RESPONSABILIDADE CIVIL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURADORA
CONDUTOR POR CONTA DE OUTREM
CULPA
Sumário

A Companhia de Seguros Ré é responsável pelos danos causados num acidente de viação em que foi interveniente o condutor do veículo pesado seguro na Ré, que conduzia por conta e no interesse da sua entidade empregadora, se não demonstrar que não houve culpa da parte do referido condutor.

Texto Integral

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Acordam na 1.ª secção do Tribunal da Relação de Évora,

1. Relatório:


AA intentou a presente ação declarativa com processo comum contra Crédito Agrícola Seguros – Companhia de Seguros de Ramos Reais, SA pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de onze mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.


Alegou, em síntese, que o veículo, de que era proprietária, sofreu danos, que importaram a situação de perda total do veículo, num acidente de viação ocorrido por culpa do condutor do veículo seguro na Ré.


A Ré contestou impugnando a dinâmica do acidente e pugnando pela improcedência da ação.


Na data designada para realização da audiência final, a Ré arguiu a exceção do caso julgado, juntando, para tanto, certidão da sentença proferida no âmbito do processo n.º 1283/22.0T8STR, que correu termos no Juízo Local Cível de Cidade 1 – Juiz 1.


Por sentença proferida em 28-02-2023, foi julgada verificada exceção perentória da autoridade do caso julgado.


Dessa sentença recorreu a Autora, tendo este Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 23-04-2024, negado a verificação da autoridade do caso julgado e determinado, em consequência, o prosseguimento dos autos.


Foi, então, realizada audiência final, após o que foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e absolveu a Ré do pedido.


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A Autora, por não se conformar com a sentença, interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:

I. Vem o presente recurso interposto da douta Decisão constante da sentença, que absolveu a Ré Crédito Agrícola Seguros – Compª de Seguros de Ramos Reais, SA. e considerou o condutor do veículo da Autora, como único responsável pela produção do acidente em discussão nos autos;

II. A Decisão deixou de considerar factos suficientemente comprovados e que se mostram relevantes para a boa decisão da causa requerendo-se, ao abrigo do disposto no nº1, do art.º 662º, do C.P.C., ampliação/alteração dos factos provados;

III. A R. invocou, na sua PI (art.º 2º), que a sua viatura estava cedida ao seu filho BB, destinada às deslocações desde para o seu local de trabalho, no Centro Escolar de Local 2, onde exercia, à data, as funções de Monitor de Educação Física…;

IV. Da prova efetuada em julgamento, ficou demonstrado que, na altura do acidente, o BB se deslocava para o seu local de trabalho, em Local 2;

V. No seu depoimento de 13.09.2024 (das 14h49m às 15h02m), a testemunha CC, quando questionado sobre se sabia o que o BB ia fazer, respondeu que o BB ia dar aulas…o BB ia dar aulas se não me engano para Local 2…

VI. Mais afirmou a testemunha, que o carro era da AA, da mãe do BB, mas o BB é que tinha o usufruto do carro…porque o BB é que andava sempre com o carro…eu conheci o BB a conduzir aquele carro;

VII. Contexto em que, ao abrigo do disposto no nº1, do artigo 662º, do C.P.C, se entende dever ser aditado ao elenco dos factos provados que …A viatura propriedade da Autora estava cedida ao seu filho BB, destinada às deslocações deste para o seu local de trabalho, no Centro Escolar de Local 2;

VIII. A R. invocou, também, ser proprietária de uma outra viatura ligeira, de marca VW Golf, com a matrícula ..-..-ED, que utiliza nas suas deslocações pessoais e profissionais e juntou comprovativo (doc.2);

IX. Em sede de audiência de julgamento, este facto foi confirmado, também pela testemunha CC, que afirmou que a Autor tem também um Golf bordeaux…

X. Deve, por isso, também ser aditado aos factos provados que: à data do acidente, a Autora era também, proprietária de uma outra viatura ligeira, de marca VW Golf, com a matrícula ..-..-ED.

XI. Evidencia-se, assim, que o veículo A era conduzido, na data do acidente (e habitualmente) por conta e no interesse do seu condutor, o filho da Autora;

XII. Entende a R., por outro lado, que Decisão recorrida incorre em manifesto erro de julgamento, decorrente da deficiente valoração e enquadramento da prova produzida, com incorreta interpretação e aplicação do Direito;

XIII. A Mmª Juiz “a quo” fundamenta a Decisão nos factos provados em 2 e no “credível” depoimento da Testemunha DD, condutor do veículo B;

XIV. Testemunho este, pelo contrário, não se afigura merecedor de qualquer credibilidade, porque contrário à restante prova produzida, quer a testemunhal, quer a documental;

XV. Aliás, tal depoimento é mesmo contraditório com as perceções e afirmações da Mmª Juiz, vertidas na própria sentença;

XVI. No depoimento que prestou em 13. 09.2024 (das 15h15 às 15h32) - classificado pela Mmª Juiz como assertivo e escorreito, quando questionado sobre o local do embate e se já teria entrado na curva, que se seguia o seu sentido de marcha, a testemunha confirmou que se ia a aproximar da curva, mas ainda não tinha entrado na mesma (aos 4m20s).

