EXECUÇÃO
SUSPENSÃO DE EXECUÇÃO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário

I - O direito à habitação, previsto no artigo 65º da Constituição da República Portuguesa, diz respeito a prestações diretas ou indiretas do Estado, não se impondo a outros particulares, não sendo a invocada tutela legal da habitação da recorrente, idónea para impedir a obrigação de restituição do imóvel em causa à sua legítima proprietária, ora recorrida.
II - A mera invocação de um princípio constitucional ou de um direito fundamental, não configura uma suscitação processualmente adequada de uma questão de inconstitucionalidade normativa.

Texto Integral

Proc. 1034/10.2TBSSB-F.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


I - RELATÓRIO


Nos presentes autos de execução comum, que Arrow Global Limited instaurou contra AA e BB, veio CC apresentar requerimento em que pede «a suspensão da efetivação da entrega da casa de morada de família».


Alega, em síntese, ser arrendatária do imóvel vendido nos autos, nunca tendo renunciado ao direito de preferência na compra do locado, mas nunca lhe foi enviada qualquer notificação para exercer esse direito, pois teria seguramente intervindo no processo executivo, não podendo ser prejudicada por tal omissão, e uma vez que tinha direito a adquirir a propriedade com base na preferência, também teria direito a arguir a nulidade da venda com base na preterição da exceção dilatória inominada por falta de integração no PERSI.


Mais alega que o levantamento da suspensão da execução do despejo é ilegal, uma vez que contraria os fundamentos de tal medida no adiantar do Outono e progressivo agravamento do Covid 19, violando assim o princípio da legalidade, pois que a um aumento da gravidade da pandemia deveria corresponder um acréscimo na defesa da casa de morada de família, sobretudo quando como é o caso se trata de uma família sem recursos.


Alega, por último, que a Lei nº 31/2023, de 4 de julho é inconstitucional no caso concreto ao colocar o agregado da recorrente numa situação de perigo que faz piorar a fragilidade económica, ficando evidente uma discriminação em razão da origem.


Sobre o pedido da requerente recaiu o despacho do seguinte teor:


«A requerente não é parte na execução e nestes autos já teve lugar o ato de transmissão do bem penhorado, pelo que nunca por nunca poderia ser agora invocada a exceção dilatória inominada por falta de integração no PERSI (cf. art. 734º do CPC).


A requerente já requereu anteriormente que não fosse efetuada a diligência de entrega coerciva do imóvel ao adquirente do bem, por via do reconhecimento do contrato de arrendamento, requerimento esse que foi indeferido através de despacho de 25.10.2018, já transitado em julgado, onde se decidiu que, com a realização da venda executiva, caducou o direito da locatária.


Com a entrada em vigor da Lei n.º 31/2023, de 4/7 (que não se vê que seja inconstitucional), foi revogada a Lei n.º 1-A/2020, de 19/3 (com exceção do art. 5º), não podendo esta Lei ser agora invocada para ser recusada a entrega do imóvel.


Aliás, já em despachos anteriormente proferidos nestes autos, ainda na vigência da Lei n.º 1-A/2020, de 19/3, se considerou que a requerente não poderia valer-se do regime do art. 6º-E da Lei n.º 1-A/2020, consignando-se num desses despachos que “tal regime não pode servir para dar cobertura a uma situação como a ocorrida nos autos, porquanto não se destina a proteger terceiro que esteja a ocupar determinado imóvel sem ter qualquer título que legitime essa ocupação, sobretudo depois de já ter sido anteriormente autorizada e efetuada a entrega desse imóvel ao adquirente” (despacho de 19.05.2023).


Finalmente, restar afirmar que não tem cabimento a dedução de um incidente de diferimento da desocupação, sendo certo que apenas o executado pode deduzir tal incidente, no caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução (art. 864º, n.º 1 do CPC).


Improcedem assim, in totum, os fundamentos invocados pela requerente para requerer a suspensão da entrega do imóvel.


Pelo exposto, e sem necessidade de outras considerações, indefiro o requerido.


Custas pela requerente, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça devida (arts. 527º, nºs. 1 e 2 do CPC, e 7º, nºs. 4 e 8 do RCP).


Notifique.»


Inconformada, a requerente apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que se transcrevem:


«1º


A arrendatária e ora recorrente nunca renunciou ao direito de preferência na compra do locado.


Aliás nunca lhe foi enviada qualquer carta a comunicar esse direito.





