EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
PRESUNÇÃO DE INSOLVÊNCIA CULPOSA
DISPOSIÇÃO DE BENS DO DEVEDOR A FAVOR DE TERCEIRO
Sumário

I – A presunção (inilidível) de insolvência culposa prevista no artigo 186º, nº 2, al. d), CIRE, apesar de prevista para o devedor pessoa coletiva, na parte em que se reporta à disposição de bens do devedor a favor de terceiro é também aplicável ao insolvente/pessoa singular (art. 186º nº 4).
II – Na parte em que, na al. d), se prevê a disposição de bens do devedor em proveito pessoal (por parte dos administradores de facto ou de direito), o que se pune é o aproveitamento de bens do devedor por alguém externo à pessoa coletiva, não tendo aplicação no caso de devedor pessoa singular.
III – A disposição de bens do devedor por insolvente pessoa singular poderá levar à qualificação da insolvência como culposa, à luz do nº 1 do artigo 186º, uma vez verificados os demais pressupostos aí exigidos.
IV – A circunstância de os bens vendidos e doados constituírem bens próprios do insolvente marido, e de a insolvente mulher ter outorgado as respetivas escrituras unicamente para prestar o seu consentimento a tais atos, não afasta a sua responsabilidade.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Catarina Gonçalves

2º Adjunto: Anabela Marques Ferreira (por vencimento)

                                                                                               

Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA e mulher, BB, casados sob o regime de comunhão de adquiridos, apresentam-se à insolvência, formulando pedido de concessão do benefício da exoneração do passivo restante.

A Sra. Administradora da Insolvência, no Relatório elaborado nos termos do artigo 155º, do CIRE, pronunciou-se pelo indeferimento liminar do incidente de exoneração do passivo restante, por verificação do circunstancialismo a que alude a alínea e), do n. º1, do artigo 238.º, do CIRE.

Os credores A..., S.A, Banco 1..., S.A., Banco 2..., S.A. e Banco 3... GMBH, Sucursal Portuguesa, pugnaram igualmente pelo indeferimento liminar do incidente de exoneração do passivo restante, por preenchimento das alíneas d) e e), do n. º1, do artigo 238.º, do CIRE.

Os insolventes exerceram o respetivo contraditório, alegando ser falso terem dissipado património, verificando-se os pressupostos que justificam o pedido de exoneração do passivo restante.


*

Seguidamente, pelo juiz a quo foi proferida a seguinte decisão liminar, de que agora se recorre:

“Em face do exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 236.º n.º 3, 238.º n.º 1 al. e) e 186.º, n.º2, al. d) , do CIRE, indefiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes.”


*

Inconformados com tal decisão, os insolventes, dela interpõe recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

(…).


*
Não foram apresentadas contra-alegações ao recurso.
Dispensados os vistos legais, nos termos do nº 4 do artigo 657º CPC, há que decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 635º, nº4, e 639º, do Novo Código de Processo Civil, as questões a decidir, são as seguintes:
1. Aplicabilidade da al. d) do nº2 do artigo 186º, do CIRE, às pessoas singulares insolventes.
2. Se a interpretação dos artigos 238.º n.º 1 al. e) e 186.º n.º 2 al. d) e n.º 4, do CIRE, no sentido de que o devedor singular, sempre que tenha alienado ou doado património, nos 3 anos anteriores ao processo de insolvência, se presume – sem admissibilidade de prova em contrário ou apreciação casuística da situação concreta – culposa e, por isso, suscetível de impedir a concessão da exoneração do passivo restante é inconstitucional, por violação dos arts. 24.º, 62.º, 64.º, 65.º, 66.º e 67.º, todos da CRP
3. Se o circunstancialismo do artigo 186º, nº2, al. d), com as devidas adaptações, se encontra preenchido
4. Se não se pode imputar à insolvente mulher o circunstancialismo da al. d) do nº2, artigo 186º, CIRE.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A. Matéria de Facto

Na decisão recorrida, foram tidos por assentes os seguintes factos, tidos por relevantes para a apreciação liminar do pedido de exoneração do passivo restante:

1. Por ação entrada em juízo a 09.10.2024, AA e BB apresentaram-se à insolvência que veio a ser declarada por sentença proferida a 21.10.2024, já transitada em julgado.

2. Os insolventes casaram entre si, em ../../2010, sem convenção antenupcial, sob o regime de comunhão de adquiridos sendo o seu agregado familiar composto pelos próprios e pela filha menor CC, nascida em ../../2011, com 13 anos de idade.

3. O Insolvente Marido trabalha para a sociedade B..., Lda., com a categoria profissional de Fresador convencional/Técnico de bancada, auferindo o salário base de €820,00.