XVII. Mais afirmou esta testemunha, que ele (condutor do ligeiro) ia a perder o controlo…ele ia a tentar fazer a curva, no sentido dele, a curva à direita e o carro só ia em frente direito ao camião;

XVIII. Acontece que, o veículo ligeiro despistou-se para o lado direito da via, facto incompatível com o “imaginário” percurso apresentado pelo depoente (seguiu em frente, antes de conseguir fazer a curva).

XIX. O discurso da testemunha DD mostra-se contraditório com toda a restante prova testemunhal e documental disponível;

XX. De facto, a própria Mmª Juiz afirma em sede de Motivação da matéria de facto (pag.5), que o embate ter-se-á dado já fora da referida curva, numa reta com total visibilidade da faixa de rodagem;

XXI. Também a este propósito, no seu depoimento de 13.09.2024 (das 15h33 às 15h55), a testemunha EE - agente da GNR, que fez o levantamento/participação do acidente, quando questionado sobre o local do embate, atento o sentido de marcha do veículo ligeiro, afirmou após a curva…após a curva, penso que não há dúvidas nesse aspeto;

XXII. Quando questionado sobre se teria mudado o camião do local do embate com o ligeiro, a testemunha DD afirmou que Não, não…o camião foi arrojado ainda mais para a berma mas ele já não dava para andar para a frente nem para trás porque ele arrancou o eixo e ligação das molas do eixo de puxo, do eixo traseiro do camião…o eixo ficou atravessado e camião ficou inutilizado daquela parte.

XXIII. Versão refutada pelas declarações da referida testemunha EE, que sobre a possibilidade de movimentação do camião, por modo próprio, afirmou: Sim…Sim…Sim, o camião praticamente não sofreu assim muitos danos materiais…e eu penso que o indivíduo levou-o logo…sofreu poucos danos o camião.

XXIV. E pelas fotos juntas como docs. 5 a 7, com a PI, que mostram um camião totalmente estacionado fora da estrada, sem qualquer vestígio dos danos só agora referidos pela testemunha;

XXV. Como se uma viatura ligeira, que colide apenas na ponta do para- choques de um camião – sem lhe causar qualquer dano visível – que tem o peso tara de 11 toneladas, fosse capaz de o arrastar para fora da estrada, na sua totalidade, no estado em que as fotos documentam, perfeitamente “estacionado”;

XXVI. Demonstrada fica a falta de credibilidade da testemunha, que a Mmª Juiz, não obstante as contradições evidentes, considerou escorreita e assertiva;

XXVII. No que à matéria de facto em que se fundamenta a Decisão diz respeito (ponto) 2, entende a R. que não ficou demonstrado qualquer despiste da sua viatura, antes do embate, como se considerou;

XXVIII. Despiste ocorreu, isso sim, após o embate e em consequência do mesmo que provocou a saída de estrada e consequente capotamento do veículo ligeiro;

XXIX. A Mmª Juiz não valorou os indícios decorrentes da existência dos destroços, por considerar que os mesmos, que se encontrariam no meio da via, ter-se-iam espalhado ao longo da via, não ficando estáticos no exacto lugar em que se deu a colisão;

XXX. Acontece que, como decorre dos docs. 5 a 7, a esmagadora maioria dos destroços - atenta a sua dimensão – incluído o para-choques do ligeiro, encontram-se na hemifaixa de rodagem do ligeiro, atento seu sentido de marcha;

XXXI. E não se encontram dispersos, mas concentrados num raio de pouco mais de um metro, no enfiamento do rasto de saída da estrada do ligeiro para a ravina;

XXXII. Assim, apelando às mesmas regras da experiência comum, a localização dos destroços, a localização do camião e a prova produzida quanto ao local da colisão, por referência à curva à direita (atento o sentido de marcha do ligeiro), só podem levar a concluir que o embate ocorreu onde se encontram os destroços, na hemifaixa de rodagem do ligeiro e não o contrário;

XXXIII. Razão pela qual, entende a R. que, com mesmo fundamento legal já invocado, deve a redação do ponto 2 dos Factos Provados ser alterada, passando a constar que: 2. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1., depois de o veículo com a matrícula ..-EM-.., conduzido por BB ter realizado uma curva à direita, deu-se um embate com o veículo com a matrícula ..-..-GU, na sequência do qual o primeiro se despistou para o seu lado direito.

