Sumário do Acórdão
(Da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663º, nº 7, do CPC)
1. Tendo a Apelante demandado os Apelados no pagamento de indemnização baseada em desvalorização (e subsidiariamente em utilização ilícita), sofrida pelo uso por banda dos Apelados, durante cerca de oito anos, de duas viaturas automóveis de que a primeira é dona, cujo uso lhes cedeu após a aquisição das mesmas, sem que tenha logrado provar que os interpelou durante esse período temporal por várias vezes para lhe entregarem as viaturas por as estarem a possuír contra a sua vontade, inexiste fundamento para a condenação dos Réus na dita indemnização;
2. A circunstância de o Tribunal se confrontar com versões distintas das Partes relativamente a determinados factos e poder relevar mais uma que outra não constitui por si só fundamento para concluir pela existência de conduta inequivocamente reveladora de litigância de má-fé por parte de quem prestou as declarações desvalorizadas, ou menos valoradas, pelo Tribunal.
Tribunal Judicial da Comarca de Cidade 1
Juízo Central Cível de Cidade 1 - Juiz 3
Apelante: AA
Apelados: BB
CC
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Acordam os Juízes na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:
I – RELATÓRIO
AA intentou contra BB e CC, todos com os sinais dos autos, a presente ação declarativa condenatória, sob forma de processo comum, pedindo a condenação, a título principal, dos Réus:
a) A pagarem-lhe o valor do prejuízo causado na viatura Mercedes, pelo seu uso durante 8 anos, no montante de € 21.550,00;
b) A pagarem-lhe o valor do prejuízo causado na viatura Volkswagen, pelo seu uso durante 8 anos, no montante de € 5.750,00, acrescidos de juros vencidos desde a citação e até integral pagamento à taxa legal em vigor.
Para tanto alegou, em síntese, ser, respectivamente, irmã e cunhada dos Réus, os quais, atravessavam em 2012 dificuldades financeiras, não obtendo acesso a crédito.
Acrescentou que por virtude dos Réus necessitarem de veículos automóveis e dado ser funcionária num estabelecimento de ensino explorado por aqueles dispôs-se a adquirir tais automóveis, com poupanças que tinha, o que fez, tendo adquirido um Mercedes por € 24.550,00 e um Volkswagen Polo por € 8.700,00, para cuja aquisição os RR apenas deram € 500,00, esclarecendo tê-los registado em seu nome.
Mais ficou combinado que os Réus lhe pagariam uma determinada importância mensal, o que nunca sucedeu.
Disse ainda que as relações familiares deterioraram-se em face do que solicitou a entrega dos veículos, o que veio a suceder em 08.07.2020, na sequência de notificação judicial avulsa, referindo ainda que os veículos estavam deteriorados, sendo o valor de mercado do Mercedes de apenas € 3.000,00 e o do Polo de € 5.750,00, montantes por que os vendeu.
A Autora rematou alegando que por não ter tido a disponibilidade das viaturas no lapso temporal em que estiveram na posse dos Réus pretende que, subsidiariamente, os mesmos lhe paguem a quantia de € 27.277,86 que considera ser o valor correspetivo do uso diário das viaturas por parte dos Réus na ordem de € 7,46 o mercedes e € 1,96 o VW, no lapso temporal de 2.887 dias (o mercedes) e de 2.929 dias (o VW), acrescido de juros vencidos desde a data da citação e até integral pagamento, à taxa legal em vigor
Citados, os Réus apresentaram contestação onde, em síntese, referiram que o dinheiro que deu pagamento às viaturas foi por eles entregue à Autora, acrescentando que a mesma tinha rendimentos muito inferiores aos seus, mais esclarecendo que a Autora teve de pagar a prestações um veículo que adquiriu (WGolf de matrícula ..-PD-..) e o seu filho, DD, usou um veículo propriedade de uma das empresas dos Réus, por mais de 3 anos, porque não tinha veículo próprio.
Mais alegaram que não queriam que os veículos focassem registados em seu nome, em face do que a Autora se ofereceu para que ficassem registados em seu nome, uma vez que as relações entre as famílias eram próximas e de confiança pelo que usaram, durante 8 anos, os veículos que eram sua propriedade.
Concluiram deduzindo pedido reconvencional, mediante o qual peticionaram a declaração de invalidade dos documentos que deram origem aos registos a favor da Autora e o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre os veículos em causa, ordenando-se o cancelamento dos registos a favor da Autora.
A Autora replicou pugnando pela improcedência do pedido reconvencional.
Realizou-se audiência prévia, onde foi proferido despacho saneador tabelar, se enunciou o objeto do litigio e se selecionaram os temas de prova.
