer), em simultâneo foi acordado entre autor e réu que este continuaria a poder viver na casa na casa que até esse momento constituía a sua morada de família enquanto fosse essa a sua vontade.
fff. “A prova destes factos não advém apenas do depoimento do próprio réu, resulta igualmente dos documentos juntos aos autos composto por cópia de páginas do diário onde a falecida manifestava e descrevia aquela sua vontade e ainda do teor das declarações feitas pelo aqui autor no articulado da anterior acção documentadas na certidão judicial junta aos autos. 18 Tais meios de prova, em conjunto, permitem perfeitamente que se julguem provados os seguintes factos (complementares, concretizadores e instrumentais) que agora se aditam à fundamentação de facto (com a numeração destinada a enquadrá-los nos demais factos provados)”.
ggg. É correta a interpretação feita pelo tribunal a quo quando refere, que estamos perante uma doação, dado a prova destes factos não advém apenas do depoimento do próprio réu, resulta igualmente dos documentos juntos aos autos composto por cópia de páginas do diário onde a falecida manifestava e descrevia aquela sua vontade e ainda do teor das declarações feitas pelo aqui autor no articulado da anterior acção documentadas na certidão judicial junta aos autos
hhh. Alega ainda o recorrente que não existe autorização por parte do recorrente para que o Recorrido pudesse residir na casa até à sua morte.
iii. A situação da ida para a Alemanha só veio muito mais tarde, neste processo e em sede de réplica, conforme já se disse.
jjj. Nenhuma testemunha veio confirmar a da ida para a Alemanha (e por esse motivo esse facto foi dado como não provado pelo tribunal de primeira instância e o recorrente não colocou em causa).
kkk. Portanto, não só a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância dá como provados os factos f) e p) foram confessados pelo Autor e que se subsumem ao consentimento dado pelo Autor ao Réu para este continuar a viver no imóvel, como
lll. A mesma sentença reforça esse facto e refere que já na outra ação que correu termos sob o número 1603/15.4T8AVR Juízo Central de Aveiro– Juiz 1 ficou provado o facto 19 que dizia precisamente que o Réu poderia continuar a viver na casa de morada de família como se fosse sua enquanto o desejasse…
mmm. Acresce que é mister referir, tal como é alegado na impugnação da matéria de facto que o recorrido entende que o Recorrente o autorizou a residir no imóvel até à morte.
nnn. Portanto, seja até à morte do Réu, seja enquanto o Réu desejar, o recorrente entende que não poderia o Autor pedir a restituição do imóvel.
ooo. Nesse sentido o recorrido tem de concordar com o que vem referido no douto acórdão:
ppp. “Resultou provado que quem manifestou a vontade de que a propriedade dos imóveis viesse a ser transmitida para o aqui autor foi a tia deste, mulher do réu e anterior proprietária dos imóveis que viriam, por morte desta a serem herdados pelo marido e único herdeiro. A anterior proprietária não queria desalojar, despejar o marido e futuro viúvo, privá-lo da habitação que há mais de uma década se situava num dos imóveis (facto p.). O que ela pretendia era que em simultâneo os imóveis de que era proprietária viessem a ficar para o sobrinho (mas não manifestou que isso tivesse de ser feito de imediato, nem definiu como seria feito) mas o marido pudesse continuar a residir na casa de morada de família. O autor e o réu quiseram concretizar a última vontade da falecida a esse respeito (facto d.2.). Existe, portanto, uma ligação genética entre o negócio celebrado entre os respectivos outorgantes e a vontade da anterior proprietária, que estabelece fios condutores da interpretação da vontade dos outorgantes, ou seja, interpretar a vontade destes como sendo a de estabelecer uma ligação, uma conexão, uma simultaneidade entre a transmissão da propriedade e conservação pelo réu do direito de continuar a habitar a casa que era sua e era a sua morada de família (facto f.). 26 Sendo assim devemos concluir que o contrato celebrado por autor e réu não pode afinal ser qualificado como uma compra e venda … por lhe faltar um dos elementos essenciais para a recondução da vontade das partes a este tipo legal de contrato: o preço! Não se trata, sublinhe-se, de uma situação de incumprimento da obrigação principal do comprador de pagamento do preço (aspecto que não interferiria com a qualificação do contrato porque não está relacionado com a configuração do acordo negocial, apenas com o momento posterior à celebração do cumprimento das respectivas obrigações), trata-se mesmo de o real acordo de vontades ter compreendido a estipulação («acordaram») de que não seria devido qualquer preço pela transmissão da propriedade (facto d.1.). Ao invés do preço, o que as partes acordaram foi que, como pretendia a falecida cuja vontade quiseram concretizar, o autor adquiriria a propriedade dos imóveis, mas o réu podia continuar a residir no prédio, a utilizá-lo, como se fosse seu, para nele manter a sua habitação e domicílio, o tempo que desejasse, enquanto fosse vivo (factos f., f.1., f.2. e p.). Este acordo não foi um mero acordo complementar, acessório do negócio jurídico celebrado, foi um acordo de vontades estabelecido «no âmbito do acordo para a celebração da escritura pública» que veio a ser celebrada (facto f.1.). Recorde-se o que já se assinalou acima na fundamentação da decisão sobre a impugnação da matéria de facto. Na anterior acção o aqui autor alegou mesmo «que não foi entregue … qualquer quantia (porque o aqui réu) assim quis» e ainda que os bens foram transmitidos sem pagamento do preço tendo as partes acordado que «como contrapartida do negócio celebrado… o autor, se quisesse, poderia continuar a residir naquela que foi a morada de família do casal.»
qqq. vez que a autorização para o vendedor continuar a utilizar o bem vendido não configura uma disposição patrimonial do comprador em benefício do vendedor (não há uma transferência de um bem com valor económico do património do comprador para o património do vendedor; o que há é uma redução das utilidades do bem que o vendedor transmite para o comprador por comparação com as utilidades próprias do direito de propriedade), a expressão contrapartida não é juridicamente correcta, mas a alegação do aqui autor tem o significado de aceitar a existência de um nexo essencial entre o acordo da transferência da propriedade e o acordo da continuação da utilização, que uma coisa não foi querida sem a outra e que é o conjunto de ambas que corresponde à vontade real inteira.
rrr. não se percebe o alegado pelo Recorrente na parte do recurso quando diz que a expressão enquanto desejasse temporal e contratualmente não é o mesmo que até à sua morte
sss. É verdade que na anterior ação as partes sempre trataram o contrato celebrado como uma compra e venda,
ttt. Nessa ação o que foi discutido foi só (!) se o contrato de compra e venda padecia de vícios da vontade, se foi celebrado por erro, dolo ou com simulação relativa.
uuu. Os vícios da vontade podem existir em qualquer declaração de vontade.
vvv. O erro ou dolo podem existir, seja o contrato uma compra e venda ou uma doação, e, em qualquer dos casos, por efeito dos mesmos factos.
www. Não é por estar viciado por erro, dolo ou simulação que a declaração deixa de poder ser qualificada como compra e venda ou doação, conforme as circunstâncias e o conteúdo da declaração proferida.
xxx. Na anterior ação não foi formulado qualquer pedido, nem foi proferida qualquer decisão que pressupunha que o contrato fosse uma compra e venda ou outro contrato diferente.
yyy. Assim, não se formou caso julgado sobre a decisão de qualquer questão de que decorra essa qualificação ou que pressuponha essa qualificação do contrato.
zzz. Na anterior ação apenas ficou decidido, com força de caso julgado, que o contrato celebrado pelas partes não era nulo com fundamento nos vícios alegados pelo autor,
aaaa. Logo, nada impede que na presente ação a relação contratual seja qualificada como uma doação como decidiu, muito bem o tribunal a quo.
bbbb. Por fim, vem ainda o recorrente invocar o abuso de direito alegando (novamente) o excesso de pronúncia
cccc. No entendimento do Recorrente, nunca o abuso de direito poderia ser trazido a colação que existiria sempre excesso de pronúncia.
dddd. Não se pode aceitar este argumento.
eeee. O abuso de direito é de conhecimento oficioso, devendo o tribunal apreciá-lo enquanto obstáculo legal ao exercício do direito, quando, face às circunstâncias do caso, concluir que o seu titular excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito;
ffff. O tribunal está vinculado a tomar conhecimento do abuso de direito se do conjunto dos factos alegados e provados resultarem provados os respectivos pressupostos legais
gggg. O recorrente, ao pretender despejar o seu tio da casa que foi e é (!) a sua casa de morada de família, que ajudou a pagar e construir a casa onde habita, onde pernoita faze as suas refeições e centra toda a sua vida familiar desde há vários anos tendo como pano de fundo a circunstância de ter celebrado uma escritura de compra e venda ,
hhhh. Tal atuação, configura e preenche, pois, os requisitos de que a lei – faz depender a ilicitude do exercício dos direitos, à luz do instituto jurídico do Abuso do Direito
iiii.O Autor/Recorrente , através do pedido formulado na presente acção, excede manifestamente os limites da boa-fé, dos bons costumes e do fim social ou económico do direito que se arroga.
jjjj. A conduta protagonizada pelo Autor/Recorrente , vinda de descrever, nas circunstâncias em que o foi, configura uma situação manifesta de Abuso do Direito.
kkkk. Assim e também neste ponto, contrariamente ao alegado pelo Recorrente, o tribunal a quo não estava limitado a considerar, como considerou, que “ actua em abuso de direito o transmitente que, apesar de ter celebrado com o adquirente aquele acordo, uma vez proprietário do imóvel exige do adquirente a entrega do imóvel em que se obrigou a permitir-lhe que continuasse a ter a sua habitação”.
