Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
I – Só há nulidade da decisão por falta de fundamentação, se inexistir qualquer fundamentação sobre os factos e/ou sobre o direito, já não quando essa fundamentação é deficiente, medíocre ou errónea.
II – A insuficiente fundamentação da decisão proferida, poderá vir a determinar, (i) se se reportar aos factos, uma eventual remessa do processo à 1.ª instância nos termos da al. d) do n.º 2 do art. 662.º do mesmo Diploma Legal ou uma eventual alteração dos factos em sede de apreciação da matéria de facto; e (ii) se se reportar ao direito, à revogação da decisão proferida.
III – O art. 70.º, n.º 1, da LAT, permite a apresentação de incidente automático de revisão da incapacidade em razão da idade, visto que o legislador equiparou a idade a partir dos 50 anos a uma situação de agravamento das capacidades profissionais ou de ganho do trabalhador sinistrado.
IV – No caso de um incidente automático de revisão da incapacidade em razão da idade, não se realiza, por inútil, a perícia médica prevista no art. 145.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho.
V – No incidente de revisão da incapacidade estamos sempre perante um pedido de alteração da pensão anteriormente fixada e não perante uma nova pensão, mesmo quando a pensão anteriormente atribuída foi integralmente remível.
VI – A atribuição de uma compensação ao sinistrado em razão da idade não viola os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da justa reparação.
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora1
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Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
AA2 representado pelo Ministério Público, veio requerer a revisão automática da incapacidade, exclusivamente baseada na sua idade.
O incidente prosseguiu nos termos que constam do presente apenso e para o qual se remete.
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Em 12-06-2025 foi proferida decisão final, cuja parte decisória se transcreve:
Pelo exposto, o tribunal julga procedente o presente incidente de revisão e, em consequência, fixa em 4,5% a IPP de que o sinistrado AA se encontra portador por força do acidente de trabalho dos autos, com um agravamento de 1,5% e, por via disso, condena a ré “Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.” a pagar ao sinistrado o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 830,35 (oitocentos e trinta euros e trinta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o dia da apresentação do requerimento de revisão (06.05.2025) até integral pagamento.
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Custas do incidente pela ré, fixando-se o valor do incidente no montante correspondente ao capital de remição, cfr. artigo 120.º do CPT.
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Registe e notifique.
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Após trânsito, proceda-se ao cálculo do capital de remição.
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Inconformada com tal decisão, veio a Ré “Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.” interpor recurso de apelação, terminando com as seguintes conclusões:
1.ª A Decisão ora em recurso entendeu que, pelo simples facto de o sinistrado ter completado entretanto 50 anos de idade e apesar de comprovadamente não ter existido qualquer agravamento da sua incapacidade, em obediência ao Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº. 16/2024, de 17/12, impõe-se a atribuição do factor de bonificação de 1,5 previsto na al. a), do nº. 5, das Instruções Gerais da TNI.
2.ª Com o que a ora Apelante, nos termos do n.º 1 do art.º 77.º do CPT e das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil (“CPC”) (aplicável ex vi artigo 1.º, n.º 2, alínea a) do CPT), vê-se obrigada arguir a nulidade da referida Decisão com dois fundamentos:
a) Preterição da a verificação médico-legal, por exame pericial singular ou junta médica, da alegada alteração da desvalorização anteriormente atribuída, conforme impõe o art.º 70º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro.
b) Falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificaram a decisão nela contida, o que torna a decisão obscura e incompreensível porque procede à aplicação administrativa, “cega” e automática do factor de bonificação de 1.5 previsto na alínea a) do n.º 5 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, violando por isso o princípio constitucional a necessidade de fundamentação das decisões dos tribunais (vide art.º 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) e o o art.º 154.º, n.º 1 do CPC aplicável ex vi artigo 1.º n.º 2 alínea a) do CPT.
Entende a ora recorrente que o Tribunal a quo não cumpriu o silogismo judiciário, nem interpretou correctamente a lei aplicável ao caso concreto, carecendo a Decisão em recurso ser revogada. Senão veja-se:
3.ª No n.º 5, al) a) das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades encontra-se previsto um factor de bonificação de 1,5 em relação dois grupos de trabalhadores:
os que na sequência do acidente de trabalho ou de doença profissional não sejam reconvertíveis
ao posto de trabalho habitual e os trabalhadores com mais de 50 anos, sendo esta bonificação
aplicada no momento inicial da avaliação da incapacidade, ou seja, no momento da alta médica.
4.ª Apesar de estar em causa um factor de “correcção” a aplicar para a determinação
do montante da pensão a atribuir aos trabalhadores/lesados, a verdade é que esta bonificação
não se trata de uma questão independente ou autónoma do processo de avaliação da
incapacidade, encontrando-se antes profundamente conexionada com o mesmo, vindo a influir, de modo indelével, no grau de incapacidade que venha a ser fixado. Grau de incapacidade e coeficiente de bonificação constituem, com efeito, realidades indissociáveis.
5.ª Poderá e deverá questionar-se a opção do legislador ter equiparado na Tabela Nacional de Incapacidades duas categorias de trabalhadores mencionadas no seu n.º 5, al) a), uma vez que a situação dos trabalhadores não reconvertíveis ao seu posto de trabalho habitual é substancialmente diversa, e mais grave, que a dos trabalhadores com idade igual ou superior a cinquenta anos.
6.ª Uma tal equiparação, não justificada e desrazoável, destas duas categorias de trabalhadores/lesados pode fazer suscitar problemas de conformidade constitucional do n.º 5, al) a) da Tabela Nacional de Incapacidades, por implicar uma violação do princípio da igualdade de tratamento, o que configura uma inconstitucionalidade por acção. Na verdade, o legislador deveria ter cumprido a obrigação de definir um tratamento diferenciado para estas duas categorias, uma vez que a posição dos trabalhadores/sinistrados se revela substancialmente distinta.