Oportunamente procedeu-se à realização de audiência final, a que se seguiu o proferimento de sentença que contempla o seguinte dispositivo:
“IV – Decisão:
Em face do exposto, vistas as já indicadas normas jurídicas e os princípios expostos o tribunal julga:
a) Totalmente improcedente por não provado, o pedido reconvencional, de que se absolve a A.
b) Totalmente improcedente por não provado, o pedido da A., de que se absolvem os RR.
Custas pela A e R., na proporção do respetivo decaimento, nos termos do artigo 527º, nºs 1 e 2 do CPC.
Valor: já arbitrado
Registe e notifique.”
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Inconformada com a sentença veio a Autora apresentar requerimento de recurso para este Tribunal da Relação de Évora, alinhando as seguintes conclusões:
“CONCLUSÕES.
Em obediência ao art.º 639.º, n.º 1 do CPC, extraem-se, como resenha final, as alíneas subsequentes:
a) Em primeiro lugar, sempre salvaguardando o devido respeito pelo Ilustre Magistrado signatário da Decisão ora sindicada do Tribunal a quo, impugna-se a Decisão da Matéria de Facto, havendo que reapreciar a prova gravada e a de Direito.
b) Deve a prova gravada ser reapreciada e concluir-se que, no que resultou quer dos documentos, quer da prova gravada resultou que a recorrente até pedir a entrega dos veículos aos recorridos, esperava que o pagamento do preço dos carros fosse feito, e o pagamento em falta foi por diversas vezes pedido, e que quando a recorrente e recorridos se zangaram, e porque o pagamento não iria ser feito, a entrega dos carros teve solicitada ser feita, com sucesso, através de notificação judicial avulsa.
c) Da prova documental, vide documentos 5 e 6, juntos pela recorrente com a petição inicial, em que resulta que em 2020, aquela já usou do meio último, notificação judicial avulsa, para que lhe fossem entregues os veículos, e veja-se o registo de gravação resultou também, que o pagamento em falta, foi por diversas vezes pedido e que as viaturas permaneceram durante 8 anos na posse dos recorridos, contra a vontade da recorrente;
d) Os recorridos faltaram à verdade conforme sobejamente anunciado pela Mma. Juiz a quo, deveriam ter sido condenados como litigantes de má fé: as versões são completamente contraditórias.
e) A recorrente agiu em boa fé e os recorridos abusaram dessa boa fé;
f) E Se
“20. O veículo de marca VW Polo, com a matrícula ..-IT-.., foi comprado em Junho de 2012, pelo preço de € 9.200,00 e a sua propriedade foi registada em nome da Autora em 13 de Agosto de 2012.
22. O veículo de Marca BMW, com a Matrícula ..-CX-.., foi comprado em Agosto de 2012, pelo preço de € 24.550,00 – e registada a sua propriedade em nome da Autora em 13 de Novembro de 2012.
13. O valor de mercado do mercedes, à data da entrega, era de € 3.000,00; e o do Volkswagen Polo era de € 2.950,00.”
“….a A. justificou esta circunstância dizendo que os RR se comprometeram a pagar mensalmente € 450,00, mas que o vencimento da irmã foi penhorado e ela não tinha como pagar, pelo que deixou a situação arrastar-se, já que estava relativamente garantida pelo registo das viaturas em seu nome, ao que acresce que a situação familiar era de grande união, que se foi quebrando por várias circunstâncias, designadamente por questões de partilhas do pai. Estas declarações foram confirmadas pela testemunha EE, filho da A., que também afirmou que depois de 2016, em reunião familiar, a tia reconheceu que não tinha pago as mensalidades devidas pelas viaturas, mas que as ia pagar. Apesar da relação de parentesco, o depoimento desta testemunha foi congruente e claro, não havendo motivos para se concluir pela sua inveracidade, assim se fundamentando a convicção sobre a matéria dos pontos 5-a) e 5-b)…”
g) Nunca poderia o Tribunal a quo poderia ter concluído que não existe obrigação de indemnizar, violando desta forma o disposto nos artigos 227.º, 483.º, 487.º/2, 563.º, 564 e 566º do Código civil e segunda parte do n.º 3 do artigo 607.º do CPC.
h) Existiu uma atitude ilícita e culposa, não pagar os preços dos veículos, conforme combinado, prometer e não cumprir, usá-los e desgastá-los, usando dolosamente a boa fé, provada, da recorrente e com essa omissão de cumprirem e de não devolverem, causaram os danos geradores da obrigação de indemnizar.
i) Em face deste e dos demais factos dados como provados na Sentença de que se recorre, o Tribunal a quo, deveria ter aplicado o disposto nos artigos 227.º, 483.º, 487.º/2, 563.º, 564 e 566º do Código civil e segunda parte do n.º 3 do artigo 607.º do CPC., concluindo estarem preenchidos os pressupostos que conduzem à obrigação de indemnizar, uma vez que
j) Existiu ilicitude, culpa, nexo de causalidade, e a culpa deve ser apreciada sempre pelo grau de diligência exigível a um homem normal, perante o circunstancialismo do caso concreto e traduz-se num juízo de censura ou reprovabilidade da conduta do agente. Como variante menos grave, a mera culpa ou negligência consiste em atuação revestida de falta de cuidado ou leviandade.
k) Independentemente do acima, sempre os recorridos deveriam ter sido condenados, com base no disposto nos artigos 564º. e 227.º do Código Civil.