10. Tendo sido invocadas nulidades contra o acórdão recorrido, o Tribunal da Relação proferiu acórdão, em conferência, que delas conheceu e decidiu:
“O réu2 veio interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão proferido nesta Relação, arguindo nas respectivas alegações a nulidade do dito Acórdão.
Alega para o efeito que o Acórdão é nulo «por violação do disposto no artigo 615.º, n.º1 al. d) e e) do Código de Processo Civil» porque nele «há o conhecimento de questões sobre as quais o tribunal a quo não podia conhecer, talqualmente advém do acórdão proferido uma decisão desfavorável ao ora recorrente em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido».
(…)
Porque a questão já tinha sido levantada pelo recorrido na sequência da notificação do despacho proferido por esta Relação antes da prolação do Acórdão e acima transcrito, no Acórdão escreveu-se:
«Pode perguntar-se se o caso julgado formado pela decisão que pôs termo ao processo n.º 1603/15.4T8AVR impede esta diferente qualificação jurídica do contrato celebrado e as consequências jurídicas dessa distinta qualificação.
Salvo melhor opinião, não.
Pese embora na anterior acção as partes hajam tratado sempre o contrato celebrado como uma compra e venda, o que nela foi alegado, discutido e decidido foi somente se o contrato padecia de vícios da vontade, se foi celebrado por erro, dolo ou com simulação relativa.
Os vícios da vontade podem existir em qualquer declaração de vontade. Sendo elementos exteriores à própria vontade, eles condicionam a liberdade de decisão e a declaração de vontade, se existirem, mas não qualificam a declaração de vontade. Daí que os factos que consubstanciam os vícios não interfiram com o significado da declaração, isto é, com a definição dos efeitos jurídicos decorrentes da declaração.
O erro ou dolo podem existir, seja o contrato uma compra e venda ou uma doação, e, em qualquer dos casos, por efeito dos mesmos factos. Não é por estar viciado por erro, dolo ou simulação que a declaração deixa de poder ser qualificada como compra e venda ou doação, conforme as circunstâncias e o conteúdo da declaração proferida.
Acresce que na anterior acção não foi formulado qualquer pedido nem foi proferida qualquer decisão que pressuponha que o contrato seja uma compra e venda ou outro contrato diferente. Por conseguinte, não se formou caso julgado sobre a decisão de qualquer questão de que decorra essa qualificação ou que pressuponha essa qualificação do contrato.
Na anterior acção apenas ficou decidido, com força de caso julgado, que o contrato celebrado pelas partes não era nulo com fundamento nos vícios alegados pelo autor, isto é, que na formação da vontade não ocorreram os factos consubstanciadores dos vícios alegados pelo autor, sendo por isso (rectius, nessa medida) o contrato válido; não ficou decidida a qualificação do contrato, nem essa qualificação foi determinante para a decisão de julgar não verificados os vícios da vontade alegados.
Logo, nada impede que na presente acção a relação contratual seja qualificada da forma que acima se expôs, com as consequências enunciadas.»
É por esse motivo que se entende que não só não estávamos impedidos de qualificar juridicamente o contrato de modo diferente do que foi feito na anterior acção, como o conhecimento do pedido reconvencional formulado nesta acção – e sobre o qual, no saneador, se entendeu, e bem, não estar formado caso julgado impeditivo do conhecimento do mesmo – não só tinha de ter lugar aqui como estava inteiramente dependente daquela qualificação.
Nesse contexto, impõe-se considerar totalmente improcedente a arguição de nulidade do Acórdão.”
11. O recurso de revista foi assim admitido no Tribunal recorrido: “Por ser legal e tempestivo e vir interposto por quem tem legitimidade, admito o recurso de revista, o qual sobe nos próprios autos com efeito meramente devolutivo.
Notifique e remeta os autos ao Supremo Tribunal de Justiça.”
Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.
II. Fundamentação
De facto
12. Encontram-se julgados provados em definitivo os seguintes factos:
a. O réu casou com FF, em 31 de Março de 2001, sem convenção antenupcial.
b. A referida FF faleceu em 22 de Julho de 2014.
b.1. Ao sentir a morte próxima, a FF manifestou à família o desejo de que os imóveis de que era proprietária viessem a ficar para o sobrinho mas o marido pudesse continuar a residir na casa de morada de família.
c. Em 4 de Agosto de 2014, BB declarou, por escrito, perante notário que é o único e universal herdeiro de sua falecida mulher, FF, não havendo quem lhe prefira ou com ele concorra à sucessão.
d. Em 4 de Agosto de 2014, BB, na qualidade de herdeiro da falecida mulher, e AA declararam, por escrito, perante notário, o primeiro que vende ao segundo, pelo preço global de cento e quatro mil seiscentos e dezasseis euros, entre outros, o prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, com logradouro e quintal, sito na Rua dos Pousios, n.º 52, lugar de Águas Boas, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3995 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro com o número ..., da freguesia de Oiã, tendo o segundo declarado aceitar a venda.
d.1. Não obstante o declarado na escritura, autor e réu acordaram que este não receberia, como não recebeu, qualquer preço pela transmissão dos imóveis.
d.2. Tendo a escritura pública sido celebrada com a intenção comum de se cumprirem as últimas vontades da FF.
e. O réu casou e viveu no prédio identificado na precedente alínea d) com a referida FF, tia do autor.
f. Naquela data (4 de Agosto de 2014), o autor consentiu que o réu continuasse a residir no prédio identificado na precedente alínea d), atenta a relação familiar existente entre ambos e uma vez que aquele prédio havia sido a casa de morada de família do réu até então.
f.1. Essa utilização foi acordada entre o autor e o réu no âmbito do acordo para a celebração da escritura pública outorgada nesse dia.
f.2. Tendo ficado acordado que o referido prédio continuaria a ser utilizado pelo réu, como se fosse seu, para nele manter a sua habitação e domicílio, o tempo que desejasse, enquanto for vivo.
g. Ainda nessa data (4 de Agosto de 2014), o autor residia com e na casa de sua mãe.
h. O prédio urbano, composto de casa, dependências, pátio e quintal, sito no lugar das Cruzes, inscrito na matriz sob o artigo 389 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro, freguesia de Oiã, com o número..., encontra-se registado a favor de AA pela Ap. 1174 de 11/08/2014.
i. O prédio urbano, composto de casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, com logradouro e quintal, sito na Rua dos Pousios, n.º 52, lugar de Águas Boas, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3995 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro, freguesia de Oiã, com o número..., encontra-se registado a favor de AA pela AP. 1174 de 11/08/2014.
j. O réu não faculta ao autor as chaves dos identificados prédios.
k. O autor e o seu agregado familiar (companheira e filha menor de ambos), como consequência da não entrega do imóvel identificado na precedente alínea d), tiveram de arrendar uma habitação desde 15/04/2017.
l. Em 13 de Abril de 2017, GG e HH, na qualidade de senhorios, e AA, na qualidade de inquilino, ajustaram entre si, por escrito, o arrendamento da fracção autónoma designada pela letra “D” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vagos com o n.º ..., da União de Freguesias de Ponte de Vagos e Santa Catarina, pela renda anual de €4.260,00, conforme instrumento de contrato que constitui o doc. 11 da petição inicial (junto de fls. 33 a 37), cujos dizeres se dão integralmente reproduzidos.
m. Em 23 de Julho de 2018, o autor expediu para o réu, que a recebeu, a carta com os dizeres do documento de fls. 25 (doc. 4 PI), que se dão por integramente reproduzidos.
n. É o autor quem suporta todos os custos fiscais inerentes aos prédios acima identificados, designadamente o Imposto Municipal sobre Imóveis.
o. O autor necessita do prédio identificado na precedente alínea d) para habitação do seu agregado familiar (companheira e filha menor de ambos).
p. De acordo com a vontade da tia (a referida FF), o réu poderia morar na habitação em questão o tempo que ele necessitasse.
q. Quando o réu conheceu a falecida esposa, esta trabalhava como contabilista na sociedade RODI - Sinks and Ideas, S.A..
r. O réu era Engenheiro Cerâmico na Sociedade Cerâmica da Borralheira, auferindo mensalmente cerca de 500.000$00.
s. Em data não apurada, o réu vendeu as máquinas que eram propriedade de uma sociedade alemã da qual era sócio-gerente (com a denominação “BB”), tendo sido usado parte do dinheiro dessa venda na casa, designadamente, na colocação de caixilharia na marquise, no valor de cerca de €1.970,00, e na colocação de aquecimento em toda a casa, incluindo painéis solares, no valor de cerca de €1.780,00, tendo por referência os anos de 2000 e 2007.
t. O réu transferiu para a conta titulada pela sua falecida esposa diversas quantias, concretamente, em 01.07.2007 transferiu para a conta da falecida esposa a quantia de 40.000,000 escudos, em 01.08.2002 ordenou a transferência da quantia de €250,00, em 23.01.2007 ordenou a transferência da quantia de € 500,00, em 13.09.2007 ordenou a transferência da quantia de €1.500,00, em 30.04.2008 ordenou a transferência da quantia de €1.000,00, em 06.09.2001 ordenou a transferência da quantia de 100 mil escudos, e em 26.02.2001 ordenou a transferência de 100 mil escudos.