7.ª A problemática da inconstitucionalidade desta norma conferente de um coeficiente de bonificação de 1,5, decorrente da violação do princípio da igualdade, não se prende apenas com a questão da opção legislativa, em si mesma, mas relaciona-se ainda com o momento da respectiva aplicabilidade, ou seja, a jusante, uma vez que se verifica uma impossibilidade de aplicação do factor de bonificação aos trabalhadores/lesados não reconvertíveis ao posto de trabalho habitual, uma vez que o factor de bonificação apenas pode ser aplicado até ao limite da unidade e na hipótese dos trabalhadores não reconvertíveis à sua profissão habitual atribui-se sempre um coeficiente de incapacidade de 100%, ficando assim, a unidade atingida.
8.ª Em virtude desta impossibilidade de aplicação do factor de correcção de 1,5 aos trabalhadores sinistrados não reconvertíveis ao seu posto de trabalho habitual, os sinistrados que atinjam a idade de 50 anos acabam, numa grande esmagadora maioria das situações, por sair bem mais beneficiadas que aqueles outros, quando, na verdade, os trabalhadores sinistrados não reconvertíveis à sua profissão originária se encontram numa situação bem mais vulnerável.
9.ª De resto, um tratamento mais severo para este último grupo de trabalhadores sinistrados resulta ainda reforçado pela circunstância do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 22 de Maio de 2024 não defender, à semelhança de quanto sufraga relativamente aos trabalhadores sinistrados com 50 ou mais anos de idade, a possibilidade de aplicação automática do factor de bonificação de 1,5 nas hipóteses em que a não reconvertibilidade à profissão habitual venha a ocorrer em momento posterior ao da alta médica.
10.ª Para além das várias razões atrás expostas que acabam por determinar um tratamento mais favorável dos trabalhadores/sinistrados com 50 ou mais anos de idade em relação ao grupo dos trabalhadores/sinistrados não reconvertíveis ao seu posto de trabalho habitual, poder-se-á ainda invocar a circunstância dos sinistrados incluídos na primeira categoria, poderem continuar a exercer a sua profissão, e como tal, a conseguirem auferir uma remuneração. Todos estes factores contribuem, na verdade, para favorecer, de modo arbitrário e injustificado, a posição dos trabalhadores com 50 ou mais anos de idade.
11.ª Para além de quanto já concluímos, e como questão prévia, não podemos concordar, à semelhança de quanto se defende no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 22 de Maio de 2024, com a aplicação automática do coeficiente em função da idade, nem no momento da avaliação inicial da incapacidade, nem em momento subsequente quando os trabalhadores/lesados atinjam os 50 anos de idade.
12.ª Reportando-nos ao momento inicial de avaliação da incapacidade, cumpre referir que se trata de um processo de determinação do grau de incapacidade em que a própria legislação confere uma esfera de discricionariedade aos peritos, tal como se pode constatar do disposto nos art.º 21º da Lei nº 98/2009, bem como dos n.ºs 6 e 7 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades. Tais disposições permitem, na verdade, levantar dúvidas quanto à automaticidade da aplicação do coeficiente de 1,5 em função da idade. De resto, a defesa da avaliação da incapacidade de acordo com o modelo casuístico, cuja aplicação se encontra dependente da discricionariedade dos peritos médicos, em lugar de uma lógica puramente tabelar encontra respaldo nos mais autorizados estudos médico-legais.
13.ª Dando, no entanto, de barato, como premissa de raciocínio, que a aplicação do coeficiente de bonificação de 1,5 em função da idade se aplica, de modo automático, no momento inicial da avaliação da incapacidade, o mesmo não se pode, de modo algum, sustentar nas situações em que os trabalhadores/lesados venham a atingir os 50 anos em momento subsequente, tal como defende o Acórdão Uniformizador em análise.
14.ª Não se revela admissível, com efeito, sufragar que a aplicação automática do coeficiente de bonificação 1,5 em função da idade em momento posterior ao da alta médica encontra justificação numa igualdade de tratamento entre os trabalhadores/sinistrados que têm 50 anos no momento da avaliação inicial da incapacidade e os trabalhadores/sinistrados que apenas venham a atingir esta idade em momento subsequente. A realização de um tal confronto entre estas duas categorias de trabalhadores, para efeitos de escrutínio da norma atrás citada da Tabela Nacional de Incapacidades, à luz das exigências de igualdade, além de redutora, manifesta-se ainda altamente tributária de uma concepção meramente formal ou niveladora deste princípio constitucional e também desrespeitadora da lógica ou teleologia tabelar que o Acórdão uniformizador, de tão bom grado, acolheu.
15.ª Não se considere, porém, que a inadmissibilidade da aplicação automática do factor de bonificação, por força da idade, às situações em que o trabalhador sinistrado atinja os 50 anos em momento subsequente ao da avaliação inicial da incapacidade, conduza a um tratamento injusto e desigual deste núcleo de trabalhadores. Na verdade, na eventualidade de em relação a estes se vier a verificar um novo grau de incapacidade, não deixarão de, igualmente, beneficiarem da aplicação do coeficiente de bonificação de 1.5.
16.ª Tanto no momento da avaliação inicial da incapacidade, como em momento posterior a este, a aplicação do coeficiente de bonificação em função da idade anda sempre indissociavelmente ligado a um processo de determinação de incapacidade, razão pela qual relativamente à aplicação do coeficiente em momento posterior, na ausência de previsão no n.º 5, al) a) das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades de um qualquer processo especial de revisão automática, terá de se convocar, numa tal sede, o regime do art.º 70º, nº 1 da Lei nº 98/2009.
17.ª Apesar do n.º 5, al) a) das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades não prever, “expressis verbis”, um procedimento específico para a aplicabilidade do factor de correcção de 1,5, certo é que, de um modo inequívoco, o legislador quis aí deixar bem vincada a ideia da dependência da bonificação do apuramento de uma concreta situação de incapacidade. Ora, uma tal necessidade de determinação de um determinado grau de incapacidade, tanto ocorre no momento inicial da alta médica, quanto num momento subsequente. Desta feita, o único procedimento previsto na Lei nº 98/2009 para em momento posterior ao da avaliação inicial da incapacidade se efectuar uma nova apreciação é aquela que se encontra disciplinado no seu art.º 70º, nº 1, sendo precisamente esse que terá de ser convocado em relação a estas hipóteses.
