REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
CRÉDITO LABORAL
ACÇÃO NÃO CONTESTADA
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
PRIVILÉGIO DA NACIONALIDADE
Sumário

Sumário:

I. A sentença revidenda que decidiu um litígio em matéria de validade e/ou extinção do contrato individual de trabalho, não versa matéria da competência exclusiva dos tribunais portugueses para os efeitos da al.ª c) do art.º 980 º do CPC.
II. Tratando-se de sentença proferida em acção não contestada, o elenco dos factos provados da sentença seria, no caso concreto e de acordo com as regras aplicáveis na nossa ordem jurídica, meramente enunciador, não constituindo uma decisão do juiz quanto aos que estão, ou não, provados.
III. Ainda que à luz da lei adjectiva portuguesa assim não fosse, a omissão da descrição expressa dos factos provados ou da análise crítica das provas na sentença produzida face à revelia operante da Ré, sempre constituiria uma divergência de índole formal e processual referente à sua elaboração e ao seu conteúdo que não beliscaria os princípios e normas fundamentais da ordem jurídica portuguesa, designadamente a materialidade da Constituição da República Portuguesa na tutela dos direitos fundamentais, ou do Direito da União Europeia e ainda os ditâmes da boa-fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, ou da proibição de indemnizações punitivas em matéria cível.
IV. A mesma conclusão se imporia relativamente a uma sentença proferida em tribunal estrangeiro com deficiente aplicação do direito material ou probatório interno desse país quanto à alegação e à prova dos pressupostos da relação laboral entre o trabalhador e a entidade empregadora pois, não atingindo os princípios e normas fundamentais da ordem jurídica portuguesa, deve ser contrariada de acordo com as regras vigentes nos órgãos jurisdicionais próprios do Estado que a proferiu.
V. A impugnação do pedido de revisão de sentença estrangeira fundada no resultado mais favorável da lide se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, está dependente doutro pressuposto que consiste em dever a questão ser resolvida pelo regime da nossa ordem jurídica segundo as normas de conflito da lei portuguesa (n.º 2 do art.º 983º do CPC).
VI. Pressuposto este que não está preenchido porque o contrato de trabalho é, de acordo com as normas de conflitos aplicáveis aos contratos de trabalho vigentes no ordenamento jurídico português, regulado pela lei do país em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato (cfr. art.º 8º do Regulamento (CE) n.º 593/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008) e, não só a sentença revidenda considera que foi no Brasil que o trabalhador prestou o seu trabalho, como ainda a entidade empregadora se abstém de alegar que o trabalhador realizou a sua prestação em Portugal.

Texto Integral

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Revisão/Confirmação de Sentença Estrangeira n.º 2/25.4YREVR


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Uma vez que as questões objecto da causa se apresentam como manifestamente simples, profere-se decisão sumária (cfr. artigos 652º, n.º 1, al.ª c), e 656º, ex vi do 982º, n.º 2, todos do CPC).


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I. RELATÓRIO


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A.


AA, cidadão de nacionalidade brasileira e com residência no Brasil, propôs neste Tribunal da Relação de Évora acção especial de revisão de sentença estrangeira contra B..., S.A., sociedade comercial com sede em Alcanena.


A sentença da qual pediu a revisão, foi proferida no dia 26.03.2010 e transitou em julgado, condenando a aqui Requerida a pagar ao Requerente os valores, a liquidar em execução de sentença, correspondentes a “1) aviso prévio; 2) férias, com o terço constitucional; 3) 13.ºs salários; 4) horas extras e reflexos; 5) indenização do seguro-desemprego; e 6) FGTS (8%), com a multa de 40%.”, em acção trabalhista, intentada pelo Requerente contra a Requerida, na 4.ª Vara do Trabalho da Comarca de Maringá, Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Estado do Paraná, República Federativa do Brasil.


B.


Citada, a Requerida deduziu oposição.


Defendeu-se por excepção, arguindo:


- a ineptidão da petição inicial por contraditória e ininteligível nos seus próprios termos quando invoca, por um lado, tratar-se de “Ação Especial de Revisão e Confirmação de Sentença Estrangeira de Reclamação Trabalhista”, estribada na prolação de sentença por tribunal Brasileiro da respectiva jurisdição no processo n.º ...662, em virtude da cessação unilateral de contrato de trabalho pela Requerida, sem justa causa e sem aviso prévio (cfr. cabeçalho e artigos 3º a 5º da p.i.) e, por outro lado, identifica como “Do Mérito da Revisão e Confirmação da sentença estrangeira do divórcio” e alega que “[a] fotocopia do processo estrangeiro do divórcio litigioso, em anexo, cfr. doc n.º3 foi devidamente certificada e apostilada de haia por cartório brasileiro competente. (…)” (cfr. ponto II e artigo 6º do mesmo articulado);


- a falta de interesse em agir do Requerente que não terá indicado na p.i. o fundamento para peticionar a revisão, ónus que sobre si impende.