XXXIV. Não obstante, também se aceita que, em resultado da prova disponível, não tenha sido possível determinar, com total exactidão, qual o preciso local do embate entre as viaturas, sendo apenas pacífico que o mesmo ocorreu já depois da curva à direita efectuada pelo ligeiro;

XXXV. Todavia, a Mmª Juiz imputou a responsabilidade do acidente ao condutor do ligeiro, sem sequer a mais leve referência ao local do embate;

XXXVI. De facto, não vem referido na sentença, o ponto exacto do embate/colisão entre as duas viaturas, ou mera alusão ao mesmo;

XXXVII. Acresce que, não podiam as características específicas das viaturas envolvidas deixar de ser tidas em conta, em razão do inerente diferenciado contributo para a produção do acidente, designadamente pelo facto de uma ser ligeira e a outra pesada e de a faixa de rodagem pertencer a ambas, ainda que sem divisória física;

XXXVIII. Sem a definição concreta do local da colisão, por referência à sua localização na via, não podia a Mmª Juiz definir a responsabilidade do acidente como o fez;

XXXIX. Fê-lo baseada, apenas, num “assertivo e escorreito” depoimento alegando um despiste, que teria antecedido o embate;

XL. E, no seu entendimento, na falta de prova, por parte da Autora, dos factos constitutivos do direito alegado;

XLI. Assente está que o condutor do camião o conduzia por conta e no interesse da sua entidade patronal;

XLII. Neste contexto, forçoso é concluir a que Mmª Juiz ocorreu em erro de julgamento, por incorreta aplicação do Direito, consubstanciada na omissão da presunção de culpa constante do n.º 3, do artigo 503º, do CC e dos efeitos dela resultantes, no que concerne à inversão do ónus da prova que determina;

XLIII. Ou seja: Em face das circunstâncias concretas da questão em apreço, era a Ré quem tinha o ónus de provar que o acidente não resultava de culpa do condutor do veículo propriedade da sua segurada;

XLIV. E não a Autora ter que provar a culpa do mesmo, como decidido;

XLV. Em face da prova produzida e ao contrário do que foi decidido, entende a R. demonstrada a culpa do condutor do camião, na produção do acidente;

XLVI. Não obstante, a Ré não logrou ilidir a presunção de culpa que impendia sobre o referido condutor, o que determina, salvo melhor opinião, que a Decisão recorrida deva ser revogada, com a sua consequente condenação.


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Respondeu a Ré, apresentando contra-alegações e terminando com as seguintes conclusões:

A. O Tribunal a quo, em sede de motivação, justificou a sua decisão quanto ao ponto 2 dos Factos Provados em termos que não revelam qualquer erro de julgamento, não sendo, assim, passível de alteração a decisão quanto a esta matéria.

B. Pesem embora os poderes de modificação da matéria de facto conferidos ao Tribunal da Relação, em casos como o dos autos, em que a prova é essencialmente testemunhal, tal modificação apenas deve ocorrer em ocasiões em que se evidencie erro de julgamento, existindo evidencias que sustentam, em concreto e de modo inequívoco que tal matéria deverá ser modificada no sentido pretendidido pelo Recorrente, o que não é manifestamente o caso dos autos.

C. Neste contexto, e na ponderação do acerto do decido na Sentença sob recurso, afigura-se à Recorrida que se deverá também levar em linha de conta que o sinistro em causa foi objeto de apreciação judicial no âmbito da ação que correu termos junto do Tribunal Judicial da Comarca de Cidade 1, Juízo Local Cível de Cidade 1, Juiz 1, Processo n.º 1369/22.1..., em que foi A. FF e Filhos, Lda. (proprietário do veículo segurado na ora Recorrida) e R. Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A. (seguradora do veículo propriedade da ora Recorrente), com trânsito em julgado em 02/11/2022, cuja certidão se encontra junta aos presentes autos.

D. Neste processo, e no que respeita à dinâmica do acidente, decidiu-se exatamente no mesmo sentido da Sentença sob recurso, ali constando, na respetiva Fundamentação de Facto que: «(…) 2. No dia 02.11.2021, pelas 15:10 horas, na Estrada Municipal 5..., freguesia de A..., concelho de Cidade 1, o veículo ..-..-GU seguia na direção A...-B... e, no sentido oposto (B...-A...), seguia o veículo ligeiro de passageiros, de marca Audi, modelo A3 Sortback Diesel, com a matrícula ..-EM-.. (doravante, abreviadamente, veículo ..-EM-..), propriedade de AA, então conduzido por BB.

E. Ao realizar uma curva existente no local, o condutor do veículo ..-EM-.. entrou em despiste, saiu da sua hemifaixa, invadiu a hemifaixa onde seguia o veículo ..-..-GU e embateu neste último.» - sublinhado nosso.

F. O decidido na citada sentença quanto à dinâmica do acidente, ressalvando-se, não constituindo caso julgado quanto às partes no presente processo ou, sequer, prova valorável nos termos do artigo 421.º do CPC, não deixa de constituir um importante elemento na ponderação do acerto do decidido pelo Tribunal a quo quanto ao ponto da matéria de em causa que, reitera-se, deverá manter-se inalterado.

G. Face à inexistência de erro de julgamento que pudesse estribar a alteração do ponto 2 da matéria de facto dada como provada no sentido pretendido pelo Recorrente, a apreciação da matéria invocada nos pontos II. a XI das conclusões do Recurso – aditamento dos factos ali indicados – torna-se inútil, pois os mesmos apenas seriam relevantes no caso de, ao invés do corretamente decidido na sentença sob recurso, o sinistro não se ter devido a culpa exclusiva do condutor do veículo propriedade da Recorrente.