18.ª Nos termos do n.º 1, do artº 70º, onde se encontra previsto o mecanismo de revisão da incapacidade, constituem pressupostos para aplicação de um tal expediente a existência de agravamento, recidiva ou recaída da lesão que originou a reparação dos danos por acidente de trabalho ou por doença profissional. Razão pela qual, não se registando um nexo causal entre o novo grau de incapacidade registado no âmbito do incidente de revisão e a recaída, recidiva ou agravamento da lesão, não será possível aplicar o coeficiente de incapacidade em função da idade, não se podendo assim admitir que a disciplina do art.º 70º n.º 1 da Lei nº 98/2009 seja compatível com a revisão automática da pensão de invalidez, por aplicação do coeficiente de bonificação em função da idade.
19.ª Defender, tal como sufraga o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 22 de Maio de 2024, a aplicação automática do coeficiente de bonificação de 1,5 por força da idade, conduz a uma indesejável e inadmissível cumulação de montantes indemnizatórios baseados precisamente no mesmo factor a idade. Com efeito, tanto o art.º 21º da Lei nº 98/2009, quanto os nºs 6 e 7 das Instruções Gerais da Tabela Nacional das Incapacidades atribuem, no âmbito do processo de avaliação das incapacidades relevância, à idade, razão pela qual as indemnizações atribuídas pelas Seguradoras podem revelar-se excessivas e provocarem uma situação de enriquecimento sem causa do trabalhador/lesado à custa da seguradora, o que vai manifestamente ao arrepio dos mais elementares princípios em matéria de obrigação de indemnizar, nomeadamente o da proibição da “compensatio do lucrum cum damni”.
20.ª Uma tal cumulação de montantes indemnizatórios com fundamento no mesmo factor ou causa; ou seja, a idade, ofende frontalmente as regras fundamentais em matéria indemnizatória, mormente o disposto nos art.ºs 562º, 566º, 568º e 494º do Código Civil. Cumpre salientar, nesta sede, que o nosso ordenamento jurídico não dá respaldo para o surgimento de indemnizações punitivas, em virtude do disposto no art.º 494º, matéria que encontra, de resto, paralelo nos art.º 128º da Lei do Contrato de Seguro. Razão pela qual, a orientação acolhida pelo Acórdão Uniformizador faz emergir obrigações de indemnizar a cargo das seguradoras que constituem verdadeiras penas, violando-se, de forma gritante, o princípio fundamental da proporcionalidade do art.º 18º e 266º da CRP, e a regra da justa reparação do art.º 59º, al) f) da Constituição da República Portuguesa.
21.ª Residindo o “telos” do regime da reparação dos danos por acidentes de trabalho ou de doenças profissionais numa lógica reparatória, não podemos ignorar as premissas ou regras fundamentais em que assenta o instituto da responsabilidade civil, premissas ou regras essas constantes dos art.ºs 562º, 566º e 568º do Cód. Civil e que se podem basicamente consubstanciar na seguinte ideia: o limite do montante a atribuir aos lesados corresponde ao montante do dano, com o objectivo fundamental de garantir um ressarcimento integral dos prejuízos.
22.ª Com efeito, o nosso ordenamento jurídico positivo, em face do disposto no art.º 494º, do Cód. Civil, faz associar ao instituto da responsabilidade civil uma função preventiva ou sancionatória, a título meramente secundário ou acessório, uma vez que uma tal função assume uma natureza premial, consubstanciada em tratar mais favoravelmente os agentes/lesantes que actuem com um grau de culpa menos grave (negligência ou mera culpa). Do regime jurídico consagrado neste preceito, não se pode, na verdade, admitir o ressarcimento dos comummente designados danos punitivos, na medida em que o montante do dano constitui o limite máximo indemnizatório.
23.ª Ora, a cumulação de montantes indemnizatórios fundados no factor idade que é fomentada pelo modelo de aplicação automática do factor de bonificação de 1,5 acolhido pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 22 de Maio de 2024 representa um claro entorse aos princípios básicos em matéria indemnizatória, acabando por fazer recair uma verdadeira sanção sobre as seguradoras, sem que às mesmas sejam dadas as garantias conferidas pelos mais elementares princípios de justiça criminal a quem tenha praticado um ilícito merecedor de uma sanção criminal.
24.ª Ao invés da orientação acolhida pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 22 de Maio de 2024, segundo a qual a aplicação de um modelo automático da aplicação do coeficiente de bonificação de 1,5 permite a efectivação do direito constitucionalmente consagrado à justa reparação, consideramos que um tal modelo conduz antes à violação de uma tal exigência fundamental. Nesta sede, também não faz sentido convocar o expediente jurídico da interpretação conforme a constituição, tal como fez o Acórdão, uma vez que o legislador constitucional não delimitou o conceito de justa reparação, remetendo antes uma tal tarefa para o legislador infraconstitucional.
25.ª Não podemos deixar de considerar inaceitável a defesa da aplicação automática do coeficiente de bonificação em função da idade, como defende o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 22 de Maio de 2024, com base na constatação de que ao estrato etário dos 50 anos anda associada uma perda de capacidade funcional dos trabalhadores e das pessoas em geral. Na verdade, um tal entendimento acaba, por se basear, em presunções ou ficções, e alcançar a verdade jurídica através de tais expedientes jurídicos não, é de modo algum, a melhor forma de a atingir. Sobretudo quando no âmbito dos procedimentos de avaliação das incapacidades, e nos correspondentes incidentes de revisão previstos na Lei n.º 98/2009, se revela perfeitamente possível comprovar a existência ou a inexistência de uma tal perda de capacidade funcional.
26.ª Não tendo a Tabela Nacional de Incapacidades previsto expressamente nenhum processo de revisão automático da incapacidade, apenas através de um incidente de revisão da incapacidade, que obedecerá ao regime previsto do art.º 70º, nº 1 da Lei nº 98/2009, será possível, na verdade, proceder à actualização da pensão. Na verdade, resulta bem claro do n.º 5, al) a) das Instruções Gerais da Tabela Nacional das Incapacidades que a aplicação do coeficiente 1,5 em função da idade depende da avaliação da incapacidade do trabalhador/lesado, seja uma tal avaliação efectuada no momento inicial, ou tenha a mesmo lugar em momento subsequente.