De Direito
13. Objecto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.
Das conclusões do recurso do A. ressaltam as seguintes questões
- Nulidades – excesso de pronuncia – alteração da matéria de facto e qualificação do contrato (alteração de compra e venda para doação);
- Violação de caso julgado – por referência ao despacho saneador e ao processo judicial anterior;
- Abuso de direito.
14. Qualificação do contrato e dever de restituição dos bens, pedidos pelo A..
No acórdão recorrido foi dito – e com isto se concorda:
“No que concerne à lide do autor, a presente acção apresenta os contornos de uma acção de reivindicação: o autor alega ser titular do direito real de propriedade dos dois imóveis que identifica por os ter adquirido do anterior proprietário por compra e venda e por esse direito se encontrar inscrito no registo predial a seu favor e alega que o réu se encontra a deter ilicitamente o imóvel, formulando em correspondência os pedidos de condenação do réu a reconhecer o direito de propriedade do autor e a restituir-lhe os imóveis.
O autor beneficia da presunção da titularidade desse direito decorrente da sua inscrição no registo predial, nos termos do artigo 7.º do Código de Registo Predial, presunção que não foi afastada pelo réu na medida em que este se encontra já inclusivamente vinculado pela força do caso julgado da sentença da anterior acção onde foi apreciada a invalidade do negócio jurídico celebrado por escritura pública e, consequente, não pode mais arguir os vícios ali arguidos e apreciados no sentido da validade do negócio jurídico.
Nos termos do artigo 1311.º, n.º 2, do Código Civil, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei, ou seja, nas situações em que o detentor tenha um qualquer direito cujo conteúdo lhe confira a posse ou a detenção da coisa e, por essa via, um título legítimo de retenção da coisa, seja ele um direito real menor, um direito real de gozo ou de garantia ou apenas um direito obrigacional de gozo.
No caso concreto, atenta a defesa do réu e o objecto do recurso, a discussão centra-se no imóvel adquirido pelo autor que constituía a casa de morada de família do réu e no qual o réu continuou a residir.”
Pode assim avançar-se com os seguintes pressupostos – o A. é titular do direito de propriedade sobre os bens cuja devolução pede ao R.
15. Vejamos agora, como se defendeu o Réu do pedido de devolução dos bens, usando as palavras do acórdão recorrido:
“Para se opor à entrega do mesmo ao autor, o réu, para a hipótese de não procederem todos os demais argumentos da sua defesa, invocou ter celebrado com o autor um contrato de comodato do imóvel que antes era e continuou a ser o seu lar e defendeu que ao abrigo do regime jurídico desse contrato não está (ainda) obrigado a devolver ao autor o imóvel.”
Com esta defesa, o Réu introduziu em juízo o problema da qualificação do contrato pelo qual adveio a propriedade ao A.
Nessa sequência, como se diz no acórdão recorrido:
“O autor respondeu defendendo que não foi celebrado qualquer contrato de comodato mas apenas dada uma autorização temporária para o réu residir no referido imóvel, mas que caso haja contrato de comodato resulta do respectivo regime jurídico que o réu já está obrigado a devolver o imóvel por não ter fixado um tempo fixo de duração da referida autorização.”
Colocado o problema da qualificação do contrato, as instâncias divergiram:
a. Na sentença recorrida entendeu-se que «como resulta da matéria de facto provada, as partes celebraram verbalmente um contrato de comodato relativamente ao imóvel identificado na alínea b) do artigo 1.º da petição inicial, tendo ficado determinado nesse contrato, que o mesmo imóvel seria usado para habitação do réu». E de seguida através da interpretação e aplicação das normas do respectivo regime jurídico entendeu-se que o autor, comodante, já pode exigir do réu, comodatário, a entrega do imóvel, tendo-se julgado improcedente a reconvenção e procedente o pedido do autor de entrega do imóvel.
b. No Tribunal da Relação, sentiu-se necessidade de aprofundar a problemática da qualificação do contrato.
Foi, assim, empreendido o seguinte raciocínio:
“Na escritura pública que celebraram no Cartório Notarial e que formaliza as suas declarações de vontade, o contrato celebrado entre o autor e o réu é designado por «compra e venda». Por sua vez, as declarações feitas pelos outorgantes foram, pelo réu, a de que «vende» ao autor, e por este, a de que «aceita a venda» - o que é uma fórmula notarial algo imperfeita porque o comprador não aceita a venda, ele compra -.
Deste modo, no próprio documento autêntico que formaliza o negócio, as partes denominaram a sua relação contratual como compra e venda, tendo usado nas suas declarações negociais termos convergentes com os actos típicos sociais transpostos para o tipo legal da compra e venda, isto é, qualificaram o contrato como uma compra e venda.
Pedro Pais de Vasconcelos, in Contratos Atípicos, Almedina, 2002, pág. 133, alerta que «a qualificação pode todavia não coincidir com a estipulação do tipo. A estipulação do tipo pode corresponder a uma “falsa qualificação” (..), sempre que a estipulação do tipo não corresponda verdadeiramente ao tipo, sempre que, não obstante a estipulação do tipo, o contrato, tal como celebrado e de acordo com a sua disciplina efectiva, não pertença ao tipo estipulado, ou porque pertence a outro tipo, ou porque é atípico. Tal pode suceder numa variedade de casos, de entre os quais avultam os de erro na qualificação, os de contratos de tipo modificado ou de tipo múltiplo, os de simulação relativa, os de fraude à lei, os de contratos indirectos e os de contratos fiduciários».
Daí que o autor sublinhe que «a estipulação do tipo, sendo embora um factor importantíssimo de qualificação, não passa todavia de um índice (..). Como índice que é, contribui mais ou menos intensamente para a qualificação. Na generalidade dos casos contribui muito e quase sempre é decisiva. Pode, todavia, ser afastada, em concreto, quando, interpretado o contrato e ponderados os demais índices, se deva concluir de modo diferente. Não deve, contudo, ser afastada sem uma ponderação cuidada e sem que caiba a quem a queira afastar o ónus de demonstrar convincentemente que o afastamento se impõe. É, assim, incorrecta a afirmação muito vulgarizada de que a qualificação atribuída pelas partes é irrelevante».
Este autor refere que a tipificação dos contratos «pressupõe a existência de elementos susceptíveis de individualizar os tipos» porque estes se distinguem «pelas respectivas características, configuração e sentido» e que para esse efeito existem «índices do tipo» que são «aquelas qualidades ou características que têm capacidade para o individualizar, para o distinguir do outros tipos e para o comparar, quer com os outros tipos, na formação de séries e de planos, quer com o caso, na qualificação e na concretização», logo advertindo que essas características «dão alguma contribuição útil, quer à individualização, quer à distinção, quer à comparação, ainda que esse contributo não seja, por si só, determinante» porquanto «os índices do tipo são plurais» e «não existe um traço distintivo único capaz de, por si só e sem o concurso de outros, individualizar, distinguir e servir de critério de comparação de todos os tipos contratuais» (loc. cit, págs. 112 a 114).
Os índices mais frequentemente usados são «a causa, entendida como função, o fim, o “nomen” dado pelas partes, o objecto, a contrapartida, a configuração, o sentido, as qualidades das partes e a forma do contrato». A propósito da contrapartida, o autor escreve, a pág. 140 e seguintes, que « o que distingue, em princípio, os contratos gratuitos dos onerosos, como classes de contratos, o que caracteriza os contratos comutativos e os sinalagmáticos é a estipulação de um sistema de contrapartidas. A doação, como contrato gratuito mais importante, não tem uma contrapartida. O seu conteúdo típico resume-se a uma deslocação patrimonial unilateral e simples. (…) Os contratos gratuitos comportam todavia a estipulação de “modos” que podem tornar menos clara a sua gratuidade e atenuar a sua unilateralidade patrimonial. Os contratos onerosos, comutativos, sinalagmáticos, também impropriamente denominados bilaterais (..), caracterizam-se, como classe, por conterem um sistema de contrapartidas. Na compra e venda, o preço é a contrapartida económica da coisa (…). A estipulação de uma contraprestação, de uma deslocação patrimonial de sentido contrário, não significa, só por si, que uma seja o correspectivo ou a contrapartida da outra. O modo ou encargo é exemplo de contraprestação que não é correspectivo ou contrapartida da outra (…). As diferentes modalidades da contrapartida são reveladoras e indiciantes do tipo. (…). A contrapartida, como índice do tipo, enfrenta dificuldades em casos duvidosos como são o da doação modal e o da compra por preço baixo (ou alto). Na doação modal, o modo perturba a gratuidade e a unilateralidade económica típica da doação. O modo não é a contrapartida económica da coisa doada. Se o fosse, seria um preço, e o contrato seria então qualificável como compra e venda ou como troca. O modo é ainda mais perturbante porque pode não consistir numa deslocação patrimonial em favor do doador: pode não ter natureza económica e pode ser a favor de terceiro. O modo, como índice do tipo, não afasta a qualificação da doação e, pelo contrário, constitui, ele próprio, um índice de doação, de legado ou de outro acto gratuito. É preciso, todavia, distinguir, primeiro, o modo do preço e da condição resolutiva, o que se consegue por interpretação.» (loc. cit., págs. 140 a 143).
