PROPRIEDADE
TÍTULO
REGIME DE BENS DO CASAMENTO
REGISTO PREDIAL
NULIDADE
Sumário

Sumário:
1. A inscrição matricial serve apenas finalidades tributárias (artigo 12.º, n.º 5 do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis), pelo que só o registo predial funda a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito (artigo 7.º do Código de Registo Predial).
2. Assim, se foi efetuada uma inscrição matricial de um prédio urbano indicado como omisso, sem que tenha sido aberta a correspondente descrição predial, e constatando-se que essa construção se integra num prédio descrito no registo predial, relativamente ao qual foi celebrado um contrato de doação, onde não foi excluída da transmissão da propriedade qualquer área ou construção existente em tal prédio, impõe-se a conclusão de que através da doação foi transmitida a propriedade daquela construção.

3. Verificando-se que foi posteriormente aberta uma descrição predial relativamente àquela construção, onde se consignou que o primitivo titular do direito de propriedade era o marido da proprietária do prédio onde semelhante construção estava implantada, e que o seu direito foi transmitido à viúva e filha, mas estando provado que o regime de bens deste casamento era a separação de bens e nada mais estando provado que constitua causa legítima de aquisição, conclui-se que este registo foi lavrado com base em título insuficiente, o que gera a sua nulidade (artigo 16.º, alínea b) do Código de Registo Predial).

(Sumário da responsabilidade da Relatora, nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil)

Texto Integral

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Apelação n.º 523/23.3T8EVR.E1


(1ª Secção)


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Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


I - Relatório


1. AA e BB intentaram a presente ação declarativa, sob forma de processo comum, contra CC, pedindo que seja:


a) declarado que a A. é legítima proprietária do prédio urbano, constituído por uma morada de casas térreas com 5 divisões e 1 corredor, sendo 4 destinadas a habitação e 1 cavalariça, a que corresponde atualmente a descrição predial urbana n.º 1296 da freguesia de Local 1, inscrito na respetiva matriz predial urbana da freguesia de Local 1 sob o artigo 761;


b) inutilizada a descrição predial urbana n.º 1296, da freguesia de Local 1 ou, caso assim se não entenda, com a consequente declaração de nulidade e/ou cancelamento/eliminação de todas as inscrições, ou ainda, seja a referida descrição e respetivas inscrições canceladas ou eliminadas nos termos da lei que se entender aplicável.


Invocam, para tanto e em síntese, que o prédio urbano cujo registo foi promovido pela R. é parte integrante do prédio rústico adquirido pela A., pois além de se encontrar localizado no prédio desta, tem uma afetação agrícola, e inexiste qualquer servidão de acesso ou passagem. Alega que o registo efetuado pela R. é ilegal.


2. A R., regularmente citada, apresentou contestação, alegando que o prédio urbano em causa era a casa de morada de família dos seus pais, que está inscrito na matriz desde o ano de 1971, que existe uma servidão por destinação do pai de família e que a A., quando adquiriu o prédio rústico, bem sabia que não o fazia relativamente ao prédio urbano.


Pugnou pela improcedência da ação.


3. Foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova, e, após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente.


4. Inconformados com a sentença, vieram os AA. apelar da mesma, concluindo as suas alegações com as seguintes conclusões:


“1 – O presente recurso é interposto da D. sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, a qual julgou totalmente improcedente a acção, por não provada, absolvendo a Ré do pedido e condenando os Autores nas custas processuais.


2 - Pretendiam os Recorrentes, com a presente acção, serem reconhecidos como legítimos proprietários do prédio urbano que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 1296 da freguesia de Local 1 e inscrito na matriz predial urbana daquela mesma freguesia de Local 1 sob o artigo 761º, em virtude de tal prédio estar implantado e fazer parte integrante do prédio rústico por si adquirido (o identificado no ponto 1 dos factos provados), não tendo qualquer autonomia relativamente àquele, tendo uma afectação agrícola ou de apoio à exploração agrícola.


3 - Entendeu a Meritíssima Juiz “a quo” que a Recorrente não logrou provar o direito (de propriedade), cuja existência pretendia ver declarado, na medida em que, não logrou provar a sua afectação agrícola, de apoio à produção agrícola, ou que tal construção fosse utilizada como cavalariças, galinheiro, ou armazenamento de alfaias agrícolas, tendo resultado dos factos provados que o prédio urbano em causa era uma habitação dos pais da Ré e onde o pai da Ré passava vários fins de semana.


4 - O prédio já se encontrava inscrito desde 1971, tendo estado omisso na matriz há mais de cinco anos, pelo que o mesmo já ali se encontrava implantado desde o ano de 1966, altura em que o registo dos mesmos não era obrigatório.


5 - “Ora, no momento em que o prédio rústico denominado por cabeço do Mourão, que era propriedade de DD foi dividido em dois lotes distintos, já existia aquele prédio urbano e este era autónomo do prédio rústico, pois caso assim não fosse, o mesmo teria obrigatoriamente de ser registado na Conservatória do Registo predial como prédio misto, o que não sucedeu. Na verdade, resulta claramente provado que o prédio dos Autores é um prédio rústico e não um prédio misto.”


6 - Com o devido respeito, é nosso entendimento que a Meritíssima Juiz “a quo”, ao decidir da forma como o fez, decidiu mal e em desconformidade com a lei, bem como não foi feita uma correcta apreciação e valoração da prova testemunhal, verificando-se, assim, um erro notório de apreciação da prova produzida.


7 - A Apelante recorre assim, da matéria de facto e de direito.


8 - Antes de mais, e no que concerne aos Factos provados constantes da D. sentença recorrida, verificam-se algumas incorrecções, tratando-se de erros materiais, que deverão ser rectificados, designadamente os pontos 14 e 15 dos factos provados.


9 - No que concerne ao ponto 14 dos factos provados, onde se lê “prédio este, referido em 6”, o correcto será ler-se “Prédio este, referido em 13, que veio a ser dividido em dois lotes distintos a saber:


a) Lote A – Prédio rústico (…)”, como bem resulta da escritura junta aos autos com a petição inicial como documento 13.


10 - E o ponto 15 dos factos refere “ O prédio referido na alínea b) do ponto 7, foi doado …”, quando o que deveria constar é O prédio referido na alínea b) do ponto 14, foi doado…, desde logo, porque o ponto 7 dos factos provados não contém qualquer alínea e, porquanto é o que resulta da escritura junta aos autos da petição inicial junta como documento 13.


11 - Estabelece o nº 2 do artigo 204º do C. Civil que entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro.


12 - Como critério de distinção entre prédio rústico e urbano tem avultado na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a orientação de que deve prevalecer uma avaliação casuística, tendo subjacente a destinação ou afectação económica do prédio.


13 - No entanto, não basta assentar uma construção, mesmo com autonomia económica sobre o imóvel, para o transformar em prédio urbano.


14 - Um prédio com uma habitação será rústico ou urbano conforme a habitação for fundamentalmente um meio de ligação à terra cultivada ou antes a terra constituir apenas um complemento da habitação e não um fim essencial da ocupação da habitação.


15 - Atentemos na prova produzida, designadamente nos depoimentos das testemunhas EE, FF e GG (depoimentos prestados todos no dia 06/05/2024, com início aos minutos 14:16, 14:34 e 14:56, respectivamente, supra transcritos) que, no nosso entendimento, não foram devidamente valorados e que estão em contradição com as conclusões retiradas pela Meritíssima Juiz “a quo” na sentença agora em crise, nomeadamente no que concerne à afectação do prédio referido em 6 dos factos provados.


16 - Dos depoimentos das testemunhas supra referidas e supra transcritos resulta que, no terreno que foi doado à Confraria do pão (Região 1) existiam diversas construções rurais, 1 chiqueiro, cavalariças, 1 galinheiro e também uma habitação, onde o HH e a esposa se deslocavam por vezes aos fins de semana, na época das colheitas, sempre que havia necessidades do campo.