Mais sustentou que:


- o documento juntou pelo Requerente com petição inicial, é constituído por fotocópias sem valor probatório, não se tratando de certidão emitida por autoridade competente no país de origem, nem estando legalizado nos termos do artigo 440º do CPC, carecendo dos pressupostos exigidos pelas alíneas a) e b) do artigo 980º do CPC;


- a sentença em causa não transitou em julgado;


- o litígio versa matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Trabalho portugueses porque a Requerida é uma pessoa coletiva de nacionalidade portuguesa de direito privado que, contrariamente ao indicado pelo Requerente na p.i., sempre teve sede e domicílio em Portugal e nunca manteve estabelecimento comercial ou actividade no Brasil, tendo este agido em fraude à lei e de má-fé para atribuir competência aos tribunais do Brasil com referência a uma relação laboral que nunca existiu (cfr. alínea c) do artigo 980º do CPC);


- a Requerida não foi citada no processo que está na origem da decisão revidenda (cfr. doc. datado de 28.05.2008, declaração de nulidade por sentença de 03/11/2008, confirmada por acórdão de 20/04/2009, tudo constante de fls. 151, 159, 161 e 176 a 179 daqueles autos), estando a citação por carta rogatória adstrita às exigências da legislação portuguesa (cfr. alínea d) do artigo 980º do CPC);


- a sentença em apreço é nula porque não identifica os factos que considerou provados, nem procede à sua análise crítica, impossibilitando a Requerida de ficar ciente de quais foram os factos confessados e dados como provados;


- se, pelas razões expendidas, ocorre situação de revelia da Ré e a sentença revidenda é nula, o seu reconhecimento conduz a resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do estado Português (cfr. al.ª f) do artigo 980º do CPC);


- é aplicável ao caso o disposto no artigo 983º, n.º 2 do CPC que prevê como fundamento da impugnação do pedido de revisão de sentença estrangeira que o resultado da acção tivesse sido mais favorável à Requerida se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português “…quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflito da lei portuguesa.”. Isto, na medida em que o princípio da nacionalidade (cfr. artigo 10º do CPT) rege a competência internacional dos juízos de trabalho portugueses e a factualidade referente à alegada cessação do contrato de trabalho não se enquadra na previsão do n.º 1 do artigo 98º-C do CPT, pelo que tem aplicação o processo declarativo comum regulado nos artigos 54º e seguintes do CPT, cujo prazo de prescrição é de apenas um ano (cfr. artigo 337º, n.º 1 do Código do Trabalho) e se mostrava esgotado à data da propositura da acção de 11 de Março de 2003;


- a p.i. do processo que deu origem à sentença revidenda é omissa nos factos essenciais para caracterizar a existência de uma relação laboral, pois não alegou como lhe era paga a retribuição, quais os objectos de trabalho utilizados, o local onde o Autor prestaria as suas funções, sob quais ordens e direcção trabalhava, nem juntou prova documental do contrato, da remuneração ou do horário de trabalho quando alguns dos factos são necessariamente demonstrados por documento pelo que nem a factualidade alegada podia ser toda considerada provada, nem era suficiente para permitir a procedência da acção.


C.


Respondeu o Requerente.


Contrapôs às excepções:


- da ineptidão da p.i., a circunstância da apontada desconformidade se dever a manifesto lapso, já reparado; e


- da falta de interesse em agir que a revisão da sentença se destina a produzir efeitos práticos necessários à satisfação dos créditos laborais pendentes de cumprimento pela Requerida.


Deu conta de que juntou aos autos as competentes certidões judiciais com aposição da apostila e expressa alusão ao trânsito em julgado da sentença (cfr. referências n.ºs 313690 e 313691 e página 639 da cópia autenticada do processo originário em PDF).


A relação laboral ocorreu em território brasileiro e a citação foi regulamente concretizada, através de carta rogatória internacional.


A validade das provas testemunhais e documentais com base nas quais o tribunal brasileiro reconheceu a relação laboral não pode ser questionada após trânsito em julgado da decisão.


O direito material e processual aplicável é o brasileiro, pelo que improcede a alegação de prescrição sob a lei portuguesa, sendo que foram cumpridos todos os prazos legais previstos no Código do Trabalho e no Código de Processo do Trabalho do Brasil.


Não existe flagrante incompatibilidade, impeditiva da revisão, entre o critério probatório seguido pelo tribunal brasileiro e os seguidos pelos tribunais portugueses.


D.


Facultado o exame do processo às partes para alegações, Requerente e Requerida reiteraram as posições expressas nos seus articulados, tendo o M.º P.º considerado que nada obsta à revisão da sentença em apreço porque:


- não assiste fundamento às alegadas excepções dilatórias de ineptidão da p.i. e falta de interesse em agir, assim como à alegada ausência da necessária documentação da sentença revidenda e do respectivo trânsito, conforme razões aventadas na resposta do Requerente;


- a relação material sobre a qual se debruça a sentença revidenda – questão laboral, emergente de contrato individual de trabalho - não figura entre as de exclusiva competência dos tribunais portugueses (cfr. artigos 63º do CPC);


- os autos documentam que a sociedade Requerida foi, em cumprimento de carta rogatória expedida dos autos onde veio a ser proferida a sentença de 26 de Março de 2010 cuja revisão vem peticionada, citada para os termos da acção no dia 13.11.2009, no Tribunal Judicial de Alcanena (fls. 250, segundo ficheiro de prova apresentado pela Requerente);


- a impossibilidade de ter ocorrido uma relação de trabalho subordinado entre o Requerente e a Requerida e a insuficiência dos factos indicados na sentença revidenda para julgar verificada essa relação laboral, não constituem circunstâncias aptas a preencher o conceito violação da ordem pública internacional do Estado Português para os termos do disposto na al.ª f), do art.º 980º, do CPC;


- não se verificam no caso os pressupostos cumulativos previstos pelo n.º 2 do artigo 983º do CPC, já que, de acordo com as normas de conflitos aplicáveis aos contratos de trabalho vigentes no ordenamento jurídico português (cfr. art.º 8º do Regulamento (CE) n.º 593/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008), o contrato é regulado pela lei do país em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato. De acordo com a sentença revidenda, este país é o Brasil.


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O tribunal é o competente em razão da matéria, da nacionalidade e da hierarquia.


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Da ineptidão da p.i.


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Vimos já que a Requerida invocou a ineptidão da p.i. por contraditória e ininteligível nos seus próprios termos.