Deve ainda invocar-se o ensinamento de Baptista Machado, in Introdução ao direito e ao discurso legitimador, Almedina, 2008, pág. 110 e 11, onde a propósito da técnica legislativa de estabelecer definições legais de determinados conceitos, escreve que os «enunciados legais que se limitam a estabelecer definições e classificações não são, evidentemente, normas autónomas ou completas: contêm apenas partes de normas que hão-de integrar outras disposições legais, resultando dessa combinação uma norma completa. Há quem afirme que as definições legais são inúteis e quem entenda, pelo contrário, que elas representam verdadeiras disposições com valor prescritivo. Aqueles que entendem que as definições legais são inúteis, ou lhes pretendem recusar carácter prescritivo, são normalmente induzidos a tal atitude pela ideia, em princípio exacta, de que não cabe ao legislador fazer construções conceituais (tal tarefa cabe à doutrina), mas estipular regimes jurídicos. Só que, no caso das verdadeiras definições legais, se trata de, por uma forma indirecta, constituir as hipóteses a que se ligam as consequências jurídicas de determinadas normas, e não de puras construções conceituais. Pelo que, a nosso ver, à técnica legislativa da definição só pode fazer-se a tradicional reserva de que, em direito, ommis definitio periculosa. Entendemos, pois, que as definições legais têm carácter prescritivo. (…) Mesmo que incompleta ou imperfeita, a definição do legislador não é como que uma simples noção provisória e revisível de uma realidade que se pretende categorizar: ela compreende sempre uma vontade ou intenção normativa, uma decisão – por isso que o legislador, ao dar de certa situação de facto uma definição, o que faz antes do mais é formular a sua resposta a uma questão normativa.”
Foram as estas justificações que conduziram o Tribunal a entender:
“Como vimos, na escritura pública as partes declararam vender, o réu, e comprar (aceitar a venda), o autor, cinco imóveis que pertenciam ao réu por aquisição mortis causa da anterior proprietária e titular inscrita no registo predial. Mais declararam terem fixado um preço para a transmissão da propriedade dos imóveis e que o mesmo «já foi recebido». Por fim no cabeçalho da escritura pública o negócio jurídico que a mesma formaliza é denominado «compra e venda».
A reunião destes elementos parece não consentir dúvidas que as partes declararam na escritura pública celebrar um contrato passível de ser qualificado como compra a venda.
O artigo 874.º do Código Civil define a compra e venda como sendo «o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço». Deste modo, este tipo de negócio jurídico pressupõe dois sujeitos - o vendedor ou transmitente e o comprador ou adquirente -; a transmissão da propriedade de uma coisa ou de outro direito; a existência de um preço que constitui a contrapartida da transmissão da propriedade ou outro direito. Todos eles parecem encontrar-se na escritura pública.
Todavia, quando vemos melhor a fundamentação de facto reparamos que a escritura pública não traduz a vontade real das partes, que existem diferenças entre a vontade declarada e a vontade real. Mais concretamente, verificamos que apesar de na escritura ter sido declarado um preço e de o vendedor ter declarado inclusivamente que já o tinha recebido, na realidade o preço declarado não foi pago e, para além disso, as partes acordaram mesmo que não seria pago qualquer preço (facto d.1.).
Esta situação suscita alguma perplexidade que se desvanece, no entanto, assim que se apreende o contexto em que o negócio jurídico foi decidido.
Resultou provado que quem manifestou a vontade de que a propriedade dos imóveis viesse a ser transmitida para o aqui autor foi a tia deste, mulher do réu e anterior proprietária dos imóveis que viriam, por morte desta a serem herdados pelo marido e único herdeiro. A anterior proprietária não queria desalojar, despejar o marido e futuro viúvo, privá-lo da habitação que há mais de uma década se situava num dos imóveis (facto p.). O que ela pretendia era que em simultâneo os imóveis de que era proprietária viessem a ficar para o sobrinho (mas não manifestou que isso tivesse de ser feito de imediato, nem definiu como seria feito) mas o marido pudesse continuar a residir na casa de morada de família.
O autor e o réu quiseram concretizar a última vontade da falecida a esse respeito (facto d.2.). Existe, portanto, uma ligação genética entre o negócio celebrado entre os respectivos outorgantes e a vontade da anterior proprietária, que estabelece fios condutores da interpretação da vontade dos outorgantes, ou seja, interpretar a vontade destes como sendo a de estabelecer uma ligação, uma conexão, uma simultaneidade entre a transmissão da propriedade e conservação pelo réu do direito de continuar a habitar a casa que era sua e era a sua morada de família (facto f.).
Sendo assim devemos concluir que o contrato celebrado por autor e réu não pode afinal ser qualificado como uma compra e venda … por lhe faltar uma dos elementos essenciais para a recondução da vontade das partes a este tipo legal de contrato: o preço!”
E mais se explicou:
“Não se trata, sublinhe-se, de uma situação de incumprimento da obrigação principal do comprador de pagamento do preço (aspecto que não interferiria com a qualificação do contrato porque não está relacionado com a configuração do acordo negocial, apenas com o momento posterior à celebração do cumprimento das respectivas obrigações), trata-se mesmo de o real acordo de vontades ter compreendido a estipulação («acordaram») de que não seria devido qualquer preço pela transmissão da propriedade (facto d.1.).
Ao invés do preço, o que as partes acordaram foi que, como pretendia a falecida cuja vontade quiseram concretizar, o autor adquiriria a propriedade dos imóveis mas o réu podia continuar a residir no prédio, a utilizá-lo, como se fosse seu, para nele manter a sua habitação e domicílio, o tempo que desejasse, enquanto fosse vivo (factos f., f.1., f.2. e p.). Este acordo não foi um mero acordo complementar, acessório do negócio jurídico celebrado, foi um acordo de vontades estabelecido «no âmbito do acordo para a celebração da escritura pública» que veio a ser celebrada (facto f.1.).
Recorde-se o que já se assinalou acima na fundamentação da decisão sobre a impugnação da matéria de facto. Na anterior acção o aqui autor alegou mesmo «que não foi entregue … qualquer quantia (porque o aqui réu) assim quis» e ainda que os bens foram transmitidos sem pagamento do preço tendo as partes acordado que «como contrapartida do negócio celebrado… o autor, se quisesse, poderia continuar a residir naquela que foi a morada de família do casal.»
Uma vez que a autorização para o vendedor continuar a utilizar o bem vendido não configura uma disposição patrimonial do comprador em benefício do vendedor (não há uma transferência de um bem com valor económico do património do comprador para o património do vendedor; o que há é uma redução das utilidades do bem que o vendedor transmite para o comprador por comparação com as utilidades próprias do direito de propriedade), a expressão contrapartida não é juridicamente correcta, mas a alegação do aqui autor tem o significado de aceitar a existência de um nexo essencial entre o acordo da transferência da propriedade e o acordo da continuação da utilização, que uma coisa não foi querida sem a outra e que é o conjunto de ambas que corresponde à vontade real inteira.”
Em apoio da qualificação o tribunal fundamentou a decisão com o Direito, invocando também doutrina que acolhe a orientação propugnada: Júlio Gomes, Comentário ao artigo 874.º do Código Civil, in Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações/Contratos em Especial, UCE, Lisboa, 2023, pág. 23 e seguintes; Júlio Gomes, Comentário ao artigo 879.º do Código Civil, da mesma obra, pág. 50; Pedro de Albuquerque, in Direito das obrigações. Contratos em especial, vol. I, Compra e venda, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 95 e seguintes; C. A. Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 5ª edição, 2020, págs. 400/401; Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 2008, 5.ª edição, pág. 447.
16. O recorrente entende que o Tribunal não podia ter qualificado o contrato como doação.
Para o efeito invoca várias questões/argumentos:
- Excesso de pronúncia – o tribunal terá conhecido questão de que não podia conhecer;
- Violação de caso julgado – quer por se violar o despacho saneador, quer por se violar a decisão judicial relativa ao processo n.º 1603/15.4T8AVR.
Respondeu o Réu, a esses argumentos.
Respondeu o tribunal à questão das invocadas nulidades, conforme extracto já transcrito no relatório.
17. Analisando
17.1. No que concerne ao excesso de pronúncia
Diz o recorrente A.:
E – O acórdão a quo padece de nulidade por violação do disposto no artigo 615.º, n.º1 al. d) e e) do Código de Processo Civil, sendo clarividente das alegações do recurso interposto pelo ali Recorrente e o Acórdão proferido que há o conhecimento de questões sobre as quais o tribunal a quo não podia conhecer, talqualmente advém do acórdão proferido uma decisão desfavorável ao ora recorrente em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
K. Para impugnação do juízo valorativo que levou à condução de tal facto ao conjunto de factos não provados, é colocada em causa a apreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, delimitada aos depoimentos ali prestados.
L. Encontra-se pois vedada a possibilidade de convocar meios probatórios adicionais, uma vez que, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 640.º, n.º 1, al. b) do CPC, não se traz à discussão quaisquer outros meios de prova que permitam outra conclusão.