17 - Podiam ficar ou dormir lá na época das plantações e da colheita, sendo este o motivo da ocupação da casa, tratar da plantação e fazer as colheitas, pelo que a sua função era de apoio à agricultura.


18 - Pois que a casa de habitação do HH e da esposa, conforme resulta bem claro dos depoimentos supra transcritos era situada no Cidade 1, uma casa com água e luz e todas as condições de habitabilidade.


19 - O “monte” não tinha água, nem luz, o que também não era necessário atenta a sua função de apoio à agricultura, esta não era uma casa para viver/habitar.


20 - Aliás, nas palavras da testemunha GG “não se podia lá viver”.


21 - Por todo o exposto outra conclusão não se pode retirar da prova produzida que não a de que a habitação existente no prédio rústico adquirido pela Recorrente não tinha autonomia, pois que o fim essencial da ocupação da habitação eram as actividades agrícolas (as plantações e as colheitas).


22 - Ainda, não se provou que esta habitação tivesse qualquer servidão de acesso.


23 - Por outro lado importa referir e não se pode ignorar que dos próprios elementos constantes das escrituras, da caderneta predial e da certidão predial, há sempre referência na descrição/constituição do prédio rústico adquirido pelos Autores, uma construção rural e habitação.


24 - Resulta dos factos provados (ponto 1), que os Recorrentes são possuidores e legítimos proprietários do prédio rústico, sito no Monte...), constituído por uma parcela de cultura arvense, por uma parcela de construção rural e por uma parcela de habitações, com a área total de 31333,00 m2, a confrontar do Norte, Nascente e Poente, com CC e do Sul com Herdade..., inscrito na respectiva matriz rústica da freguesia de Local 1), sob o artigo 15, Secção 004 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 2 sob a descrição nº 793/20000920 e aí registado a seu favor através da Ap. 4184 de 19/05/2022, da freguesia de Local 1). (sublinhado nosso)


25 - Que o referido prédio foi adquirido pela Recorrente, por compra e venda celebrada em 19 de Maio de 2022, pelo preço de 69.800,00€, no âmbito do processo de insolvência com o nº 213/17.6..., que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Cidade 3, Juízo de competência Genérica de Cidade 4 (ponto 2 dos factos provados).


26 - Por escritura celebrada em 18 de Janeiro de 2000, no Cartório Notarial do Cidade 1, II (mãe da Ré entretanto falecida), doou à Ré, o prédio rústico denominado por “Cabeço...”, com a área de 19 hectares, sito na freguesia de Local 1), concelho de Cidade 2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 2 sob o artigo 004.0004.0000, correspondente ao anterior artigo 4 da secção D, com o valor patrimonial de $ 365.602,00. (Ponto 13 dos Factos Provados)


27 - Prédio este, que veio a ser dividido em dois lotes distintos a saber:


a) Lote A – prédio rústico, com a área total de 15,866700ha, a confrontar do Norte com o Ribeiro do..., do Sul com a Herdade... e ..., do Nascente com JJ e do poente com KK, inscrito na matriz rústica da freguesia de Local 1) sob o artigo 14/004; e


b) Lote B – prédio rústico com a área de 31333,00 m, no qual se encontra implantada uma construção rural que confronta do norte, do nascente e do poente com o Lote A e do sul com a Herdade..., composto por cultura arvense (com a área de 31166,00m2), construção rural (área de 62 m2 e por habitaç(ões) (área de 105 m2), descrito na Conservatória do Registo Predial do Cidade 2 com o nº 793, da freguesia de Local 1) e inscrito na respectiva matriz predial rústica daquela mesma freguesia de Local 1, sob o artigo 15, secção 004. (sublinhado nosso) (Ponto 14 dos Factos Provados)


28 - O prédio referido na alínea b) foi doado, em 25 de Agosto de 2000, pela Ré CC à Confraria do Pão (Região 1), ou seja, o adquirido pela Autora no âmbito do processo de insolvência daquela Associação e identificado no ponto 1. (Ponto 15 dos Factos Provados)


29 - No que concerne à pré existência da inscrição na matriz, desde 1966, há que referir que a inscrição matricial do prédio urbano não constitui fora da relação tributária, presunção do direito de propriedade, “as inscrições matriciais só para efeitos tributários constituem prova de propriedade”, de acordo com o artigo 12º, nº 5 do CIMI.


30 - A matriz e o registo não dão nem retiram direitos.


31 - O registo é meramente declarativo e destina-se a publicitar a situação dos prédios neles descritos.


32 - E, embora o registo não fosse obrigatório até 1984, facto é que a partir dessa data, passou a ser e, nem por isso, o prédio foi registado na Conservatória pela Ré, ou pelos seus pais.


33 - O que só veio a acontecer no ano de 2014, isto é, 40 anos depois.


34 - O artigo 1316º do C. Civil estabelece que o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, acessão e demais previstos na lei.


35 - Ora, quando ocorre a doação do prédio rústico (em 2000), conforme bem resulta do depoimento de todas as testemunhas e também da douta sentença recorrida, a habitação já existia implantada no terreno rústico que foi doado à Confraria do Pão (Região 1) e mais tarde adquirido pela Recorrente.


36 – Ora, ter-se-á de entender que o prédio foi doado na sua totalidade, pois que nada foi excepcionado ou excluído quanto ao mesmo, uma vez que as partes bem o conheciam fisicamente e nada declararam excluir do negócio (artigo 236º do C. Civil).


37 - Se assim não fosse, haveriam de procurar restringir ou limitar a declaração negocial, pela negativa, por forma a só incluir na doação parte determinada do todo já existente, ou dela excluiria alguns elementos, nos moldes legalmente admissíveis.


38 - E se a situação registal e matricial então existente estava desactualizada ou não era consentânea, tal facto era imputável à Recorrida e não à donatária.


39 - As partes bem sabiam dessa edificação e não a registaram, nem a excluíram da


doação.


40 – Pelo que terá de se considerar a transmissão da propriedade também da habitação.


41 - Aliás, da identificação dos prédios, nomeadamente do Lote B consta prédio rústico com a área de 31333,00 m, no qual se encontra implantada uma construção rural que confronta do norte, do nascente e do poente com o Lote A e do sul com a Herdade..., composto por cultura arvense (com a área de 31166,00m2), construção rural (área de 62 m2 e por habitaç(ões) (área de 105 m2), descrito na Conservatória do Registo Predial do Cidade 2 com o nº 793, da freguesia de Local 1) e inscrito na respectiva matriz predial rústica daquela mesma freguesia de Local 1, sob o artigo 15, secção 004.


42 - Este prédio, designado por Lote B, resulta da divisão em dois, do prédio rústico registado na Conservatória do Registo Predial do Cidade 2 com a descrição nº 4102 e inscrito na matriz 004.0004.0000, prédio este, cuja descrição “Parcela cultura Arvense e oliveiras”, foi alterada para “cultura arvense com olival, cultura arvense, oliveiras e construção rural” (negrito nosso). Docs. 13 e 14 da p.i..


43 - Este averbamento à descrição nº 4102 da Conservatória do Registo Predial do Cidade 2 - “construção rural” - foi efectuada em 25.02.2000, rectificando-se dessa forma, a descrição do prédio rústico 793 resultante da divisão, prédio este que foi doado à Confraria e, posteriormente adquirido pela Autora/Recorrente.


44 - Sendo que, física e legalmente, a edificação/habitação não seria passível de registo autónomo, enquanto prédio urbano, sem que previamente fosse efectuada a sua autonomização jurídica, o seu destaque/desanexação, o que não se verificou.


45 - Estão sujeitos a registo predial os factos jurídicos relativos à constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão relativos a prédios rústicos, urbanos ou mistos nos termos do artigo 2º do Código do Registo Predial.


46 - Prevendo o artigo 28º, nº 1 do Código do Registo Predial que deve haver harmonização quanto à localização, à área e ao artigo da matriz, entre a descrição e a inscrição matricial ou o pedido de rectificação ou alteração desta.