H. O entendimento sustentado pela Recorrente relativamente à errada aplicação, no caso dos autos, do regime previsto no artigo 503.º do Código Civil apenas teria cabimento no caso de ser alterado, no sentido por esta pretendido, a decisão quanto à matéria de facto.

I. Não existindo fundamento para tal alteração, e considerando-se – como bem se fez na Sentença sob recurso – que a responsabilidade na produção do acidente recaiu exclusivamente sob o condutor do veículo com a matrícula ..-EM-.., propriedade da Recorrente, encontra aplicação o estatuído no artigo 505.º do Código Civil, pelo que, nenhuma responsabilidade pode ser atribuída à Recorrida, não merecendo, também nesta parte, qualquer censura a Sentença sob recurso que deverá, assim, manter-se.


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Questões a decidir:


O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, atento o disposto artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º do Código de Processo Civil.


Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir:

i. Da admissão do recurso da matéria de facto;

ii. Da alteração da decisão quanto à matéria de facto;

iii. Reapreciação jurídica da causa;

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2. Fundamentação:

1. O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

1. No dia 2 de novembro de 2021, por volta das 15h10, na Estrada Municipal 5..., freguesia de A..., no concelho de Cidade 1, BB conduzia o veículo ligeiro de passageiros, da marca Audi, modelo A3, com a matrícula ..-EM-.., à data propriedade da Autora, na direção B...-A..., e DD conduzia o veículo pesado de mercadorias, da marca Scania, modelo G 82 ML4X2, com a matrícula ..-..-GU, por conta e no interesse de FF, na direção A...-B....

2. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1., depois de o veículo com a matrícula ..-EM-.., conduzido por BB, ter realizado uma curva existente no local, à sua direita, entrou em despiste e embateu no veículo com a matrícula ..-..-GU.

3. Após o embate descrito em 2., o veículo com a matrícula ..-EM-.. entrou em capotamento e caiu para fora da estrada numa ravina.

4. Aquando do embate descrito em 2., o piso da estrada encontrava-se molhado e chovia.

5. A responsabilidade pela produção de prejuízos materiais e patrimoniais decorrentes da circulação do veículo com a matrícula ..-..-GU encontrava-se, à data do embate, transferida para a Ré, através de acordo denominado de «contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel», titulado pela apólice n.º ..., e válido até 26-06-2022.

6. Como consequência direta e necessária do embate descrito em 2., o veículo com a matrícula ..-EM-.. ficou impossibilitado de circular.

7. Após o embate, foi realizada peritagem ao veículo com a matrícula ..-EM-.., que concluiu pela perda total do veículo.

8. Após o embate Autora vendeu o veículo com a matrícula ..-EM-.. pelo valor de € 1.000,00.

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2. O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:

a. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1., o veículo com a matrícula ..-..-GU invadiu parcialmente a via de trânsito onde circulava o veículo com a matrícula ..-EM-.., obrigando-o a guinar para a sua direita.

b. Após o embate, o condutor do veículo com a matrícula ..-..-GU retirou-o da faixa de rodagem e estacionou-o na berma da estrada.

c. O valor de mercado do veículo com a matrícula ..-EM-.. era, à data do embate, de € 12.000,00.


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1. Apreciação das questões a decidir:

1. Da admissão do recurso da matéria de facto;


Cumpre, antes do mais, apreciar e decidir se é de admitir ou rejeitar o recurso da decisão relativa à matéria de facto.


Nos termos do artigo 640.º do CPC (que estabelece os requisitos que o recorrente tem que cumprir para que o Tribunal de Recurso reaprecie a decisão quanto à matéria de facto), o recorrente deve especificar, na impugnação, “por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.”1 e sob pena de rejeição:

a. os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados2;

b. os meios probatórios que imponham decisão diversa e, no caso de prova gravada, com indicação exata das passagens da gravação relevantes.

c. a decisão que deve ser proferida.


Analisado o teor do recurso, no que se refere ao mencionada em a., verificamos, que a Recorrente especifica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados:


- omissão de pronúncia quanto aos factos 2 e 3 alegados na petição inicial;


- o ponto 2 dos factos provados


No que se refere ao requisito referido em b., o Recorrente indica os meios probatórios que, entende imporem a decisão pretendida e invoca os momentos relevantes dos depoimentos


Finalmente, quanto ao pressuposto constante em c., o Recorrente expressa a redação que entende dever ser a proferida.


Pelo exposto, admite-se o recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto.


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2.3.2. Apreciação do recurso quanto à decisão da matéria de facto:


Da omissão de pronúncia quantos aos factos invocados em 2 e 3 da petição inicial:


Alegou a autora nos artigos 2.º e 3.º o seguinte:

• A viatura propriedade da Autora estava cedida ao seu filho BB, destinada às deslocações deste para o seu local de trabalho, no Centro Escolar de Local 2;

• À data do acidente, a Autora era também, proprietária de uma outra viatura ligeira, de marca VW Golf, com a matrícula ..-..-ED.


