O Juiz só deve indeferir a petição inicial com fundamento na manifesta improcedência da pretensão do autor, quando esta for tão evidente que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, seja desperdício manifesto de atividade judicial.
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO
AA instaurou procedimento cautelar comum contra Portgolfin, S.A., Sociedade Hoteleira São Lourenço, S.A., Típico Diário, Lda. e Merecido Exemplo, S.A., pedindo que, sem audiência prévia das Requeridas, seja julgada procedente a providência e, em consequência:
«A) Devem todos os efeitos da celebração do contrato de compra e venda do Campo de Golfe de S... (prédio urbano, situado em situado em Local 1, com a área total de 629333 m2 e área descoberta de 629333 m2, composto por parcela de terreno destinado a campo de golfe, inscrito na matriz urbana sob o art.º 9612 da freguesia de Vila 1 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 124 da freguesia de Vila 1 – cf. descrito no art.º 129.º do articulado supra), máxime os relativos à transmissão da propriedade do imóvel a favor da Requerida Típico Diário, ser suspensos;
B) Devem as Requeridas ser impedidas de transmitir a terceiros quaisquer direitos (reais, de crédito e de qualquer outra natureza jurídica) sobre o Campo de Golfe de S... (prédio urbano, situado em situado em Local 1, com a área total de 629333 m2 e área descoberta de 629333 m2, composto por parcela de terreno destinado a campo de golfe, inscrito na matriz urbana sob o art.º 9612 da freguesia de Vila 1 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 124 da freguesia de Vila 1 – cf. descrito no art.º 129.º do articulado supra);
C) Devem as Requeridas ser impedidas de onerar, de qualquer modo, o Campo de Golfe de S... (prédio urbano, situado em situado em Local 1, com a área total de 629333 m2 e área descoberta de 629333 m2, composto por parcela de terreno destinado a campo de golfe, inscrito na matriz urbana sob o art.º 9612 da freguesia de Vila 1 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 124 da freguesia de Vila 1 – cf. descrito no art.º 129.º do articulado supra);
D) Devem as Requeridas ser impedidas de praticar quaisquer atos de administração, ordinária ou extraordinária, do Campo de Golfe de S... (prédio urbano, situado em situado em Local 1, com a área total de 629333 m2 e área descoberta de 629333 m2, composto por parcela de terreno destinado a campo de golfe, inscrito na matriz urbana sob o art.º 9612 da freguesia de Vila 1 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 124 da freguesia de Vila 1 – cf. descrito no art.º 129.º do articulado supra), bem como quaisquer atos materiais, até à prolação de decisão final, transitada em julgado, na ação principal a instaurar.»
Alega, em síntese, que tem um direito de crédito sobre as sociedades Requeridas e que no âmbito da ação executiva que foi instaurada contra aquelas sociedades, na qual apresentou reclamação de créditos, foi penhorado o referido Campo de Golfe de S... e após, com autorização para cancelamento da penhora, veio o mesmo a ser vendido pela proprietária Portgolfin à Típico Diário por preço inferior ao valor real, sendo que estas sociedades exequente e adquirente são sociedades veículo do Grupo Arrow Portugal e a sociedade vendedora controlada pela exequente.
Mais alega a existência de um direito de crédito anterior sobre as Requeridas Portgolfin e Sociedade Hoteleira S. Lourenço e que o ato de alienação envolve redução da garantia patrimonial através de ato de natureza não pessoal, impossibilita a satisfação integral do seu crédito e foi praticado de má-fé.
O procedimento cautelar foi indeferido liminarmente.
Inconformado, o Requerente apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação das seguintes conclusões:
«A. Se a intervenção dos Tribunais superiores assume sempre, em sede de recurso, indiscutível importância para a boa administração da justiça e garantia de segurança jurídica, ela assume no presente caso um relevo especial, na medida em que, salvo o devido respeito, a decisão recorrida padece de vícios que se afigura terem carácter manifesto e cuja reparação tem um relevo incontornável para que, na ação em apreço, haja efetivo e integral cumprimento da lei.
NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
B. A decisão recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia, na medida em que o Tribunal a quo se pronuncia apenas quanto a uma parte do segundo pedido formulado (a parte que se reporta ao pedido de impedimento da prática de atos de transmissão do direito de propriedade), pelo ora Recorrente, no Requerimento Inicial, em nenhum momento se pronunciando, no entanto, quanto aos primeiro, terceiro e quarto pedidos formulados, nem quanto ao segundo, na restante parte ignorada, o que traduz vício legalmente previsto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), primeira parte, do CPC, que ora se argui.