47 - O facto é que o prédio identificado no ponto 6 dos factos provados não tinha autonomia, a habitação fazia parte integrante do prédio rústico, fazendo parte da sua composição, conforme supra demonstrado.


48 - E, no nosso modesto entender, não se poderá concluir, como a Meritíssima Juiz “a quo” o faz que “o prédio urbano era autónomo do prédio rústico, pois caso assim não fosse, o mesmo teria obrigatoriamente de ser registado na Conservatória do Registo Predial como prédio misto, o que não sucedeu. Na verdade, resulta claramente provado que o prédio dos Autores é um prédio rústico e não um prédio misto.”


49 - Pois que, para que o prédio estivesse registado como misto era necessário que a mãe ou o pai da Recorrida tivessem dado conhecimento à Conservatória do Registo Predial da existência daquele prédio urbano, declarando a sua existência, o que não aconteceu - o prédio só foi registado em 2014, independentemente de o registo ser obrigatório desde 1984.


50 - E quanto à constituição da hipoteca essa só podia ter sido feita sobre o prédio rústico, porquanto era o que constava da base documental (caderneta predial e da certidão predial) entregues à Caixa Agrícola.


51 - E foi a Confraria do Pão (Região 1) que, na sequência da doação referida e, por força da qual ocorreu a transferência da posse, que fez as obras de construção e ampliação das construções rurais existentes no prédio rústico, incluindo a habitação, por forma a aí ter a sua sede e as suas instalações produtivas, para o fabrico e confecção do pão, conforme bem resulta das plantas constantes do processo de licenciamento da Câmara Municipal juntas aos autos.


52 - Neste sentido, encontra-se junto aos autos com o requerimento com a referência 47487224, datado de 21/12/2024, o documento 8-A, que constitui um fax dirigido à Câmara Municipal do Cidade 2, datado de 16/02/2000, pela direcção da Confraria do Pão, subscrito por LL, marido da Ré, onde se pode ler no ponto 1, “A propriedade denominada “Cabeço... quando era pertença do Sr. MM (…), (o que significa que já não é).


53 - Mais à frente, no ponto 3 pode ler-se: “Quer o então proprietário, quer seu neto, quer a actual proprietária e doadora da parcela onde estamos a instalar a sede da Confraria do Pão (Região 1) …”


54 - Da leitura deste fax resulta que, na data de 16/02/2000, data do fax, o Senhor MM já não era proprietário da propriedade Cabeço... – o monte- e que a confraria iria instalar a sua sede numa parcela doada – o prédio rústico objecto dos autos.


55 - A Confraria do Pão apresentou em 2000, conforme projecto nº 63/00 da Câmara Municipal do Cidade 2 e, na sequência da divisão do imóvel com a matriz nº 004.0004. em 2 lotes, um projecto de construção destinado à remodelação de um monte para instalação da sede da confraria.


56 - Tal projecto preconizou a remodelação da construção já existente (designada como construção rural, composta por habitação e cavalariça, e implementadas sob o lote B) a que corresponde a aludida construção urbana inscrita na matriz 761 e a sua ampliação com vista à instalação da sede da confraria, com uma área construtiva de 318 m2.


57 - Após a conclusão deste projecto é apresentada a licença de construção nº 14/2002, com vista à instalação de um forno para fabrico de pão artesanal alentejano, um moinho, uma azenha e um tanque de recuperação de água.


58 - Em nenhum momento ou documento existe a referência a obras ou projectos ou vistorias na matriz nº 761, ou qualquer autorização da Ré ou da sua mãe nesse sentido, nomeadamente do documento 19 junto com a petição inicial como é referido na D. sentença recorrida.


59 - As obras decorreram, conforme processo 63/00 e licença de construção nº 14/2002, reportaram a obras na matriz nº 4.004, emitido em nome de Confraria do Pão, relativamente a um edifício destinado a Associação Cultural e Científica sito no Monte....


60 - As obras foram efectuadas pela Confraria do Pão, implementadas no prédio rústico da propriedade da Confraria, com financiamento, garantido por hipoteca, a favor da CCAM e ainda com recurso a fundos públicos.


61 - Entendendo-se assim, com o devido respeito por melhor opinião, que o ponto 20 dos factos provados deveria ser dado como não provado.


62 - O prédio urbano e construções rurais estavam na posse da Confraria do Pão (Região 1), que levou a cabo as obras de construção e ampliação no prédio identificado no Ponto 6 dos factos provados e que o ocuparam, por forma a aí desenvolver as suas actividades de fabrico/confecção do pão (Região 1), o que aliás, está dado como provado no ponto 17 dos factos provados.


63 - E fizeram-no enquanto possuidores e proprietários do prédio identificado no ponto 6.


64 - No que concerne à alegada existência de um contrato de arrendamento, pese embora as testemunhas NN e LL tenham referido a existência de um contrato, que dizem ter sido reduzido a escrito, facto é que tal contrato não está junto aos autos, alegando tais testemunhas, convenientemente, não saberem onde se encontra e não terem cópia do mesmo.


65 - Ou seja, não existe qualquer contrato, não tendo sido feita prova da existência do mesmo, pelo que não poderá considerar-se tal situação.


66 – Todas as cláusulas contratuais estão plasmadas na escritura de doação do lote B.


67 - A acreditar nesta tese, a Confraria estava a fazer obras, grandes obras diga-se, porquanto alterou a área do urbano para mais do dobro daquela que existia (sendo certo que a informação plasmada no projecto de construção até refere “ruína” relativamente ao conjunto construtivo existente, paredes meias com a habitação e as outras construções, e a pagar um empréstimo para essas mesmas obras, em prédio alheio, sem que por elas pudesse reclamar quaisquer direitos. Não é credível.


68 - Tal significaria que um prédio que, de acordo com a certidão matricial, era constituído por uma habitação com 165,30 m2 de área coberta, implantado em solo de terceiro, e não descrito na Conservatória do Registo Predial, transforma-se num prédio com uma área de implantação de 700,5 m2 e área de construção de 904,20 m2, ficando a Recorrida na propriedade desta, procedendo simplesmente a uma rectificação de áreas.


69 - Ora, do exposto, dúvidas não há que a edificação foi levada a cabo pela Confraria do Pão (Região 1) e que está implantada no prédio que lhe foi doado pela Ré, no ano de 2000, o mesmo que a Recorrente adquiriu no âmbito do processo de insolvência daquela Confraria, com todas as construções lá existentes, designadamente a edificação objecto do processo de obras 63/00 da Câmara Municipal do Cidade 2 e à qual veio a ser concedida a licença de utilização em 2004.


70 - Note-se que na própria escritura de compra e venda, através da qual a Recorrente adquiriu o prédio objecto dos autos é referido que o prédio rústico é vendido, com todas as suas pertenças.


71 - Mais resultando da prova produzida, quer documental (mapas cadastrais) quer testemunhal que o prédio hoje existente (o identificado no ponto 6 dos factos provados) se sobrepõe às construções rurais e habitação pré-existentes, estando implantado no solo do prédio adquirido pela Recorrente, em toda a sua extensão.


72 - Da consulta ao cadastro predial resulta claro, e não obstante a finalidade dos cadastros rústicos, mormente que, os mesmos se limitam a aferir da localização, configuração geométrica, confrontações e áreas dos prédios rústicos, conforme é referido na sentença recorrida, do documento emitido pela Direção Regional da Agricultura, que constitui o documento 16 junto com a p.i., relativo à divisão do prédio descrito sob o nº 773 e inscrito na matriz predial sob o artigo 004.0004.000, em 2 lotes (Lote A e Lote B) evidencia claramente a existência da referida construção rural e habitação à data da doação, não existindo nenhuma outra.