27.ª Particularmente inadmissível se manifesta também a convocação dos argumentos interpretativos da unidade sistemática e da teleologia das normas invocados pelo Acórdão de Uniformização para justificar a aplicabilidade automática do coeficiente de bonificação de 1,5 em função da idade, bem como a interpretação teleológica do art.º 70º, n.º 1 da Lei nº 98/2009 feita à luz da presunção legislativa constante do n.º 5, al) a) da Tabela Nacional de Incapacidade, à qual se faz associar uma diminuição da capacidade funcional dos trabalhadores com 50 ou mais anos de idade. Uma tal interpretação teleológica não teve, com efeito, em consideração que a disciplina da tabela nacional de incapacidades tem uma natureza meramente instrumental face ao regime substantivo estatuído na Lei de Reparação dos Danos por Acidentes de Trabalho ou por Doenças Profissionais.
28.ª Para além disso, a “presunção”, segundo a qual a partir dos 50 anos de idade se regista uma perda da capacidade funcional ou laboral das pessoas surge muitas vezes infirmada ou contrariada pelos dados da realidade histórico-social, como se pode comprovar pela tendência registada na generalidade das legislações em prolongarem a idade da reforma, em consonância com o aumento da esperança de vida nas sociedades ocidentais.
29.ª Manifestação clara da inconsistência e incongruência da fundamentação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência encontra-se na admissibilidade de aplicação do coeficiente de 1,5 às hipóteses em que os trabalhadores/sinistrados, na sequência da revisão da incapacidade tenham registado uma melhoria na sua situação clínica. Ora, tendo este aresto partido do pressuposto que o factor de bonificação de 1,5 em função da idade se aplica automaticamente em virtude de constituir uma realidade incontornável a perda de capacidade funcional das pessoas com mais de 50 anos, então nas hipóteses acabadas de mencionar, o coeficiente de bonificação não se deveria aplicar por não se encontrar preenchido o pressuposto para que tal se verifique.
30.ª Não podemos ignorar que uma definição em termos, tão vagos e genéricos, de uma orientação acerca de uma problemática tão relevante para a actividade das entidades responsáveis pelo pagamento das indemnizações é susceptível de provocar os comummente designados riscos jurídicos, que verdadeiramente consubstanciam riscos catastróficos, provocando significativos abalos no sinalagma risco a cobrir, prémio a pagar, abalos esses insusceptíveis de serem previstos pelas seguradoras no momento da celebração do contrato de seguro.
31.ª Não se argumente em sentido contrário, com a ideia que este concreto direito de crédito não resulta da Lei da Reparação dos Danos por Acidentes de Trabalho ou por Doenças Profissionais, mas decorre antes das Instruções Gerais da Tabela Nacional das Incapacidades.
Na verdade, como já deixámos atrás sublinhado, este diploma tem uma natureza meramente instrumental face ao direito substantivo plasmado na Lei nº 98/2009, e a prestação do subsídio por incapacidade resulta desta lei, e tem as modalidades previstas no seu art.º 25º.
32.ª Igualmente problemática no tocante à multiplicidade de efeitos susceptíveis de ser produzidos pelo Acórdão de Uniformização é a questão da aplicação do coeficiente 1,5 nas situações em que tenha ocorrido a remição total e obrigatória da pensão, nos termos previstos no art.º 75º, nº 1 da Lei nº 98/2009. A circunstância do art.º 77º, al) b) prever que se mantém incólume o direito dos trabalhadores/lesados requererem a revisão da pensão nas situações de remição foi sobretudo pensado para as situações de remição parcial das pensões, tal como parece resultar claramente do art.º 77º, al) d) da Lei de Reparação dos Danos por Acidentes de Trabalho ou por Doenças Profissionais, porquanto aqui a Seguradora ainda tem algum montante a pagar, o mesmo não sucedendo na hipóteses de remição total, em que se opera uma espécie de novação (art.º 859º do Cód. Civil).
33.ª Por último, impunha-se também que o Tribunal a quo tivesse explicitado e clarificado o porquê de, sem sustentáculo fáctico, ter aplicado o aludido factor de bonificação e de se ter afastado da prova científica (três Juntas Médicas) constante dos autos. Dai que, a Decisão recorrida persistiu em apresentar um conteúdo que, salvo o devido respeito, é um mero ditame, sem qualquer pretensão de verdadeiramente esclarecer a situação e de clarificar o caso sub judice, quando é sabido que as decisões dos tribunais devem ser devidamente fundamentadas (vide artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigo 154.º, n.º 1 do CPC aplicável ex vi artigo 1.º n.º 2 alínea a) do CPT), o que não foi cumprido pela 1.ª Instância
34.ª Donde, e em apanhado, a alínea a) do número 5 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais aprovada em anexo ao Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de Outubro é inconstitucional quando interpretada, como o fez, a 1.ª Instância, no sentido de que a bonificação do factor 1.5 aí prevista é aplicável a todo e qualquer sinistrado que tenha 50 ou mais anos, quer já tenha essa idade no momento do acidente, quer só depois venha a atingir essa idade, desde que não tenha anteriormente beneficiado da aplicação desse factor, independentemente de, em incidente de revisão de incapacidade, se prove que, de facto e cientificamente, ou seja, em após a realização de competente exame pericial ou em sede de junta médica não impugnados e cujo resultado é sufragado pelo Julgador, não existiu qualquer agravamento do quadro sequelar do demandante.
35.ª Com o que, a Decisão recorrida acabou por fazer uma errada interpretação dos seguintes normativos legais: art.ºs 21º, 25º, 70º, n.º 1 e 77º, al b) da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, tal como do vertido nos n.ºs 5, al) a), 6 e 7 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades, assim como os art.ºs 280º, 400º, 494º, 562º, 566º, 568º, 494º e 859º do Código Civil, sem esquecer o art.º 128º da Lei do Contrato de Seguro e o art.º 413º do Código de Processo Civil.