DA EXCECIONALIDADE DO INDEFERIMENTO LIMINAR
C. Como decorre da lei, bem como, de modo pacífico, da doutrina e da jurisprudência, a decisão de indeferimento liminar assume um carácter absolutamente excecional, só podendo o Tribunal proferir esse tipo de decisão quando tenha absoluta e totalmente irrefutável certeza de que a pretensão do requerente jamais poderia proceder, devendo estar profunda e indelevelmente convencido de que, acontecesse o que acontecesse durante a posterior sequência processual, a sua decisão jamais seria diferente.
D. Para tanto, seria, assim, necessário que (i) o Tribunal tivesse apreendido bem os dados de facto do caso, bem como adequadamente selecionasse e interpretasse o direito potencialmente aplicável ao mesmo, e que (ii) formasse um grau de convicção quando à procedência ou não da pretensão do requerente, grau esse que devia corresponder a uma absoluta, inatacável e imutável certeza de que a pretensão do requerente não procederia.
E. Nestes termos, quando o Tribunal ficar apenas em situação de dúvida, de leve convicção de que a pretensão do requerente não procederá, de convicção média de que a pretensão do requerente não merecerá procedência (ou, naturalmente, se ficar convencido do merecimento da procedência), não dispõe de fundamento legal para proferir despacho de indeferimento liminar.
F. Assim, não se verificando o referido inabalável e absolutamente inderrogável grau de certeza in casu (antes, pelo contrário, se revelando manifesta a falta de sustento dos fundamentos invocados pelo Tribunal recorrido para procurar dar suporte à sua decisão), sempre se terá de concluir inexistirem razões justifiquem o indeferimento liminar da providência cautelar, devendo os autos prosseguir os seus termos.
Vejamos.
DA MANIFESTA AUSÊNCIA DE FUNDAMENTO PARA INDEFERIMENTO LIMINAR
INEXISTÊNCIA DE EXCEÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
G. O Tribunal recorrido começa por fundamentar a sua decisão na alegada circunstância de que a pretensão que o Requerente (ora Recorrente) exerceu no procedimento cautelar que iniciou deveria ter sido exercida pelo mesmo em ação executiva instaurada pela Merecido Exemplo (processo n.º 1741/24.2...).
Posição que o Tribunal a quo assume por partir do princípio de que o ora Recorrente é reconhecido credor reclamante nessa ação, e que a venda a que houve lugar foi venda judicial (isto é, realizada na ação executiva).
H. Nenhum dos pressupostos se verifica, porém. Na verdade, o Tribunal a quo parte de um conjunto de quatro pressupostos erróneos, uma vez que, contrariamente ao que o mesmo afirma: (i) o Requerente (ora Recorrente) não beneficia ainda da reconhecida qualidade de credor reclamante nessa ação executiva, tendo aí requerido apenas a sustação da graduação de créditos, nos termos do artigo 792.º do CPC (cf. artigo 87.º do R.I.); (ii) o objeto do R.I. foi o ato de venda (não judicial) do Campo de Golfe de S..., e não o ato de penhora, não tendo o Requerente, nem, aliás, nenhum outro sujeito (designadamente a executada JJW Portugal, o agente de execução ou a Merecido Exemplo), afirmado que o Agente de Execução autorizou a venda, sendo que, de resto, tal não estaria no âmbito dos seus poderes;
(iii) não se tratando de uma venda judicial, jamais a ação executiva seria a sede própria (nem aliás o Tribunal onde foi proposta seria o competente) para nela se reagir processualmente contra tal venda; e, por último, (iv) a jurisprudência invocada na fundamentação da decisão recorrida versa sobre situações totalmente distintas daquela que ora se aprecia, na medida em que não foi colocado em causa qualquer ato praticado na ação executiva, nem pretende o Requerente a suspensão dos efeitos de uma sentença anteriormente proferida (sendo que são estas duas últimas as hipóteses em causa nesses acórdãos). Carece, pois, de qualquer suporte jurídico a decisão proferida pelo Tribunal recorrido
I. Assim, não beneficia de qualquer respaldo jurídico a decisão, proferida pelo Tribunal a quo, segundo a qual a pretensão deduzida em sede cautelar deveria ter sido formulada na ação executiva e que, em consequência, procederia exceção dilatória inominada, que seria causa de despacho de indeferimento liminar.