73 - Da sobreposição cadastral relativa ao Lote B (antes e após), documento junto aos autos pela Recorrente com o requerimento com a referência 48139350, das construções efectuadas pela Confraria, resulta claro, que a construção rural está inserida nas edificações implementadas pela confraria no Lote B que lhe foi doado, azendo parte integrante do prédio da Recorrente.


74 - A configuração actual das edificações que se encontram implantadas no solo da Recorrente (o Lote B) corresponde exactamente às que resultaram das obras terminadas em 2002 e vistoriadas em 2004 pela Câmara Municipal do Cidade 2.


75 - Tais edificações estão representadas na planta de localização cadastral do prédio objecto dos autos, junta pela Recorrente com o requerimento com a referência 48139350.


76 - Dessa planta cadastral resulta a sobreposição da construção existente actualmente sobre a construção rural referida/identificada na matriz predial rústica com o artigo 15, secção 4, da freguesia de Local 1, permitindo observar a construção rural existente à data da doação, inserido no Lote B – construção rural de 62,0m2 + habita(ções) com 105,0 m2, num total de 167,0 m2.


77 - Todo o solo circundante pertence igualmente ao Lote B, não sendo identificável qualquer outra construção, porque inexistente.


78 - Tendo presente que as obras de modificação e ampliação de um monte sito em cabeço de mourão foram promovidas, projectadas, financiadas e executadas pela Confraria do Pão (Região 1) sob o solo que lhe fora doado, isto é o Lote B adquirido pela Recorrente.


79 - E estes elementos de prova não foram considerados pelo Tribunal a quo, quando deveriam ter sido.


80 - Nesta medida e tendo em conta que a Confraria do Pão não registou as construções efectuadas no seu solo, a Ré/Recorrida, munida de um Alvará de Construção emitido a favor da Confraria do Pão, alterou as áreas constantes da matriz, que era inicialmente de 165,3 m2, (matriz esta que devia estar cancelada no ano de 2000), passando dela a constar (em 2022) uma área de construção de 904,20m2, ou seja, já após a escritura de compra e venda do Lote B a favor da Recorrente no âmbito da insolvência de Confraria do Pão.


81 - A Recorrida e a sua mãe o que fizeram foi aproveitar a ausência de registo do prédio urbano para o declarar na herança do pai e marido, vindo mais tarde a registá-lo em comum e sem determinação de parte ou direito a seu favor, procedendo mais tarde à alteração das áreas do prédio com base no projecto de obras apresentado e levado a cabo pela Confraria do Região 1.


82 - De todo o exposto resulta que a descrição aberta pela Ré terá por objecto uma realidade jurídica inexistente, sem correspondência com um verdadeiro direito de propriedade.


83 - Não existindo qualquer título que titule a propriedade do prédio identificado no ponto 6 dos factos provados por parte da Recorrida.


84 - Nos termos do artigo 16º, alíneas a), b) e c) do C. Registo Predial, são nulos os registos que tiverem sido lavrados com base em títulos insuficientes para a prova legal do facto registado, quando enfermar de omissões.


85 - Desta forma, atento o supra exposto e a prova produzida (nomeadamente a testemunhal aqui referida), deverão ser considerados provados os seguintes factos constantes das alíneas a) e d) dos factos não provados:


a) O prédio urbano referido em 6 dos factos provados tinha uma afectação agrícola, de apoio à produção agrícola.


b) a edificação do prédio referido em 6 está implantada no prédio que lhe foi doado pela Ré, no ano de 2000.


86 - Por todo o exposto, está assim ilidida a presunção de propriedade a favor da Recorrida e demonstrado o direito de propriedade de Recorrente.


87 - Entende pois, a Apelante que na D. sentença recorrida que foi feita uma incorrecta apreciação e valoração da prova testemunhal produzida, verificando-se, assim, um erro notório de apreciação da prova produzida em audiência de julgamento.


88 - Ora, se a prova produzida em audiência tivesse sido devidamente valorada, outra decisão se impunha, e a materialidade fáctica dada como provada teria sido diferente.


89 - Devendo, pelo exposto, dar-se como provadas as alíneas a) e b) supra referidas.


90 - E a Recorrente ser reconhecida como legítima proprietária do prédio urbano que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 1296 da freguesia de Local 1 e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Local 1, sob o artigo 761, com as consequências legais.


91 - Quanto à questão das custas, sendo a decisão recorrida substituída por outra que julgue procedente todo o peticionado pela Apelante, as custas, necessariamente, serão a cargo da Ré/Apelada.”


5. A R. contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.


6. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II – Questões a Decidir


O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).


Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).


No caso em apreço importa apreciar se:


a) deve ser alterada a decisão de facto;


b) deve, em consequência da alteração da decisão de facto, ser revogada a sentença e julgada a ação procedente.


III – Fundamentação de facto


1. O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:


“1. AA e BB, Autores, são possuidores e legítimos proprietários do prédio rústico, sito no Monte...), constituído por uma parcela de cultura arvense, por uma parcela de construção rural e por uma parcela de habitações, com a área total de 31333,00 m2, a confrontar do Norte, Nascente e Poente, com CC e do Sul com Herdade..., inscrito na respectiva matriz rústica da freguesia de Local 1), sob o artigo 15, Secção 004 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 2 sob a descrição nº 793/20000920 e aí registado a seu favor através da Ap. 4184 de 19/05/2022, da freguesia de Local 1).


2. O prédio referido em 1. foi adquirido pela Autora AA, por compra e venda celebrada em 19 de Maio de 2022, pelo preço de € 69.800,00, no âmbito do processo de Insolvência com o número 213/17.6..., que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Cidade 3, Juízo de Competência Genérica de Cidade 4.


3. A Autora adquiriu o referido prédio livre de todos os ónus ou encargos.


4. O aludido prédio foi objecto de venda em leilão electrónico, tendo sido publicitado pela leiloeira Leilosoc, tendo sido, desta forma, que a Autora teve conhecimento da venda.


5. Do anúncio resulta fotografia com a configuração e delimitação do imóvel, designadamente, “Terreno com + 3 hectares”.


6. Na conservatória do registo predial encontra-se registado, a favor da Ré e de II (entretanto falecida), o prédio urbano, a que corresponde a descrição predial urbana nº 1296 da freguesia de Local 1) e inscrito, desde o ano de 1971, na respectiva matriz predial urbana daquela mesma freguesia de Local 1) sob o artigo 761.


7. Antes de 1971, o prédio urbano referido em 8. encontrava-se omisso na matriz há mais de 5 anos.


8. O referido prédio urbano era habitação, ainda que não casa de morada de família, dos pais da Ré e onde o pai da Ré passava vários fins de semana.


9. O registo predial só passou a ser obrigatório no Concelho de Cidade 2, a partir do dia 01 Outubro de 1984, com a aprovação do Decreto Lei n.º 224/84, de 6 de Julho.


10. Em 31.01.2014, a Ré e a sua mãe II, requereram o registo em comum e sem determinação de parte ou direito, em seu nome e da sua mãe, na qualidade de herdeiras do falecido MM.


11. A Ré procedeu à alteração da área do prédio identificado em 6., passando a constar na certidão do registo predial e na caderneta predial ao invés de 380 m2, uma área de 700,50m2 e uma área de construção de 904,20 m2.


12. A primeira transmissão que se verificou do prédio urbano foi após o decesso do proprietário inscrito MM, para os seus sucessores, a sua cônjuge II e a sua Filha, a aqui Ré, que então trataram junto da Autoridade Tributária e não registaram em nome da herança indivisa.


13. Por escritura celebrada em 18 de Janeiro de 2000, no Cartório Notarial do Cidade 1, II (mãe da Ré, entretanto falecida), doou à Ré, o prédio rústico denominado por “Cabeço...”, com a área de 19 hectares, sito na freguesia de Local 1), concelho de Cidade 2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 2 sob o nº 4102 e inscrito na matriz predial daquela mesma freguesia de Local 1) sob o artigo 004.0004.0000, correspondente ao anterior artigo 4 da secção D, com o valor patrimonial de $ 365.602,00.