Na resposta à matéria de facto, a Mma. Juíza fez consignar que “Não se levou à decisão sobre a matéria de facto a alegação vertida nos articulados de natureza conclusiva, de direito ou simplesmente irrelevante para a decisão da causa.”.


Considerando que a matéria invocada não tem natureza conclusiva, nem consubstancia matéria de direito, concluímos que a mesma não foi considerada na decisão de facto por ter sido entendida como irrelevante para a decisão da causa. Já a recorrente entende que os factos são relevantes. Com efeito, embora não o assuma expressamente, decorre das alegações que a recorrente pretende aditar os referidos factos com o objetivo de não se poder concluir pela presunção de culpa do condutor do veículo da Autora, nos termos do artigo 503.º do CC.


Ora, Conforme se afirma no Ac. do S.T.J. de 04.06.2024, Proc. n.º 1625/19.6T8CBR.C1.S13 (Jorge Arcanjo) o funcionamento dessa presunção legal de culpa “pressupõe uma relação de comissão, nos termos do art. 500.º, n.º 1, do CC, que, segundo orientação jurisprudencial e doutrinária, se caracteriza pelos seguintes elementos:

a. vínculo entre o comitente e o comissário;

b. relação de subordinação ou de dependência do comissário perante o comitente, que autorize este a dar ordens ou autorizações àquele;

c. o facto haja sido praticado pelo comissário no exercício das funções que lhe foram confiadas, embora seja suficiente que o ato se integre no quadro geral da competência ou dos poderes confiados ao comissário.


Tem-se entendido que a comissão do art. 500.º, n.º 1, do CC, não tem aqui o sentido preciso que reveste nos arts. 266.º ss. do Cód. Comercial, mas o sentido amplo de serviço ou atividade realizado por conta e sob a direção de outrem, podendo traduzir-se num ato isolado ou numa atuação duradoura.


No entanto, a condução por conta de outrem só por si não pressupõe uma relação de comissão, nos termos do art. 500.º, n.º 1, do CC, pois esta não se presume, não podendo resultar da propriedade (direção efetiva), uma segunda presunção no sentido de ser comissário do dono quem quer que conduza o veículo, devendo ser alegados e provados factos que tipifiquem essa comissão, conforme se afirma no Assento de 30 de Abril de 1996, publicado no DR, 1.ª Série, de 24 de Junho de 1996 (hoje com o valor de Acórdão de Uniformização de Jurisprudência: «O dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respetivo condutor, quando se aleguem e provém factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do artigo 500.º, n.º 1 do Código Civil, entre o dono do veículo e o condutor do mesmo».


Em suma, a comissão reclama uma relação de dependência entre o comitente e o comissário (aquele dando, ou podendo dar instruções ou ordens a este), que permita responsabilizar o primeiro pela atuação do segundo, exigindo-se a necessária a prova da referida relação de dependência.


Deste modo, a relação comissário/comitente é distinta do mero interesse (económico ou moral) na utilização do veículo, cuja direção efetiva (traduzida no poder de facto sobre o veículo) pode coexistir entre o proprietário do veículo e o seu condutor, bastando recordar, entre outras, as figuras do comodato, mantendo, assim, a direção efetiva do veículo.


Por conseguinte, para que se estabeleça a presunção de culpa prevista no art. 503.º, n.º 3, 1.ª parte, do CC, impõe-se a alegação e prova da direção efetiva do veículo e da relação de comissão entre o titular dessa direção efetiva e o condutor.


No caso dos autos, para que funcionasse a presunção de culpa incidente sobre o condutor do veículo da autora, teriam que ter sido alegados e provados os factos consubstanciadores da presunção, o que a Ré não fez. Ou seja, não está alegada uma relação comitente – comissário entre a Autora - a proprietária de um dos veículos - e o condutor desse veículo.


Os factos que a autora pretende agora aditar serviriam para refutar essa presunção. Ora, não tendo a mesma sido alegada, invocada ou demonstrada não necessita de ser refutada e/ou ilidida.


Sendo, por isso, totalmente irrelevante saber se a Autora tinha outros veículos para além do ..-EM-.. e a razão pela qual o filho conduzia a viatura, no momento do acidente.


Destarte, não tendo os referidos factos qualquer relevância para a decisão, improcede esta parte do recurso sobre a decisão de facto.


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Sustenta também a R. que a redação do ponto 2 dos Factos Provados deve ser alterada, devendo passar a ter o seguinte teor: 2. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1., depois de o veículo com a matrícula ..-EM-.., conduzido por BB ter realizado uma curva à direita, deu-se um embate com o veículo com a matrícula ..-..-GU, na sequência do qual o primeiro se despistou para o seu lado direito.


Ou seja, sustenta a Recorrente que o embate não se deu por causa do despiste, mas antes foi o embate que deu origem a que a viatura da Autora/recorrente se despistasse.


Para sustentar esta alteração, invoca a Recorrente que o Tribunal valorou apenas o depoimento do condutor da Viatura GU, considerando-o escorreito e assertivo, quando o mesmo se mostrou confuso e contraditório com os restantes meios de prova, designadamente destroços, marcas na estrada, localização dos veículos e depoimentos de outras testemunhas.