J. A manifesta improcedência de tal exceção determina a falta de suporte da decisão (de indeferimento liminar) ora recorrida, devendo a mesma ser revogada.
DO PREENCHIMENTO DO PRESSUPOSTO DO PERICULUM IN MORA
K. A segunda razão da presente impugnação prende-se com a total carência de consistência jurídica da posição que o Tribunal a quo assume como fundamento subsidiário para dar suporte à sua decisão – a alegada inexistência de periculum in mora, em virtude de, segundo afirma o mesmo Tribunal, o Recorrente sempre poder exercer o seu direito sobre o imóvel a ser objeto de impugnação pauliana, ainda que este fosse, entretanto, retransmitido a terceiro.
L. Ora, como resulta de previsão legal (cf. artigo 613.º, n.º 1, alínea b), do CC), cujo sentido, regime e razão de ser se encontra doutrinal e jurisprudencialmente explicitada de forma pacífica, basta, por exemplo, que o terceiro adquirente se encontre de boa-fé para que o direito do Requerente/Recorrente não lhe seja oponível.
M. Tornando-se, assim, manifestamente evidente que a razão que o Tribunal a quo invoca para a inexistência de periculum in mora não beneficia de qualquer suporte jurídico.
N. Do que antecede resulta, pois, que o Tribunal recorrido proferiu decisão (de indeferimento liminar) que não deve subsistir, por não se verificarem (como explicitado) os pressupostos da mesma.
O. E importa sublinhar um paradoxo: para não poder proferir despacho de indeferimento liminar, basta que o Tribunal não disponha de elementos para desde logo concluir que é absolutamente impossível que a pretensão do Requerente proceda.
P. Assim, se, por exemplo, achar que a pretensão provavelmente não vai proceder, mas não tiver certeza absoluta, totalmente inabalável, disso, já não poderá proferir esse despacho (devem os autos ter continuidade e ser proferida decisão a final). Nos mesmos termos, por maioria de razão, se nesse momento o Tribunal entender, com convicção média, não assistir razão ao requerente, ou se tiver dúvidas quanto ao facto de lhe assistir ou não razão ou, ainda, se estiver (media ou mesmo com intensidade) convencido de que lhe assistirá razão, não poderá proferir despacho de indeferimento liminar.
Q. Ora, no presente caso, o Tribunal recorrido proferiu despacho de indeferimento quando dispunha de elementos que o deviam conduzir a uma convicção situada mesmo no extremo oposto daquela que tem de existir para poder legitimamente proferir despacho de indeferimento liminar.
R. Com efeito, do R.I. constam factos e provas que lhe permitiam até concluir, pelo menos, existirem fortes indícios de que a pretensão do Requerente merecia procedência, o que demonstra a escala de divergência entre a realidade do caso e o teor da decisão. Tudo quando é certo que, mesmo que houvesse razões para estar convencido (mas não de modo absolutamente seguro e indestrutível) de que não assistia razão ao Requerente, ainda assim não poderia, legitimamente (isto é, em conformidade com a lei), proferir despacho de indeferimento liminar.
S. A maior ligeireza (geradora de erro decisório) com que o Tribunal a quo decidiu revela-se, assim, também na circunstância de este ter completamente desconsiderado aspetos, invocados no R.I., e que revelam que, no presente caso, para além de haver periculum in mora, este perigo assume feição acrescidamente intensa e sofisticada, designadamente: a) da promíscua confusão e profundas relações de domínio e identidade de interesses entre as pessoas coletivas singulares intervenientes em todo este esquema ardilosa e premeditadamente montado (por exemplo, a vendedora Portgolfin é uma executada cuja administração é, na prática, dominada pela exequente Merecido Exemplo, sendo que essa executada Portgolfin vende o Campo de Golfe de S... a uma pessoa coletiva, a Típico Diário, que, em termos efetivos, coincide com a própria exequente Merecido Exemplo, na medida em que esta é titular de todas as quotas daquela, tendo-as adquirido escassíssimos dias antes da compra do mesmo campo de golfe) – como mais detalhadamente se explicita no corpo das presentes alegações, nos pontos 150 a 177; b) na inexistência de outros ativos; c) no escandalosamente diminuto preço de venda do bem (cerca de sete vezes inferior ao preço real: a diferença entre o valor de venda e o valor de mercado é, assim, superior a € 58.000.000,00 (cinquenta e oito milhões de euros!).