Em causa estavam as contradições resultantes de:


- por um lado, aí se identificar o litígio como referente a “Ação Especial de Revisão e Confirmação de Sentença Estrangeira de Reclamação Trabalhista”, estribada na prolação de sentença por tribunal Brasileiro da respectiva jurisdição no processo n.º ...662, em virtude da cessação unilateral de contrato de trabalho pela Requerida, sem justa causa e sem aviso prévio (cfr. cabeçalho e artigos 3º a 5º da p.i.); e


- por outro lado, também alude a “Do Mérito da Revisão e Confirmação da sentença estrangeira do divórcio” e “[a] fotocopia do processo estrangeiro do divórcio litigioso, em anexo, cfr. doc n.º 3 foi devidamente certificada e apostilada de haia por cartório brasileiro competente. (…)” (cfr. ponto II e artigo 6º do mesmo articulado);


Apreciando:


Nos termos do disposto nos nºs. 1, 2 e 3, do art.º 186º, do Código de Processo Civil:


“1. É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.


2. Diz-se inepta a petição inicial:


a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;


b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;


c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.”


A ineptidão da petição inicial constitui excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e determina a absolvição da instância (cfr. artigos 576º e 577º, n.º 1, al . b), do CPC).


Reportando-nos ao caso vertente, constata-se que, tendo ocorrido na p.i. da presente demanda as contradições apontadas pela Requerida, foi proferido o despacho sob a referência Citius n.º 9460106, a 10.01.2025, convidando a Requerente a corrigir o que se afigurava serem lapsos manifestos e, em resposta (cfr. requerimento com a referência Citius n.º 313911 de 10.01.2025), o Requerente apresentou versão rectificada da p.i., substituindo as menções ao processo de divórcio pelas referências a processo em matéria laboral.


Deste modo, para além de se mostrarem já rectificadas pela versão corrigida da p.i. entretanto junta aos autos, resulta bem perceptível, quer a partir do teor da sentença revidenda junta com aquele articulado, quer a partir das demais passagens do articulado inicial, que a lide versa sobre sentença proferida em matéria laboral, no processo n.º ...662 da 4ª Vara do Trabalho de Maringá-PR, da Republica Federativa do Brasil e que as menções divergentes apontadas pela Requerida se deveram a lapsos evidentes, corrigíveis a todo o tempo.


Termos em que julgo improcedente a excepção de ineptidão da p.i., suscitada pela Requerida.


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O processo é o próprio e não enferma de outras nulidades que o invalidem na sua totalidade.


As partes dispõem de personalidade e de capacidade judiciárias, são as legítimas, encontrando-se a Requerente devidamente patrocinada.


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Do interesse em agir do Requerente


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Mais argumenta a Requerida com a falta de interesse em agir do Requerente por não ter indicado na p.i. o fundamento para peticionar a revisão, ónus que sobre si impende.


Na lição de Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, Coimbra, 1985, págs. 179 e ss.), a necessidade do autor lançar mão do processo judicial ou de fazer prosseguir a acção deve ser …justificada, razoável, fundada (…).


O interesse em agir vem sendo tratado na jurisprudência como verdadeiro pressuposto processual, excepção dilatória inominada determinante da absolvição da instância nos termos previstos pelos artigos 576º, n.º 2 e 577º, ambos do CPC (neste sentido, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05.02.2013, relatado pelo Juiz Conselheiro Moreira Alves no processo 684/10.1YXLSB.L1.S1, de 29.06.2017, relatado pelo Juiz Conselheiro Salazar Casanova no processo 5043/16.0T8STB.S1 e de 19.12.2018, relatado pelo Juiz Conselheiro Oliveira Abreu no processo 742/16.9T8PFR.P1.S1, todos in www.dgsi.pt ).


Este pressuposto processual da parte activa da lide tem como objectivo evitar acções desnecessárias, pois se a lei proíbe expressamente a prática de actos inúteis (princípio da limitação dos actos constante do art.º 130º do CPC), por maioria de razão terá de proibir acções inúteis (assim, Francisco Ferreira de Almeida, in “Direito Processual Civil”, I, Almedina, 2010, pág. 447).


O interesse em agir consiste na verificação da necessidade ou utilidade da acção tal como configurada pelo Autor, “…a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção.” (Abrantes Geraldes in “Temas da Reforma do Processo Civil”, Almedina, 1997, pág. 229).


Ocorrerá, sempre que o demandante tenha necessidade de intervenção judicial para reconhecimento da sua pretensão, tal como a configura no exercício da sua liberdade de conformação da acção, e que a intervenção judicial que pede seja apta a proporcionar-lhe tal utilidade (neste sentido, v. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.98.2019, relatado pela Juíza Desembargadora Ana Azeredo Coelho no processo n.º 1712/17.5T8BRR-B.L1-6, in www.dgsi.pt).


Tendo estas considerações presentes, vejamos agora se a presente acção, tal como vem configurada pelo Autor, se mostra necessária e útil.


O Requerente informa na petição inicial que a revisão da sentença estrangeira tem em vista a produção dos “…seus efeitos em Portugal, para fins de cumprimento do art. 978.º do CPC.”


Donde, é declarado o objectivo do Requerente fazer valer em Portugal, país no qual a Requerida tem a sua sede, o direito de crédito que lhe foi reconhecido por sentença proferida pelo Poder Judicial da República Federativa do Brasil, para o que se mostra necessária a propositura da presente acção, sem a qual a decisão proferida noutro estado soberano não tem eficácia para, por exemplo, permitir o seu uso como título executivo nos nossos tribunais, tudo conforme determina o n.º 1 do artigo 978º do CPC.


Está, assim, evidenciado na p.i. o interesse em agir do Requerente.