Nem pelo senhorio, nem pelo Exmo. AE, nem pelo Tribunal.





Se a comunicação tivesse ocorrido seguramente que a recorrente tinha intervindo no processo executivo, afigurando se que não pode ser prejudicada por omissões que não lhe podem ser imputadas.





Uma vez que tinha direito a adquirir a propriedade com base na preferência, é manifesto que também teria direito a arguir a nulidade da venda com base na preterição da exceção dilatória inominada por falta de integração no PERSI (artº 734º CPC).





Trata se duma exceção do conhecimento oficioso, que sempre poderia ter sido declarada pelo Tribunal, a todo o momento, ou seja, até na presente data, apesar da transmissão poderia e deveria ter sido declarada.





Assim o despacho recorrido viola o disposto dos artº 1091º do CC e 734º CPC.





Acresce ainda que foram arroladas testemunhas pela recorrente, destinadas a fazer prova de que a mesma não tem possibilidades económicas que lhe permitam arrendar uma habitação, invocando a inconstitucionalidade do diploma legal que revogando a proteção contra o despejo





O Estado deve promover a construção de habitação económica e social, estimulando a construção privada (subordinada ao interesse geral), o acesso à habitação própria ou arrendada e a criação de cooperativas de habitação e de autoconstrução. Também deve fomentar o estabelecimento de um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e o acesso à habitação própria.





Sobressai em toda a sua importância o princípio da legalidade – a Administração está sujeita ao princípio da precedência da lei e tem de cumprir as leis que estabelecem os direitos a prestações, destacando-se o dever de emitir os regulamentos e praticar os atos necessários à respetiva execução.


10ª


Na sua vertente negativa, e conforme ensinam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, cit., pág. 834, em anotação ao art. 65º:


“Consiste (…) no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma; neste sentido, o direito à habitação reveste a forma de «direito negativo», ou seja, de direito de defesa, determinando um dever de abstenção do Estado e de terceiros, apresentando-se, nessa medida, como um direito análogo aos «direitos, liberdades e garantias» (cfr. art. 17°).”


11ª


Por outro lado, a consagração de um direito fundamental à habitação não se compadece com soluções que admitam a privação arbitrária sem fundamento razoável, do direito a uma morada digna.


12ª


Com um regime de arrendamento que salvaguarda (ainda que de modo variável) o vínculo do contrato, impondo restrições ao proprietário privado, tais como a proibição de despejos sem motivo e a instituição de limites ao valor da renda - rendas apoiadas e condicionadas -, visando sempre a proteção dos cidadãos com menos possibilidades económicas.


13ª


O agregado familiar constituído pela Recorrente, pela companheiro e por um canídeo depositou toda a sua confiança no Estado Português que perante a existência de uma pandemia tudo iria fazer para preservar os cidadão de tal situação deveras clamorosa enquanto subsistir.


14ª


Os fundamentos da consagração da suspensão dos atos de execução do despejo basearam-se precisamente na subsistência da pandemia, a serem mantidos enquanto esta não cessar.


15ª


É natural que no Verão, tratando-se de uma gripe que só sobrevive com o frio, os efeitos tenham sido mitigados e daí que tivesse sido obtido consenso para a revogação da suspensão.


16ª


A questão que se coloca é a de saber se neste momento a pandemia continua ou não em processo de forte crescimento e na verdade é público e notório que tem vindo a ser imposto o uso de máscaras nas instituições hospitalares e o frio ainda nem sequer se tornou evidente. Coloca-se pois em causa o principio da legalidade pois que a um aumento da gravosidade da pandemia deveria corresponder um acréscimo na defesa da casa de morada de família, sobretudo quando como é o caso se trata de uma família sem recursos, tal como resulta da concessão do beneficio de apoio judiciário.


17ª


A colocação na rua faz com que os perigos para o agregado familiar sejam ainda mais gravosos, sendo certo que o Tribunal recorrido de forma inexplicável não se dignou proceder à marcação da inquirição das testemunhas arroladas, tudo se passando como se o concreto pedido de suspensão nunca tivesse sido formulado, com manifesto prejuízo para o Recorrente que assim se vê numa situação de inferioridade face aos Recquerentes que tendo obtido a produção de tal podem continuar a sustentar a manutenção da medida enquanto se subsistam os pressuposto do agravamento causado pelo despejo.