14. Prédio este, referido em 6. que veio a ser dividido em dois lotes distintos, a saber:


a) Lote A - prédio rústico, com a área total de 15,866700ha, a confrontar do Norte com o Ribeiro do..., do Sul com a Herdade... e ..., do Nascente com JJ e do Poente com KK, inscrito na matriz rústica da freguesia de Local 1) sob o artigo 14/004; e


b) Lote B - prédio rústico, com a área de 31333,00 m2, no qual se encontra implantada uma construção rural que confronta do norte, do nascente e do poente com o Lote A e do sul com a Herdade 2, composto por cultura arvense (com a área de 31166,00m2), construção rural (área de 62 m2) e por habitação(ões) (área de 105 m2), descrito na Conservatória do Registo Predial do Cidade 2 com o nº 793, da freguesia de Local 1) e inscrito na respectiva matriz predial rústica daquela mesma freguesia de Local 1, sob o artigo 15, secção 004.


15. O prédio referido na alínea b) do ponto 7, foi doado, em 25 de Agosto de 2000, pela Ré CC à Confraria do Pão (Região 1), ou seja, o prédio adquirido pela Autora no âmbito do processo de insolvência daquela Associação e identificado no ponto 1.


16. O marido da Ré, LL, era membro da Direcção da Confraria.


17. As instalações produtivas onde a Confraria do Pão exercia a sua actividade de fabrico/confecção do pão tradicional alentejano ocorriam no prédio urbano identificado em 6.


18. A Confraria do Pão (Região 1) procedeu, como proprietária, à construção de obras no seu terreno mas para que pudesse laborar em modo de panificação artesanal, no sentido de poder fabricar o pão tradicional do Região 1, era necessário proceder a obras no prédio urbano.


19. A Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Cidade 4, financiou as obras de remodelação necessárias para a panificação, mediante a hipoteca do prédio rústico que foi doado à Confraria do Pão em 25 de Agosto de 2000.


20. A Ré e a sua mãe decessa DD deram autorização à Confraria, onde pontificavam o marido da Ré e o filho de ambos para as referidas obras e remodelações no prédio urbano.


21. A Confraria do Pão (Região 1) veio, na sequência da doação que lhe foi feita, a promover, a obras de construção e ampliação, nas edificações do seu prédio rústico e nas instalações onde era produzido o fabrico/confecção do pão tradicional alentejano, o prédio urbano referido em 6.


22. As instalações produtivas onde a Confraria do Pão exercia a sua actividade de fabrico/confecção do pão tradicional alentejano, estavam providas de sala de preparação de massas, forno tradicional a lenha, sala de fermentação/descanso de massas e diversas salas/divisões para outras actividades, nomeadamente, para actividades didácticas, culturais e recreativas.


23. A Ré, conjuntamente com sua Mãe, apresentou em 29.09.2021, um requerimento, no processo de insolvência, a invocar o prédio urbano encravado para poderem exercer o direito de preferência, após terem tido conhecimento através do Senhor AI, do valor apresentado pela A., oferecendo então, pelo prédio rústico, a quantia de € 71.000,00.


24. Pelo menos, após o processo de apresentação de propostas para a aquisição do prédio identificado em 1., mais concretamente, com o requerimento apresentado pela Ré e pela sua mãe II, no processo de insolvência identificado em 2., datado de 29 de Setembro de 2021, na qual estas apresentaram proposta para aquisição do prédio em venda, vieram os Autores a ter conhecimento que a Ré requereu o registo em comum e sem determinação de parte ou direito, em seu nome e da sua mãe II, na qualidade de herdeiras do falecido MM.


25. A Ré teve conhecimento de que a Irmandade do Cidade 2, proprietária de um prédio confinante com o artigo 15 da secção 004, apresentou proposta no processo de insolvência quanto ao prédio referido no ponto 1., a que a Autora veio responder, em 24.01.2022.


26. O Administrador de Insolvência designado no processo de insolvência da Confraria, nunca apreendeu a chave do prédio urbano, nem sequer a Ré ou qualquer outra pessoa foi notificada para o efeito, ou foi designada como fiel depositária dessa chave.”


2. E julgou não provados os seguintes factos:


“a) O prédio urbano referido no ponto 6 dos factos provados tinha uma afectação agrícola, de apoio à produção agrícola, sendo a construção utilizada como cavalariças, galinheiro, armazenamento de alfaias agrícolas e outras.


b) Tendo o mesmo sido casa de morada de família durante muitos anos.


c) No prédio referido em 6 dos factos provados foi constituída uma servidão por destinação de pai de família.


d) A edificação no prédio referido em 6., está implantada no prédio que lhe foi doado pela Ré, no ano de 2000.


e) A Ré era confrade juntamente com o filho.


f) Várias vezes foi perguntado telefonicamente quer ao Senhor Administrador de Insolvência, quer à CCAM, se quem ofereceu a verba de € 69.800,00, tinha conhecimento/sabia o que estava a comprar.”


3. No n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, norma atinente à “modificabilidade da decisão de facto”, prescreve-se que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”


E no artigo 640.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, estabelece-se que:


“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:


a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;


b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;


c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.


2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:


a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;


b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”


A ideia fundamental que se extrai da norma transcrita é a de que deve o recorrente delimitar de forma clara o objeto do recurso, identificando os segmentos da decisão de facto que pretende impugnar e os meios de prova que impõem decisão diversa.


A razão desta exigência encontra-se na circunstância dos recursos se destinarem à reapreciação das decisões proferidas em 1ª instância e não à prolação de uma decisão inteiramente nova (entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 28.06.2018 (Jorge Teixeira), Processo n.º 123/11.0TBCBT.G1, e do Tribunal da Relação do Porto de 08.03.2021 (Fátima Andrade), Processo n.º 16/19.3T8PRD.P1, ambos in http://www.dgsi.pt/).


Consequentemente, o referido n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil aplica-se no estrito âmbito delimitado pelas alegações do recorrente, o que equivale a dizer que não compete ao Tribunal da Relação reexaminar todo o processo e sindicar indiscriminadamente todos os factos e todos os meios de prova, como se de um segundo julgamento completo se tratasse.


Antes compete ao tribunal de recurso tão somente reapreciar os específicos factos identificados pelo recorrente, atentando nos meios de prova concretos que, de acordo com o recorrente, impõem decisão diversa, sem prejuízo de dever tomar em consideração outros meios de prova que, conjugadamente, imponham decisão diversa.


Constata-se que o Recorrente indicou os pontos de facto de cuja decisão discorda, bem como os meios de prova que, no seu entendimento, impõem decisão diversa, apontando ainda a decisão que se lhe afigura que seria a mais correta em face desses meios de prova, sendo que apesar de o ter feito em conjunto, é inteiramente percetível o teor da sua impugnação.


Importa ainda assinalar que, por força do atual regime de recursos compete ao Tribunal da Relação apreciar a prova sindicada pelo recorrente, de acordo com as regras legais pertinentes, em ordem a formar a sua própria convicção, “por isso, a Relação poderá e deverá modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado.” (Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., Coimbra, 2022, p. 348).


Não se trata, no entanto, de um poder de modificação irrestrito, precisamente porque não se visa proferir uma decisão inteiramente nova, mas apenas de reapreciar a decisão proferida pela 1ª Instância, assim, “se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do Tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro, deve proceder à correspondente modificação da decisão.” (Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 350).


No mesmo sentido se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017 (Maria João Matos) (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, in http://www.dgsi.pt/) que:


“I. O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova).”


4. Passamos à impugnação da decisão de facto.


4.1. Factos provados 14. e 15.


Alegam os AA. existir lapso de escrita nas remissões efetuadas nos factos provados sob 14. e 15., devendo ali referir-se o facto 13. (e não o facto 6.) e aqui o facto 14. (e não o facto 7.).