36.ª Violando por isso tal Decisão, activamente, Princípios Basilares do Estado de Direito, como o da Igualdade (art.º 13º da CRP), da Proporcionalidade, da Justiça, da Imparcialidade (art.ºs 18º e 266º da CRP), da Justa Reparação (cfr. art.º 59º, al) f) da CRP), e da Necessidade de Fundamentação das Decisões dos Tribunais (art.º 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).
Nestes termos, mas sempre com o douto suprimento deste Colendo Tribunal, deverá ser concedido provimento ao presente Recurso de Apelação, devendo a Decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que determine que o Sinistrado mantém a incapacidade permanente em virtude o acidente dos autos, sem possibilidade de aplicação ao caso concreto do factor de bonificação de 1.5.
A título subsidiário, caso assim não se entenda – o que apenas se admite por prudente dever de patrocínio, e sem conceder –, sempre se deverá ordenar a revogação da Decisão recorrida, mandando o processo baixar à 1.ª Instância para verificação em exame médico de revisão ou em sede de junta médica da verdadeira situação clínica do Sinistrado (que até pode ter melhorado) como o impõe o art.º 70º da LAT., fundamentando posteriormente o Tribunal a quo, de facto e de direito, a Decisão.
Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!
…
O Autor AA, representado pelo Ministério Público, apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso
…
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Neste Tribunal, o recurso foi admitido nos seus precisos termos e os autos foram aos vistos, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso.
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Nulidade da decisão recorrida;
2) Errada interpretação do n.º 5, al. a), das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais; e
3) Inconstitucionalidade da interpretação efetuada na decisão recorrida ao n.º 5, al. a), das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais.
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III – Matéria de Facto
O tribunal da 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
-O acidente de trabalho correu em 10.12.2016, quando o trabalhador se encontava a desempenhar as suas funções como piloto de barra, por conta da “Administração do Porto de Local 1, S.A.”.
- O autor auferia então a retribuição anual de €79.080,85.
- Á data do acidente, a “Administração do Porto de Local 1, S.A.” tinha a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho referente ao autor transferida para a “Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.” por contrato de seguro titulado pela apólice n.º..., pela totalidade da retribuição anual.
-Nos autos, por decisão datada de 19.04.2018 foi fixada ao sinistrado a IPP de 3%, desde o dia seguinte ao da alta clínica, isto é, 08.05.2017.
-Na fixação do coeficiente de incapacidade não foi considerado o factor de bonificação de 1,5.
-Em consequência, a Seguradora foi condenada a pagar ao sinistrado a pensão anual e vitalícia de €1.660,70, a que corresponde o capital de remição de €22.645,31.
- O capital de remição no valor de €22.645,31 foi entregue ao sinistrado em 14.06.2018.
- O sinistrado nasceu em ........1967, pelo que completou 50 anos de idade em ... de ... de 2017.
- O requerimento de revisão da incapacidade deu entrada em Juízo em 06.05.2025.
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IV – Enquadramento jurídico
1 – Nulidade da decisão recorrida
Considera a recorrente que a decisão recorrida é nula nos termos do art. 615.º, n.º 1, als. b) e c), do Código de Processo Civil3 (i) por ter preterido a verificação médico-legal, por exame pericial singular ou junta médica, da alegada alteração da desvalorização anteriormente atribuída, conforme impõe o art. 70.º da Lei n.º 98/2009, de 04-09; e (ii) por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificaram a decisão nela contida, o que torna a decisão obscura e incompreensível, violando o princípio constitucional da necessidade de fundamentação das decisões dos tribunais.
Estatui o art. 615.º, n.º 1, als. b) e c), do Código de Processo Civil, que:
1 - É nula a sentença quando:
[…]
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
A nulidade da decisão por falta de fundamentação verifica-se, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, quando haja ausência de fundamentação de facto ou de direito, não bastando, assim, uma mera situação de insuficiência, mediocridade ou erroneidade de fundamentação.
Cita-se a este propósito o acórdão do STJ, proferido em 02-06-2016:4
II - Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do art. 615.º do NCPC, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento.
De igual modo, se cita a explanação do professor Alberto do Reis, no Código de Processo Civil Anotado,5 sobre esta específica nulidade:
Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Deste modo, só há nulidade da decisão por falta de fundamentação, se inexistir qualquer fundamentação sobre os factos e/ou sobre o direito, já não quando essa fundamentação é deficiente, medíocre ou errónea. Na realidade, a insuficiente fundamentação do percurso observado pelo tribunal para chegar à decisão proferida, poderá vir a determinar, (i) se se reportar aos factos, uma eventual remessa do processo à 1.ª instância nos termos da al. d) do n.º 2 do art. 662.º do mesmo Diploma Legal ou uma eventual alteração dos factos em sede de apreciação da matéria de facto; e (ii) se se reportar ao direito, à revogação da decisão proferida; já não a determinar uma declaração de nulidade da sentença por falta de fundamentação.
Por sua vez, só há nulidade da decisão por obscuridade quando esta ocorra na parte decisória, já não as obscuridades ou ambiguidades que possam existir na fundamentação da sentença, servindo tal fundamentação apenas para apurar o sentido pretendido quando a parte decisória se revele obscura ou ambígua.
Cita-se José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre em Código de Processo Civil Anotado:6
No regime atual, a obscuridade ou ambiguidade, limitada à parte decisória, só releva quando gera ininteligibilidade, isto é, quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236-1CC e 238-1 CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.
Em sentido idêntico, cita-se o acórdão do STJ, proferido em 08-10-2020, no processo n.º 5243/18.8T8LSB.L1.S1:7
II. - A ambiguidade ou obscuridade prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º do Código de Processo Civil só releva quando torne a parte decisória ininteligível.
III. - A ambiguidade ou obscuridade prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º do Código de Processo Civil só torna a parte decisória ininteligível “quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar”.
Posto isto, apreciemos.
(i) Nulidade por preterição do exame médico-legal imposto no art. 70º da Lei n.º 98/2009, de 04-09
A omissão de um ato imposto por lei não configura a nulidade da decisão quer por falta de fundamentação quer por obscuridade que torne a decisão ininteligível, pelo que não estamos perante uma situação enquadrável no art. 615.º, n.º 1, als. b) e c), do Código de Processo Civil.