18ª


Logo, terá de se concluir que levantamento da suspensão da execução do despejo é ilegal pois que contraria os fundamentos de tal medida no adiantar do Outono e progressivo agravamento do Covid 19.


19ª


Mais, é ainda inconstitucional no caso concreto ao colocar o agregado numa situação de perigo que faz piorar a fragilidade económica, ficando evidente uma discriminação em razão da origem. Naturalmente que tal exposição ao perigo choca face ao desejo de aumento exorbitante das rendas visto que foi o propósito do senhorio que alegou optar pelo despejo para alcançar uma renda superior.


20ª


De facto, o legislador que pretende efetivar os despejos estará a tratar de modo diverso os arrendatários dado que não limita os aumentos de renda, nada justificando tal desigualdade de tratamento.»


A exequente/recorrida contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso e a consequente manutenção da decisão recorrida.


Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II – ÂMBITO DO RECURSO


Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir consiste em saber se deve ser suspensa a entrega do imóvel penhorado e vendido nestes autos.


A resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:


- legitimidade da recorrente;


- caso julgado formal;


- direito constitucional à habitação (casa de morada de família).


III – FUNDAMENTAÇÃO


OS FACTOS


Os factos a considerar, além dos que constam do relatório, são os seguintes1:


1 - Na presente execução foi penhorada a fração “D” do prédio descrito na CRP de Cidade 1 sob o n.º 2229 da freguesia de Local 1, inscrito na matriz sob o artigo 7390, com propriedade registada a favor dos executados desde 21.08.2007.


2 - Através de escrituras de 03.10.2007 os executados constituíram duas hipotecas a favor do Banco Comercial Português, S.A.2, para garantia de dois empréstimos que este banco lhes concedeu, tendo a inscrição das hipotecas sido registada também em 21.08.2007.


3 - A penhora foi inscrita no registo predial em 02.03.2011.


4 - Em 14.06.2017 foi proferido despacho mandando notificar a agente de execução3 para proceder à venda do imóvel penhorado pelo valor da proposta apresentada pelo credor BCP, SA (€ 45.900,00), caso outra de valor mais elevado não fosse alcançada.


5 - Teve lugar a venda do imóvel penhorado, titulada por escritura pública de compra e venda de 18.09.2017.


6 - O agente de execução notificou os executados, por cartas registadas datadas de 27.09.2017, para, no prazo de 5 dias, procederem à entrega das chaves da aludida fração.


7 - Em 23.02.2018 a recorrente apresentou um requerimento nos autos, alegando ter celebrado contrato de arrendamento com os executados em 01.06.2014, conforme documento que juntou, requerendo que não fosse efetuada “a diligência de entrega coerciva do imóvel à Credora Reclamante por via do reconhecimento do contrato de arrendamento”, e que fosse a mesma notificada para “indicar IBAN para o qual deverão ser pagas as rendas”.


8 - Em 26.09.2018, a recorrente requereu a junção aos autos de “comprovativos de depósito de renda junto da Entidade Bancária Caixa Geral de Depósitos”.


9 - O BCP respondeu através de requerimento de 09.10.2018, alegando desconhecer a existência de qualquer contrato de arrendamento, e que a ter sido celebrado o mesmo foi à sua revelia e com total desconhecimento do reclamante, impugnando todos os documentos apresentados, e concluiu pedindo que se ordenasse a entrega do imóvel adjudicado e que, no caso de se encontrar a porta de entrada fechada à chave, fosse requisitado o auxílio da força pública por forma a ser possível proceder ao respetivo arrombamento.


10 - Em 25.10.2018 foi proferido despacho no qual se decidiu que o processo podia prosseguir para venda do imóvel penhorado e que com a realização da venda caducou o direito da locatária.


11 - Em 24.01.2019, o executado DD deduziu embargos de terceiro contra o BCP, formulando os seguintes pedidos:


A) Declaração de falsidade da adjudicação da fração autónoma em causa por preterição de notificação do embargante para exercer o direito de preferência;


B) Condenação do exequente a pagar-lhe uma indemnização por danos não patrimoniais de € 50.000,00;


C) Declaração do direito de propriedade do embargante em conjunto com a sua companheira e, ao abrigo da compensação face ao peticionado em B), declaração que nada deve ao exequente.


12 - Os embargos foram liminarmente indeferidos, por decisão proferida em 05.02.2019, a qual foi confirmada pelo Acórdão desta Relação de 12.06.2019.