Já a recorrida propugna a manutenção do facto nos termos em que foi dado como provado argumentando que, na situação como a dos autos em que a prova é essencialmente testemunhal, a modificação dos factos só deve ocorrer se for evidente e inequívoco o erro de julgamento, o que não sucede e que no processo 1369/22, deu-se como provado que o EM entrou em despiste, saiu da sua hemifaixa, invadiu a hemifaixa onde seguia o GU e embateu neste último.


A Mma. Juíza a quo fundamentou, do seguinte modo, a decisão nesta parte:


“O facto vertido em 2. resultou provado por força do teor dos depoimentos (dos condutores dos veículos intervenientes no acidente) BB e DD (…) Não obstante os condutores dos veículos não divirjam quanto às concretas características da estrada e do estado do tempo, oferecem, sobre a dinâmica do embate aqui em discussão, versões diametralmente opostas, e até insuscetíveis de coexistir.


Concatenando os seus depoimentos com o teor do relatório de averiguação junto como doc. n.º 2 com a contestação e, em última linha, com aquilo que resulta das máximas da experiência comum, dir-se-á, desde logo, que não colhe a versão de BB, pelos motivos que ora exporemos.


Por um lado, este relata que o acidente se deu imediatamente após a curva que se lhe apresentou pela direita na estrada que percorria, quando «encontrou um camião no meio da estrada». Assim, segundo explica, considerando que dentro da curva não dispõe de visibilidade para toda a reta que se segue, não teve tempo de travar e de evitar o embate, embora ressalve que «provavelmente» (Sic.) circulava, no máximo, a uma velocidade compreendida entre os 50 e os 60 km/h [o que disse quando questionado se tinha a certeza que circulava exatamente a 50 km/h].


Contrariamente, DD relata que, quando se preparava para entrar na referida curva, desta feita no sentido oposto, o veículo dirigido por BB, que vinha em sentido descendente, havia já entrado em despiste, pelo que tentou [DD] evitar o embate, chegando o veículo por si conduzido «o mais para a berma possível» (Sic.), no que não foi bem sucedido, ocorrendo, ainda assim, a colisão. Mais acrescenta que o veículo que dirigia foi arrastado e ficou imobilizado na berma da estrada, praticamente no local do embate, e impedido de circular, uma vez que o eixo da parte traseira acabou por partir.


Vejamos por partes.


Desde logo, o discurso de DD afigurou-se-nos francamente mais escorreito e assertivo do que o de BB, que apresentou imprecisões.


Ademais, carece de sentido a versão relatada por BB segundo a qual não dispunha de visibilidade no momento imediatamente anterior ao embate, quando está sobejamente demonstrado que o acidente ocorreu já (mais do que) finda a curva em questão, em local com perfeita visibilidade para toda a faixa de rodagem. Tanto assim é que, questionado sobre se as fotografias constantes dos doc. n.ºs 5, 6 e 7 juntas com a petição inicial demonstram a sua perspetiva do momento que antecede o acidente, este confirma-o.


Por outro lado, atenta a posição final do veículo com a matrícula ..-..-GU, e acolhendo o relato de DD, incluindo na parte em que referiu que o mesmo ficou impossibilidade de se movimentar, é, de facto, mais crível a versão segundo a qual foi BB que entrou em despiste e que seguiu descontroladamente na direção de DD, que teve que tentar afastar o seu veículo para o lado oposto daquele de onde vinha aqueloutro, ou seja, precisamente, para o lado da berma.


E, acrescentamos, nem mesmo o facto de os (poucos) destroços do acidente (visíveis nas fotografias constantes dos doc. n.ºs 5, 6 e 7 juntas com a petição inicial) se encontrarem no meio da via é suscetível de corroborar a versão de BB, porquanto à luz das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, após uma aparatosa colisão entre dois veículos em andamento os destroços hão de, necessariamente, espalhar-se ao longa da via, em vez de ficarem estáticos no exato lugar em que a colisão se deu.


Por fim, cumpre referir que carece de sentido a versão trazida por BB e pela testemunha CC, segundo a qual o veículo pesado foi estacionado por DD na berma da estrada.


Desde logo, nem BB o presenciou, nem a testemunha CC, ao contrário do que tentou fazer crer ao Tribunal, pode, sequer, tê-lo visto. Este começa por referir que apareceu no local 10 minutos depois de ter ocorrido o acidente; porém, mal ali chega, vê que o veículo pesado «estava a ser mudado» (Sic.) ou, como o próprio acrescenta, corrigindo-se, «tinha sido mudado». Não faz sentido. No mais, o seu discurso foi titubeante e ambíguo, e tentou fazer transparecer um grau de certeza que aquele não poderia ter [porque não presenciou os factos] e que, de resto, nem o próprio BB, que ali esteve o tempo todo, detinha.