4. A Insolvente Mulher trabalha para a sociedade C..., Unipessoal Lda., com a categoria profissional de Administrativa, pelo salário base de €820,00, sendo- lhe ainda concedido a título de prestação social para a inclusão o montante de €324,80, em virtude de ter padecido de um “problema de saúde de natureza oncológica (cancro da mama)”.

5. Os Insolventes residem em casa dos pais do Insolvente marido, comparticipando nas despesas de casa com o montante mensal de €250,00.

6. O Insolvente marido constituiu, em 02-10-2014, com DD, a sociedade comercial por quotas, D..., Lda, NIPC ...98, com o capital social de €5.000,00, na qual o insolvente marido era titular de uma quota com o valor nominal de €1.500,00.

7. Por deliberação de 29-10-2020, a sociedade aumenta o capital social para €20.000,00, passando o capital social a ser distribuído por três quotas: a) €8.000,00 titulada pelo sócio DD; b) €6.0000,00 titulada pelo Insolvente Marido, c) €6.000,00 titulada pela E..., Unipessoal, Lda.

8. No âmbito da atividade da referida sociedade foram avalizadas diversas operações bancárias pelos insolventes.

9. A sociedade D..., Lda. foi declarada insolvente por sentença proferida no dia 17-09-2023[1], no âmbito do processo n.º 1728/23.... o qual correu os seus termos neste Juízo de Comércio - J3, processo que veio a ser encerrado por decisão de 08-11-2024 após rateio final, encontrando-se a sociedade extinta.

10. Os créditos reclamados e reconhecidos no âmbito dos presentes autos resultam de avales e fianças prestados pelos insolventes no âmbito de atividade societária da sociedade “D..., Lda.”, créditos esses cujas datas de vencimento remontam ao período compreendido entre 28/07/2020 a 21/10/2024.

11. Os créditos reclamados e reconhecidos nos autos totalizam o montante de €743.581,89

12. Os Insolventes, em 31-01-2023, procederam à venda de uma fração autónoma, designada pela letra “A”, correspondente a um rés-do-chão esquerdo, destinado a habitação, com garagem na cave e uma arrecadação no sótão inscrita na matriz predial urbana da freguesia ... sob artigo matricial ...96 e descrita na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis da ... sob o n.º ...03 da referida freguesia ... adquirido pela sociedade denominada “F..., S.A.”, NIF ...14, pelo montante de € 129.000,00.

13. Procederam à liquidação antecipada do empréstimo, no valor de € 54.683,11 e procederam ao pagamento da quantia de € 6.346,80 à mediadora imobiliária.

14. O remanescente do valor auferido (cerca de € 48.000,00) foi utilizado para pagamento de dívidas a familiares diretos e algumas obras de adaptação na habitação do pai do insolvente, para a qual foram viver e foi ainda gasto / consumido no dia-a-dia do agregado durante o período que se seguiu à alienação da fração.

15. O Insolvente marido, a partir de janeiro de 2023 deixou de receber vencimento na empresa, somente retomando recebimento de salário, após ter iniciado, por sua iniciativa, trabalho noutra entidade, a partir de outubro de 2023.

16. Foi um período em que não existiu qualquer suporte salarial para o agregado, atendendo a que a Insolvente mulher, desde 2019, se encontrava desempregada.

17. Em 17-12-2021, os insolventes doaram, aos pais do insolvente marido, dois prédios rústicos, inscritos na respetiva matriz sob os artigos matriciais n.º ...38 e ...39 da freguesia ..., concelho ... e descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob os n.º ...58 e ...59 da freguesia ....

18. O insolvente marido era titular de uma quota com o valor nominal de €6.000,00 (seis mil euros) na sociedade "D..., Lda.", NIPC ...98, a qual não tem qualquer valor, uma vez que a sociedade se encontra extinta, porquanto foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 1728/23...., tendo sido determinado o encerramento do processo por realização de rateio com os efeitos previstos no artigo 233.º e 234º, n.º 3 do CIRE.

19. Do Certificado do Registo Criminal dos insolventes nada consta.


*

B. Subsunção do direito aos factos

1. Aplicabilidade da al. d), do nº2, do artigo 186º, do CIRE, às pessoas singulares insolventes

O indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante foi decretado ao abrigo da al. e), do nº1, do artigo 238º do CIRE – existência de elementos que indiciem já, com toda a probabilidade, a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação da insolvência –, por aplicação do artigo 186º, nº2, al. d), e nº4, do CIRE, segundo o qual se considera sempre culposa a insolvência do devedor que tenha «disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros».