Assim, deverá o presente recurso ser considerado procedente e ser revogada a Douta
Sentença do Tribunal decidindo este Venerando Tribunal, em doutíssimo suprimento, tudo o mais que tenham por conveniente.”
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Os Réus não apresentaram resposta ao requerimento de recurso.
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O recurso foi correctamente admitido na 1ª Instância como apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Colheram-se os Vistos pelo que cumpre, agora, decidir.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635º, nº 4, conjugado com o artigo 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo , pelo que as questões a apreciar e decidir traduzem-se objectivamente no seguinte:
1-Impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
2-Reapreciação de mérito;
3-Litigância de má-fé dos Apelados.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Decorre da sentença recorrida o seguinte quanto à matéria de facto:
“Factos provados com relevância para a decisão da causa:
1. No ano de 2012 a Autora adquiriu duas viaturas, uma viatura de marca Mercedes Benz, com a matrícula ..-CX-.. do ano 2007 e uma viatura marca Volkswagen, modelo polo com a matrícula ..-IT-.., do ano 2010.
2. As viaturas foram registadas em nome da A., na 1ª Conservatória do Registo Automóvel de Cidade 1.
3. E foram pagas pela A., com exceção da quantia a que se alude em 21.
4. A A. é irmã da Ré e cunhada do Réu e sempre viveram lado a lado, em moradias geminadas.
5. As viaturas a que se alude em 1 foram adquiridas pela A. porque os RR. lhe pediram para o fazer, uma vez que não logravam obter crédito para a respetiva aquisição e necessitavam de se deslocar.
5-a). Foi acordado que os RR. iriam pagando em prestações o valor adiantado pela A.
5-b). Os RR. não foram amortizando a divida, apesar das insistências da A, o que foi causando mal-estar entre as partes.
5-c) Na situação referida em 5 os RR não tinham dinheiro disponível para o pagamento das viaturas.
6. As relações entre as partes eram ótimas e a A trabalhava inclusivamente para os RR. num infantário de sua propriedade.
7. Desde a adoecimento e posterior falecimento (setembro de 2019) do pai das irmãs, a A. e os RR. encontram-se de relações cortadas.
8. As viaturas a que se alude em 1 estiveram na posse dos RR desde a sua compra, até ao ano de 2020.
9. A A. recebeu apenas o valor de € 500,00, exclusivamente à viatura Volkswagen, modelo polo.
10. As viaturas foram entregues pelos RR., em 08.07.2020, na sequência de uma notificação judicial avulsa para essa finalidade.
11. Aquando da entrega das viaturas o mercedes apresentava:
a) Chapa riscada e mossas;
b) problemas na caixa automática;
c) bancos rasgados;
d) peça do apoio de braço partida;
e) pneu furado na bagageira;
f) chave sem pilha.
12. E o polo apresentava
a) problemas de chapa com mossas e riscos;
b) não tinha tapa jantes.
13. O valor de mercado do mercedes, à data da entrega, era de € 3.000,00; e o do Volkswagen Polo era de € 2.950,00.
14. A A. adquiriu para si o veículo de Marca WGolfe, com a matrícula ..-PD-.., realizando o seu pagamento a prestações.
15. O filho da Autora, DD, usou um veículo propriedade de uma das empresas dos Réus, entre 2012 a 2015/2016, porque não tinha veículo próprio.
16. Foram os Réus, através das suas empresas, que arranjaram emprego à A., como Auxiliar de Ação Educativa, entre os anos 2000 e 2018.
17. A Autora e o seu agregado familiar não tinham, nem têm, os rendimentos do agregado familiar dos Réus.
18. A Autora e os Réus sempre se deram bem, até que o Pai de ambas adoeceu.
19. No ano de 2012, os Réus queriam comprar os veículos em causa, em segunda mão.
20. O veículo de marca VW Polo, com a matrícula ..-IT-.., foi comprado em Junho de 2012, pelo preço de € 9.200,00 e a sua propriedade foi registada em nome da Autora em 13 de Agosto de 2012.
21. Para esta compra, os Autores deram € 500,00 em dinheiro à Autora para que ela procedesse ao pagamento do sinal.
22. O veículo de Marca BMW, com a Matrícula ..-CX-.., foi comprado em Agosto de 2012, pelo preço de € 24.550,00 – e registada a sua propriedade em nome da Autora em 13 de Novembro de 2012.