Termos em que julgo improcedente a excepção da falta de interesse em agir do Requerente, arguida pela Requerida.


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Inexistem outras exceções dilatórias, nulidades ou quaisquer questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.


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Questões a decidir


i. Se estão reunidos os pressupostos previstos nas alíneas a), b), c) e) e f) do artigo 980º do CPC. Nomeadamente:


- os documentos juntos pelo Requerente cumprem os requisitos da alínea a);


- a sentença revidenda transitou em julgado como imposto pela alínea b);


- o litígio versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses, tendo a competência do tribunal estrangeiro sido provocada em fraude à lei, contrariando a alínea c);


- foi omitida a citação da Requerida no processo que está na origem da decisão revidenda, contrariando a alínea e);


- a decisão da sentença revidenda é incompatível com os princípios da ordem pública internacional do estado Português, contrariando alínea f).


ii. Se, em caso de resposta afirmativa à questão precedente, é aplicável ao caso o disposto no artigo 983º, n.º 2 do CPC que prevê como fundamento da impugnação do pedido de revisão de sentença estrangeira que o resultado da acção tivesse sido mais favorável à Requerida se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português “…quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflito da lei portuguesa.”.


iii. Se, em caso de resposta afirmativa à questão precedente, o prazo de prescrição do direito do Requerente seria de apenas um ano e, consequentemente, a decisão do litígio teria sido mais favorável à Requerida se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português.


iv. Se é relevante a alegação de que a p.i. do processo que deu origem à sentença revidenda é omissa nos factos essenciais para caracterizar a existência de uma relação laboral.


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II. FUNDAMENTAÇÃO


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A. De facto


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Factos provados


1. O Requerente propôs contra a Requerida o processo n.º ...662 que correu termos na 4.ª Vara do Trabalho da Comarca de Maringá, Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, do Poder Judiciário do Estado do Paraná, República Federativa do Brasil (cfr. fls. 1 da certidão em PDF junta com a p.i.).


2. No âmbito do processo mencionado no facto provado anterior:


- a Requerida foi, em cumprimento de carta rogatória expedida dos mesmos autos, citada para os termos da acção no dia 13.11.2009, no Tribunal Judicial de Alcanena, informada do dia e hora e local de realização da audiência de julgamento, da possibilidade de apresentar a sua resposta e da cominação de que o seu não comparecimento importaria em revelia e confissão quanto à matéria de facto (cfr. certidão de citação constante de fls. 250 do processo originário, fls. 67 da certidão em PDF junta sob a referência Citius 313690 de 07.01.2025);


- foi proferida e publicada no dia 26.03.2010, transitada em julgado, sentença condenatória da aqui Requerida a, entre outras coisas, pagar ao Requerente os valores, a liquidar em execução de sentença, correspondentes a “1) aviso prévio; 2) férias, com o terço constitucional; 3) 13.ºs salários; 4) horas extras e reflexos; 5) indenização do seguro-desemprego; e 6) FGTS (8%), com a multa de 40%.”, em acção trabalhista, intentada pelo Requerente contra a Requerida, na 4.ª Vara do Trabalho da Comarca de Maringá, Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, do Poder Judicial do Estado do Paraná, República Federativa do Brasil (cfr. fls. 244 a 248 do processo originário, fls. 55 a 63 da certidão em PDF junta sob a referência Citius 313690 de 07.01.2025).


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Motivação da decisão da matéria de facto


Os factos provados resultam do teor dos documentos autênticos juntos aos autos, neles, respectivamente, identificados (artigos 363º, n.º 1, 365º, n.º 1 e 371º, n.º 1, todos do Código Civil).


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B. De direito


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De acordo com o disposto no art.º 978º do CPC:


“1. Sem prejuízo do que se se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.


2. Não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processos pendente nos tribunais portugueses, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa.”


A razão de ser da norma em apreço, é a soberania inerente ao exercício do poder judicial de cada Estado, de modo que as decisões proferidas pelos tribunais de um Estado soberano só produzem efeitos noutro, se este o aceitar.


Esta aceitação pode resultar do direito internacional e europeu, através de tratados, convenções, regulamentos da União Europeia, ou de legislação especial, entre outros compromissos a que Portugal esteja vinculado e que produzam um reconhecimento automático, na ordem jurídica nacional, dos efeitos de decisões judiciais de outros Estados. 1 2


Caso a sentença proferida por outro Estado não esteja abrangida por tais normas, a sua produção de efeitos em Portugal está dependente da prévia revisão por um tribunal português, destinada a reconhecer-lhe, entre outros, o efeito de caso julgado e o efeito de título executivo se a decisão revidenda os tiver formado no país de origem. 3


Em tais casos, realiza-se o processo de revisão cuja tramitação está regulada nos artigos 979º e 981º e ss. do CPC e tem como requisitos necessários para a confirmação, os previstos no artigo 980º do mesmo diploma legal, com o seguinte teor:


“Para que a sentença seja confirmada, é necessário:


a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença, nem sobre a inteligência da decisão;


b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;


c) Que provenha do Tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos Tribunais portugueses;


d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a Tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;


e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país do Tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;


f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português.”


De tais requisitos, e segundo o art.º 984.º do C.P.C., apenas os das alíneas a) e f) são de conhecimento oficioso, sem prejuízo do disposto na parte final da norma.