O juiz a quo chegou a tal decisão, por via do seguinte raciocínio:

No caso, os insolventes em 17.12.2021 doaram dois prédios rústicos ao pai do insolvente marido. E em 31-01-2023, procederam à venda de uma fração autónoma, designada pela letra “A”, correspondente a um rés-do-chão esquerdo, destinado a habitação, com garagem na cave e uma arrecadação no sótão inscrita na matriz predial urbana da freguesia ... sob artigo matricial ...96 e descrita na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis da ... sob o n.º ...03 da referida freguesia ... adquirido pela sociedade denominada “  NIF ...14, pelo montante de € 129.000,00.

Com o produto da venda procederam à liquidação antecipada do empréstimo, no valor de € 54.683,11 e procederam ao pagamento da quantia de € 6.346,80 à mediadora imobiliária. O remanescente do valor auferido (cerca de € 48.000,00) foi utilizado para pagamento de dívidas a familiares diretos e algumas obras de adaptação na habitação do pai do insolvente, para a qual foram viver e foi ainda gasto / consumido no dia-a-dia do agregado durante o período que se seguiu à alienação da fração.

Verifica-se, desde logo, que tais transmissões (doação e venda) ocorreram menos de três anos antes da data do início do processo.

A transmissão de todo o seu património imobiliário configura, a nosso ver, uma disposição de bens dos insolventes em seu proveito (remanescente do produto da venda da fração) e em proveito de terceiros (doação).

Tal conduta dos insolventes, visando subtrair os (praticamente) únicos bens de que eram proprietários à ação dos credores, menos de três anos antes de se apresentarem à insolvência, obsta a que se conclua pela sua boa fé e honestidade.”

Independentemente das justificações apresentadas pelos insolventes, a verdade é que a sua atuação teve como consequência direta a transmissão de praticamente todo o seu património, prejudicando o ressarcimento dos seus credores.”

Os Apelantes fazem assentar as suas divergências com o decidido, nos seguintes fundamentos:

Resultando a aplicabilidade do nº2 do artigo 186º às pessoas singulares, do disposto no nº4, esta, deverá ter em consideração as devidas adaptações e, ainda, onde de a isso não se opuser a diversidade das situações;

existindo manifesta e obvia diversidade entre o comportamento de um legal representante de uma pessoa coletiva, quando aliena em seu próprio beneficio ou de terceiro, e o comportamento de um insolvente singular que, em determinadas e específicas circunstancias, aliena (ou possibilita o uso e fruição) a terceiros;

daí que a análise casuística de cada concreta situação seja, efetivamente determinante para a consideração da aplicabilidade (ou não), de qualquer uma das alíneas do nº2 às pessoas singulares, dando como ex., o caso de uma pessoa singular que padecendo de doença grave, que implique uma cirurgia dispendiosa, aliena todo o seu património, ou que o faça para prover ao seu sustento;

assim, no caso em apreço, não se pode defender que o recorrente marido retirou benefícios próprios da alienação (designadamente do valor remanescente da venda (depois de pagos o distrate/crédito e os encargos da imobiliária) quando, o valor recebido respeitou integralmente o valor de mercado do bem e, foi gasto no sustento da família e não em despesas fúteis;

assim como, da doação, não se pode, pois, concluir verificar-se um benefício para terceiro, já que os bens sempre haviam sido, inicialmente, desse terceiro e, na verdade, somente tinham sido transmitidos para efeitos de construção nos mesmos, retornou aos verdadeiros proprietários, para que deles possam, querendo, fazer o que entenderem.

Cumpre apreciar, adiantando não acompanharmos o raciocínio dos Apelantes/Insolventes.

Na opinião dos apelantes, a aplicabilidade de qualquer uma das do nº2 do artigo 186º do CIRE, às pessoas singulares (por via do nº4), depende de uma análise casuística de cada concreta situação, pelo que, não se poderá entender que, sempre que, e em todos os casos, e quaisquer circunstâncias, tenha alienado ou doado património nos 3 anos anteriores, se presume, sem admissibilidade de prova em contrário ou apreciação casuística, a insolvência se presume como culposa.

Tal raciocínio suscita a apreciação de duas questões distintas:

a) por um lado, a própria aplicabilidade abstrata da al.) do nº2 do artigo 186º ao insolvente pessoa singular;

b) em caso afirmativo, se na aplicação de tal alínea, a sua adaptação às pessoas singulares, deverá permitir que, na análise de cada concreta situação, possa haver lugar a uma apreciação casuística que permita afastar a presunção de culpa (inilidível) na insolvência prevista no nº2.

E, desde já se adianta, que a defesa da possibilidade de apreciação casuística no âmbito de qualquer uma das alíneas do nº2 do artigo 186º, permitindo ao devedor insolvente afastar a presunção de culpa aí contida – presunção inilidível – é completamente contrária ao sentido da norma.