23. Durante 8 anos A A. nunca pediu a entrega dos veículos.
24. Foram os Réus quem pagou os custos inerentes aos veículos, designadamente inspeções periódicas, seguros e revisões.
24-a). Os RR estiveram, durante 8 anos, na posse dos documentos originais dos dois veículos.
25. Ambos os veículos passaram na Inspeção no ano de 2020.
26. O marido da Autora só soube que estes veículos estavam em seu nome no final do ano de 2018.
27. Eliminado.
28. Os Réus ficaram na posse do veículo ..-IT-.., Marca VW, no dia 28 de Junho de 2012, data da sua aquisição, embora o registo seja de 13-08-2012.
29. A titularidade do veículo mercedes-benz 19-cx-65 foi registada em 24.12.2020, a favor de FF e do veículo Volkswagen ..-IT.. foi registada em 12.10.2021 a favor de GG.
30. A ação deu entrada em 27.10.2021 e a contestação com o pedido reconvencional foi apresentada em 06.12.2021.
31. Corre termos no Tribunal Judicial de Cidade 1, Juízo Local Cível, Juiz 2, Proc. nº 3140/20.6..., sob o nº 3140/20.6..., um processo de inventário.
Factos não provados.
A) A A. nunca pediu qualquer pagamento em falta sobre os veículos.
B) As viaturas permaneceram durante 8 anos na posse dos RR., contra a vontade da A.
C) Eliminada.
D) A aquisição das viaturas em causa ocorreu porque um mercedes dava uma melhor imagem perante terceiros e os RR queriam deslocar-se em carros com qualidade e prestígio, o que é o caso das viaturas.
E) que o rádio da viatura mercedes, aquando da sua entrega não funcionava.
F) Durante o período a que se alude em 15 foram os Réus quem suportou todas as despesas do veículo aí referido, tais como seguros e revisões.
G) O filho da Autora teve um acidente com o veículo a que se alude em 15 e não pagou qualquer valor aos Réus.
H) Eliminada.
I) À data da aquisição das viaturas em causa, os RR não tinham dificuldades financeiras.
J) Os Réus não queriam que os veículos automóveis em causa ficassem registados em seu nome.
K) Para a compra do Polo os Autores deram à A. € 8.700,00 em dinheiro.
L) Os RR pagaram o preço da viatura mercedes à A.
M) Os RR pagaram o preço da viatura volkswagem à A.
N) Foi a Autora quem se ofereceu para ficar com os veículos em seu nome, porque as relações familiares eram próximas e de confiança.
O) No final do ano de 2018, os RR pediram à Autora para assinar os DUA para a mudança de titularidade dos veículos, mas ela recusou.
P) A A. foi condenada por ofensas à integridade física ao seu sobrinho, menor de idade, filho dos Réus (HH) – no Proc. 580/18.4..., sentença de 06-02-2020 (Juízo Local Criminal de Cidade 1 Juiz 1)
Q) No final do ano de 2018, a Autora apresentou queixa por ofensas à integridade física contra os Réus, queixa não acompanhada pelo Ministério Público e que foi, depois, rejeitada pelo Juiz do Processo em 16-03-2021 (Proc. 618/18.5...), bem como o respetivo pedido de indemnização cível.
R) Em 21-11-2019, A Autora deu entrada de uma ação laboral contra os Réus e várias empresas, pedindo o pagamento de mais de € 30,000,00 por despedimento ilícito – Processo que correu os seus termos no Tribunal Judicial de Cidade 1, Juízo do Trabalho, Juiz 1, com o nº 7560/19.0..., onde chegaram a acordo.”
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1-Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Resulta do artigo 640º do CPC, que se debruça sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o seguinte:
“1-Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b), do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
[…] “
A este propósito sustenta o Conselheiro António Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil“, Almedina, 5ª ed., a págs. 168-169), que a rejeição total ou parcial respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve ser feita nas seguintes situações:
“a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4 e 641º, nº 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, nº 1, a));
c ) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc );
d ) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e ) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação“, esclarecendo, ainda, que a apreciação do cumprimento de qualquer uma das exigências legais quanto ao ónus de prova prevenidas nos mencionados nº 1 e 2, a ), do artigo 640º do CPC, deve ser feita “à luz de um critério de rigor “.
Decorre, ainda, do artigo 662.º, n.º 1, do CPC, o seguinte:
“1. A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Refere quanto a este normativo António Abrantes Geraldes (obra acima citada, pág. 287), que:
“O actual artigo 662º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava […], através dos nºs 1 e 2, als.a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do principio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.“
Diz-nos também sobre este preceito o Conselheiro Fernando Pereira Rodrigues (“Noções Fundamentais de Processo Civil”, Almedina, 2ª edição atualizada, 2019, pág. 463-464), o seguinte:
“A redação do preceito [662º, nº 1] não parece ter sido muito feliz quando manda tomar em consideração os “factos assentes” para proferir decisão diversa, que só pode ser daqueles mesmos factos considerados assentes, porque o que está em causa é modificar a decisão em matéria de facto proferida pela primeira instância.