A recorrente invoca, sim, a nulidade prevista no art. 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Acontece que tal nulidade apenas ocorreria (na versão da recorrente) se a decisão recorrida simplesmente tivesse omitido a prática desse exame médico-legal, sem fazer qualquer menção ao mesmo. No entanto, a decisão recorrida procedeu a uma exaustiva fundamentação para afastar a aplicação, no caso concreto, desse exame.
Assim, sendo, no caso concreto, como alega a recorrente, obrigatória a realização do exame médico-legal, sempre estaremos perante uma errada aplicação do direito, devendo, por isso, ser revogada a decisão, e não perante uma qualquer nulidade, pois a não aplicação do referido exame decorreu de uma interpretação do artigo em causa, expressamente assumida na referida decisão.
Pelo exposto, inexiste nulidade, pelo que improcede a pretensão da recorrente.
(ii) Nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificaram a decisão nela contida, e obscuridade e incompreensão da decisão
Entende a recorrente que o tribunal da 1.ª instância deveria ter explicitado e clarificado o porquê de ter aplicado o aludido fator de bonificação, afastando-se da prova científica constante dos exames médicos realizados nos autos.
Mais referiu que o conteúdo da decisão recorrida “é um mero ditame, sem qualquer pretensão de verdadeiramente esclarecer a situação e de clarificar o caso sub judice, quando é sabido que as decisões dos tribunais devem ser devidamente fundamentadas (vide artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigo 154.º, n.º 1 do CPC aplicável ex vi artigo 1.º n.º 2 alínea a) do CPT), o que não foi cumprido pela 1.ª Instância”.
Da alegação citada resulta, desde logo, que a recorrente não imputa à decisão recorrida falta de fundamentação, antes sim, deficiente fundamentação, uma vez que entende que esta verdadeiramente não esclarece a situação, nem clarifica o caso sub judice.
Ora, como já mencionámos, uma deficiente fundamentação pode levar à revogação da decisão, em sede de apreciação de mérito, já não à nulidade da decisão por falta de fundamentação, visto que falta de fundamentação não se confunde com deficiente fundamentação.
Acresce que, na situação em causa, a decisão recorrida concluiu pela aplicação do fator de bonificação em função da idade, independentemente de existir agravamento da incapacidade, alicerçando-se na fundamentação apresentada pelo acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 16/24, de 17-12,8 pelo que, independentemente da sua suficiência ou justeza, inexiste nulidade por falta de fundamentação da decisão recorrida.
Relativamente à nulidade por obscuridade e incompreensão da decisão, a recorrente invoca tal obscuridade e incompreensão da decisão por existir falta de fundamentação. Ora, para além de existir na decisão recorrida fundamentação, só determina nulidade da decisão por obscuridade quando esta obscuridade torne a parte decisória ininteligível. Porém, a parte decisória da decisão recorrida, que já citámos supra, é perfeitamente inteligível.
Assim, improcedem, nesta parte, as nulidades invocadas ao abrigo do citado art. 615.º.
2 – Errada interpretação do n.º 5, al. a), das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais
Entende a recorrente que o art. 70.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2000, de 04-09, impõe a realização do exame médico-legal e que da conjugação entre este artigo e o n.º 5, al. a), das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais,9 10 o fator bonificação em razão da idade apenas pode funcionar se existir agravamento, recidiva ou recaída da lesão que originou a reparação dos danos por acidente de trabalho ou doença profissional, ou seja, está sempre dependente do apuramento de uma concreta situação de incapacidade.
Considera, igualmente, que, mesmo a entender-se que o n.º 5, al. a), das Instruções Gerais, admite a aplicação automática do fator de bonificação em razão da idade, por estarmos perante um diploma que possui natureza meramente instrumental em face do diploma onde consta o art. 70.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2000, de 04-09, e que não prevê tal aplicação automática, aquele diploma não pode alterar este.
Acresce que a invocação do mesmo fator – a idade – quer no n.º 5, al. a), das Instruções Gerais, quer nas instruções nºs. 6 e 7 desse diploma, quer no art. 21.º da Lei n.º 98/2009, determinam indemnizações excessivas e consubstanciam uma situação de enriquecimento sem causa do trabalhador à custa da seguradora, violando os artigos 562.º, 566.º, 568.º e 494.º do Código Civil.
Por fim, não é possível proceder à aplicação automática do fator de bonificação em razão da idade quando ocorreu remissão total e obrigatória da pensão.
Apreciemos.
Dispõe o n.º 5, al. a), das Instruções Gerais, que:
5 - Na determinação do valor da incapacidade a atribuir devem ser observadas as seguintes normas, para além e sem prejuízo das que são específicas de cada capítulo ou número:
a) Os coeficientes de incapacidade previstos são bonificados, até ao limite da unidade, com uma multiplicação pelo factor 1.5, segundo a fórmula:IG + (IG x 0.5), se a vítima não for reconvertível em relação ao posto de trabalho ou tiver 50 anos ou mais quando não tiver beneficiado da aplicação desse factor;
Sobre a possibilidade de aplicar o fator de bonificação de 1.5, após o sinistrado ter feito 50 anos, e independentemente de ter tido algum agravamento da sua incapacidade, depois de terem existido decisões nos tribunais nacionais nos dois sentidos, em 17-12-2024 foi publicado no DR n.º 244/2024, de 17-12, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fixação de jurisprudência n.º 16/24, de 17-12, fixou a seguinte jurisprudência:
1. A bonificação do fator 1.5 prevista na alínea a) do n.º 5 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais aprovada em anexo ao Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro, é aplicável a qualquer sinistrado que tenha 50 ou mais anos de idade, quer já tenha essa idade no momento do acidente, quer só depois venha a atingir essa idade, desde que não tenha anteriormente beneficiado da aplicação desse fator;
2. O sinistrado pode recorrer ao incidente de revisão da incapacidade para invocar o agravamento por força da idade e a bonificação deverá ser concedida mesmo que não haja revisão da incapacidade e agravamento da mesma em razão de outro motivo.