Da interpretação da norma em apreço resulta, como salientam ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES de SOUSA, que “[o] sistema português de revisão de sentenças estrangeiras visa o reconhecimento meramente formal, o que significa que os tribunais competentes, em princípio, se limitam a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não interferindo no fundo ou mérito da causa. Este é um processo especial de simples apreciação cujo objetivo é o de verificar se a sentença estrangeira está em condições de produzir em Portugal os mesmos efeitos que lhe são atribuídos no sistema de origem, condicionando-se a produção desses efeitos à observância dos requisitos enunciados no art. 980º.”. 4


Por isso, não consiste numa reapreciação dos fundamentos da questão decidida, restringindo-se à verificação da regularidade formal através do cumprimento das condições previstas no artigo 980º do CPC. 5


Coerentemente, o artigo 983º do CPC prevê que os fundamentos da impugnação do pedido de revisão e confirmação consistem na falta de algum(ns) daqueles requisitos e, para além destes, apenas consente a verificação de algum dos que também permitem o recurso de revisão de decisão nacional e, quando se trate de sentença proferida contra pessoa singular ou coletiva de nacionalidade portuguesa, com o fundamento de que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português.


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Passemos agora à ponderação do preenchimento pela sentença revidenda, dos supra elencados pressupostos descritos nas alíneas do artigo 980º do CPC.


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“a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença, nem sobre a inteligência da decisão;


b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida; (…)”.


Considera a Requerida que para além da decisão proferida não ter transitado em julgado, o documento junto pelo Requerente com petição inicial é constituído por fotocópias sem valor probatório, não se tratando de certidão emitida por autoridade competente no país de origem, nem estando legalizado nos termos do artigo 440º do CPC.


Todavia, compulsados os documentos juntos com a petição inicial e sob as referências Citius n.ºs 313690 e 313691, ambas de 07.01.2025 constata-se que, contrariamente ao esgrimido pela Requerida:


- os documentos judiciais do processo brasileiro foram certificados pelo Director de Secretaria da 4ª Vara do Trabalho de Maringá, o Sr. BB, cuja assinatura e cargo são públicos;


- o conjunto de documentos foi legalizado para uso internacional através da Apostila de Haia, emitida em 30 de Outubro de 2024, sob o n.º 2675588-24, cuja autenticidade pode ser verificada no portal oficial https://apostil.cnj.jus.br/pt/validation, através da introdução do código n.º ... e do CRC n.º ..., constantes no selo da Apostila de Haia (cfr. fls. 536 e 537 do PDF da certidão junta sob a referência Citius 313691 no dia 07.01.2025); e


- consta expressamente da cópia autenticada do processo em PDF, do documento apostilado junto pelo Requerente que a sentença revidenda transitou em julgado a 1 de Outubro de 2010.


Assim, constata-se que a sentença e o respectivo trânsito em julgado se mostram não apenas documentados em certidão pública como também se encontra devidamente apostilada.


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“c) Que provenha do Tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos Tribunais portugueses;”


Sustenta a Requerida que o litígio em apreço incide sobre matéria da competência dos Tribunais de Trabalho portugueses porque a Requerida é uma pessoa coletiva de nacionalidade portuguesa de direito privado que, contrariamente ao indicado pelo Requerente na p.i., sempre teve sede e domicílio em Portugal e nunca manteve estabelecimento comercial ou actividade no Brasil, tendo este agido em fraude à lei e de má-fé para atribuir competência aos tribunais do Brasil com referência a uma relação laboral que nunca existiu.


São dois os pressupostos negativos cumulativos previstos pela alínea em apreço:


- que a competência do tribunal estrangeiro (no caso do Tribunal do Trabalho brasileiro) tenha sido provocada em fraude; e


- que a lide verse sobre matéria da exclusiva competência dos Tribunais portugueses.


Começando pelo segundo, importa notar que “matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses” é aquela que a estes se encontra reservada em exclusividade pela nossa ordem jurídica, nesta compreendido o direito que de acordo com o tratado da União Europeia vigora internamente.


Trata-se das matérias que não admitem pacto de jurisdição de que resulte a privação da competência ou que obste a que sentença proferida por tribunal de outro Estado seja revista e confirmada em Portugal.


A sentença revidenda decidiu um litígio em matéria laboral, emergente da celebração de contrato individual de trabalho.


Sucede que nem o artigo 63º do Cód. Proc. Civil que tem por escopo identificar as matérias da competência exclusiva dos Tribunais portugueses, nem o Código de Processo do Trabalho, nem ainda outros diplomas legais vigentes na nossa ordem jurídica, contêm regra que confira competência exclusiva aos tribunais portugueses em matéria do foro laboral e, mais concretamente, relacionada com a validade e/ou extinção do contrato individual de trabalho.


Não havendo, na matéria versada pela sentença revidenda, a competência exclusiva dos Tribunais portugueses reclamada pela alínea c) do artigo 980 º do CPC, fenece o argumento aventado pela Requerida com fundamento nesta norma.


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Relativamente à alínea d) do artigo 980º em apreço, embora não tenha sido invocada na oposição deduzida pela Requerida no presente processo, dir-se-á que não consta dos autos qualquer menção à propositura ou pendência, anterior ou actual, de processo judicial intentado em Tribunal português que tenha coincidência, ainda que meramente parcial, de sujeitos, pedidos ou de causa de pedir com a acção em matéria laboral que está na origem da sentença revidenda.


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“e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país do Tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;”


Mantém a Requerida que não foi citada no processo que está na origem da decisão revidenda (cfr. doc. datado de 28.05.2008, declaração de nulidade por sentença de 03/11/2008, confirmada por acórdão de 20/04/2009, tudo constante de fls. 151, 159, 161 e 176 a 179 daqueles autos), estando a citação por carta rogatória adstrita às exigências da legislação portuguesa (cfr. alínea d) do artigo 980º do CPC).


Sem razão, porém.


Isto porque se encontra documentado nos autos que a sociedade Requerida foi, em cumprimento de carta rogatória expedida dos autos onde veio a ser proferida a sentença de 26 de Março de 2010 cuja revisão vem peticionada, citada para os termos da acção no dia 13.11.2009, no Tribunal Judicial de Alcanena (cfr. certidão constante de fls. 250 do processo originário, fls. 67 do PDF junto sob a referência Citius 313690 de 07.01.2025).