13 - Por sentença de habilitação de 30.03.2022, proferida no apenso D), Palavras Colossais, S.A. foi habilitada a prosseguir a execução no lugar do credor e adquirente BCP.


14 - Em 18.05.2022 foi proferido despacho em cujo dispositivo se consignou:


«Pelo exposto, no pressuposto de que o imóvel identificado nos autos não está a ser habitado por nenhum dos executados, e apenas desde que tal pressuposto se verifique (o que deve ser confirmado no ato da entrega), autorizo a requisição do auxílio da força pública, na medida do estritamente necessário à efetivação da diligência (arts. 757º, n.º 4, 828º e 861º, n.º 1 do CPC)».


15 - Em 22.09.2022, a ora recorrente deduziu embargos de executado contra o BCP e Palavras Colossais, S.A., formulando os seguintes pedidos:


a) Seja declarada a existência do direito da Embargante de aquisição do direito de propriedade da fração autónoma correspondente à casa sita na Rua 1, ... Local 1, por preterição do direito de preferência/remissão, comprometendo-se a Embargante a proceder ao deposito da quantia de €10.000,00 à ordem do Tribunal até ao términus da audiência de julgamento;


b) Supletivamente, seja declarada a existência entre Embargante e a 2ª Embargada de um contrato de arrendamento de duração indeterminada com a renda mensal de 220,00€;


c) Sejam ambas as Embargadas, de forma solidária e conjunta, condenadas a pagar à Embargante a título de indeminização por obras necessárias no valor de €18.172,00;


d) Seja declarado que com base em compensação sobre o valor da indeminização peticionada em c) se encontram pagas de forma antecipada as rendas relativas ao período que vai de setembro de 2022 até maio de 2028;


e) Seja ordenada a notificação da Câmara Municipal do CIdade 2 bem como a respetiva Santa Casa da Misericórdia para atribuírem uma habitação condigna, com uma renda não superior a 220,00€ por mês, ficando o processo executivo suspenso até que se verifique tal atribuição e uma vez verificada a entrega das chaves ser ainda deferido o despejo por um período suplementar por mais 6 meses.


16 - Por decisão de 18.10.2022, transitada em julgado, os embargos foram liminarmente indeferidos.


17 - Em 03.11.2022 a ora requerente apresentou nos autos um requerimento a solicitar “a imediata suspensão da execução para salvaguarda da casa de morada de família.


18 - Em 15.12.2022 foi proferido o seguinte despacho:


«O despacho que autorizou a entrega do imóvel não partiu do pressuposto de que já não se encontrava em vigor o regime do art. 6º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19/3, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5/4; pelo contrário, o que no referido despacho se concluiu foi que o regime previsto “na alínea b) do n.º 7 do art. 6º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19/3, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5/4, destina-se apenas a proteger o executado perante o credor que seja titular de um direito à entrega da casa de morada de família daquele”, não sendo aplicável “quando a pessoa que ocupe o imóvel seja um terceiro que não tem qualquer título que legitime essa ocupação”, como sucede com a requerente CC.


De acordo com este entendimento, a entrega foi autorizada no pressuposto de que o imóvel não estava a ser habitado por nenhum dos executados, e apenas desde que tal pressuposto se verificasse (o que deveria ser confirmado no ato da entrega).


Como resulta do auto de entrega do imóvel, essa confirmação foi feita, pelo que a diligência teve lugar com respeito pelo que no referido despacho se decidiu.


Pelo exposto, efetuada que foi a entrega, e concretizada que foi a notificação de extinção da execução, nada mais há a determinar nos presentes autos.


Notifique.»


19 - Em 20.12.2022, a ora recorrente interpôs recurso deste último despacho.


20 - Por despacho de 19.05.2023, foi mandado desentranhar o requerimento de interposição daquele recurso, por não ter sido efetuado o pagamento da taxa de justiça e da multa devidas.


21 - Apreciando novo requerimento da ora recorrente a pedir a suspensão da entrega do imóvel em causa foi, nessa mesma data (19.05.2023), proferido estoutro despacho:


«Estamos perante questão sobre a qual o Tribunal já se pronunciou, tendo sido autorizada e efetuada a entrega do imóvel.


Reocupado o imóvel, aparentemente pelas mesmas pessoas que anteriormente o ocupavam, em circunstâncias que na sede própria serão apuradas, a requerente pretende mais uma vez valer-se do regime do art. 6º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19/3.