“Tratando-se de presunções inilidíveis, quando se preencha algum dos factos elencados nº nº2 do artigo 186º, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato.[2]

A admitir-se que, no caso de pessoa singular, terá de ser dada a possibilidade ao devedor de afastar a presunção de culpa resultante de determinado comportamento criador ou agravador da insolvência, significa que o mesmo só poderá ser valorado no âmbito do nº1 do artigo 186º.

Passemos à análise das normas em apreço, salientando que a decisão em causa não é suscitada num incidente de qualificação da insolvência como culposa ou fortuita, mas no âmbito de um despacho liminar relativo ao pedido de exoneração do passivo restante (art. 239º, nº1), em que a questão decidenda consiste em aferir das condições de admissibilidade do próprio pedido, pelo apuramento da ocorrência de alguma das circunstâncias previstas nas als. a) a g), do nº1 do artigo 238º do CIRE, que importam a rejeição liminar do pedido.

Neste despacho inicial, o mérito está em aferir o preenchimento dos requisitos substantivos, que se destinam a perceber se o devedor merece que lhe seja dada uma nova oportunidade, exigindo-se um comportamento anterior ou atual pautado pela licitude, pela honestidade, pela boa-fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência[3].

Segundo o artigo 238º, nº 1, al. e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:

e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º.

Não se estabelecendo como requisito para o preenchimento desta alínea a existência de uma decisão prévia de qualificação de insolvência, esta alínea parece exigir apenas dois pressupostos: a criação ou o agravamento da insolvência e a censurabilidade da atuação do devedor[4].

Por sua vez, dispõe o citado, artigo 186º, para o qual se remete quanto à existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência:

Artigo 186º

1. A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

2. Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular, quando os seus administradores, de facto e de direito, tenham:

(…)

d) disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros

4. o disposto nos ns. 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.

Não discutimos que as situações elencadas nas diversas alíneas do nº2 estão pensadas (e expressamente previstas) para as pessoas coletivas, reportando-se ao comportamento dos seus administradores, de facto ou e direito, sendo a sua aplicabilidade às pessoas singulares insolventes efetuada por via da remissão feita pelo nº4, “com as necessárias adaptações” e “onde a isso não se opuser a diversidade das situações”.

Assim, alíneas há, que constituem casos flagrantes de não aplicação às pessoas singulares, como o da alínea e), do nº2, ou a al. a), do nº3.

Outras alíneas há, cuja aplicabilidade às pessoas singulares não levantará qualquer dúvida como o das alíneas a) e i), pelo que, caso tais situações se verifiquem, é de aplicar a presunção de insolvência culposa, contida no nº2, sem necessidade de prova de qualquer outro requisito, designadamente, culpa e nexo de causalidade.

Também não conseguimos encontrar qualquer razão que justifique o afastamento da aplicabilidade da alínea d), na parte em que se reporta à disposição de bens pelo devedor pessoa singular, quando em proveito de terceiros, da qual se presume de forma inilidível a insolvência como culposa.

No caso em apreço, suscita-se a questão de saber se a doação dos dois prédios rústicos aos pais do insolvente marido, efetuada pelos insolventes em 17.12.2021, será suscetível de preencher a alínea d), do nº2, do artigo 186º.

A doação é definida pelo artigo 940º, nº1, do Código Civil, como o contrato pelo qual, uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.

Enquanto ato gratuito de disposição de certos bens ou direitos, “em benefício” e proveito exclusivo de terceiro (o donatário), ou seja, envolvendo uma atribuição patrimonial sem correspetivo, a doação encontra-se claramente abrangida pela citada alínea.

Quanto ao circunstancialismo fáctico alegado pelos apelantes e que, em seu entender, afastaria, no caso em apreço, a existência de qualquer beneficio para os donatários – os bens seriam inicialmente dos seus pais e só tinham sido transmitidos para efeitos de construção, pelo que retornaram aos seus verdadeiros proprietários, para que eles possam, querendo, fazer o que entenderem – fazemos dele uma leitura diferente.

Não alegando que a anterior transmissão de tais prédios rústicos, dos seus pais para os insolventes, tenha sido simulada, tais prédios passaram a integrar o património dos insolventes, pelo que, quando fazem a doação dos mesmos ao pai do insolvente marido, não só o seu património ficou mais pobre, como houve um benefício claro para os donatários.

Assim, a doação efetuada aos pais do insolvente nos três anos anteriores ao início do processo preenche a factispécie da alínea d) e, portanto, determinaria, só por si, e em princípio, a qualificação da insolvência como culposa, sem necessidade de averiguação de qualquer outro facto.

Não lhe seria permitido provar que esse ato não criou nem agravou a insolvência, sendo irrelevante o valor dos prédios rústicos e da relevância de tal perda patrimonial para o agravamento da insolvência.