Mais: de acordo com tal citação, foi a Requerida advertida da data da audiência de julgamento, do local onde decorreria, da possibilidade de apresentar a sua resposta e da cominação de que o seu não comparecimento importaria em revelia e confissão quanto à matéria de facto, cumprindo-se os deveres de informação e de concessão do contraditório.


Termos em que tampouco assiste fundamento à alegada omissão de citação da Requerida.


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f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português.”


Na sua oposição, argumenta a Requerida a propósito da alínea em apreço que, ocorrendo revelia da Ré e sendo a sentença revidenda nula porque não identifica os factos que considerou provados, nem procede à sua análise crítica, impossibilitando a Requerida de ficar ciente de quais foram os factos confessados e dados como provados, o seu reconhecimento conduz a resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do estado Português.


Na apreciação da questão suscitada, convém ter presente o enquadramento que a jurisprudência vem dando ao conceito em apreço.


Retomando o comentário de ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e FILIPE PIRES DE SOUSA, dão-nos, na anotação 8 ao artigo 980º, conta de que a ordem pública internacional «"exprime um conjunto de princípios nacionais que vedam a aceitação interna de decisões estrangeiras, por contrariedade a valores muito significativos” e profundos do direito interno (art. 22º do CC; cf. Menezes Cordeiro, Tratado da Arbitragem, pp. 445-446).» (sublinhado meu). 6


No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.09.2017, relatado pelo Juiz Conselheiro Alexandre Reis no processo n.º 1008/14.4YRLSB.L1.S1, decidiu-se que é “latamente consensual a ideia de que conteúdo da cláusula geral da ordem pública internacional é enformado pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que, pela sua relevância, integram a Constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo os que tutelam direitos fundamentais, que não só enformam como também conformam a ordem pública internacional do Estado, o mesmo sucedendo com os princípios fundamentais do Direito da União Europeia e ainda com os princípios fundamentais nos quais se incluem os da boa-fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, da proibição de indemnizações punitivas em matéria cível e os princípios e regras basilares do direito da concorrência, tanto de fonte comunitária, quanto de fonte nacional.” (sublinhado meu). 7


Também o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.01.2014, relatado pelo Juiz Desembargador Luís Correia de Mendonça no processo n.º 1036/12.4YRLSB-8, nos dá conta de que “[a] ordem pública internacional do Estado português só é fundamento de recusa quando o reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com aquela ordem” e “[o]s princípios e regras cujo afastamento ou divergência fundam a recusa de revisão, sendo limite ao reconhecimento, têm de ser graves e essenciais, não bastando que se revistam de imperatividade na ordem jurídica interna, cabendo ao juiz papel decisivo no preenchimento concreto do princípio-limite da ordem pública.” (sublinhados meus). 8


Descendo ao caso, necessário se mostra recordar que o primeiro argumento para a alegada nulidade da sentença proferida – resultante de alegada omissão a citação da Requerida – se não verifica, nos termos desenvolvidos no precedente tema da presente decisão sumária.


Resta-nos, assim, a alegada nulidade decorrente de não se mostrarem devidamente identificados os factos que a sentença considerou provados, nem ter sido realizada a respectiva análise crítica.


O dever de fazer constar da sentença os factos provados e de proceder à análise crítica das provas, decorre do n.º 4 do artigo 607º do CPC que rege sobre a elaboração da sentença.


Sucede, porém que a sentença revidenda foi proferida em acção não contestada pela Requerida.


Estaríamos, assim, de acordo com as regras processuais aplicáveis pela nossa ordem jurídica perante uma situação de confissão dos factos articulados pelo demandante em face da revelia operante da demandada, ao abrigo do disposto no art.º 567.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.


Como referem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e FILIPE PIRES DE SOUSA, “[a] situação de revelia gera o encurtamento da tramitação. Confessados os factos por ausência de contestação, não há mais articulados. Além disso, ocorre a supressão de todas as etapas ou atos processuais cuja existência radica na controvérsia acerca dos factos da causa e à necessidade de produzir prova quanto aos mesmos. Assim sendo, assumida nos autos a situação de revelia, o processo passa imediatamente para um momento de alegações escritas sobre a matéria de direito (única vertente ainda em aberto, pois a matéria de facto está assente).” 9 (sublinhados nossos).


Ao juiz incumbirá apenas julgar a causa “conforme for de direito”, procedendo ao respetivo enquadramento jurídico (cfr. art.º 5º, n.º 3, do CPC) com as seguintes possibilidades: julgar a acção materialmente procedente; abster-se de conhecer do mérito da causa e absolver o réu da instância com fundamento em questões processuais (cfr. art.º 608º, n.º 1 do CPC); julgar a acção parcialmente procedente; ou julgar a acção improcedente.


Deste modo, o elenco dos factos provados da sentença seria, no caso concreto e de acordo com as regras aplicáveis na nossa ordem jurídica, meramente enunciador, não constituindo uma decisão do juiz quanto aos que estão, ou não, provados.


E, justamente por isso, o legislador consente, no n.º 3 do artigo 567º do CPC, a possibilidade da sentença proferida em processo onde ocorreu revelia operante, se limitar “…à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado”, por mera remissão para os fundamentos contidos na petição inicial, desde que esta contenha a exposição dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção.


Donde decorre que, em face das incidências processuais constatadas nos autos, a nossa ordem jurídica não imporia que a sentença incluísse descrição expressa dos factos provados ou procedesse à análise crítica das provas, o que afasta qualquer flagrante contradição entre a sentença revidenda e as regras vigentes em Portugal.