T. Do exposto retiram-se, no essencial, duas ilações:
- os dois fundamentos que o Tribunal a quo invocou para proferir despacho de indeferimento liminar carecem de base legal, decorrendo de um entendimento absolutamente infundado sob o ponto de vista jurídico. Falta de fundamento confirmada, inequivocamente, pela lei, pela doutrina e pela jurisprudência. Com efeito, as razões (exceção dilatória inominada e possibilidade de o Requerente sempre poder executar o bem vendido, ainda que este se situe na esfera jurídica de terceiro que o tenha adquirido em retransmissão) invocadas pelo Tribunal recorrido para proferir despacho de indeferimento liminar de nenhum modo procedem, nem de qualquer forma representam, assim, base legítima para, no presente momento, se poder afirmar, muito menos de modo absolutamente seguro e inabalavelmente indiscutível (como se imporia, para prolação válida de despacho liminar de indeferimento), que a pretensão formulada pelo Recorrente em primeira instância não merece procedência. Deve, pois, a decisão de indeferimento liminar ser revogada e substituída por outra que ordene a continuidade dos autos;
- uma vez ordenada a continuidade do procedimento, em primeira instância, o Tribunal a quo avaliará dos factos invocados e da prova que se venha a produzir, sendo certo que, ante os elementos desde já disponíveis, tudo indica pela total reunião dos pressupostos de concessão das providências requeridas (designadamente em matéria de periculum in mora), concedendo-se procedência à pretensão do Requerente (formulada no R.I.). Esta é, porém, uma matéria a ponderar e decidir, então, em primeira instância, após ser dada procedência ao presente recurso.
U. Em síntese, afigura-se que, de acordo com o regime processual atualmente vigente (ladeado por consistente e congruente apoio doutrinal e jurisprudencial) a decisão recorrida (de indeferimento liminar) deve ser revogada, em virtude de os seus fundamentos se revelarem carentes de suporte legal, assim se devendo determinar a continuidade dos autos na primeira instância, o que se requer.
Nestes termos, e nos mais de Direito, que V. Ex.ª doutamente suprirá, deve o presente Recurso de Apelação ser julgado procedente e, consequentemente:
a. ser declarada a nulidade da decisão por omissão de pronúncia quanto aos primeiro, segundo (na parte não respeitante à transmissão do direito de propriedade), terceiro e quarto pedidos formulados pelo Requerente (ora Recorrente) no requerimento inicial; e
b. ser revogada a decisão ora recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos autos em primeira instância.»
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II - ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir consubstanciam-se em saber:
- se é nula a decisão recorrida.
- se a providência requerida não devia ter sido indeferida liminarmente.
III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos a considerar são os que resultam do relatório que antecede.
O DIREITO
Da nulidade da decisão
Segundo o recorrente, a decisão recorrida enferma da nulidade de omissão de pronúncia, porquanto o Tribunal a quo nada disse quantos aos primeiro, terceiro e quarto pedidos formulados, omitindo pronúncia quanto aos mesmos e, relativamente ao segundo pedido, em que se solicitava que as Requeridas fossem impedidas de transmitir a terceiros quaisquer direitos (reais, de crédito e de qualquer outra natureza jurídica) sobre o Campo de Golfe de S..., o Tribunal apenas se pronunciou relativamente ao impedimento de transmissão de um direito real (de propriedade), omitindo pronúncia quanto à restante parte desse pedido (relativa ao impedimento da transmissão de outros direitos reais, bem como de direitos de crédito ou de qualquer outra natureza).
Em suma, de acordo com o recorrente, a decisão recorrida respeita apenas a um segmento do pedido formulado em segundo lugar, em nenhum momento se pronunciando quanto aos demais pedidos formulados, nem à restante parte do segundo pedido.
De acordo com a alínea d) do nº 1 do art. 615º do CPC, a sentença é nula «[q]uando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»; tal normativo está em consonância com o comando do nº 2 do art. 608º do CPC, no qual se prescreve que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Como é jurisprudência unânime, não há que confundir questões colocadas pelas partes à decisão, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido1.
Questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio2.
Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do artigo 615º, nº 1, al. d), do CPC. Daí que, se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este se não pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia.
No caso em apreço, a decisão recorrida centrou a sua análise na apreciação de parte do segundo pedido formulado, como se colhe do seguinte trecho da mesma:
«É pretensão do Requerente que se suspenda os efeitos da compra e venda realizada tendo por objeto um prédio urbano que se encontrava penhorado no âmbito da ação executiva n.º 1741/24.2..., correspondente ao Campo de Golfe de S..., impedindo-se a sua transmissão, oneração ou prática de atos de administração versando o bem imóvel transmitido.
Alega-se, para o efeito, a lesão do direito de crédito do Requerente, que invoca ser credor de algumas das sociedades executadas no âmbito da ação executiva onde se encontrava penhorado esse bem imóvel e que foi objeto da compra e venda realizada com autorização de cancelamento da penhora emitida pelo Agente de Execução.
Porém, apesar do Requerente invocar que terá reclamado o seu crédito no âmbito daquela ação executiva, ao invés de ali ir exercer os seus direitos (se porventura entende que lhe assistem alguns) nos termos processualmente previstos no processo respetivo, optou por ignorar esses procedimentos e instaurar o presente procedimento cautelar, pretendendo aqui suspender e impedir a produção de efeitos dessa venda realizada com a autorização do Agente de Execução e cujo preço da venda foi depositado em parte naquela ação.
Ou seja, com a procedência da providência a decretar neste processo, o Requerente visa conseguir modificar/impedir os efeitos daquela venda realizada com a autorização do Agente de Execução e cujo produto reverteu a favor dos credores (sem que se alegue que o Requerente teria prioridade no pagamento com o produto da venda).
Como é evidente, carece de fundamento a pretensão do Requerente, que terá de exercer eventual defesa, enquanto credora reclamante, naquela ação executiva contra o ato que entende ter lesado o seu direito de crédito.»
Mais se considerou na decisão recorrida, que no caso de assim não se entender, pese embora a alegação do direito de crédito do Requerente, não foram invocados factos concretos dos quais se retire que, concretizada a compra e venda, ocorra uma lesão grave e irreparável ou de difícil recuperação.
A decisão recorrida, é certo, não se pronunciou expressamente sobre os pedidos formulados sob as alíneas a), c) e d) supra, mas não tinha de o fazer, precisamente por as questões colocadas em tais pedidos se encontrarem prejudicadas pela solução dada ao pedido formulado sob a alínea b).
Com efeito, os pedidos das alíneas a), c) e d) estão numa relação de dependência com o pedido formulado sob a alínea b), pelo que não se vê como seja possível, tendo sido rejeitada a providência onde se pede que as Requeridas sejam impedidas de transmitir a terceiros quaisquer direitos (reais, de crédito e de qualquer outra natureza jurídica) sobre o Campo de Golfe de S... (prédio urbano, situado em situado em Local 1), que o Tribunal viesse a declarar a suspensão de todos efeitos da celebração do contrato de compra e venda do Campo de Golfe de S... [pedido da alínea a)]; serem as Requeridas impedidas de onerar, de qualquer modo, o referido Campo de Golfe [pedido da alínea c)]; e serem as Requeridas impedidas de praticar quaisquer atos de administração, ordinária ou extraordinária, do dito Campo de Golfe [pedido da alínea d)].
A decisão recorrida não enferma, pois, da invocada nulidade de omissão de pronúncia.
Do mérito da decisão
Para indeferir a providência de as Requeridas serem impedidas de transmitir a terceiros quaisquer direitos, invocou-se na decisão recorrida estar verificada uma exceção dilatória inominada, consistente no facto de o Requerente, ora recorrente, ter requerido uma providência cautelar, quando deveria ter formulado a sua pretensão na execução em que é exequente a ora recorrida Merecido Exemplo, S.A..
O Tribunal a quo assentou este seu entendimento no pressuposto de que o recorrente foi já reconhecido como credor reclamante de crédito na execução, mas do documento 13 (Reclamação de Créditos) junto em 11.07.2025, subsequentemente à apresentação do requerimento executivo, resulta que o recorrente não beneficiou ainda dessa condição, dado não dispor de garantia real, motivo pelo qual, apesar de ter invocado o crédito a que se arroga, solicitou a sustação da graduação de créditos.