M. Sucede porém que entendeu o tribunal a quo ampliar a matéria de facto ao ponto de não só dar o dito facto como provado como ainda aditar outros – que apelida de complementares, concretizadores e instrumentais -, mas que não o são de todo, sendo antes factos novos e estranhos ao caso in decidindo.
N. O objecto principal da discussão é, efetivamente, o direito do aqui Recorrente à restituição do seu imóvel, e não a forma e validade do negócio jurídico celebrado que permitiu a sua aquisição, como infra melhor se irá concretizar.
O. Os factos novos aditados, nomeadamente o facto b1, d1, d2 e f1, relacionados com a forma de aquisição do direito de propriedade do aqui Recorrente não se mostram incluídos no objecto do litigio, além de em momento algum serem abordados pelo Recorrente, não resultam da prova produzida nos presentes autos nem se mostram essenciais para o objecto do litígio.
P. Não podia o Tribunal da Relação do Porto ter ampliado a matéria de facto conforme o fez, não havendo qualquer fundamento para tal, sendo pois claro o excesso de pronúncia e consequentemente a nulidade do acórdão.
Q. O acórdão recorrido mostra-se ainda ferido de nulidade porquanto o tribunal a quo se pronuncia sobre “questões de que não podia tomar conhecimento” (615, n.º d) do CPC), considerando desde logo a falta de sindicância do despacho saneador e o caso julgado que recai sobre o processo n.º 1603/15.4T8AVR.
O Tribunal recorrido teve oportunidade de conhecer da questão, em termos que respondem cabalmente ao questionado – e já reproduzido supra – com o que se concorda.
Em síntese:
- Não já excesso de pronúncia quando em impugnação da matéria de facto o tribunal sente necessidade de compulsar os autos e compatibilizar os factos essenciais alegados e provados com factos complementares, apurados no decurso da causa;
- Cabe nos poderes do Tribunal da Relação a análise da prova global se um meio de prova convocado pelo recorrente impuser o recurso à totalidade dos meios usados, com vista a obter uma base fáctica apta a responder às questões jurídicas suscitadas – directa e indirectamente – em função das soluções de direito que se afigurem plausíveis;
- Pode ser essencial à decisão sobre o litígio em que se pede a devolução de um bem a qualificação do contrato pelo qual se adquiriu a titularidade desse bem – quer pelo tipo de contrato, quer pelas condições contratuais concretas que tiverem sido estabelecidas pelas partes.
Deve distinguir-se a questão do excesso de pronúncia - que origina nulidade da decisão – da questão do erro de julgamento e da violação de lei (violação de caso julgado), que será analisada em momento próprio.
Improcede a invocada nulidade com fundamento das alíneas d) e e) do n.º1 do 615.º do CPC.
17.2. No que concerne à violação de caso julgado por referência ao despacho saneador
17.2.1. Para contestar esta alega violação diz o Réu:
“bb. Quanto à alegada violação de caso julgado por referência ao despacho saneador proferido em 24.11.2021 não pode colher a argumentação do Recorrente.
cc. Não podemos olvidar que no objeto do litígio (do despacho saneador) tem um ponto que refere que: Reconvenção D) - Celebração entre autor e réu/reconvinte de um contrato de comodato em relação ao imóvel identificado no artigo 1º, al. b) da petição inicial
dd. E nos temas da prova enumera os seguintes pontos: Apurar se o autor e réu acordaram em que o segundo poderia continuar a habitar o imóvel identificado no artigo 1º, al. b) da PI, por ser intenção do réu regressar à Alemanha num prazo de 1 a 2 anos contados da data da outorga da escritura e
ee. No despacho saneador o decidido é que não se pode discutir (novamente) sobre a anulabilidade ou nulidade da escritura de compra e venda, nada mais.”
17.2.2. Vejamos o despacho saneador – de fls…
Entre outras questões, agora sem interesse, foi abordada a problemática do caso julgado entre a presente acção e o processo anterior dos vícios da vontade, dizendo-se e decidindo-se assim:
“9.º Voltando ao caso em apreço. Nos presentes autos, figura como autor, AA e como réu, BB. O autor peticiona, de entre outros, os seguintes pedidos:
“ (…) deve a acção ser julgada procedente e (…)
a) declarar que os prédios identificados no artigo 1º (…) são propriedade do autor e o réu tem a sua detenção de forma ilegítima;
b) ser o réu condenado a restituir ao autor (…) os referidos prédios (…)“
10.º Como fundamento, alega que é proprietários dos prédios urbanos que identifica no artigo 1º da PI por os ter adquirido – por escritura de compra e venda outorgada no dia 4-8- 2014 – ao réu, estando a propriedade registada em seu favor. Mais alega que o réu ocupa os imóveis, recusando-se a entrega-los ao autor.
11º O réu contestou, defendendo-se por excepção e deduziu reconvenção.
12.º Em reconvenção formulou os seguintes pedidos reconvencionais:
“b) Ser julgada totalmente procedente por provada a reconvenção do réu e, consequentemente,
i. deve ser declarada a NULIDADE DA VENDA;
ii. CAUTELARMENTE, considerar que estamos perante um negócio usurário;
iii. CAUTELARMENTE, admitir a existência do direito de retenção, tendo o R. um crédito correspondente ao valor referido na escritura de compra e venda (104.616,00€) uma vez que o preço não foi pago.
iv. AINDA E CAUTELARMENTE, perante um contrato de comodato.
v. Se assim se não entender, o que, só por mera hipótese académica se admite, serem os pedidos formulados pela A. sob os n.ºs b) e d) serem substancialmente reduzidos, por totalmente desajustados da realidade, e o pedido formulado em b), não ser o meio próprio para o fazer;
vi. Deve o pedido do A a título de sanção compulsória ser julgado improcedente ou caso V. Exa. assim não entenda, ser aplicado um valor segundo as regras de equidade no valor máximo de 5,00€; (…)
viii. Deve o A. ser condenado a pagar ao R. o valor das obras feitas por este no prédio identificado no art.º 1 da PI, na medida do seu custo e valorização do prédio, no montante de 40.000,00€ (quarenta mil euros) que não são suscetíveis de serem retirados do imóvel sem deterioração do prédio, e que o A. fica beneficiado sem qualquer causa justificativa; (…)
x. o A deve ser condenado a pagar os juros legais sobre o pedido reconvencional formulado desde a notificação ao A., até integral pagamento;”
13.º No seu articulado e de forma sucinta, alega o seguinte:
- Contraiu matrimónio com FF em 31.03.2001, que faleceu em faleceu em 22.07.2014.
- A sua esposa faleceu sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, nem descendentes ou ascendentes vivos, sucedendo-lhe como único e universal herdeiro o réu, que se habilitou nessa qualidade por escritura de habilitação, datada de 04.08.2014;
- O réu é de nacionalidade alemã e apesar de viver em Portugal há cerca de 30 (trinta) anos, tem dificuldades de compreensão e de fala da língua portuguesa.
- A sua esposa era proprietária de imóveis, que identifica e que são os que o autor reivindica, sendo o réu o seu único e universal herdeiro.
- O autor é sobrinho do R. e da sua falecida esposa e aproveitando de tal relação de parentesco, do momento de fragilidade, tristeza e alheamento que o R. vem vivendo desde a morte da sua esposa, aproveitando o facto de pretender obviar a que o património do R. fosse para os seus legítimos herdeiros/filhos, alegando ainda ser essa a vontade da sua falecida tia e aproveitando o carinho e afecto que a falecida esposa do R. nutria pelo A., assim como aproveitando-se do desconhecimento e falta de compreensão que o R. tinha e tem da língua portuguesa e das leis portuguesas, engendrou um plano no sentido de convencer o R. da necessidade de salvaguardar a transmissão do património caso algo acontecesse ao R.
- Para o efeito, o A. convenceu o R. que os bens ficariam apenas à morte do R. para o A., seu sobrinho, referindo que iriam cumprir com a vontade da falecida.
- Mais convenceu o réu de que seria necessário celebrar um testamento daqueles cinco (5) imóveis, ainda que com reserva de usufruto a favor do réu, para que os filhos do réu, provindos do primeiro casamento, não herdassem os imóveis;
- No dia 04.08.2014, no Cartório Notarial, encontrava-se presente o R., para fazer a habilitação de herdeiros por força do óbito da sua esposa e também o A. e a sua namorada (à data), que se disponibilizou para acompanhar o R.
- Nesse dia e aproveitando-se da necessidade do réu em fazer a habilitação de herdeiros o A. convenceu o R. a, nesse mesmo dia, tratar também do testamento, com reserva de usufruto.
- Confiando no autor, o réu foi confrontado com uma outra escritura, para além da de habilitação, tendo descoberto, mais tarde, ser uma escritura pública de compra e venda dos imóveis em causa, pelo valor global de 104.616,00 € (cento e quatro mil seiscentos e dezasseis euros), alegando o autor ser esta a forma testamentária exigível, o que o réu, na data aceitou, por não perceber fluente e assertivamente a língua portuguesa, não perceber, de todo as leis portuguesas e confiar no autor, seu sobrinho;
- Verificando mais tarde que era uma compra e venda, a mesma não corresponde à vontade pretendida pelo R. e pela falecida, tendo o réu incorrido em erro.