Ora, tal regime não pode servir para dar cobertura a uma situação como a ocorrida nos autos, porquanto não se destina a proteger terceiro que esteja a ocupar determinado imóvel sem ter qualquer título que legitime essa ocupação, sobretudo depois de já ter sido anteriormente autorizada e efetuada a entrega desse imóvel ao adquirente.


Pelo exposto, indefere-se o requerido e autoriza-se a requisição do auxílio da força pública para ser efetuada a entrega do imóvel.


Notifique, sendo-o a AE para dar cumprimento ao presente despacho apenas após o trânsito em julgado do mesmo».


22 – Deste despacho interpôs novamente recurso a recorrente, mas por não ter sido paga a taxa de justiça e a multa devidas, foi o requerimento de interposição do recurso mandado desentranhar, conforme despacho de 22.01.2024.


17 - Foi então de novo agendada diligência de entrega do imóvel para dia 15.03.2024 e, nesta sequência, veio a recorrente, em 31.01.2024, arguir a nulidade da venda e da penhora, a qual foi indeferida nos termos do despacho de 29.02.2024, transcrito supra no relatório, o qual constitui objeto do presente recurso.


O DIREITO


Diz a recorrente que, enquanto arrendatária, não renunciou ao direito de preferência na compra do locado, mas nunca lhe foi enviada qualquer carta a comunicar esse direito, sendo que se tal tivesse ocorrido, a mesma teria intervindo na execução, pois tinha o direito a adquirir o imóvel com base na preferência, e também teria direito a arguir a nulidade da venda com base na preterição da exceção dilatória inominada por falta de integração no PERSI, concluindo assim que a decisão recorrida viola o disposto nos arts. 1091º do CC e 734º do CPC.


Mas não tem razão a recorrente.


Em primeiro lugar, a recorrente não é executada, carecendo de legitimidade para arguir a invocada exceção dilatória inominada por falta de integração no PERSI4 e, ademais, houve já transmissão do imóvel penhorado, pelo que não poderia ser agora conhecida aquela exceção dilatória, conforme o disposto no art. 734º do CPC.


Em segundo lugar, a recorrente faz completa tábua rasa de todo o processado, designadamente das decisões já proferidas nos autos, desde logo a decisão de 25.10.2018, na qual, após se convocar doutrina e jurisprudência pertinente, se decidiu que nada obstava a que a execução tivesse prosseguido - como prosseguiu - para a fase da venda do imóvel penhorado, e que com a realização da venda tinha caducado o alegado arrendamento celebrado entre os executados e a recorrente.


Esta decisão transitou em julgado, pois da mesma não interpuseram recurso a recorrente e os executados, sendo que a recorrente, apenas em 22.09.2022 deduziu “embargos de executado” contra o BCP e Palavras Colossais, S.A., pedindo, designadamente, que fosse declarada “a existência do direito da Embargante de aquisição do direito de propriedade da fração autónoma” penhorada nos autos.


Embargos esses, aliás, que foram liminarmente indeferidos, tendo essa decisão transitado em julgado, pois o recurso dela interposto foi mandado desentranhar por falta de pagamento da taxa de justiça e da multa devidas.


Também não colhe a pretensão da recorrente de ver aplicada ao caso a Lei nº 1-A/2020, de 19.03, que foi revogada pela Lei n.º 31/2023, de 04.07 (com exceção do art. 5º), pois uma lei revogada, em regra, deixa de produzir efeitos jurídicos no futuro, pois cessa a sua vigência, sendo substituída por outra lei.


Ademais, já em despachos anteriormente proferidos nestes autos, ainda na vigência da Lei n.º 1-A/2020, de 19/3, se considerou que a requerente não poderia valer-se do regime do art. 6º-E da Lei n.º 1-A/2020, consignando-se no despacho de 19.05.2023, que “tal regime não pode servir para dar cobertura a uma situação como a ocorrida nos autos, porquanto não se destina a proteger terceiro que esteja a ocupar determinado imóvel sem ter qualquer título que legitime essa ocupação, sobretudo depois de já ter sido anteriormente autorizada e efetuada a entrega desse imóvel ao adquirente”.


Deste despacho recorreu a recorrente, mas o requerimento de interposição do recurso foi mandado desentranhar dos autos por despacho de 22.01.2024, por não ter sido efetuado o pagamento da taxa de justiça e da multa devidas, formando-se assim caso julgado formal, com força obrigatória dentro do processo, sobre aquela decisão.