De qualquer modo, se dúvidas restassem da subsunção da doação à al. d), do nº2, ou do seu não enquadramento no nº1 do artigo 186º, sempre se dirá que o ato de venda da fração pelos insolventes seria, também ele, suscetível de qualificação da insolvência como culposa, situação que passamos a explicar.

A aplicabilidade às pessoas singulares, da 1ª parte da al. d), reportada à “disposição de bens do devedor em proveito pessoal”, não é isenta de dúvidas, decorrentes de se encontrar pensada na sua origem para as pessoas coletivas, nas quais existe uma dissociação clara entre o insolvente/pessoa coletiva e os seus administradores, merecendo uma análise mais aprofundada.

Na insolvência de pessoa coletiva, censuram-se os atos praticados pelo administrador da sociedade, não em proveito da sociedade/insolvente, ou seja, do património desta, mas em proveito próprio do administrador ou de terceiros.

Colocar-se-á a questão de saber se, quando está em causa um insolvente/pessoa singular, ainda há cabimento para a distinção entre o património do devedor e benefício do próprio devedor?

Poderíamos fazer uma leitura no sentido de o que se pretende acautelar, numa situação ou noutra é, em ultima análise, o património do insolvente, pelo que, também o devedor ou insolvente singular poderia praticar atos (censuráveis) que afetem esse mesmo património.

Neste sentido, parece ir alguma doutrina que, sistematizando por categorias as várias situações retratadas em cada uma das alíneas,  inclui a alínea d) na categoria de “atos que, prejudicando a situação patrimonial do insolvente, em simultâneo, trazem benefícios para o administrador que os pratica ou para terceiros[5]”.

Assumindo posição divergente, Carneiro da Frada afirma que, na al. d) sanciona-se como culposa a insolvência perante a mera disposição dos bens do devedor em proveito pessoal, ainda que essa disposição seja suscetível até de ter tido uma contrapartida idónea para a sociedade[6]. “Para este autor, estas soluções aparentemente excessivas, são determinadas pela necessidade de dissuadir ou prevenir condutas indesejáveis, que, de acordo com a experiência, são suscetíveis de ocasionar insolvências e estão intimamente ligadas a ela (prevenção abstrata de um perigo). Por isso o legislador incluiu na al. d) a disposição em proveito próprio dos bens do devedor, independentemente da prova do prejuízo daí adveniente.[7]

Não se exigindo a existência de prejuízo para o património do devedor, o que aí se pune é o aproveitamento por parte de alguém externo à pessoa coletiva insolvente, pelo que, não se afigura ser de aplicar à pessoa singular a 1ª parte da al. d).

Tal não implica que a “disposição de bens do devedor em proveito pessoal”, quando pessoa singular, não releve para efeitos de qualificação da insolvência como culposa.

Sendo o nº1 do artigo 186º, aplicável a qualquer devedor (pessoa singular ou coletiva), desde que verificados os demais requisitos do nº1, vejamos agora se os elementos disponíveis nos autos relativos à venda da fração efetuada pelo insolvente, são suscetíveis de levar à qualificação da insolvência como culposa à luz do n.º 1 do art.º 186.º:

a insolvência da sociedade (facto que estará na origem da insolvência dos Apelantes) foi declarada em 26/04/2023, alegando os Insolventes no requerimento inicial de apresentação à insolvência que a apresentação da sociedade à insolvência foi deliberada em 19/04/2023;

 a fração foi vendida em 31/01/2023 e, portanto, num momento em que sabiam necessariamente que a insolvência da sociedade (e a sua própria insolvência) estavam iminentes, tanto mais que, conforme se julgou provado, o insolvente deixou de receber vencimento da sociedade a partir de janeiro de 2023 (sinal claro de que a insolvência já existia e tinham conhecimento disso);

por outro lado, o produto da venda da fração não foi usado apenas para pagamento do empréstimo (que, eventualmente, estava garantido por hipoteca), mas também para alegado pagamento de dívidas a familiares diretos, com favorecimento desses alegados credores em detrimento de outros (visando a insolvência a satisfação igualitária dos direitos dos credores (artigo 1.º do CIRE), a concessão de vantagens a qualquer credor a partir do momento em que a situação de insolvência é conhecida constituiu um ato censurável) e em seu próprio benefício.

Constituindo este, à data da venda, o único bem imóvel dos insolventes, razões há razões para concluir que esse ato criou ou agravou a situação de insolvência e foi praticado com culpa grave.