O recorrente, aliás, alegou no artigo 87º do requerimento executivo que «apresentou, igualmente, uma Reclamação de Créditos, relativamente aos créditos supra identificados (entre outros), no âmbito da ação executiva do processo n.º 1741/24.2..., ação executiva que corre termos no Juiz 2 do Juízo de Execução de Cidade 1 do Tribunal Judicial da Comarca de Cidade 2, intentada pela Requerida Merecido Exemplo, no qual requereu, ao abrigo do artigo 792.º, n.º 1, do CPC, que a graduação de créditos dessa ação executiva aguardasse a obtenção de penhora no âmbito do processo n.º 1356/25.8..., melhor descrita infra no Capítulo II.F. (cf. Reclamação de créditos que se protesta juntar)».
A decisão recorrida deu também como assente que a venda foi realizada com a autorização do agente de execução, mas trata-se de um facto que não decorre dos documentos juntos ao processo, nem o mesmo foi alegado pelo requerente/ recorrente.
O que foi alegado no requerimento inicial nos artigos 48 a 51º foi o seguinte: (i) a Exequente (ora Requerida Merecido Exemplo) contactou, por escrito, o agente de execução solicitando-lhe que este levantasse a penhora “contra” a entrega de dinheiro; (ii) o agente de execução (que, de forma inexplicável, já tinha atribuído ao bem, em sede de penhora, um valor manifestamente – cerca de 20 vezes – inferior ao real - 319.390,05 €), levantou a penhora antes mesmo da realização da venda, esteve presente no ato da escritura, nesta ficou declarado que o mesmo aí recebeu parte do dinheiro da compra (por €7.500.000) para depósito no processo; (iii) por esta via, o imóvel com o campo de golfe (penhorado na referida ação executiva) passou, por cerca 1/10 do seu valor real (por €9.000.000), para a esfera jurídica da sua “marioneta” Requerida Típico Diário, ou seja, para a pessoa coletiva cujas quotas a Exequente Merecido Exemplo detém a título integral (a 100%), sendo, assim, a referida Requerida Merecido Exemplo (integrada no grupo Arrow Global Portugal, tal como a Típico Diário), a única beneficiária desse ativo patrimonial.
Ora, a venda do imóvel em causa e a sua penhora são atos completamente distintos, o que não foi considerado na decisão recorrida.
Por outro lado, diz-se na decisão recorrida que aquilo que é requerido no procedimento cautelar devia ter sido solicitado na ação executiva. Mas não parece que assim seja.
Na verdade, o requerente/recorrente não foi ainda reconhecido na execução como credor reclamante e, mesmo que assim não fosse, não se afigura que a instância adequada para reagir contra a venda posta em causa fosse a referida ação executiva, pela simples mas óbvia razão de que a referida venda não teve lugar na execução, tratou-se, antes, como vimos, de uma venda extrajudicial, o que é, aliás, reconhecido por todos os intervenientes processuais, como se colhe dos “Doc. n.º 1”, “Doc. n.º 2” e “Doc. n.º 3” juntos com as alegações de recurso.
Ainda segundo o Tribunal a quo, a providência não poderia ser deferida, por no caso faltar o requisito do periculum in mora, lendo-se a este respeito na decisão recorrida:
« Mas mesmo que assim não se entendesse, temos que, pese embora a alegação do direito de crédito do Requerente, não se invocam factos concretos dos quais se retire que, concretizada a compra e venda, ocorra uma lesão grave e irreparável ou de difícil recuperação.
Note-se, a propósito, que o Requerente invoca que já exerceu o seu direito de crédito contra as Requeridas no âmbito daquela e de outra ação executiva e que transparece do requerimento inicial que pretenderá intentar ação de impugnação pauliana contra as Requeridas (ação principal a que este procedimento cautelar respeita).
A impugnação pauliana, cujo regime vem previsto nos artºs 610.º a 618.º do Código Civil, insere-se no conjunto de meios colocados à disposição dos credores para evitarem a frustração da posição de segurança que constitui a garantia patrimonial, enquanto expetativa jurídica do direito de executar o património do devedor para satisfação dos seus créditos.
Este direito encontra-se associado ao princípio enunciado no art.º 601.º do Código Civil de que pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens penhoráveis do devedor, sendo este princípio que traduz as noções de responsabilidade patrimonial e de garantia geral, comum, ou patrimonial dos credores (vide, Cura Mariano, in “Impugnação Pauliana”, p.82 e 84).