Definitivamente resolvida, portanto, tal questão, prejudicado fica o conhecimento de uma eventual ilegalidade do despacho recorrido.


Invoca ainda recorrente o direito à habitação para ver suspensa a entrega do imóvel objeto de venda na execução.


O direito à habitação é um dos direitos fundamentais do Homem e encontra-se regulado na Constituição da República Portuguesa5, no artigo 65º, o qual prevê o direito de todos a uma habitação adequada, bem como uma série de incumbências ao Estado, de modo a garantir o direito social fundamental.


Por se afigurar de todo pertinente, passamos a reproduzir o sumário do Acórdão do STJ de 13.12.20226:


« – Ocupando a Ré o imóvel pertencente ao A. Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana IP, sem deter qualquer título para o efeito e não pagando qualquer contrapartida por essa mesma ocupação, assiste à proprietária, nos termos gerais do artigo 1311º do Código Civil, o direito a reivindicar, obtendo para si, o seu imóvel.


II – Merecendo a débil situação pessoal da Ré ocupante/utilizadora, mormente a sua fragilidade económica e o seu precário estado de saúde, o máximo respeito, devendo ser devidamente considerada, atendida e cuidada em sede e momento próprios pelas entidades públicas vocacionadas para a resolução destes problemas graves de emergência social, o certo é que a mesma não é susceptível, em termos estritamente jurídicos, de paralisar o direito de propriedade do A. que exige, legitimamente, a restituição de um bem que lhe pertence, cuja utilização não contratualizou com a Ré, e pela qual não recebe qualquer contrapartida, com directo prejuízo para as finalidades e programação (que lhe compete) das suas funções assistenciais, as quais devem cobrir globalmente toda a comunidade necessitada, em conformidade com os critérios e procedimentos legais previamente aprovados pelos órgãos competentes.


III - No mesmo sentido, não é possível interpretar o regime constante da Lei nº 83/2019, de 3 de Setembro, que estabelece as bases do direito à habitação e as incumbências e tarefas fundamentais do Estado na efectiva garantia desse direito a todos os cidadãos, nos termos da Constituição da República Portuguesa, como legitimando, num dado caso concreto, as ocupações de imóveis ilegalmente consumadas e que perdurem no tempo, agindo os ocupantes sem título e usando-os gratuitamente contra a vontade do seu proprietário, ao completo arrepio das atribuições conferidas às entidades competentes neste domínio da atribuição de habitação social, sob pena de total descaracterização e subversão da concepção de Estado de Direito que preside a todo o nosso edifício legislativo. »


Sobre o alcance do direito à habitação, lê-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 612/2019, de 22.10.20197:


«(...) Tal como outros direitos sociais, o conteúdo do direito à habitação desdobra-se numa dupla vertente: por um lado, uma vertente de natureza negativa, que se traduz no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenham de atos que prejudiquem tal direito; por outro lado, uma vertente de natureza positiva, correspondente ao direito a medidas e prestações estaduais visando a sua promoção e proteção.


(…).


É esta vertente de direito social que implica um conjunto de obrigações positivas por parte do Estado, legitimando pretensões a determinadas prestações, que vem acentuada no artigo 65.º da CRP, particularmente nos seus n.ºs 2 a 4.


Significa isto que, sendo o direito à habitação configurado como um direito à proteção do Estado, as pretensões nele fundadas não têm como destinatários diretos os particulares, nas relações entre si, mas antes o Estado, as regiões autónomas e as autarquias, a quem são impostas um conjunto de incumbências no sentido criar as condições necessárias tendentes a assegurar tal direito. A garantia de tal direito envolve, deste modo, a adoção de medidas no sentido de possibilitar aos cidadãos o acesso a habitação própria (cf. o n.º 3 do artigo 65.º da CRP). Contudo, o mesmo direito não se esgota nem se identifica com o direito a ser proprietário de um imóvel onde se tenha a habitação, sendo realizável também por outras vias, designadamente através do arrendamento.


Neste mesmo sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 649/99, salientando, por um lado, que «o direito à habitação não se esgota ou, ao menos, não aponta, ainda que de modo primordial ou a título principal, para o “direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão”» e, por outro, «que o mínimo de garantia desse direito (ou seja, o de obter habitação própria ou de obter habitação por arrendamento em condições compatíveis com os rendimentos das famílias) é algo que se impõe como obrigação, não aos particulares, mas sim ao Estado».