Mas ainda que assim não fosse, sempre estaríamos perante uma divergência de índole formal e processual referente à elaboração e ao conteúdo da sentença que não beliscaria os princípios e normas fundamentais da ordem jurídica portuguesa, designadamente a materialidade da Constituição da República Portuguesa como a tutela dos direitos fundamentais, ou do Direito da União Europeia e ainda os da boa-fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, da proibição de indemnizações punitivas em matéria cível.


A mesma conclusão se impõe relativamente a uma sentença proferida em tribunal estrageiro com deficiente aplicação do direito material ou probatório interno desse país quanto à alegação e à prova dos pressupostos da relação laboral entre o trabalhador e a entidade empregadora pois, não atingindo os princípios e normas fundamentais da ordem jurídica portuguesa, deve ser contrariada de acordo com as regras vigentes nos órgãos jurisdicionais próprios do estado que a proferiu.


Deste modo, também carece de sustentáculo a invocada violação da ordem pública internacional do Estado Português pela sentença revidenda.


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Da aplicabilidade do disposto no artigo 983º, n.º 2 do CPC


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Passando agora à seguinte questão a decidir, vejamos se é aplicável ao caso o disposto no artigo 983º, n.º 2 do CPC que prevê como fundamento da impugnação do pedido de revisão de sentença estrangeira que o resultado da acção tivesse sido mais favorável à Requerida se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português “…quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflito da lei portuguesa.”.


Considera a Requerida que sim, na medida em que o princípio da nacionalidade (cfr. artigo 10º do CPT) rege a competência internacional dos juízos de trabalho portugueses e a factualidade referente à alegada cessação do contrato de trabalho não se enquadra na previsão do n.º 1 do artigo 98º-C do CPT, pelo que tem aplicação o processo declarativo comum regulado nos artigos 54º e seguintes do CPT, cujo prazo de prescrição é de apenas um ano (cfr. artigo 337º, n.º 1 do Código do Trabalho) e se mostrava esgotado à data da propositura da acção de 11 de Março de 2003.


Com o devido respeito, não será assim.


Na verdade, seguindo uma vez mais o comentário de ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e FILIPE PIRES DE SOUSA, a aplicação do “privilégio da nacionalidade” consagrado na norma em apreço, está dependente da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:


- a sentença revidenda ter sido proferida contra pessoa de nacionalidade portuguesa;


- o direito material português ser competente perante o direito de conflitos português; e


- o resultado da ação teria sido mais favorável à pessoa de nacionalidade portuguesa se o tribunal tivesse aplicado o direito material português.


«No que respeita ao requisito referido em segundo lugar, integram o direito de conflitos “todas as normas de direito internacional privado, com inclusão das normas sobre devolução e normas de conexão ad hoc ligadas ao direito material especial e as normas “autolimitadas” do direito comum” (Lima Pinheiro, ob. cit., p. 371).» 10


Deste modo para além da nacionalidade portuguesa da Requerida e do eventual resultado mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito português, é mister que ao caso devesse aplicado o direito material português à luz das regras de conflitos vigentes na nossa ordem jurídica como decorre da passagem final do n.º 2 do artigo 983º do CPC em análise.


E a verdade é que de acordo com as normas de conflitos aplicáveis aos contratos de trabalho vigentes no ordenamento jurídico português (cfr. art.º 8º do Regulamento (CE) n.º 593/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008), o contrato de trabalho é regulado pela lei do país em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato.


Ora, não só o país onde o aqui Requerente prestou o seu trabalho é, de acordo com a sentença revidenda, o Brasil, como ainda a Requerida não sustenta, em parte alguma da presente acção, que o Requerente prestou para si trabalho em território português. O que bem se compreende, na medida em que a Requerida nega, na presente demanda, a manutenção de qualquer relação laboral com o Requerente.


Deste modo, não se mostra preenchido um pressuposto de facto essencial de aplicação do direito material português ao litígio em apreço – a prestação habitual do trabalho pelo Requerente à Requerida em território nacional português.


Termos em que também o argumento fundado no “privilégio da nacionalidade”, da oposição da Requerida à revisão da sentença proferida pelo tribunal estrangeiro, se encontra desprovido de fundamento bastante.


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Da impossibilidade de ter ocorrido uma relação de trabalho subordinado entre o Requerente e a Requerida


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Mais sustenta a Requerida a impossibilidade de ter ocorrido relação de trabalho subordinado prestado pelo Requerente, já que a factualidade constante da p.i. do processo que deu origem à sentença revidenda é omissa de factos essenciais para caracterizar a existência de uma relação laboral: como lhe era paga a retribuição, quais os objectos de trabalho utilizados, o local onde prestaria as suas funções, sob quais ordens e direcção trabalhava. Isto para além de se mostrar necessária a prova por documentos de alguns dos factos alegados.


Vimos já que ao caso não é aplicável o direito material português.


A caracterização da relação laboral entre o Requerente e a Requerida é, assim, feita de acordo com a lei substantiva interna e com a jurisprudência dos tribunais da República Federativa do Brasil. Do mesmo passo, é de acordo com as regras substantivas e adjectivas em matéria probatória vigentes naquele país soberano que pode ser aferida a bondade da sentença revidenda na prova dos factos alegados na p.i..


Recordando o momento inicial da exposição jurídica da presente decisão, o processo especial de revisão de sentença estrangeira não é uma instância de recurso da sentença proferida em país estrangeiro.


E ainda que por absurdo, o fosse, sempre haveria prazos a respeitar pelas partes para impugnar a decisão proferida junto da instância de recurso, sob pena da sentença se tornar vinculativa com o respectivo trânsito em julgado.