Nesta parte (em que o produto da venda excede o valor utilizado para pagamento do empréstimo e os encargos com a imobiliária), pretendem os apelantes ver reconhecido o afastamento do juízo de culpa grave, com a seguinte justificação:

a alienação, em 2023, da fração que constituía a casa de morada de família, para terceiro sem qualquer relação com os insolventes, adveio da circunstância de, pelo menos desde 2019, somente o insolvente marido contribuir para as despesas da casa e do agregado, atendendo a que a esposa (insolvente mulher) se encontrava desempregada desde, pelo menos, 2019;

foi uma alienação que adveio de estado de necessidade e de circunstâncias adversas ao agregado e a cada um dos recorrentes e não de qualquer intenção ou vontade, singular ou comum, de prejudicar credores ou de reduzir/acautelar património por via de alguma situação, ainda que somente iminente, de insolvência;

à data da alienação – nada em contrário resulta da matéria assente – não havia qualquer indício de que o casal iria ter de se apresentar à insolvência – cfr. por tudo a matéria assente em 9, 10, 12 a 16 – atendendo à data da insolvência da empresa da qual o recorrente marido era sócio que, ainda, ao facto da totalidade das suas dívidas (reclamadas na insolvência pessoal) advirem de garantias pessoais prestadas no âmbito da atividade da referida sociedade;

por outro lado, a alienação da fração a entidade terceira, pelo preço de 129.000,00€, totalmente recebido, não poderá, em circunstância alguma, ser considerada como tendo beneficiado entidade terceira (adquirente) atendendo que esta adquiriu o bem pela contraprestação justa e adequada;

também não se pode considerar como tendo beneficiado o próprio alienante (o insolvente marido e recorrente), atendendo a que o mesmo recebeu a contraprestação justa e adequada pela alienação do seu património imobiliários e, por via das dificuldades vivenciadas pelo agregado, necessitou gastar, no provento do lar e da família, o remanescente do valor decorrente de tal alienação.

De toda esta argumentação, a única que podia ter algum relevo para a qualificação da culpa do insolvente, seria a invocação de que a venda ocorreu na sequência de um estado de necessidade. Contudo, não é isso que sobressai da matéria de facto dada como provada.

O estado de necessidade pressupõe que o ato se destine a remover o perigo atual de um dano manifestamente superior, quer do agente, quer de terceiro (artigo 339º do Código Civil).

A doutrina distingue “entre pressupostos e requisitos do estado de necessidade. Os pressupostos, enquanto condições fácticas da situação do estado de necessidade, são os seguintes: a) existência de perigo; b) atualidade do perigo; perigosidade para um bem ou interesse jurídico do agente ou de terceiro. Os requisitos da legitimidade da reação em estado de necessidade são: que constitua meio necessário; que consista na destruição ou lesão de uma coisa alheia em relação ao agente e ao terceiro lesado; que o bem protegido seja de valor manifestamente superior ao bem sacrificado[8]”.

E, nas hipóteses cogitadas pelos Apelantes – situação de necessidade urgente de realização de uma cirurgia de custo elevado, ou outras – a transmissão do património para fazer face a tais despesas, encontrar-se-ia justificada.

Contudo, no caso em apreço:

- a transmissão é feita num momento em que os insolventes sabem que a sua insolvência está eminente: a venda foi efetuada cerca de três meses antes da sociedade e de os aqui devedores se terem apresentado à insolvência, precisamente no mês em que o insolvente deixou de receber salário por parte da empresa, ou seja, teriam conhecimento do estado de insolvência da sociedade, o que acarretaria a sua própria insolvência face aos valores por si garantidos (a insolvência é criada pela assunção de garantias sobre as dívidas da sociedade);

efetuada a venda e depois de paga a hipoteca que incidia sobre o imóvel e as despesas da alienação, o remanescente de 48.000,00 €, foi utilizado para “pagamento de dividas a familiares diretos, algumas obras de adaptação na habitação do pai do insolvente e ainda gasto/consumido no dia a dia do agregado durante o período que se seguiu à alienação da fração

Não se pode afirmar que tenha sido efetuada como meio essencial para acudir à sua subsistência (bem que seria de maior valor do que o do património enquanto garantia dos credores), quando, grande a maior parte do produto da venda é usado para pagamento a credores, favorecendo alguns dos credores (familiares diretos dos insolventes) em detrimento dos demais, e em obras cuja urgência não é alegada, sendo insuficiente a alegação de que o resto foi gasto/consumido no dia a dia do agregado.

Se dúvidas ficassem quanto aos motivos que subjazem à atuação dos insolventes, basta atentar em que, cerca de um ano antes, haviam “doado” aos pais do insolvente dois prédios rústicos. Temos assim que, num período de cerca de um ano e meio anterior à sua apresentação à insolvência, os insolventes desfizeram-se da totalidade do seu património imobiliário.

Por fim, demonstrado está igualmente o nexo de causalidade entre tal comportamento e o agravamento da situação de insolvência: de tal alienação (pelo menos, na parte em que excede o valor que serviu para pagamento do credor hipotecário) resultou um agravamento da situação de insolvência do casal, ao diminuir a garantia patrimonial dos credores, pelo menos, no valor remanescente de 48.000 €.