[…]
A leitura que se sugere como mais adequada do preceito, salvaguardada melhor opinião, é que ele pretende dizer que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, “confrontados” com a prova produzida ou com um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Nesta sede importa ainda recordar o teor do n.º 5 do artigo 607.º do CPC, relativo à “Sentença”, que se traduz no seguinte:
“5- O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”
Baixando ao caso concreto, percebemos que a Apelante se insurge na motivação recursiva contra o facto vertido sob o ponto 23 do segmento dos factos considerados como provados na sentença recorrida e contra os factos vertidos sob as alíneas A) e B) do segmento da aludida sentença destinado aos factos considerados como não provados, entendendo que o primeiro deles resultou como não provado e os outros dois como demonstrados, bem como que indicou os concretos meios probatórios que no seu entender permitem infirmar as soluções a que chegou o Tribunal a quo, traduzidos no seu depoimento de parte prestado na sessão de audiência final em 29/05/2024, nas declarações de parte prestadas pela Co-Apelada BB nessa mesma sessão e no depoimento prestado ainda a 29/05/2024 pela testemunha DD.
Lendo o segmento recursivo respeitante às conclusões não descortinamos nelas uma clara identificação dos aludidos pontos de facto censurados pela Apelante.
De todo o modo, atendendo a que na alínea b) das ditas conclusões recursivas se refere que “Deve a prova gravada ser reapreciada e concluir-se que, no que resultou quer dos documentos, quer da prova gravada […] a recorrente até pedir a entrega dos veículos aos recorridos esperava que que o pagamento do preço dos carros fosse feito e o pagamento em falta foi por diversas vezes pedido […]”, que na alínea seguinte (c)) se deixou expresso que “Da prova documental […], em que resulta que em 2020 aquela já usou do meio último, notificação judicial avulsa, para que lhe fossem entregues os veículos” e que do “registo da gravação resultou […], que as viaturas permaneceram durante 8 anos na posse dos requeridos contra a vontade da recorrente”, poderemos aceitar como sofrivelmente cumprido o ónus primário de obrigatória especificação constante da alínea a), do n.º 1, do artigo 640.º, do CPC, também em sede de conclusões recursivas.
Na conformidade exposta passemos, então, a analisar do mérito da impugnação contra a matéria de facto apresentada pela Apelante.
Considera a Apelante que o Tribunal a quo decidiu mal ao ter considerado como provado que:
“23. Durante 8 anos a A. nunca pediu a entrega dos veículos.”
Importa esclarecer desde já, visto que estamos perante um facto formulado na negativa, que julgar este facto como não provado não significa que se possa concluir sem mais que durante os 8 anos a Autora pediu a entrega dos veículos!
Para infirmar este facto, já o sabemos, socorreu-se a Apelante de passagens registadas, cujos excertos transcreveu, do depoimento de parte que prestou em sede de audiência final, bem como das declarações de parte prestadas na mesma audiência pela Co-Apelada e irmã da primeira, BB e ainda do depoimento prestado pela testemunha DD, filho da Apelante e sobrinho dos Apelados.
Vejamos o que ficou expresso no segmento da motivação inserido na sentença recorrida:
“A matéria dos pontos 16, 23, 24 e 26 foi afirmada pela própria A., que no que respeita ao ponto 23, referiu que só pelo facto de as relações se terem deteriorado é que pediu a devolução das viaturas, o que tem como contraponto a recondução da al. B) aos factos não provados”.
Lendo com atenção os excertos selecionados e transcritos pela Apelante relativos ao seu depoimento de parte, bem como das declarações de parte prestadas pela Co-Apelada BB e ainda do depoimento da testemunha DD temos de convir que se mostra acertada a solução a que chegou o Tribunal a quo baseada no depoimento de parte da própria Apelante compatibilizávei com as declarações de parte da Co-Apelada, visto que ficou claro nos autos que a notificação judicial avulsa dirigida pela Apelante contra os Apelados foi requerida na sequência de litigio familiar que originou o corte de relações pessoais entre aqueles.
Registe-se, ainda, que da leitura atenta do teor da dita notificação judicial avulsa, requerida em juízo em meados do ano de 2020, (junta como Doc. 5 com a petição inicial), ou seja cerca de 8 anos decorridos desde o inicio da utilização pelos Apelados das duas viaturas de marca VW e Mercedes-Benz, nada se retira quanto à eventualidade de anteriormente ao desencadear de tal procedimento ter sido pedida pela Apelante aos Apelados a entrega de qualquer uma das identificadas viaturas.