Da leitura da matéria de facto provada resulta existir, efetivamente, lapso de escrita, pelo que se procede à sua correção nos termos indicados pelos AA..


4.2. Facto provado 20.


Advogam os AA. que deveria ser julgada não provada a matéria enunciada no facto provado sob 20., ou seja, que a R. e a sua mãe autorizaram a Confraria a realizar obras no prédio que está registado em nome dos AA..


Sustentam os AA. a sua objeção nos seguintes argumentos essenciais:


- a doação do prédio foi feita à Confraria com todas as suas pertenças, sem qualquer exclusão;


- a construção hoje existente no prédio registado em nome da R. sobrepõe-se às construções rurais e habitação pré-existentes, estando implantado no solo do prédio adquirido pelos AA., em toda a sua extensão;


- logo, a construção utilizada pelo pai da R. foi também doada à Confraria;


- assim, não carecia o donatário da autorização do doador para fazer obras no prédio doado;


- acresce não fazer sentido que a Confraria despendesse quantias avultadas na realização de obras em imóvel que não lhe pertencia.


Percorrendo as razões aduzidas pelo Tribunal a quo para suportar o facto provado sob 20. constata-se que as mesmas são referidas ao conjunto formado pelos factos 17. a 21., integrando o doc. 19 junto com a p.i. e o doc. 3 junto com o req. de 22.02.2024, bem como aos depoimentos das testemunhas NN, LL, OO, EE, FF e GG.


Relativamente aos docs. verifica-se, conforme alegado pelos AA., que dos mesmos não se extrai qualquer autorização dada pela R. ou pela sua mãe para a realização de obras pela Confraria, pelo contrário, do referido doc. 19 retira-se, ex adverso, que no processo de licenciamento camarário das obras se encontra exclusivamente menção à Confraria.


Quanto aos depoimentos das testemunhas indicadas, apenas a testemunha LL, filho da R., se reporta à autorização para a realização de obras, nos termos relatados pelo Tribunal a quo: “Esclareceu que a Confraria fez algumas obras na casa, que foi aumentada e teve a anuência do proprietário. Cada vez que a Confraria precisava de dinheiro, era esta testemunha, o seu avô (PP) e os seu pais que contribuíam.”


O depoimento da testemunha LL ancora, pois, este facto provado, sublinhando-se que o Tribunal a quo, que contactou diretamente com a testemunha, apreciou favoravelmente o seu depoimento, aduzindo que “O seu depoimento mereceu credibilidade para o Tribunal pois foi prestado de forma clara e segura, com razão de ciência ao demonstrar conhecer o local, e ter respondido de forma espontânea e sincera.”


Sublinhe-se que no facto provado sob 20. se discute tão somente a questão de saber se foi dada autorização para a realização de obras, o que é distinto da questão de saber se tal autorização era necessária.


Deve, assim, manter-se este facto provado.


4.3. Facto não provado a)


Entendem os AA. que deveria ser julgado provado o facto não provado sob a), ou seja, que o prédio registado em nome da R. tinha uma afetação agrícola.


Assentam os AA. a sua impugnação essencialmente na circunstância de que a construção era utilizada pelos pais da R. na época das plantações e da colheita, acrescendo o facto de tal construção não ter água nem luz, conforme relatado pelas testemunhas EE, FF e QQ, tendo esta referido inclusivamente que “não se podia lá viver”.


No entanto, o Tribunal a quo abordou estes aspetos, afirmando que “as testemunhas inquiridas, com excepção de RR e SS, revelaram ter conhecimento do local, designadamente do “monte”, que constituía habitação de PP “aos fins de semana” (e, naturalmente, onde este pernoitava, falecendo, pois, a argumentação de inexistência de água e luz na habitação, tanto mais que há cerca de 65 a 70 anos atrás, é consabido que grande parte da população portuguesa socorria-se a outras fontes (candeeiros, poços, furos e fontes de água)).”


A argumentação do Tribunal a quo revela-se clara, coerente e ajustada às circunstâncias, sendo, efetivamente, do conhecimento geral que as comodidades a que hoje em dia estamos habituados nas nossas casas nem sempre existiram, particularmente fora das grandes cidades.


Acrescenta-se que a circunstância de uma edificação ser usada de modo mais intenso em períodos de maior atividade agrícola não lhe retira a função de habitação, quer dizer, resulta de modo inequívoco dos depoimentos das testemunhas que era nessa construção que os pais da R. viviam enquanto se encontravam no monte. Veja-se, a este propósito, o segmento do depoimento da testemunha EE transcrito nas alegações: “havia um casão enorme, havia acho que era chiqueiro também, havia quartos, havia cozinha, havia isso tudo, não havia era luz, nem água.”


E o facto de uma pessoa ter um domicílio principal não lhe retira a faculdade de possuir uma habitação secundária, o que, aliás, acontece com todos aqueles que possuem casas onde vão passar fins-de-semana e férias, ou seja, a circunstância dos pais da R. residirem habitualmente no Cidade 1 não obsta à conclusão de que viviam no monte durante alguns períodos do ano.


Aliás, a testemunha FF disse isso precisamente, como decorre do segmento do seu depoimento transcrito nas alegações: “ele era agricultor, tinha animais, habitava lá, tinha casa no Cidade 1, a mãe dele era do Cidade 1 e moravam nos dois sítios”, esclarecendo de seguida que que o pai da R. morava no monte “quando tinha necessidade de estar na parte agrícola do campo.”


Deve, pois, manter-se o facto não provado sob a).


4.4. Facto não provado d)


Defendem ainda os AA. que deveria ser julgado provado o facto não provado sob d), a saber, que a edificação que integra este prédio está implantada no prédio doado pela R., no ano de 2000.


Os AA. aludem aos termos do registo predial e da inscrição matricial dos prédios envolvidos neste litígio e dos negócios relativos aos mesmos, os quais passamos a enunciar de forma completa e por ordem cronológica:


- o prédio rústico descrito em livro sob o n.º 4102 tinha, em 13.01.1965, a área de 19ha (doc. junto com o req. de 22.02.2024, a fls. 174 a 174-v);


- em 1971 foi inscrito na matriz um prédio urbano, ao qual foi atribuído o artigo 761, com a área total de 380m2, composto de uma morada de casas térreas com cinco divisões e um corredor, sendo 4 destinadas a habitação e uma cavalariça, cuja área de implantação é de 318m2, e consignando-se nessa inscrição que o prédio se mostrava omisso havia cinco anos (doc. 6 junto com a p.i.);


- em 18.01.2000, II doou à sua filha, a R. CC, o prédio rústico n.º 4102, declarando-se na escritura que o prédio possuía a área de 19ha (doc. 13 junto com a p.i.);


- este prédio n.º 4102 foi extratado para ficha a 25.02.2000 e recebeu então o n.º 773, indicando-se a área total de 19ha (doc. junto com o req. de 21.12.2023, fls. 167-v a 168);


- em 25.08.2000, a R. CC procedeu à divisão do prédio n.º 773 em dois lotes, A e B, não identificando, na correspondente escritura, a descrição predial ou inscrição matricial dos dois lotes, mas referindo que o lote B tem a área de 3,1333ha e que no mesmo se encontra implantada uma construção rural, e mais declarou doar à Confraria este lote identificado com a letra B (doc. 15 junto com a p.i.);


- foi aberta uma descrição, a 20.09.2000, relativa ao prédio n.º 793, com a menção de que foi desanexado do prédio n.º 773 (doc. 2 junto com a p.i.; doc. junto com o req. de 21.12.2023, fls. 167-v a 168; doc. junto com o req. de 05.02.2024, fls. 193 a 193-v);


- a este prédio n.º 793 corresponde o artigo matricial 15, da secção 4, constando da descrição predial que se trata de um prédio com a área de 3,1333ha e que se compõe de uma construção rural, e da inscrição matricial que se trata de um prédio composto de cultura arvense (3,1166ha), construção rural (0,0062ha) e de habitação (0,0105ha), num total de 3,1333ha (docs. 1 e 2 juntos com a p.i.);


- foi aberta uma ficha, a 31.01.2014, relativa ao prédio inscrito na matriz sob o n.º 761, onde lhe foi atribuído o n.º 1296, indicando-se aí que o mesmo confronta de Norte, Sul, Nascente e Poente com a Confraria do Pão (doc. 7 junto com a p.i.).