Quanto à questão da inconstitucionalidade suscitada pelos apelantes – de que, interpretar os artigos 238.º n.º 1 al. e) e 186.º n.º 2 al. d) e n.º 4, todos do CIRE, no sentido de que o devedor singular, sempre que, em todos os casos e/ou quaisquer circunstâncias, tenha alienado ou doado património, nos 3 anos anteriores ao processo de insolvência, se presume – sem admissibilidade de prova em contrário ou apreciação casuística da situação concreta – culposa e, por isso, suscetível de impedir a concessão da exoneração do passivo restante é, manifesta e absolutamente inconstitucional, por violação, designadamente, do disposto nos art.ºs 24.º, 62.º, 64.º, 65.º, 66.º e 67.º, todos da CRP – encontra-se prejudicada quanto à venda de bens do devedor, que aqui foi considerada como culposa por via do nº1, e quanto, à doação dos prédios rústicos, não se atinge como tal interpretação possa contender com o direito à propriedade privada, qualidade de vida ou família.


*

3. Imputabilidade à insolvente mulher do circunstancialismo da al. d) do nº2 do artigo 186º do CIRE

Sustenta a apelante não lhe poder ser imputada qualquer conduta enquadrável em qualquer uma das alíneas do nº2 do artigo 186º, porquanto:

- sendo casados no regime de comunhão de adquiridos, a fração autónoma e os prédios rústicos eram bens próprios do insolvente, como se pode constatar das certidões matriciais juntas com o relatório do AI nos termos do art. 155º CIRE, pelo que a sua intervenção destinou-se unicamente a consentir nas transmissões;

- não resultando dos autos que a mesma tivesse qualquer conhecimento da situação em que o marido se encontrava ou a empresa da qual aquele era sócio (e no final, gerente).

Mais uma vez, não subscrevemos o raciocínio dos apelantes.

Ainda que se tratassem de bens próprios do insolvente marido, a intervenção da Apelante na transmissão dos bens foi essencial, uma vez que sem o seu consentimento, a alineação não seria válida (artigo 1682º-A, nº1, al. a), do Código Civil).

Quanto ao conhecimento que tinha da situação económica, não é credível que o seu marido lhe tenha proposto doar os imóveis rústicos, e em especial, a venda da casa de morada de família para irem morar para a casa dos sogros, sem que a sua situação económico-financeira e a da empresa tenham sido discutidas entre ambos, sendo que, segundo o alegado pelos insolventes, em virtude da situação financeira da empresa de que era sócio-gerente, o insolvente deixou de receber o respetivo salário em janeiro de 2023, mês em que ocorreu a venda da fração.

Não vemos assim, qualquer razão para distinguir o juízo de censura que recai sobre o insolvente marido e o que recai sobre a insolvente mulher, para o efeito do despacho liminar respeitante à exoneração do passivo restante.

A Apelação é assim de improceder, na sua totalidade.

*
IV – DECISÃO
 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pelos insolventes.                         

                                                   Coimbra, 08 de julho de 2025

Voto de vencida

No caso em apreço, o Tribunal a quo entendeu haver indícios suficientes (tendo por base os factos constantes do relatório elaborado pelo Sr. Administrador da Insolvência, nos termos do disposto no artº 155º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) de que os Insolventes, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, haviam dissipado bens em proveito próprio e de terceiros, bem como que a presunção inilidível a que alude o artº 186º, nº 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, é aplicável às pessoas singulares.

Consequentemente, ao abrigo do disposto no artº 238º, nº 1, al. e), do citado Código, foi liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante.

Vejamos.

Dispõe o artº 238º, nº 1, al. e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que:

1 - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:

e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;

Por seu turno, dispõe o artº 186º, nº 1 e nº 2, al. d), que:

1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo

de insolvência.

2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

Já o seu nº 4, determina que o disposto no seu nº 2 é aplicável também às pessoas singulares, onde a isso não se opuser a diversidade de situações.

Apurou-se que:

12. Os Insolventes, em 31-01-2023, procederam à venda de uma fração autónoma, designada pela letra “A”, correspondente a um rés-do-chão esquerdo, destinado a habitação, com garagem na cave e uma arrecadação no sótão inscrita na matriz predial urbana da freguesia ... sob artigo matricial ...96  e descrita na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis da ... sob o n.º ...03 da referida freguesia ... adquirido pela sociedade denominada “F..., S.A.”, NIF ...14, pelo montante de €129.000,00.

13. Procederam à liquidação antecipada do empréstimo, no valor de € 54.683,11 e procederam ao pagamento da quantia de € 6.346,80 à mediadora imobiliária.