Estando o facto vertido em B) do segmento dos factos considerados como não provados na sentença recorrida consubstanciado na indemonstração de que “As viaturas permaneceram durante 8 anos na posse dos RR. contra a vontade da A.”, claramente relacionado com o facto provado impugnado que acabámos de analisar, constituindo-se práticamente como a versão contrária daquele dado que apelando às mais elementares regras de experiência comum carece de sentido admitir que alguém que tem na sua posse e utiliza duas viaturas automóveis de outrem durante 8 anos contra a vontade deste último não seja nesse largo espaço temporal interpelado de algum modo para as devolver, afigura-se correcta a solução plasmada na sentença recorrida tanto mais que tão pouco resulta dos excertos do depoimento de parte, das declarações de parte e do depoimento testemunhal transcritos pela Apelante na motivação do seu recurso que a posse das viaturas por banda dos Apelados fosse contrária à vontade da Apelante até a mesma se insurgir por via da notificação judicial requerida.
Resta, então, analisar a impugnação dirigida contra o facto vertido sob a alínea A) do segmento da sentença recorrida atinente aos “Factos não provados” e que respeita à não demonstração de que “A A. nunca pediu qualquer pagamento em falta sobre os veículos.”.
De novo estamos perante um facto formulado pela negativa de que resulta que a não prova do mesmo não permite considerar a interpretação de que a Apelante nunca pediu qualquer pagamento em falta sobre os veículos, mas tão só que não resultou demonstrado que nunca o tivesse feito, recaindo o ónus de prova de tal facto sobre os próprios Apelados que o alegaram e não sobre a Apelante.
É por demais evidente que infirmar a solução a que chegou o Tribunal a quo redundaria na prova de que a Apelante nunca pedira qualquer pagamento em falta sobre os veículos, o que não se afigura que fosse do seu interesse fazê-lo.
Aliás, nem se percebe por que motivo a Apelante dirigiu a sua impugnação contra este ponto de facto, quando a sua real vontade parece, sem grande margem para rebuços, coadunar-se com o que resultou provado sob o ponto 5-b) do segmento da sentença recorrida respeitante aos factos considerados como provados.
Seja com for a Apelante logrou indicar como meios probatórios também os excertos selecionados e transcritos do seu depoimento de parte, das declarações de parte da Co-Apelada BB e do depoimento da testemunha, seu filho, DD.
Vejamos o que foi relatado pelo Tribunal a quo no segmento da sentença recorrida a propósito deste ponto de facto:
“Por outra via, independentemente da plausibilidade de a A. ter € 35.000,00 em casa, quando os extratos bancários de fls. 163 e ss., revelam que não havia depósitos de nível que suscitasse o temor de os mesmos serem cativados pela entidade reguladora, argumento avançado pela A. e pelos seus filhos em justificação de tal poupança caseira, e da também circunstância estranha ao giro normal da vida e dos negócios que a A. disponibilizasse toda essa quantia para a aquisição dos veículos que desde logo ficaram na disponibilidade/posse dos RR. e onde permaneceram durante cerca de 8 anos, sem qualquer contrapartida económica, a A. justificou esta circunstância dizendo que os RR se comprometeram a pagar mensalmente € 450,00, mas que o vencimento da irmã foi penhorado e ela não tinha como pagar, pelo que deixou a situação arrastar-se, já que estava relativamente garantida pelo registo das viaturas em seu nome, ao que acresce que a situação familiar era de grande união, que se foi quebrando por várias circunstâncias, designadamente por questões de partilhas do pai. Estas declarações foram confirmadas pela testemunha EE, filho da A., que também afirmou que depois de 2016, em reunião familiar, a tia reconheceu que não tinha pago as mensalidades devidas pelas viaturas, mas que as ia pagar. Apesar da relação de parentesco, o depoimento desta testemunha foi congruente e claro, não havendo motivos para se concluir pela sua inveracidade, assim se fundamentando a convicção sobre a matéria dos pontos 5-a) e 5-b) e a recondução da al. A) aos factos não provados.”
Compulsando mais uma vez de forma concertada o teor dos excertos selecionados pela Apelante afigura-se-nos que a solução a que chegou o Tribunal a quo, em face da fundamentação que deixou expressa na sentença recorrida, acima transcrita, é a mais acertada também quanto ao facto contido sob a alínea A) do acervo dos factos considerados como não provados, convocando para aqui, no tocante à analise e interpretação dos meios probatórios produzidos, a mais valia de que beneficia o juiz a quo traduzida na imediação e oralidade.
De todo o exposto resulta, então, a total improcedência da impugnação dirigida pela Apelante contra a matéria de facto discriminada na sentença recorrida, a qual se mantem incólume.
2- Reapreciação de mérito.
É manifesto pela leitura da petição inicial que a Apelante assentou a pretensão que dirigiu contra os Apelados numa obrigação de indemnização por danos alegadamente sofridos convocando o instituto da responsabilidade civil por factos ilícitos previsto nos artigos 483 e seguintes do Código Civil.