(…).


Assim, embora o direito à habitação possa justificar limitações à propriedade, tais limitações terão de obedecer sempre a um princípio de equidade e de proporcionalidade, sem que se perca de vista, no entanto, que o direito à habitação constitucionalmente garantido, na sua vertente positiva, tem como titulares passivos, em primeira linha, o Estado e os demais entes públicos territoriais, e não os particulares.


Nessa medida, a consagração do direito fundamental à habitação «pressupõe a mediação do legislador ordinário destinada a concretizar o respetivo conteúdo, a efetivar-se segundo a “reserva do possível”, não conferindo, por si mesmo, habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e de conforto, com preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar, na medida em que isso sempre dependerá da concretização da tarefa constitucionalmente atribuída ao Estado» (cf. Acórdão n.º 829/96 e, neste mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 508/99 e 29/2000).


Por outro lado, e tendo em conta a aludida vertente defensiva, está vedado ao legislador ordinário adotar soluções que impliquem a privação arbitrária, sem fundamento razoável, do direito a ter uma habitação condigna (cf., a este respeito, os Acórdãos n.ºs 4/96 e 402/2001). Mas o Tribunal Constitucional tem igualmente reconhecido que, nesta matéria, o legislador goza de um amplo espaço de conformação (cf., a este respeito, entre outros, o Acórdão n.º 806/93), conformação essa que a propósito da tutela da habitação própria permanente do executado, tem a vindo a ser exercida em diversas ocasiões.


(…).


É certo que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem afirmado, nalguns casos, que nesta ponderação o legislador deverá sacrificar o direito do credor, na medida do necessário, de forma que a realização desse direito não ponha em causa a sobrevivência ou subsistência do devedor, tendo em vista a tutela da dignidade da pessoa humana (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 177/2002 (…).


Com efeito, sendo certo que é merecedora de ponderação a circunstância de o imóvel ser a habitação da Autora , e não obstante a função social da propriedade, que poderá justificar a imposição de certas restrições aos direitos do proprietário privado (cf., entre outros, os Acórdãos n.ºs 311/93, 263/2000, 309/2001 e 543/2001), daí não decorre que seja exigível impor aos particulares que se substituam ao Estado nas obrigações que sobre este impendem em matéria de proteção do direito à habitação (cf. os Acórdãos n.ºs 101/92, 130/92, 633/95 e 570/2001). (…)» (destaques nossos).


Em suma, o direito à habitação, previsto no artigo 65º da Constituição, diz respeito a prestações diretas ou indiretas do Estado, não se impondo a outros particulares, não sendo a invocada tutela legal da habitação da recorrente, idónea para impedir a obrigação de restituição do imóvel em causa à sua legítima proprietária e ora recorrida.


De tudo quanto se disse, resulta claro inexistir qualquer inconstitucionalidade, sabendo-se, ademais, que a mera invocação, como sucede in casu, de um princípio constitucional ou de um direito fundamental, não configura uma suscitação processualmente adequada de uma questão de inconstitucionalidade normativa8.


Por conseguinte, o recurso improcede.


Sumário:


(…)





IV – DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.


Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.


*


Évora, 18 de setembro de 2025


Manuel Bargado (Relator)


Maria Adelaide Domingos


Ana Pessoa

1. Os quais resultam da consulta dos atos históricos da execução no Citius.↩︎

2. Doravante abreviadamente designado BCP.↩︎

3. Doravante abreviadamente designada AE.↩︎

4. O DL nº 227/2012, de 25.10, depois de elencar no art. 2º o tipo contratual a que se aplica o PERSI, define no art. 3º, nº 1, o que se entende neste âmbito por cliente bancário, prescrevendo que «para efeitos do presente diploma, entende-se por: a) - «Cliente bancário» o consumidor, na acepção dada pelo n.º 1 do artigo 2.º da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31 de julho, alterada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, que intervenha como mutuário em contrato de crédito».↩︎

5. Doravante abreviadamente designada CRP.↩︎

6. Proc. nº 11843/19.1T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.↩︎

7. In www.tc.jurisprudencia, no qual decidiu não julgar inconstitucional a norma do art. 751º, nº 3, al. b), do CPC.↩︎

8. Cf. Acórdão do STJ de 02.02.2022, proc. 1734/11.0TBVIS-A.S1, in www.dgsi.pt.↩︎