Aqui chegados, vemos que na data em que foi feita a doação à Confraria, não existia ainda descrição predial ou inscrição matricial do prédio doado, e que apesar de na descrição predial que veio a fazer-se posteriormente se aludir apenas a uma construção rural, na respetiva inscrição matricial refere-se, além desta, uma habitação.


É certo que em 1971 havia sido aberta uma inscrição matricial de um prédio urbano composto de habitação que, como se vê, desde logo, nas plantas juntas aos autos, se encontra por inteiro dentro dos limites do prédio n.º 793 (daí que confronte, por todos os lados, com esse prédio) (doc. 10 junto com a p.i.; doc. junto com o req. de 22.01.2024, a fls. 176 a 176-v), porém, só em 2014 veio a ser aberta a respetiva descrição predial.


Por outro lado, constata-se que desde 1965 a área do prédio n.º 773 não sofreu qualquer alteração, ou seja, não foi assinalada na matriz ou no registo predial a redução da área daquele prédio na medida da retirada da área correspondente ao artigo matricial 761.


Veja-se, com efeito, que apesar de se ter aberto a inscrição matricial correspondente ao artigo 761, e mais tarde a respetiva descrição predial n.º 1296, com a indicação de que se trata de um prédio omisso, na verdade, esta área incluía-se na área do prédio inscrito na matriz e descrito no registo predial sob o n.º 773, o mesmo é dizer, a retirada daquela área ao prédio n.º 773 constituiu, em bom rigor, uma desanexação.


Seguidamente, lida a escritura de doação do lote B à Confraria, não se encontra aí qualquer declaração de exclusão da transmissão de alguma área ou construção existente no lote B, nem se faz menção ao artigo 761, que já então existia.


Ora, a única finalidade da matriz é de natureza tributária, como se afirmou, entre outros, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.06.2022 (Raquel Rego) (Processo n.º 1224/12.3TBBGC.G3, in http://www.dgsi.pt/):


“III - Os documentos tributários são isso mesmo, documentos para efeitos fiscais, não criando nem extinguindo prédios na lei civil, como também não atribuem, nem retiram, a titularidade civil dos mesmos.


IV - Resulta do disposto no artº 12º, nº5, do CIMI, que as inscrições matriciais só constituem presunção de propriedade para efeitos tributários, sem que façam qualquer prova plena sobre a formação ou composição do prédio nelas inscrito.”


Só o registo predial é idóneo a fundar a presunção da existência de prédios e da respetiva titularidade (artigo 7.º do Código do Registo Predial), visando precisamente o registo predial dar publicidade à situação dos prédios, para segurança do comércio jurídico (artigo 1.º do Código do Registo Predial).


Acresce um elemento da maior relevância, a saber, a construção correspondente ao artigo 761 não era utilizada por um terceiro relativamente ao prédio n.º 4102, pois era aí que residiam os pais da R. (facto provado 8.), ou seja, não existe aqui uma posse cujo exercício seja conflituante com a presunção decorrente do artigo 7.º do Código de Registo Predial.


Assim, à pergunta sobre se o direito de propriedade sobre a habitação que integra o prédio n.º 793 foi transmitida para a Confraria, deve responder-se positivamente, à luz dos docs. analisados.


O Tribunal a quo destaca, contudo, o depoimento da testemunha NN, o qual afirmou ter existido um acordo entre o seu avô e a Confraria, no sentido da habitação ser excluída da doação.


Mas não podemos olvidar que se trata aqui de um negócio formal, sujeito obrigatoriamente à forma escrita (artigo 947.º, n.º 1 do Código Civil), pelo que as convenções contemporâneas do negócio que respeitem a cláusulas essenciais só são válidas se observarem a forma legal (artigo 221.º, n.º 1 do Código Civil), não podendo fazer-se prova testemunhal desses acordos (artigo 394.º, n.º 1 do Código Civil).


A prova testemunhal não é, pois, idónea para suportar este facto.


Deve, consequentemente, julgar-se provado o facto não provado sob d), o qual passa a constituir o facto provado 27..


4.5. A introdução do facto provado 27. suscita a questão da sua incompatibilidade com o facto provado 12..


Com efeito, decorre do doc. junto com o req. de 08.06.2023, a fls. 71 a 71-v, que constitui o assento de casamento do pai e da mãe da R., que o pai da R. faleceu no ano de 2005, logo, a afirmação de que ocorreu uma primeira transmissão da propriedade deste prédio para a mulher e filha por via da dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária, é contraditória com a conclusão acima alcançada de que a propriedade da área em causa foi transmitida para a Confraria no ano de 2000.


Daquele mesmo doc. resulta ainda que o pai e a mãe da R. foram casados sob o regime da separação de bens, menção que consta, de igual modo, da escritura de doação feita pela mãe da R. a favor desta, sem intervenção do pai da R., porquanto o prédio n.º 4102 se mostrava inscrito apenas a favor da mãe da R. (doc. 13 junto com a p.i.).


Sublinha-se que se trata de factos referidos em documentos autênticos, mostrando-se abrangidos pela força probatória plena própria destes docs. (artigo 371.º, n.º 1, 1ª parte do Código Civil).


Assim, a menção contida na primeira inscrição no registo predial do prédio n.º 1296 relativa à causa de aquisição consubstanciada na dissolução da comunhão conjugal não corresponde à realidade, pois nos casamentos em regime de separação de bens não há bens comuns.


Em face de todo o exposto, deve eliminar-se o facto provado sob 12..


Deve, ainda, completar-se o facto provado 13., introduzindo aí a referência ao facto de que a mãe da R. era casada com o pai da R. sob o regime da separação de bens, conforme consta da escritura.


III – Fundamentação de direito


1. Na situação em apreço peticionam os AA. o reconhecimento de que o prédio n.º 1296, cuja aquisição se mostra inscrita a favor da R., pertence ao prédio n.º 793, cuja aquisição se mostra inscrita a favor dos AA., mais peticionando a declaração de nulidade daquela descrição n.º 1296 e o cancelamento das respetivas inscrições.


A R. opõe-se a esta pretensão.


Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente.


Foi julgada parcialmente procedente a impugnação da decisão de facto deduzida no recurso, pelo que importa apreciar se assiste razão aos AA..


2. Trata-se aqui de uma ação que possui a dupla vertente de simples apreciação positiva e negativa (artigo 10.º, n.º 3, alínea a) do Código de Processo Civil), porquanto em acumulação com o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre a área correspondente ao prédio n.º 1296, os AA. peticionam a eliminação da descrição deste prédio.


Recai, assim, sobre os AA. o ónus da prova de que a área correspondente ao prédio n.º 1296 lhes pertence (artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil), e incide sobre a R. o ónus da prova de uma causa legítima de aquisição, que justifique a existência daquela descrição predial (artigos 343.º, n.º 1 do Código Civil).


3. Percorrendo a matéria de facto provada, verificamos estar provado que a Confraria adquiriu o prédio n.º 793 por via de contrato de doação celebrado com a R. no ano 2000 (factos provados sob 1. e 15.) (artigo 940.º, n.º 1 do Código Civil).


No que tange à composição do prédio n.º 793, está provado que neste se incluía, nesse ano de 2000, a área que veio a corresponder ao prédio n.º 1296 (facto provado sob 27.).


Relativamente ao nascimento do prédio n.º 1296, situa-se a sua inscrição na matriz no ano de 1971, com a menção de que se encontrava omisso na matriz havia cinco anos (factos provados sob 6. e 7.).


A descrição deste prédio no registo predial data de 2014 (facto provado sob 10.).