Tais danos reconduzem-se à desvalorização, devido ao uso dos mesmos feito pelos Apelados, sofrida pelas duas viaturas automóveis mencionadas nos autos, VW e Mercedes-Benz, bem como, subsidiariamente, à ilícita utilização dos mesmos pelos Apelados durante largo período temporal (cerca de 8 anos).
O teor dos artigos 23.º a 36,º da petição inicial não deixa dúvidas a esse propósito, assim como o petitório final que se traduziu na condenação dos Apelados “
Compulsando a pretensão recursiva da Apelante voltamos a constatar o mesmo propósito mormente nas alíneas g), i) e j) das conclusões recursivas.
Porém, em sede recursiva a Apelante introduziu ainda, subtilmente, na sua alegação e conclusões recursivas (cfr. o teor das alíneas h) e k) ), como fonte geradora dos danos o incumprimento contratual por parte dos Apelados, ou seja tentou conectar os danos sofridos ao não pagamento do preço das viaturas e sua não entrega por parte dos Apelados.
Sucede que tratando-se de questão inserida apenas em sede recursiva naturalmente que a pretensão de condenação dos Apelados no pagamento em falta do preço das duas viaturas, anteriormente acordado entre as Partes, não pode ser agora considerado, por se tratar de questão nova não suscitada e debatida anteriormente, sabendo-se que os recursos tratam de reapreciar questões anteriormente suscitadas pelas Partes e decididas nos autos e não de questões novas, que não sejam de conhecimento oficioso, levantadas apenas em sede recursiva pelas mesmas (cfr. os artigos 627.º, n.º 1 e 635.º, nºs 2 e 3, ambos do CPC).
Vejamos o que ficou expresso na sentença recorrida sobre a pretensão da Apelante:
“Estamos no âmbito de um pedido indemnizatório que é apresentado como compensação pelo prejuízo no valor das viaturas, decorrente do seu uso por banda dos RR e calculado tendo por referência o diferencial entre o valor pago pela A. pela sua aquisição e o valor que os mesmos tinham aquando da sua devolução pelos RR.
A pedra angular do nosso instituto da responsabilidade é a culpa e a ilicitude, como se deduz do artigo 483º nº 1 do CC, onde podemos encontrar a norma fundante da responsabilidade civil aquiliana: “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Os casos em que a obrigação de indemnizar não depende de culpa são excecionais e tipificados “só existe obrigação de indemnizar independentemente da culpa nos casos tipificados na lei “ (nº2).
[…]
A ilicitude reporta-se, pois, ao facto do agente, à sua atuação, e não diretamente ao efeito que dele emerge, embora a ilicitude do facto possa provir por vezes do resultado que ele produz.
A culpa, por seu turno, traduz-se numa determinada posição ou situação psicológica do agente perante o facto. Para que o facto ilícito seja gerador de responsabilidade, é necessário que o agente tenha agido com dolo ou mera culpa, como patenteia o artº 483º, nº 1 do CC.
Na responsabilidade baseada na culpa - responsabilidade subjetiva - cabe ao lesado a prova dos factos integradores da culpa, salvo havendo presunção legal (art.º 487º, n.º 1 do C. Civil).
O nosso Código Civil consagra expressamente a tese da culpa em abstrato, ao prescrever no nº 2 do artº 487º que, na falta de outro critério legal, ela é apreciada “pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso” (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9ª ed., págs. 544 e 594 a 596).
Assim, a culpa deve ser apreciada sempre pelo grau de diligência exigível a um homem normal, perante o circunstancialismo do caso concreto e traduz-se num juízo de censura ou reprovabilidade da conduta do agente.
Como variante menos grave, a mera culpa ou negligência consiste em atuação revestida de falta de cuidado, imperícia, precipitação ou leviandade.
No caso vertente, resultou provado que a A. pagou os veículos em causa, os quais ficaram desde logo na posse dos RR e que durante 8 anos aquela não os solicitou, apesar de durante todo esse tempo os RR não terem pago as prestações acordadas para amortização da dívida «5-a) e 5-b)».
Ou seja, a A. aquiesceu à utilização dos veículos pelos RR., aquiescência que persistiu embora estes não tivessem pago qualquer das quantias combinadas.
Assim sendo, não é possível formular qualquer juízo de censurabilidade sobre a posse/utilização que os RR fizeram dos veículos, já que tal utilização ocorreu com a anuência da A., anuência que foi persistindo, pelo menos implicitamente, até que ocorreu o pedido de devolução, mediante notificação judicial avulsa, a coberto da qual aquela se efetivou.
O mesmo sucede quanto à desvalorização dos veículos.
Sendo do conhecimento comum que os veículos automóveis se depreciam significativamente com o uso e o decorrer do tempo, a A., ao ter permitido que os RR utilizassem tais viaturas, anuiu implicitamente à depreciação inerente à utilização, pelo que também por esta via, não se vislumbra qualquer conduta censurável por parte dos RR.