Ainda que os acórdãos de fixação de jurisprudência não tenham força vinculativa, “A linha interpretativa fixada nos acórdãos uniformizadores só deverá ser objecto de desvio, no âmbito do mesmo quadro legal, perante diferenças fácticas relevantes e/ou (novos) argumentos jurídicos que não encontrem base de ponderação nos fundamentos que sustentaram tais arestos”11.
Acresce que o seu desrespeito determina a admissão de recurso, independentemente do valor da causa e da sucumbência, nos termos do art. 629.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Civil.
O referido acórdão de fixação de jurisprudência reporta-se a uma situação similar à dos presentes autos, pelo que segui-lo-emos de perto, não só devido ao respeito pelos princípios da igualdade, da segurança e da certeza jurídicas, como também por concordarmos inteiramente com os seus fundamentos, sendo essa, aliás, a posição que já vinha sendo assumida por esta Secção Social.12
Não resulta nem do n.º 5, al. a), das Instruções Gerais, nem do art. 70.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2000, de 04-09, que o fator de bonificação em razão da idade apenas possa ser atribuído, em sede de incidente de revisão da incapacidade, quando haja agravamento, recidiva ou recaída da lesão, fisicamente comprovados.
Conforme bem refere o acórdão de fixação de jurisprudência, a aplicação automática do facto de bonificação em razão da idade, sem que haja a constatação efetiva de um agravamento, recidiva ou recaída “cabe na previsão do artigo 70.º da LAT se a mesma for objeto de uma interpretação teleológica. Com efeito, o legislador considerou que a idade do sinistrado – ter este 50 ou mais anos de idade – representa, ela própria, um fator que tem impacto na capacidade de trabalho ou de ganho e que representa um agravamento na situação do trabalhador, mormente no mercado de trabalho. Este agravamento pela idade, reconhecido pelo legislador, poderá ser objeto de um pedido de revisão das prestações”.
Na esteira da argumentação do acórdão do TRP proferido em 24-10-2016, no processo 240/08.4TTVNG.5.P1:
O envelhecimento é um fenómeno universal, irreversível e inevitável em todos os seres vivos. É certo que envelhecer difere de indivíduo para individuo, uma vez que o processo de envelhecimento pode ser acentuado ou retardado em razão de vários factores, entre outros, desde logo os de natureza genética, mas também dos que respeitam às condições e hábitos de vida do indivíduo e dos seus comportamentos (…) Em termos gerais e abstractos, é do conhecimento da ciência médica e, nos dias que correm, com toda a informação disponível e divulgada e com os cuidados de saúde a que se tem acesso, também da generalidade das pessoas que, após os 50 anos há um acentuar desse processo natural, que se vai agravando progressivamente com o aumento da idade. A título de mero exemplo, é consabido que a partir dos 50 anos de idade, independentemente do estado de [] saúde do indivíduo, seja homem ou mulher, a medicina recomenda que se observem especiais cuidados preventivos de saúde, sendo aconselhável a realização de determinados exames de diagnóstico que normalmente não são prescritos antes de se atingir essa idade. É na consideração desta realidade incontornável que o legislador entendeu atribuir a bonificação do factor 1.5, reconhecendo que, em termos gerais e abstractos, a vítima de acidente de trabalho que fique com determinada incapacidade permanente terá uma dificuldade acrescida, como consequência natural do organismo, para o desempenho de uma actividade profissional.
Consideramos, assim, que o art. 70.º, n.º 1, da LAT, admite a apresentação de incidente de revisão automática da incapacidade em razão da idade, por o legislador tem equiparado o fator idade a uma situação de agravamento das capacidades profissionais ou de ganho do trabalhador sinistrado. Nesta medida, inexiste qualquer violação do disposto em tal artigo, nem uma contradição entre o que consta do n.º 5, al. a), das Instruções Gerais e o referido art. 70.º, n.º 1, da LAT.
É verdade que o art. 145.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, estatui que quando “for requerida a revisão da incapacidade, o juiz manda submeter o sinistrado a perícia médica”, porém, não estando em causa um agravamento fisicamente constatável, antes sim, uma “ficção jurídica”13 de agravamento, em face da “realidade incontornável”14 que o envelhecimento produz nas capacidades físicas e mentais dos seres humanos, a realização de tal perícia médica sempre se revelaria inútil, pelo que, sendo os atos inúteis proibidos (art. 130.º do Código de Processo Civil), não é obrigatória, nestas situações, a realização da aludida perícia médica.
Importa, ainda, ter presente que o direito laboral possui um regime próprio e distinto do Código de Processo Civil, no que diz respeito ao regime do dano.
Conforme se refere no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 526/2016, de 04-10:15
Assim, as soluções legais do Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro, no que diz respeito à Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, são justificadas pela consagração de um regime autónomo, distinto do aplicável ao dano civil, especificamente desenhado para o dano laboral que atinge a capacidade de ganho do trabalhador e também a pessoa.
É neste contexto que surge um regime diferenciado dado a um grupo de trabalhadores face aos restantes trabalhadores, tendo como critério de aplicação a idade (igual ou superior a 50 anos, como se referiu). Pela inserção sistemática, pode concluir-se que o legislador traça uma aproximação entre esta situação e a dos trabalhadores que, embora tenham uma idade inferior a 50 anos, não são reconvertíveis em relação ao posto de trabalho, pois ambos os casos são colocados numa relação alternativa, dando origem (um ou o outro) à aplicação da bonificação. A aproximação destas duas situações também decorre do facto de o trabalhador vítima de acidente ou doença profissional apenas poder beneficiar da bonificação em causa (por um critério ou pelo outro) na ausência de outra bonificação equivalente. Em ambos os casos, estamos perante situações de maior dificuldade de acesso ao mercado de trabalho relativamente àquela em que se encontra um trabalhador, também vítima de acidente de trabalho ou doença profissional, mas ainda reconvertível ou de idade mais jovem. Sendo distintas as posições relativas dos trabalhadores, não se configura qualquer violação do princípio da igualdade, pois este pressupõe que se esteja perante situações equivalentes.