Assente que está a citação da Requerida naquele processo laboral, esta dispôs da prerrogativa de contestar a demanda, sustentando os pontos de vista que tivesse relativamente à inexistência de uma relação laboral, nomeadamente por insuficiência da factualidade alegada ou das provas apresentadas para o efeito.


Incumbia também sobre a Requerida o ónus de reagir junto das competentes instâncias do poder judicial do Estado brasileiro contra uma sentença que considerasse mal fundamentada, de facto ou de direito.


Não o tendo feito na sede e nos momentos processuais próprios, não pode, através do processo de revisão de sentença estrangeira previsto na ordem jurídica portuguesa com o escopo declarado de obter um reconhecimento meramente formal - em que os tribunais competentes, com a única excepção consagrada no n.º 2 do artigo 983º do CPC, se limitam a verificar se a sentença estrangeira satisfaz os requisitos enunciados no art.º 980º do CPC sem interferir no fundo ou no mérito da causa -, pretender agora questionar os fundamentos probatórios e substantivos da decisão revidenda.


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Aqui chegados, não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade dos documentos apresentados, o trânsito em julgado, a citação da Requerida com vista ao exercício do contraditório e a compatibilidade da sentença revidenda com os princípios vigentes na ordem pública internacional do Estado português.


Por outro lado, a sentença não versa matéria da exclusiva competência dos Tribunais portugueses, não consta do processo qualquer elemento donde se possa retirar a existência de uma situação de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a um Tribunal português, nem que não tenham sido cumpridos os princípios do contraditório e da igualdade das partes.


Mostrando-se, assim, preenchidos os requisitos previstos nas alíneas a) a f) do art.º 980º supracitado, conclui-se pela verificação de todos os pressupostos necessários para que possa ser confirmada e ter eficácia em Portugal, a sentença proferida no processo n.º ...662, da 4.ª Vara do Trabalho da Comarca de Maringá, Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, do Poder Judicial do Estado do Paraná, República Federativa do Brasil.


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Custas


As custas devem ser suportadas pela Requerida que deduziu oposição e foi vencida (art.º 535º, n.ºs 1 “a contrario” e 2, al.ª a), do CPC).


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***


III. DECISÃO


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Termos em que, decide-se julgar procedente a presente acção especial de revisão de sentença estrangeira e, em consequência, reconhecer e confirmar a sentença proferida a 26.03.2010, no processo n.º ...662, da 4.ª Vara do Trabalho da Comarca de Maringá, Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, do Poder Judicial do Estado do Paraná, República Federativa do Brasil.


Custas a cargo a cargo da Requerida.


Fixo em € 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo) o valor da causa (cfr. artigos 297º, n.º 1 “a contrario”, 299º, n.º 4 e 306º, n.º 2, todos do CPC).


Registe e notifique.


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Évora, 12 de Setembro de 2025


O Juiz Desembargador,


Ricardo Miranda Peixoto

1. O que sucede, por exemplo, com o art.º 30º, n.º 1 do Regulamento (EU) 2019/1111 do Conselho, de 25 de Junho 2019, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional de crianças, entre Estados-membros da União Europeia.↩︎

2. São diversas as Convenções multilaterias e bilaterais de direito internacional, celebradas entre a República Portuguesa e outros Estados, assim como o direito comunitário, em matéria de reconhecimento recíproco de decisões judiciais, remetendo-se aqui para o elenco apresentado por Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa, nas anotações 2, 3 e 5 ao artigo 978º, in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume II, Almedina, 2ª edição, 2024, págs. 443 e 444.↩︎

3. Também a Lei n.º 63/2011 de 14 de Dezembro que aprova a Lei da Arbitragem Voluntária prevê, nos seus artigos 55º e ss. a necessidade de reconhecimento pelo tribunal estadual português competente, das sentenças arbitrais estrangeiras, bem como o respectivo procedimento. Nos seguintes termos: “Sem prejuízo do que é imperativamente preceituado pela Convenção de Nova Iorque de 1958, sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras, bem como por outros tratados ou convenções que vinculem o Estado português, as sentenças proferidas em arbitragens localizadas no estrangeiro só têm eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, se forem reconhecidas pelo tribunal estadual português competente, nos termos do disposto no presente capítulo desta lei.”↩︎

4. In Op. Cit., nota 7 ao artigo 978º, pág. 445.↩︎

5. Sobre o que seve ser entendido por “decisão” para efeito de aplicação do processo de revisão em apreço, tendo em consideração a multiplicidade de formas para tutela dos direitos previstas noutros ordenamentos jurídicos, Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa, na anotação 8 ao artigo 978º, referem que “[n]os diversos preceitos que regulam este processo especial de revisão, na identificação do seu objecto, tanto se utiliza o termo "decisão" como "sentença". Essa distinção evidencia, desde logo, que o âmbito objetivo do processo especial não se limita exclusivamente às típicas "sentenças" emanadas de tribunais, nos moldes consagrados no nosso ordenamento jurídico. Com efeito, não pode ignorar-se que outros ordenamentos podem prever formas diversas de resolução de litígios ou de tutela de interesses juridicamente relevantes (STJ 29-3-11, 214/09).”. In “Op. Cit.”, pág. 445.↩︎

6. In Op. Cit., Vol. II, 2ª edição, pág. 451º.↩︎

7. Disponível na ligação:

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/894fdeda111f211d802581a70050acc6?OpenDocument↩︎

8. Disponível na ligação:

https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/c2769dfe89cf5e8a80257c82003b78cb?OpenDocument↩︎

9. In Op. Cit., volume I, Almedina, 3ª edição, anotação 7 ao artigo 567º, pág. 681.↩︎

10. Comentário 2 ao artigo 983º, in Op. Cit., Vol. II, 2ª edição, pág. 455.↩︎