- Apesar de a escritura ter sido lida pelo notário, alega que, para além de estar a passar por um momento de fragilidade, não entende conceitos jurídicos e confiava no seu sobrinho, aqui A.
- Não é verdade que o autor tenha comprado os imóveis, nem que o réu os tenha vendido, porque nada foi pago. O preço corresponde, exclusivamente e para efeitos fiscais, ao valor patrimonial dos imóveis. Os imóveis em causa valem muito mais do que 104.616,00 € (cento e quatro mil seiscentos e dezasseis euros);
- As declarações exaradas na escritura não correspondem à vontade, quer do autor, quer do réu, tendo sido, consciente e dolosamente ludibriado pelo A. para a assinatura daquele contrato;
- O autor ao celebrar a escritura sabia que não estava a cumprir a vontade da sua falecida tia;
- No decurso do processo-crime que instaurou contra o seu sobrinho (por este ter levantado todo o seu dinheiro da sua conta bancária) descobriu que o autor ficou com vários pertences da sua tia, nomeadamente vários manuscritos que ela escreveu, sendo um deles um documento que junta (doc. 11) que manifesta as últimas vontades da falecida esposa do R. e em que refere expressamente “ AA e BB: faz a casa por doação ao BB”; vontade também manifestada em vários diários onde declara que a sua vontade nunca foi a de despojar o respetivo marido, aqui R., dos bens que lhe pertenciam pela sua morte.
- A intenção do R. sempre foi manter, para si e enquanto for vivo, os imóveis, transmitindo-os, por testamento e na quota-parte disponível que lhe asseguraria a casa, ao seu sobrinho/A., tanto assim é que reside, como sempre residiu, na Rua dos Pousios, n.º 52, Águas Boas, Oiã, Oliveira do Bairro, imóvel correspondente a um dos prédios objeto do negócio cuja anulabilidade peticiona;
- Pelos motivos referidos considera que a venda é nula ou pelo menos anulável, ou seja, não houve o pagamento do preço declarado na escritura de compra e venda celebrada em 04.08.2014; o conteúdo da escritura de compra e venda é falso, por ser discrepante com a verdade, o que acarreta a sua falsidade, atestando um facto que não se verificou, falsidade que tem na sua base dolo, por as declarações não serem verdadeiras, falsidade que acarreta a nulidade do registo.
- Sem prescindir, refere, ainda que se entendesse ser o negócio de compra e venda válido, assumindo o tribunal a validade daquele negócio quanto ao erro/vício na formação da vontade, o negócio é nulo por simulação, escondendo um negócio dissimulado, que é o testamento, com o intuito de enganar terceiros, em concreto, os filhos do R. que seriam os legítimos herdeiros deste e não o A.;
- Sem prescindir, ainda, refere que estamos perante um negócio usurário, nos termos previstos pelo artigo 282º do C. Civil, na medida em que à data o réu encontrava-se numa situação de inferioridade da qual o autor se aproveitou, obtendo benefícios excessivos e injustificados, sabendo o autor que era intenção da “de cujus” que o réu permanecesse na casa até à sua morte.
- Concluiu e quanto aos diversos e variados vícios de vontade que elenca, que o negócio deve ser nulo por falta de pagamento do preço; por ser um negócio simulado; por ser um negócio usurário;
- Sem prescindir e caso assim não se entenda, considera ser titular de um direito de retenção pelo direito de crédito correspondente ao valor do preço mencionado na escritura e que não foi pago, direito de retenção que existe enquanto não for pago o preço, por aplicação do disposto no artigo 759º do C. Civil;
- Subsidiariamente, deve entender-se que existe entre autor e réu um contrato de comodato pelo facto de o réu continuar a habitar o imóvel desde que a sua esposa faleceu, tendo o autor referido que o réu poderia lá ficar até à sua morte, o que foi provado no primeiro processo que correu termos entre as partes. O autor assumiu que concedia ao Réu o direito de, no futuro, continuar a habitar a casa até ao fim dos seus dias, de forma gratuita. O comodato teve como finalidade a habitação do réu, finalidade que se mantém e que impede o direito de restituição reclamado pelo autor.
- Subsidiariamente, caso se entenda que os imóveis são propriedade do Autor, alega que, a expensas suas e com rendimentos seus, custeou a realização de várias obras no imóvel da sua esposa, obras profundas pois não tinha condições de habitabilidade.
- Descreve e identifica quais as obras que foram realizadas num total aproximado de € 40.000,00.
- As obras que foram realizadas a expensas suas são benfeitorias que não podem ser levantadas por estarem integradas no imóvel, assistindo ao réu o direito de ser indemnizado pelas benfeitorias realizadas.
*
Do direito:
Essencialmente cumpre-nos apreciar quais os efeitos do caso julgado decorrente da prolação da sentença proferida no processo que correu seus termos sob o n.º 1603/15.4T8AVR, ou seja, o que se entende por caso julgado e pela força externa do caso julgado, por outras palavras ainda, a autoridade do caso julgado, sendo diferentes as excepções de caso julgado nos termos do disposto no artigo 581º e os efeitos externos do caso julgado previstos pelo artigo 621º (sob a epigrafe: alcance do caso julgado) ambos do CPC.
A segurança e a certeza jurídicas, bem assim como o próprio prestígio dos tribunais, impõem que nenhum tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão proferida anteriormente por outro ou pelo mesmo tribunal.
Com tal objectivo, o ordenamento jurídico acolheu o princípio da preclusão - de que a figura do “caso julgado” é uma manifestação -, que significa, para o que aqui importa, que ultrapassada determinada fase processual, deixam as partes de poder praticar os actos que aí deveriam inserir-se, o que tem como consequência que, excedidos os prazos fixados na lei ou determinados pelo juiz, se extingue o direito de praticar esses actos (v. ac. do STJ de 05/05/94, in CJSTJ, III, pg. 31, e António Geraldes in Temas da Reforma do Processo Civil, I, pg. 72)
Assim, havendo trânsito em julgado, a sentença constitui caso julgado nos precisos termos e limites em que julga – artigo 621º do CPC.
Para além de algumas hipóteses de alteração, nomeadamente o recurso extraordinário de revisão - art. 696º do C.P.C., de verificação muito restrita, uma sentença não pode ser atacada, sob pena de serem postos em causa os valores que inicialmente referimos da segurança e da certeza jurídicas e do prestígio da administração da justiça.
Aprofundemos mais um pouco a temática do alcance do trânsito em julgado de uma sentença (aplicável aos despachos por força do disposto no artigo 613º do CPC).
O Código de Processo Civil de 1939 continha um preceito que dispunha que se consideravam abrangidos pela força do caso julgado, além das questões sobre que recaísse a decisão expressa, a solução dada a outras que, em face dos termos da causa, constituíssem pressuposto ou consequência necessários do julgamento proferido (art. 660º); este último segmento legal foi suprimido em 1961, razão porque é discutível, hoje, a questão de saber se existe ou não caso julgado implícito.
Estamos com aqueles que sustentam não decorrer do desaparecimento daquela parte do preceito a inexistência actual do caso julgado implícito, dado que a mesma era, em bom rigor, desnecessária.
Com efeito, o propósito imediato da figura do caso julgado - evitar a colisão prática de decisões judiciais - sempre inculcará que se não deva permitir a possibilidade de discutir judicialmente algo que haja sido assumido como motivação objectiva indispensável de decisão anterior de outro ou do mesmo tribunal; na verdade, não devemos dissociar o que é indissociável - a decisão da premissa em que se apoia - porque de outro modo o que ferimos, ainda que mediatamente, é a própria decisão anterior (v. Rodrigues Bastos, Notas, III, pg. 230 e 231, acs. do STJ de 12/01/90, de 09/06/89 e de 22/03/74, in, respectivamente, BMJ 393º, pg. 563, BMJ 388º, pg. 377 e BMJ 235º, pg. 231).
Assim, se uma sentença conheceu de uma determinada relação jurídica, necessariamente que se formou caso julgado quanto a essa questão, não podendo as partes novamente discuti-la verificados que se mostrem todos os demais requisitos do caso julgado: a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (art. 581º n.º 1 do C.P.C.).
Tenhamos presente que, de acordo com o art. 581º, n.º 2 do C.P.C., “há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica”.
Assim, importa apurar, no fundo, se as pessoas que se encontram na acção posterior participaram também (ou puderam participar) na decisão anterior, ou se ficam afectados por ela, por sucederam uma das partes.
Citando o douto Acórdão do STJ de 10-10-2012 (relatado pelo Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes) – in www.dgsi.pt – cujo entendimento sufragamos:
“ (…) o trânsito em julgado de uma qualquer sentença de mérito é susceptível de produzir outros efeitos, mais difusos, mas não menos importantes quando se trata de relevar os valores da certeza e da segurança jurídica que qualquer sistema deve buscar e proteger. (…), não se configura, in casu, uma situação que deva ser apreciada sob o prisma do caso julgado material, atenta a falta de identidade dos elementos integrantes, importando relevar, isso sim, a autoridade de caso julgado inerente à sentença, efeito que visa preservar o prestígio dos Tribunais e a certeza ou segurança jurídica, evitando a instabilidade das relações jurídicas.