Assim, estabelece o art.º 610.º do referido diploma que os atos que envolvam diminuição de garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor se concorrerem as seguintes circunstâncias:
a) ser o crédito anterior ao ato ou, sendo posterior, ter sido o ato realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
b) resultar do ato a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.
A ação pauliana caracteriza-se como uma ação pessoal restituitória, condenatória, visando fazer valer o direito de eliminação do prejuízo causado pelo ato impugnado, ou de restabelecimento da possibilidade de satisfação sobre os bens objeto desse ato, através de uma declaração de ineficácia do ato em relação ao credor. Contudo, apesar de se tratar de uma restituição, não há necessidade de que os bens regressem ao património do devedor, podendo conservar-se no património do terceiro adquirente, onde o credor poderá executá-los ou praticar os atos conservatórios autorizados por lei aos credores. Esta restituição pode consistir apenas em dever o terceiro adquirente tolerar que o credor do transmitente execute os bens ou exerça em relação a eles os seus direitos de credor. O que vale por dizer que, mantendo-se a compra e venda realizada (não é peticionada a sua nulidade ou anulação), e mesmo que posteriormente haja outra alienação, o Requerente poderá sempre fazer valer o seu direito de crédito nos sobreditos termos, executando o património dos adquirentes (artºs 613.º e 616.º do Código Civil). Pelo que não se evidencia do alegado para o Requerente qualquer lesão grave e de difícil reparação que mereça tutela cautelar.»
Não se afigura, porém, que assim seja.
Na verdade, parece ser entendimento pacífico a nível doutrinal e jurisprudencial que, no caso de haver retransmissão do bem vendido a um terceiro, ainda que a impugnação pauliana proceda, o requerente poderá não conseguir fazer valer o seu direito (executando o seu direito sobre o bem vendido, ou por outra forma transmitido a título oneroso, a terceiro), se, nesta segunda venda, não houver má fé do alienante e do adquirente3.
Não é, pois, garantido, ao invés do que se diz na decisão recorrida, que no caso de a ação de impugnação pauliana proceder, o requerente/recorrente poderá executar o bem vendido, mesmo que este tenha sido vendido a um terceiro.
Com bem aduz o recorrente, pode, entre o mais, suceder que o terceiro esteja de boa fé, o que inviabilizaria a possibilidade de execução do bem para satisfação do crédito.
Estas e outras questões que se suscitam no presente procedimento cautelar, não consentem uma decisão liminar sobre o seu objeto, sendo mister que se oiçam as testemunhas oferecidas e se analise de forma mais cuidada o vasto acervo documental existente nos autos.
Isto é assim porque o Juiz só deve indeferir a petição inicial com fundamento na manifesta improcedência da pretensão do autor, quando esta for tão evidente que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, seja desperdício manifesto de atividade judicial4.
Pelo que se deixou dito, a decisão recorrida não pode subsistir, impondo-se que os autos prossigam os seus regulares termos, de acordo com o que o tribunal recorrido vier a decidir, considerando que foi requerido o decretamento da providência sem audiência prévia das requeridas.
O recurso merece, pois, provimento.
Sumário:
(…)
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação, na procedência da apelação, em revogar a decisão recorrida e determinar o prosseguimento dos autos nos termos acima referidos.
Custas conforme se fixar a final.
*
Évora, 18 de setembro de 2025
Manuel Bargado (relator)
Francisco Xavier
José António Moita
(documento com assinaturas eletrónicas)
1. Cf., inter alia, o Acórdão do STJ de 08.02.2011, proc. 842/04.8TBTMR.C1.S1, in www.dgsi.pt.↩︎
2. Cf. Acórdão do STJ de 03.07.2024, proc. 3832/21.2T8VLG.P1.S2, in www.dgsi.pt.↩︎
3. Na doutrina, entre outros, João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 3ª edição revista e aumentada, Almedina, pp. 201 a 204. Na jurisprudência, por todos, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24.02.2025, proc. n.º 1784/21.8T8LOU-C.P1, in www.dgsi.pt.↩︎
4. Cf., inter alia, o acórdão desta Relação de 02.10.2018, proc. 450/08.4TBSTB-D.E1, in www.dgsi.pt.↩︎