Há que reconhecer que no plano normativo não há discriminação alguma: a situação dos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional que tenham uma idade igual ou superior a 50 anos não é idêntica à dos trabalhadores que não são vítimas daquelas circunstâncias ou com idade inferior a 50 anos. […]
Assim, a previsão de um regime mais favorável para os trabalhadores com idade igual ou superior a 50 anos, quando não tenham já beneficiado da aplicação do fator em causa, não é desrazoável ou arbitrária, por assente nas características do mercado de trabalho e da mais difícil inserção neste dos trabalhadores com idade superior a 50 anos. Existem, pois, fundamentos racionais, pois assentes em dados empíricos relacionados com as consequências do envelhecimento do trabalhador e com as características do mercado de trabalho, e objetivos, porque aplicáveis de forma genérica e não subjetiva, por o legislador ter em conta a idade do trabalhador ao estabelecer o regime aplicável ao cálculo das incapacidades dos sinistrados ou doentes no âmbito laboral. Cabe-lhe, assim, escolher os instrumentos através dos quais esta ponderação ocorre, tendo optado, neste caso, por consagrar uma repercussão nos coeficientes através da previsão de uma bonificação. O regime também prevê que a bonificação apenas opera uma vez, não ocorrendo se o fator em causa tiver já sido aplicado por outro motivo. Esta solução encontra-se dentro da margem de livre apreciação do legislador, não se apresentando como desrazoável.
Inexiste, assim, qualquer violação dos arts. 562.º, 566.º, 568.º e 494.º do Código Civil, por não se aplicarem à situação concreta.
Por fim, o disposto no art. 70.º, n.º 1, da LAT, aplica-se também às situações em que a pensão anteriormente atribuída foi integralmente remível, não sendo feita qualquer distinção entre as situações que foram integralmente remíveis daquelas que o não foram. No incidente de revisão da incapacidade estamos sempre perante uma alteração da pensão anteriormente fixada e não perante uma nova pensão.16
Pelo exposto, improcede, nesta parte, a pretensão da recorrente.
3 – Inconstitucionalidade da interpretação efetuada na decisão recorrida ao n.º 5, al. a), das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais
Entende a recorrente que a interpretação constante da decisão recorrida quanto ao n.º 5, al. a), das Instruções Gerais, é inconstitucional por violar os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da justa reparação, previstos nos arts. 13.º, 18.º, 266.º e 59.º, al. f), da Constituição da República Portuguesa.
Relativamente à violação do princípio da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade, nos termos do acórdão do Tribunal Constitucional já citado, não existe violação do princípio da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade entre os sinistrados com idade inferior a 50 anos e os sinistrados com idade igual ou superior a 50 anos, visto que é inquestionável que o envelhecimento, sobretudo a partir dos 50 anos, diminui as capacidades físicas e intelectuais dos seres humanos. De igual modo, não existe discriminação entre os sinistrados com idade igual ou superior a 50 anos e os sinistrados não reconvertíveis em relação ao seu posto de trabalho, com 50 ou mais anos, visto que o legislador entendeu, por um lado, equiparar as situações de não reconversão ao posto de trabalho e as pessoas com 50 anos ou mais; e, por outro, que, independentemente de se encontrarem com apenas um dos fatores de bonificação ou com os dois, apenas teriam direito a usufruir de um, de forma, aliás, a não onerar as seguradoras.
Atente-se que esta solução se aplica a todos os sinistrados que se encontrem naquelas específicas situações, inexistindo arbitrariedade ou parcialidade na sua aplicação.
Estamos, assim, perante uma solução que se nos afigura estar dentro da margem da livre apreciação do legislador, assente em critérios objetivos e razoáveis.
Inexiste, por isso, violação destes princípios.
Relativamente ao princípio da justa reparação, na esteira do acórdão de fixação de jurisprudência, que se cita “Pode, na realidade, afirmar-se que “[o] fator de bonificação 1,5, ao invés de violar os princípios da justa reparação e da igualdade, previstos, respetivamente, nos artigos 59.º, alínea f) e 13.º da CRP, foi criado no intuito específico de lhes dar integral cumprimento”, como se pode ler no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14-09-2023, Processo n.º 21789/22.0T8SNT.E1”. Efetivamente é exatamente por se saber, em termos científicos, que a partir dos 50 anos se verifica, em termos do corpo humano, uma degradação do estado geral de saúde, que o legislador procurou conceder uma especial compensação para essa situação, em obediência ao princípio da justa reparação, mas apenas no caso de o sinistrado não possuir, por outro fator, já uma compensação.
Não há, também quanto a este princípio, qualquer violação.
Em conclusão, improcede a invocada violação de normas constitucionais por parte da decisão recorrida.
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V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente (art. 527.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
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Évora, 18 de setembro de 2025
Emília Ramos Costa (relatora)
Paula do Paço
Mário Branco Coelho
___________________________________
1. Relatora: Emília Ramos Costa; 1.ª Adjunta: Paula do Paço; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho.↩︎
2. Doravante AA.↩︎
3. Este artigo do Código de Processo Civil, bem como os demais que se venham a mencionar, aplicam-se ao processo laboral por força do art. 1.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo do Trabalho.↩︎
4. No âmbito do processo n.º 781/11.6TBMTJ.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.↩︎
5. Vol. V, p. 140.↩︎
6. Vol. 2, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, p. 735.↩︎
7. Consultável em www.dgsi.pt.↩︎
8. Publicado no DR n.º 244/2024, Série I.↩︎
9. Doravante Instruções Gerais.↩︎
10. Anexo I do DL n.º 325/2007, de 23-10.↩︎
11. Acórdão do STJ de 24-05-2022 no processo n.º 1562/17.9T8PVZ.P1.S1, consultável em https://juris.stj.pt/.↩︎
12. Veja-se o acórdão deste Tribunal de 26-09-2019 no processo n.º 1029/16.2T8STR.E1, consultável em www.dgsi.pt.↩︎
13. Conforme acórdão de fixação de jurisprudência n.º 16/24, de 17-12.↩︎
14. Conforme acórdão do TRP de 24-10-2016, já mencionado.↩︎
15. Referente ao processo n.º 1059/15, consultável em www.tribunalconstitucional.pt.↩︎
16. Veja-se o acórdão deste Tribunal proferido em 30-01-2025 no processo n.º 1258/18.4T8STR.2.E1, consultável em www.dgsi.pt.↩︎