(…) seria intolerável que cada um nem ao menos pudesse confiar nos direitos que uma sentença lhe reconheceu; que nem sequer a estes bens pudesse chamar seus, nesta base organizando os seus planos de vida; que tivesse de constantemente defendê-los em juízo contra reiteradas investidas da outra parte, e para mais com a possibilidade de nalguns dos processos eles lhe serem negados pela respectiva sentença(…),se a sentença reconheceu, no todo ou em parte, o direito do autor, ficam precludidos todos os meios de defesa do réu, mesmo os que ele não chegou a deduzir, e até os que poderia ter deduzido com base num direito seu(…)”
Será a situação em que, julgada procedente uma acção de reivindicação, não pode o réu interpor contra o primitivo autor uma acção invocando que o direito de propriedade tinha sido adquirido por usucapião, com base numa situação de facto que já existia e era conhecida do réu aquando da sua demanda na primeira acção.
O Professor Teixeira de Sousa (in Estudos sobre o Processo Civil, 2ª ed., págs. 568, 579 e 586), no mesmo sentido, refere que com o trânsito em julgado da sentença “ficam precludidos todos os factos que poderiam ter sido invocados como fundamento de uma contestação, tenham ou não qualquer relação com a defesa apresentada”, o que se funda em razões atinentes com a boa administração da justiça, com a funcionalidade dos tribunais e com a salvaguarda da paz social, ficando excluída a possibilidade de confrontar o tribunal com “toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada”.
No caso em apreço, verificamos que correu seus termos, entre as mesmas partes, uma primeira acção, por meio da qual o aqui réu e aí autor pretendia:
“I.º Ser declarado e o réu condenado a reconhecer que, no negócio constante da escritura pública de compra e venda outorgada em 4-8-2014, a vontade declarada do autor não corresponde à vontade real, por existência de vício na formação da vontade, falta de consciência, erro e dolo, nos termos dos artigos 246º, 247º e 253º do C. Civil e
II.º Consequentemente, ser declarada a nulidade ou, pelo menos anulabilidade do negócio constante da escritura pública de compra e venda outorgada em 4-8-2014;
III.º Cautelarmente, ainda que se entendesse pela validade do negócio de compra e venda quanto ao erro/vício na formação da vontade, deverá ser declarada que autor e réu agiram quanto ao negócio de compra e venda, imbuídos em simulação relativa, nos termos dos artigos 240º e seguintes do C. Civil e
IV.º Consequentemente, ser declarada a nulidade do negócio constante da escritura pública de compra e venda outorgada em 4-8-2014,
V.º Mantendo-se, neste caso, a validade do negócio dissimulado, ou seja, uma disposição testamentária, relativamente aos cinco (5) imóveis supra referidos do autor a favor do réu, nos termos do artigo 241º, n.º 1 d C. Civil.”
A acção foi julgada improcedente.
Na presente acção verificamos que o réu, por via de contestação e também por reconvenção, vem invocar os mesmos vícios de vontade, retirando apenas a formulação do reconhecimento da validade do negócio dissimulado que considerava ser o testamento.
A primeira acção conheceu os vícios de vontade invocados pelo ora réu na primeira acção, factualidade que vincula o réu por ter sido parte nesse processo.
Não pode agora o réu pretender repetir factualidade já alegada, já discutida e já fixada entre as partes, que são as mesmas que intervêm nos dois processos.
Neste processo, sob pena de violação da autoridade do caso julgado, não podem ser novamente apreciados os factos com base nos quais foram considerados improcedentes os pedidos e nulidade/anulabilidade invocados pelo ora réu no primeiro processo.
Ou seja, não pode ser novamente discutida a alegada anulabilidade ou nulidade da escritura pública de compra e venda que o ora autor invoca como título de aquisição do direito de propriedade.
Também não pode o réu vir invocar alegados vícios que já existiriam quando propôs a acção, nomeadamente a anulabilidade por negócio usurário (nos termos previstos pelo artigo 282º do C. Civil), por ter como fundamento factualidade que também já foi apurada e alegada na primeira acção.
Por esse motivo, não pode o tribunal conhecer os pedidos de nulidade da venda, por vícios da vontade, que o réu sustenta com os factos constantes dos artigos 88º a 110º (resumo que o próprio réu faz no artigo 135º do seu articulado); de anulabilidade por negócio usurário constantes dos artigos 111º a 123º.
A decisão anterior e factualidade que a estruturou consolidou-se na esfera jurídica de autor e réu, não podendo ser novamente discutida, sob pena de violação dos princípios da segurança e certeza jurídicas.
De igual forma não pode o tribunal conhecer do alegado direito de retenção por estar sustentado num suposto direito de receber o preço declarado na escritura de compra e venda, quando, na primeira acção, já se considerou como provado que não houve pagamento do preço e os motivos pelos quais a compra e venda foi outorgada (vejam-se os factos provados nos pontos 13º, 14º e 15º da primeira sentença), factos que não podem agora ser novamente discutidos, sabendo o ora réu que não lhe assiste qualquer direito de crédito.
Se não é titular do direito de crédito relativo ao pagamento do preço, não pode invocar um direito de retenção com base num direito inexistente.
Sem prejuízo e quanto ao alegado direito de retenção com base no alegado direito ao pagamento do preço pela compra e venda (que não existe), não assiste razão ao réu.
O direito de retenção é uma das formas que a lei civil prevê de garantia especial de cumprimento das obrigações e que existe, nos termos previstos no art.º 754º do C. Civil, quando: “O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.”
Com efeito e citando o douto Acórdão do TR Porto de 21-10-2021 (proferido no procedimento cautelar que correu seus termos por este Juízo Central Cível J2, com o n.º 891/21.1T8AVR), o artigo 754.º, do C. C. exige que o devedor goze de um crédito contra o seu credor para poder ter direito de retenção, crédito esse resultante de despesas feitas por causa da coisa, ou de danos causados pela mesma coisa.
O crédito invocado não se insere na norma prevista pelo artigo 754º, nem se insere nos casos especiais previstos pelo artigo 755º, ambos do C. Civil.
No que concerne ao contrato de comodato, resulta da factualidade provada no primeiro processo que:
“19 – E acordaram verbalmente que o R. podia continuar a viver na casa de morada de família, como se fosse sua, enquanto o desejasse. (…)
22 - O A. continua a viver na casa que foi morada de família dele com a ora falecida FF.”
A factualidade em causa vincula as duas partes e não poderá ser novamente discutida, sedimentando-se na esfera jurídica das duas partes.
No entanto, cremos que assiste, nesta parte, razão ao réu, ao alegar que a celebração ou não entre as partes de um contrato de comodato, contrato previsto pelo artigo 1129º do C. Civil, não foi discutido na primeira acção, nem o contrato em causa constitui um qualquer efeito e/ou consequência a retirar dos pedidos formulados pelo ora réu na primeira acção.
Inexiste, assim e em relação ao pedido reconvencional identificado no ponto IV da reconvenção, a excepção de caso julgado, sem prejuízo de já se considerarem como sedimentados entre as partes os factos vertidos nos pontos 19º e 22º dos FP da primeira sentença.
Por fim e em relação ao pedido reconvencional identificado no ponto VIII – crédito do reconvinte por obras realizadas – estamos perante matéria nova não discutida nem apreciada na primeira acção.
Decisão:
Pelo exposto, na parcial procedência da excepção invocada, consideramos que se verifica a excepção dilatória de caso julgado, no que concerne aos pedidos formulados pelo reconvinte nos pontos i; ii; iii que se transcrevem:
“i. deve ser declarada a NULIDADE DA VENDA;
ii. CAUTELARMENTE, considerar que estamos perante um negócio usurário;
iii. CAUTELARMENTE, admitir a existência do direito de retenção, tendo o R. um crédito correspondente ao valor referido na escritura de compra e venda (104.616,00€) uma vez que o preço não foi pago.”
Absolvendo, em consequência, o autor/reconvindo, da instância em relação a tais pedidos – artigos 577º, 578º, 595º, n.º 1, al. a) e 621º, todos do CPC.
Registe e notifique:
Custas pelo reconvinte, por a elas ter dado causa – 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Valor: 104.116,00€ (cento e quatro mil, cento e dezasseis euros).”
17.2.3. Neste despacho saneador foi decidida uma questão relativa ao caso julgado cuja violação havia sido invocada, e nela se distingue o problema dos vícios da vontade da declaração relativa à escritura de compra e venda do problema do contrato de comodato, invocado pelo R., como defesa na presente acção para inviabilizar a entrega dos bens pedidos pelo A.
Aí se explicou o que havia sido o pedido e causa de pedir da primeira acção e a decisão proferida e como a questão do comodato estava fora daquele âmbito.
No momento em que o tribunal analisou esta problemática ainda não havia sido instruída a causa, no sentido de se apurar se o invocado comodato era um comodato ou haveria elementos para questionar a qualificação do negócio relativo à escritura de compra e venda como efectiva compra e venda. Ao admitir-se que a acção devia prosseguir para conhecer da defesa do R. sobre o comodato, acabou por se decidir que esse prosseguimento não violava o anterior caso julgado.
E não se vê como é que o acórdão recorrido pode ser interpretado como tendo violado o despacho saneador, uma vez que não conheceu de nenhuma das questões que aí se decidiu estar abrangida pelo caso julgado.
Quer isto dizer que não se identifica qualquer violação de caso julgado formado pelo despacho saneador, mas apenas o cumprimento do aí determinado.