Tampouco faz sentido que BB se tenha limitado a relatar que o camião não estava no local onde ocorreu o embate – sem mencionar que nos momentos seguintes viu o motorista a movê-lo – e, outrossim, afirme CC que, 10 minutos após o embate, tenha assistido ao alegado estacionamento. Não colhe esta versão e faz cair por terra qualquer credibilidade que esta testemunha pudesse, em tese, ter.


Assim, atenta a posição final do veículo com a matrícula ..-..-GU e o relato que é feito por DD, fica o Tribunal com a séria convicção de que o acidente decorreu como e pelas razões que este descreve, isto é, porque BB entrou em despiste – o que, de resto, é perfeitamente verosímil, atento o estado do tempo, as condições do piso, o facto de circular em sentido descendente, estar a realizar uma curva e, como o próprio admite como possível, poder ter circulado a velocidade compreendida entre os 50 e os 60 km/h, a qual, quer fosse 50, quer fosse 60 sempre seria excessiva atento o circunstancialismo descrito.”.


Do exposto resulta que o Tribunal para considerar que o veículo ligeiro “entrou em despiste e embateu no veículo com a matrícula ..-..-GU (o pesado)” baseou-se sobretudo no depoimento do condutor do veículo pesado, que admitiu estar a preparar-se para iniciar a curva à esquerda, depoimento que o decisor considerou mais escorreito e assertivo.


Após audição dos depoimentos das testemunhas, designadamente dos condutores e da sua conjugação com os elementos do autos, concretamente com as fotografias e croquit juntos e, sobretudo, atendendo ao depoimento do agente que ocorreu ao local após o acidente, concluímos que assiste razão ao recorrente, Vejamos:


Cada um dos intervenientes deu a sua versão dos factos, versões incompatíveis entre si.


Porém, o agente da GNR foi muito perentório ao referir que o camião quase não tinha danos. Os danos limitavam-se à parte da frente, da roda onde ocorreu o embate, o que é manifestamente incompatível com a versão apresentada pelo condutor do pesado de que o lugar onde o pesado se encontrava (aquando das fotos e da chegada da GNR), era o lugar para onde o veículo tinha sido empurrado por força do embate do veículo ligeiro.


Mais referiu o agente da autoridade que “foi após o embate que o ligeiro se despistou. O camião aguenta bem uma pancada grande. Tem muito peso. É um camião das obras. Um carro ligeiro a bater, naquilo não é nada. O camião não sofreu muitos danos.”.


Acresce que as fotografias dos danos da viatura pesada mostram que o embate ocorreu na frente e não na parte de trás, não obstante a posição em que o pesado estava estacionado.


Por outro lado, o veículo ligeiro de passageiros era um Audi A3, conforme resulta do Documento Único Automóvel, com o peso de 1935 Kg e o veículo pesado era um SCANIA modelo G82 ML 4 x2, que de acordo com o seu condutor rondava as 13 toneladas, pelo que um embate do ligeiro jamais arrastaria o camião para a sua esquerda, para depois o ligeiro ir tombar para a direita.


Finalmente, quer os intervenientes, quer o agente da GNR foram perentórios em afirmar que o acidente ocorreu após o condutor do ligeiro ter descrito a curva à direita e quando o veículo pesado se preparava para realizar a curva à esquerda. Ora, é mais credível e coerente com a experiência comum que o veículo pesado que vinha de um entroncamento da “Rua principal” e ia inicial uma curva à esquerda invadisse a hemifaixa contrária, ou seja, a faixa da sua esquerda do que ter sido o ligeiro após já ter completado a curva à direita, a sair da sua hemi-faixa, a entrar na hemi-faixa do lado esquerdo e a embater no pesado, para depois voltar para a sua direita e capotar e ir cair numa ravina do seu lado direito. Assim, as declarações do condutor do pesado, interveniente do acidente não são suficientemente coerentes para se considerar que o embate ocorreu porque o condutor se tinha despistado. Como referiu o agente da GNR o despiste do ligeiro ocorreu após o embate.


Aliás, assim se compreende que na sentença recorrida, o Tribunal não tenha dado como provado como consta na decisão do processo 1369/22.1... que “Ao realizar a curva existente no local, o condutor do veículo ..-EM-.. entrou em despiste, invadiu a hemifaixa onde seguia o veículo ..-..-GU e embateu neste último”.


Em primeiro lugar, no julgamento destes autos ambos os condutores disseram, o que também foi confirmado pelo agente da GNR, que o embate não se deu na curva, mas na reta, ainda que o veículo pesado se preparasse para entrar na curva à sua esquerda. Em segundo lugar, as fotografias juntas mostram os destroços na hemifaixa por onde seguia o ligeiro pelo que o embate não se terá dado na hemifaixa onde seguia o veículo pesado (GU), finalmente nem o depoimento do agente de autoridade que acorreu ao local após o acidente, nem as fotografias juntas que revelam os danos do veículo pesado (GU) e o modo como o veículo pesado está estacionado, são compatíveis com a referida dinâmica (veículo ligeiro que arrasta o camião para a berma esquerda e que de seguida vai cair na ravina do lado direito).


Em conclusão, altera-se a decisão quanto à matéria de facto, no exato sentido proposto pelo Recorrente. O facto 2 passa a ter a seguinte redação.

1. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1., depois de o veículo com a matrícula ..-EM-.., conduzido por BB ter realizado uma curva à direita, deu-se um embate com o veículo com a matrícula ..-..-GU, na sequência do qual o primeiro se despistou para o seu lado direito.


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Em consequência do exposto, importa também, agora oficiosamente aditar um facto quanto ao valor do veículo da autora, nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1 do CPC,. Vejamos:


A autora invocou no artigo 26.º da petição inicial que a viatura sinistrada tinha, à data do acidente um valor de 12000,00€. A Ré respondeu no artigo 17.º da contestação que o veículo tinha apenas o valor de € 9500,00.


O facto invocado pela Autora foi dado como não provado e nada se deu como provado quanto ao valor do veículo, designadamente não se deu como provado nem como não provado o facto alegado pela Ré. Considerando o acordo das partes e porque o facto é relevante importa dar como provado que:


9. À data do acidente o veículo ..-EM-.. valia pelo menos 9500,00€.


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2.3.3. Reapreciação jurídica da causa:

Conforme resulta dos factos provados no dia 2 de novembro de 2021, por volta das 15:10 horas na Estrada Municipal 5... ocorreu o embate entre os dois veículos identificados nos factos provados.


Na sentença recorrida concluiu-se que o embate “procedeu do facto de o veículo com a matrícula ..-EM-.. ter entrado sozinho em despiste.”. Baseou-se esta conclusão no facto de se ter dado como provado que o veículo ligeiro EM entrou em despiste e embateu no veículo com a matrícula ..-..-GU.


Contudo, este facto não resultou provado. Ora, não se tendo apurado a causa do acidente importa verificar se sobre o condutor seguro na Ré recai a presunção de culpa a que alude o n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil, tal como defende a Recorrente.


Prescreve esta norma que: “Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do n.º 1.”.


Ficou demonstrado que DD conduzia o veículo pesado de mercadorias, da marca Scania, modelo G 82 ML4X2, com a matrícula ..-..-GU, por conta e no interesse de FF, na direção A...-B....


Por conseguinte, incide sobre o condutor do veículo seguro na Ré a referida presunção legal de culpa, que é ilidível.


A seguradora tentou ilidir a presunção, sem o lograr, já que não ficou demonstrado, não obstante ter sido alegado, nem que o condutor do veículo da A se tenha despistado antes do embate, nem que o tenha feito sozinho, nem tão pouco que tenha sido por virtude desse despiste que tenha colidido com o pesado. Mas ainda que assim tivesse sucedido, a mera ocorrência de um despiste prévio ao embate podia não conduzir, só por si, à responsabilidade do condutor do veículo da Autora, uma vez que não foi determinado o local do embate, designadamanente o ponto da hemifaixa de rodagem em que ocorreu o embate, a fim de lograr imputar a colisão ao condutor do veículo da autora.


Não tendo sido ilidida a presunção de culpa, importa concluir que a culpa do acidente, ainda que presumida, se deveu ao condutor do veículo pesado, que conduzia o veículo por conta de outrem, que é assim responsável pelos danos produzidos no veículo da autora.


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Dos danos indemnizáveis e respetivo quantum:


Mostra-se provado que, após o embate foi realizada peritagem ao veículo com a matrícula ..-EM-.., que concluiu pela perda total do mesmo, tendo, assim, o veículo sido considerado irrecuperável para circulação.


Mais se demonstrou que a autora vendeu o salvado pelo valor de € 1.000,00.


Ficou demonstrado que a Companhia de Seguros atribuiu ao veículo o valor de € 9500,00, que corresponde ao dano causado pelo acidente e que importa que a seguradora pague.


Assim, cumpre condenar a seguradora, nos termos do disposto no artigo 564.º do CC, a pagar à autora o valor de 8500,00€, a que acrescem juros de mora à taxa legal de 4%, desde a citação até integral e efetivo pagamento (Cfr. artigos 805.º, n.º 3 do CC).


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O recurso procede assim, in totum, pelo que as custas terão de ser suportadas pela Recorrida, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.


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3. Decisão:


Pelo exposto, decide-se julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e condenando-se a Ré Crédito Agrícola Seguros – Companhia de Seguros de Ramos Reais, SA a pagar à autora a quantia de 8500,00€ (oito mil e quinhentos euros) a que acrescem juros de mora à taxa de 4% desde 12-05-2022, até integral e efetivo pagamento.


Custas pelo apelante.


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Évora, 18 de setembro de 2025


Susana Ferrão da Costa Cabral (Relatora)


Elisabete Valente (1.ª Adjunta)


Ana Pessoa (2.º Adjunta)

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1. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina – 7:ª edição, pág. 198.↩︎

2. Que conforme se decidiu no Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 10-10-2024, no Processo n.º 1109/21.2T8ENT.E1, publicado in www.dgsi.pt: “(os concretos pontos de facto impugnados) devem ser feitos nas respetivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão.”↩︎

3. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/6738094d5a209f2f80258b3200563662?OpenDocument↩︎