Em 2022, em sede de processo de insolvência da Confraria, o prédio n.º 793 foi comprado pela A. (facto provado sob 2.), pelo que esta se tornou proprietária do mesmo (artigos 874.º e 879.º, alínea a) do Código Civil).


O objeto da presente ação consiste em saber se a A. adquiriu a propriedade da área correspondente ao prédio n.º 1296, por via da compra realizada no processo de insolvência da Confraria.


Desde logo, resulta do exposto que no ano 2000 a Confraria adquiriu a área correspondente ao prédio que veio mais tarde a ser descrito no registo predial sob o n.º 1296, conforme resulta do facto provado sob 27..


Seguidamente, coloca-se a questão de saber se aquando da aquisição concretizada em 2022 a A. adquiriu essa área, o que implica indagar dos efeitos do registo do prédio n.º 1296 efetuado em 2014.


Ora, a partir do momento em que é dada publicidade, através do registo, à criação de um prédio novo, não podemos senão concluir que essa descrição e correspondente inscrição de aquisição passam a ser oponíveis a todas as pessoas, nos termos dos artigos 4.º e 5.º do Código do Registo Predial.


Assim, dir-se-ia que aquando da venda efetuada no processo de insolvência, a área correspondente ao prédio n.º 1296 já não fazia parte do prédio n.º 793.


Todavia, a questão colocada pelos AA. reside em saber se a R. é efetivamente titular do direito de propriedade sobre esse prédio, sustentando os AA. que assim não sucede.


A aferição dessa questão envolve analisar a causa de aquisição inscrita no registo predial, onde consta a aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito, em nome da R. e da sua mãe, na qualidade de herdeiras do falecido HH, pai da R. (facto provado sob 10.).


A sucessão é, pois, a causa de aquisição invocada pela R., a qual constitui uma das causas legais de aquisição de direitos reais (artigo 1316.º do Código Civil).


Tratando-se, no entanto, de uma aquisição derivada, é condição da mesma que o transmitente seja titular do direito objeto de transmissão (artigo 2024.º do Código Civil).


A esta luz, vemos que nada consta da matéria de facto provada no sentido de que em momento algum o pai da R. tenha sido proprietário do prédio n.º 773, aliás, o que está provado é que esse prédio foi doado pela mãe da R. a esta, a qual, por sua vez, doou este prédio à Confraria (factos provados 13. e 15.).


Por outro lado, no que tange à construção nele implantada, nada está provado no sentido de que a mesma não pertencesse ao dono do terreno, a mãe da R., sendo certo que por ser casada com o pai da R. sob o regime da separação de bens, o bem em causa não é comum, e, por outro lado, o princípio é o de que o direito de propriedade abarca tudo o que se integra no bem sobre que incide o direito, como decorre do teor global do artigo 204.º do Código Civil.


É certo que da prova produzida decorre que o prédio adquirido pelos AA. está classificado como rústico e o prédio n.º 1296 está classificado como urbano, constituindo uma habitação, o que inculcaria a conclusão de que o prédio n.º 1296 não pertence ao prédio dos AA., atento o disposto no referido artigo 204.º do Código Civil.


Resulta, com efeito, da 1ª parte do n.º 2 do normativo indicado que podem existir construções em prédios rústicos, porém, deverá tratar-se de construções sem autonomia económica, o mesmo é dizer, construções que estejam ligadas ou funcionalizadas à atividade agrícola que aí se desenvolva.


É isto mesmo, aliás, que se estabelece no artigo 3.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, atinente à definição de prédio rústico:


“1 - São prédios rústicos os terrenos situados fora de um aglomerado urbano, exceto os que sejam de classificar como terrenos para construção, nos termos do n.º 3 do artigo 6.º, e os que tenham por destino normal uma utilização geradora de rendimentos comerciais e industriais, desde que:


a) Estejam afetos ou, na falta de concreta afetação, tenham como destino normal uma utilização geradora de rendimentos agrícolas, silvícolas e pecuários;


b) Não tendo a afectação indicada na alínea anterior, não se encontrem construídos ou disponham apenas de edifícios ou construções de carácter acessório, sem autonomia económica e de reduzido valor.


2 - São também prédios rústicos os terrenos situados dentro de um aglomerado urbano, desde que, por força de disposição legalmente aprovada, não possam ter utilização geradora de quaisquer rendimentos ou só possam ter utilização geradora de rendimentos agrícolas, silvícolas e pecuários e estejam a ter, de facto, esta afetação.


3 - São ainda prédios rústicos:


a) Os edifícios e construções diretamente afetos à produção de rendimentos agrícolas, silvícolas e pecuários, quando situados nos terrenos referidos nos números anteriores”.


Todavia, importa ter presente que os prédios são inscritos na matriz com base na declaração do requerente dessa inscrição, como se enuncia no n.º 1 do artigo 13.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis: “A inscrição de prédios na matriz e a actualização desta são efectuadas com base em declaração apresentada pelo sujeito passivo”.


A composição do prédio e a sua área devem, pois, ser indicados pelo requerente, bem como quaisquer alterações ocorridas relativamente a estes aspetos, competindo ao titular inscrito garantir que a matriz se mantém atualizada.


Quando os prédios são inscritos com a menção de que se encontram omissos e, com base na inscrição matricial, se requer depois a sua descrição no registo predial, tal requerimento é que determina o conteúdo da descrição, a qual reproduz a inscrição matricial, atenta a orientação no sentido da harmonização destes dois sistemas de registo dos prédios (artigo 28.º do Código de Registo Predial).


Ou seja, do facto do prédio n.º 773 permanecer classificado como um prédio rústico, não obstante existir uma habitação dentro da sua área, não pode extrair-se automaticamente que a habitação não pertence ao proprietário desse prédio, sendo possível concluir, diversamente, que nunca foram atualizadas a matriz e o registo predial quanto à composição desse prédio.


Aliás, no que respeita à classificação dos prédios, assinala-se habitualmente que para efeitos fiscais se considera um tertium genus não consagrado na lei civil, a saber, os prédios mistos, assim descritos no artigo 5.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis:


“1 - Sempre que um prédio tenha partes rústica e urbana é classificado, na íntegra, de acordo com a parte principal.


2 - Se nenhuma das partes puder ser classificada como principal, o prédio é havido como misto.”


Porém, como decorre do que se disse acima, para que um prédio seja classificado como misto para efeitos fiscais, revela-se necessário que o titular inscrito comunique a alteração da composição do prédio.


E quanto às obras de remodelação, foram as mesmas realizadas pela Confraria, que, para o efeito, obteve um financiamento junto da Caixa de Crédito Agrícola (factos 17. a 19. e 21.).


Assim, quanto ao prédio n.º 1296, não está provado que o mesmo integrasse a esfera jurídica do pai da R., o que significa que o registo foi lavrado com base em título insuficiente, sendo, consequentemente, nulo, nos termos do artigo 16.º, alínea b) do Código de Registo Predial.


Em conclusão, deve a ação ser julgada totalmente procedente, revogando-se a sentença recorrida.


3. As custas são suportadas pela R., que fica vencida (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).


V – Dispositivo


Em face do exposto e tudo ponderado, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e julgando procedente a ação, pelo que se decide:


a) Declarar que os AA. AA e BB são os legítimos proprietários do prédio urbano, constituído por uma morada de casas térreas com 5 divisões e 1 corredor, sendo 4 destinadas a habitação e 1 cavalariça, a que corresponde atualmente a descrição predial urbana n.º 1296 da freguesia de Local 1, inscrito na respetiva matriz predial urbana da freguesia de Local 1 sob o artigo 761;


b) Declarar nula a descrição predial urbana n.º 1296 da freguesia de Local 1 e ordenar o cancelamento de todas as inscrições.


Custas pela R..


Notifique e registe.


Sónia Moura (Relatora)


Manuel Bargado (1º Adjunto)


Ana Pessoa (2ª Adjunta)