17.3. No que concerne à violação de caso julgado por relação com o processo n.º 1603/15.4T8AVR. no que se reporta à qualificação do contrato como compra e venda
17.3.1. Essa questão foi analisada pelo acórdão recorrido, dizendo-se:
“Pode perguntar-se se o caso julgado formado pela decisão que pôs termo ao processo n.º 1603/15.4T8AVR impede esta diferente qualificação jurídica do contrato celebrado e as consequências jurídicas dessa distinta qualificação.
Salvo melhor opinião, não.
Pese embora na anterior acção as partes hajam tratado sempre o contrato celebrado como uma compra e venda, o que nela foi alegado, discutido e decidido foi somente se o contrato padecia de vícios da vontade, se foi celebrado por erro, dolo ou com simulação relativa.
Os vícios da vontade podem existir em qualquer declaração de vontade. Sendo elementos exteriores à própria vontade, eles condicionam a liberdade de decisão e a declaração de vontade, se existirem, mas não qualificam a declaração de vontade. Daí que os factos que consubstanciam os vícios não interfiram com o significado da declaração, isto é, com a definição dos efeitos jurídicos decorrentes da declaração.
O erro ou dolo podem existir, seja o contrato uma compra e venda ou uma doação, e, em qualquer dos casos, por efeito dos mesmos factos. Não é por estar viciado por erro, dolo ou simulação que a declaração deixa de poder ser qualificada como compra e venda ou doação, conforme as circunstâncias e o conteúdo da declaração proferida.
Acresce que na anterior acção não foi formulado qualquer pedido nem foi proferida qualquer decisão que pressuponha que o contrato seja uma compra e venda ou outro contrato diferente. Por conseguinte, não se formou caso julgado sobre a decisão de qualquer questão de que decorra essa qualificação ou que pressuponha essa qualificação do contrato.
Na anterior acção apenas ficou decidido, com força de caso julgado, que o contrato celebrado pelas partes não era nulo com fundamento nos vícios alegados pelo autor, isto é, que na formação da vontade não ocorreram os factos consubstanciadores dos vícios alegados pelo autor, sendo por isso (rectius, nessa medida) o contrato válido; não ficou decidida a qualificação do contrato, nem essa qualificação foi determinante para a decisão de julgar não verificados os vícios da vontade alegados.”
É também esta a posição que é defendida nas contra-alegações da revista.
E estamos em crer que a solução está correcta – não se obtém por via da decisão ora recorrida nenhuma decisão contraditória com o que anteriormente foi decidido (recordando: o objecto desse processo era a validade das declarações das partes por vícios da vontade); não se coloca em causa a titularidade dos bens por parte do A.; na anterior acção não se questionava se o Reu tinha direito a manter o uso dos bens – nem por quanto tempo.
Os seja, a identidade das questões jurídicas entre os dois processos não existe, nem há risco de contradição ou repetição de decisões.
17.3.2. Não havendo violação de caso julgado com o anterior processo n.º 1603/15.4T8AVR, pode concordar-se com a qualificação do contrato dos autos, como contrato de doação modal?
Sim.
E também se concorda com a justificação do tribunal recorrido:
“O acordo de vontades no sentido de o doador do imóvel continuar a utilizar o imóvel doado que já era a sua casa de morada de família para essa finalidade constitui uma cláusula modal.
Tal cláusula não possui autonomia em relação ao contrato de doação, porque foi celebrada no âmbito do acordo de vontade que constitui a doação, ou seja, ainda como parte integrante do modo como as partes entenderam definir e estabelecer a situação de vida concertada por via contratual e não como a resposta a um aspecto ou problema distinto e independente daquele.
Ainda que a cláusula consagre uma prestação com valor económico (o valor de mercado da utilização da habitação, v.g. por arrendamento), como vimos, ela não tem a natureza de contrapartida, na medida em que não traduz uma transferência de património do adquirente para o transmitente correspectiva do valor da coisa ou direito transmitido. Ela traduz somente uma limitação de natureza negocial das faculdades que, em regra, acompanham a transferência da propriedade de um bem para outrem (a transferência da propriedade acarreta a transferência da faculdade do proprietário de usar e fruir o bem adquirido como entender; no caso as partes estabeleceram uma limitação consensual do âmbito dessa faculdade jurídica).
Essa limitação é válida na medida em que a lei permite a doação modal, isto é, a possibilidade de a doação ser acompanhada da imposição de um encargo designadamente em benefício do doador e ainda que relacionado com a própria coisa doada (como ocorre, por exemplo, nas situações frequentes em que uma pessoa doa um imóvel a uma entidade pública para que esta nele construa um equipamento de uso público específico ou quando um pai doa um imóvel a um filho para que este nele instale a sua casa de morada de família, etc.).”
Os factos apurados sustentam claramente esta solução:
d.1. Não obstante o declarado na escritura, autor e réu acordaram que este não receberia, como não recebeu, qualquer preço pela transmissão dos imóveis.
d.2. Tendo a escritura pública sido celebrada com a intenção comum de se cumprirem as últimas vontades da FF.
e. O réu casou e viveu no prédio identificado na precedente alínea d) com a referida FF, tia do autor.
f. Naquela data (4 de Agosto de 2014), o autor consentiu que o réu continuasse a residir no prédio identificado na precedente alínea d), atenta a relação familiar existente entre ambos e uma vez que aquele prédio havia sido a casa de morada de família do réu até então.
f.1. Essa utilização foi acordada entre o autor e o réu no âmbito do acordo para a celebração da escritura pública outorgada nesse dia.
f.2. Tendo ficado acordado que o referido prédio continuaria a ser utilizado pelo réu, como se fosse seu, para nele manter a sua habitação e domicílio, o tempo que desejasse, enquanto for vivo.
18. Por outro lado, mesmo que se considerasse que o Tribunal recorrido não podia qualificar o contrato dos autos como doação modal, por efeito de um suposto caso julgado, sempre a solução definido no aresto seria de manter com fundamento em ser a solução imposta pela proibição de abuso de direito.
Esta solução é, aliás, também explicitada pelo tribunal recorrido:
“Refira-se que estas consequências se imporiam de qualquer modo por aplicação da figura do abuso do direito, instituto que é de conhecimento oficioso e para cujo conhecimento se avisaram antecipadamente as partes.
Conforme foi escrito pelo ora Relator no Acórdão de 12-09-2024, proc. n.º 5390/22.1T8MTS.P1, in www.dgsi.pt, para uma situação com contornos muito aproximados e que, tal como esta, parece «um exemplo de escola de uma situação de abuso do direito, passível de ser integrada na figura da supressio»:
Segundo o artigo 334.º do Código Civil, que define a figura do abuso do direito, «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
(…)
No caso resultou provado que foi a falecida tia do autor e esposa do réu que manifestou à família o desejo de que os imóveis de que era proprietária viessem a ficar para o sobrinho mas o marido pudesse continuar a residir na casa de morada de família; que a escritura pública foi celebrada com a intenção comum de cumprirem as últimas vontades da falecida; que apesar do que consta da escritura autor e réu acordaram que este não receberia, como não recebeu, qualquer preço pela transmissão dos imóveis, e ainda que o prédio continuaria a ser utilizado pelo réu, como se fosse seu, para nele manter a sua habitação e domicílio, o tempo que desejasse, até à sua morte.
Perante estes factos parece claro que a pretensão do autor afronta directa e intoleravelmente o acordo estabelecido aquando da celebração do negócio, contraria de modo frontal a utilização da casa definida de forma válida pelos titulares do respectivo direito real e representa uma ruptura unilateral com a utilização que esse acordo permitiu e que foi posta em prática desde a celebração do contrato.
Permitir o objectivo almejado pelo autor seria privar o réu do direito de habitar casa que era a sua casa de morada de família e de que, sem qualquer obrigação de o fazer que não fosse de natureza meramente moral ou afectiva, dispôs em favor do autor, em conjunto com outro património imobiliário, sem receber qualquer contrapartida e apenas para cumprir a vontade da falecida, mediante o acordo que era também o desejo dela, conhecido de ambas as partes, de poder continuar a habitar nessa casa enquanto o desejasse.
Ao adquirir os imóveis sem suportar qualquer contrapartida, fazendo-o inclusivamente de um modo que foi orientado para impedir os filhos do réu de virem mais tarde, falecido este, suscitar questões sobre a redução da disposição gratuita por inoficiosidade, mediante o acordo com o réu de que este continuaria a poder viver naquela que era a sua casa de morada de família, o autor prescindiu em favor do réu de parte das faculdades jurídicas inerentes à propriedade em favor do anterior proprietário do imóvel. Deve, por isso, sob pena de intolerável abuso do direito, (ser obrigado a) cumprir a palavra dada.
Eis porque nos parece que independentemente da qualificação jurídica do contrato e/ou do respectivo regime jurídico, à luz do direito e dos valores jurídicos que caracterizam o nosso sistema jurídico, jamais o pedido do autor para que o réu seja condenado a entregar-lhe o prédio onde habitava e habita podia ser julgado procedente.”
III. Decisão
Pelos fundamentos indicados é negada a revista e confirmado o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 18 de Setembro de 2025
Relatora: Fátima Gomes
1º adjunto: Rui Machado e Moura
2º adjunto: Ferreira Lopes
_______
1. Equivalente ao do acórdão recorrido, excepto no último ponto.