Ou seja, a A. não logrou provar a culpa dos RR, sendo esta um elemento essencial ao surgimento da responsabilidade de indemnizar.
Pelo exposto, improcede também o pedido da A., de que se absolvem os RR.”
Peante o que acima já dissemos considera-se acertado o raciocínio efectuado pelo Tribunal a quo, não havendo, como tal, razões para o censurar, naufragando, em consequência o propósito recursivo da Apelante de ser indemnizada por desvalorização ou por utilização ilícita das duas viaturas identificadas nos autos.
3. Litigância de má-fé dos Apelados.
Nas suas conclusões recursivas refere a Apelante que “d) Os recorridos faltaram à verdade sobejamente anunciado pela Mma. Juiz a quo, pelo que deveriam ter sido condenados como litigantes de má-fé: as versões são completamente contraditórias.”
Compulsando a sentença recorrida verificamos que a este propósito o Tribunal a quo decidiu o seguinte:
“As declarações da A. e da R. foram absolutamente contraditórias e ambas suscitaram estranheza, tendo o tribunal acabado por acolher a versão da A.
Ainda assim, a prova nunca é a realidade naturalística das coisas, apenas aquela realidade probabilística, além da dúvida razoável, suficiente para as necessidades práticas da vida, pelo que não foi possível concluir-se com segurança, que a R. mentiu, o que dita que não se extraia certidão do seu depoimento para instauração de processo crime nem se a condene como litigante de má-fé, como foi equacionado em audiência de julgamento.”
Resulta do artigo 542º, do CPC, atinente à noção e responsabilidade no caso de má fé, o seguinte:
“1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2-Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c)Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
[….] “
Em comentário ao preceito legal do artigo 542.º do CPC, dizem-nos José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (“Código de Processo Civil Anotado” Volume 1, Almedina, 4ª ed, Fevereiro de 2019), o seguinte (pág. 457):
“É corrente distinguir má-fé material (ou substancial) e má-fé instrumental. A primeira relaciona-se com o mérito da causa: a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objetivo que se afasta da função processual. A segunda abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo. Assim, só a parte vencida pode incorrer em má-fé substancial, mas ambas as partes podem atuar com má-fé instrumental, podendo, portanto, o vencedor da ação ser condenado como litigante de má-fé.”
Das alegações da Apelante parece resultar, ao mencionar expressamente que “Os recorridos faltaram à verdade” pretender a mesma subsumir a conduta dos Apelados ao disposto na alínea b), do n.º 2, do artigo 542.º do CPC.
António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (“Código de Processo Civil Anotado” Vol I, Almedina, 2020, 2ª edição atualizada), salientam em comentário ao referido preceito legal do artigo 542.º do CPC (pág. 616), o seguinte:
“[…] não deve confundir-se a litigância de má-fé com:
a) A mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a juízo;
b) A eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
c) A discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr impor (RP 02-03-10, 615/09)“. (Itálico nosso).
E como destaca António Meneses Cordeiro (“Litigância de Má-Fé, Abuso Do Direito de Ação e Culpa In Agendo”, Almedina, 2016, pág. 65), alinhado com diversa jurisprudência das nossas Relações:
“Os preceitos atinentes às condutas relativas à litigância de má-fé têm uma aplicação restrita […] Exige-se que as condutas visadas sejam “manifestas” e “inequívocas”, requerendo uma quase certeza, por parte do julgador, dado o desmerecimento que envolvem e suscitando, a este, prudência e cuidado e especiais cautelas“
Regressando ao caso concreto cremos que também quanto a esta questão andou bem a sentença recorrida, uma vez que a circunstância de as versões apresentadas por Apelante e Apelados quando prestaram, respectivamente, depoimento de parte e declarações de parte (neste último caso a Co-Apelada BB), poderem apresentar entre si contradições e o Tribunal a quo ter pendido mais para aceitar uma delas não permite concluir no sentido de que a versão desconsiderada, ou menos considerada, revele, inequivocamente, uma conduta ou actuação de má-fé.
Na conformidade exposta decai o recurso em apreço também quanto a esta última questão.
Destarte, conclui-se pela total improcedência das conclusões recursivas sendo de manter a sentença recorrida.
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V- DECISÃO
Termos em que, face a todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao presente recurso de Apelação interposto por AA decidindo-se, em consequência, o seguinte:
1-Confirmar a sentença recorrida;
2-Fixar as custas a cargo da Apelante (artigo 527º, n.º 1 e nº 2, do CPC).
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Notifique.
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ÉVORA, 18 de SETEMBRO de 2025
(José António Moita-relator)
(António Fernando Marques da Silva - 1.º Adjunto)
(Francisco Xavier - 2ºAdjunto)