14. O remanescente do valor auferido (cerca de € 48.000,00) foi utilizado par pagamento de dívidas a familiares diretos e algumas obras de adaptação na habitação do pai do insolvente, para a qual foram viver e foi ainda gasto / consumido no dia-a-dia do agregado durante o período que se seguiu à alienação da fração.

17. Em 17-12-2021, os insolventes doaram, aos pais do insolvente marido, dois prédios rústicos, inscritos na respetiva matriz sob os artigos matriciais n.º ...38 e ...39 da freguesia ..., concelho ... e descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob os n.º ...58 e ...59 da freguesia ....

Perante tais factos, o Tribunal a quo, concluiu, sem mais, que os Insolvente tinham dissipado os seus bens em seu proveito e de terceiro e, consequentemente, atendendo à existência da presunção inilidível de culpa, a exoneração do passivo restante não poderia ser concedida.

Não podemos deixar de discordar de tal entendimento, uma vez que a especificidade da situação das pessoas singulares não é compatível com a consideração do carácter inilidível da presunção.

Na verdade, as pessoas coletivas, tornando-se insolventes, podem reestruturar-se e/ou encerrar atividade e serem liquidadas e extintas.

Já a pessoa singular continua a ter necessidades básicas e responsabilidades parentais e outras, que tem de suprir, o que pode não se compaginar com o respeito absoluto pela preservação das garantias patrimoniais de terceiros, nem pelo princípio do par conditio creditorum.

Assim, a presunção inilidível consagrada na al. d), do nº 2, do artº 186º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não é aplicável às pessoas singulares. A este propósito, dizem-nos Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, pág. 680:

5. Quando o insolvente não seja uma pessoa singular, o n.º 2 considera a insolvência “sempre culposa”, se ocorrer qualquer dos factos enumerados nas suas alíneas, quando praticados pelos seus administradores de direito ou de facto.

Igualmente Luís Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, 9ª edição, Almedina, pág. 286:

O art. 186º, nº 2, contém, no entanto, uma presunção juris et de jure de insolvência culposa, considerando-a como tal sempre que os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular tenham praticado actos destinados a empobrecer o património do devedor ou incumprido determinadas obrigações legais. (sublinhado nosso)

Ou como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2023, proferido no processo nº 822/15.8T8VNG-C-P2.S1, disponível em www.dgsi.pt[9]:

VII- No caso das pessoas singulares, é aplicável, com as necessárias adaptações à atuação da pessoa singular insolvente, exigindo-se e uma ponderação casuística, realizada contudo, no sentido de as várias situações poderem serem enquadradas na apontadas nas alíneas do mesmo art.º 186, devendo contudo, envolver sempre, por via direta ou indireta, efeitos negativos para o património do devedor/insolvente, gerando ou agravando a situação de insolvência como se mostra definida no n.º1, ainda do art.º 186.

Afastada a presunção, cumpriria verificar se, ainda assim, os factos apurados indiciam, com toda a probabilidade, a existência de culpa na criação ou no agravamento da situação de insolvência.

No que toca à venda da casa de morada de família, há que ter em conta que também se apurou que:

13. Procederam à liquidação antecipada do empréstimo, no valor de € 54.683,11 e procederam ao pagamento da quantia de € 6.346,80 à mediadora imobiliária.

14. O remanescente do valor auferido (cerca de € 48.000,00) foi utilizado para pagamento de dívidas a familiares diretos e algumas obras de adaptação na habitação do pai do insolvente, para a qual foram viver e foi ainda gasto / consumido no dia-a-dia do agregado durante o período que se seguiu à alienação da fração.

15. O Insolvente marido, a partir de janeiro de 2023 deixou de receber vencimento na empresa, somente retomando recebimento de salário, após ter iniciado, por sua iniciativa, trabalho noutra entidade, a partir de outubro de 2023.

16. Foi um período em que não existiu qualquer suporte salarial para o agregado, atendendo a que a Insolvente mulher, desde 2019, se encontrava desempregada.

De tal factualidade resulta que, em primeiro lugar, foi pago um credor privilegiado e, em simultâneo, o empréstimo não entrou em incumprimento, do que resultaria um agravamento da situação, com a aplicação de juros de mora e outras penalidades.

O remanescente foi utilizado, no essencial, na satisfação de necessidades básicas, desconhecendo-se o valor das dívidas aos familiares.

No que concerne à doação, há que ter em conta que se tratou de prédios rústicos - cujo valor também se desconhece mas que, por regra, é inferior ao dos prédios urbanos -, que foi efetuada perto do limite temporal de 3 anos, perto de deixar de ter relevância para a qualificação da insolvência, e ainda antes de se vencerem parte dos créditos reclamados nestes autos (a doação ocorreu em Dezembro de 2021 e os créditos venceram-se entre Julho de 2020 e Outubro de 2024).

Assim, muito mais haveria de se apurar antes de se concluir pela existência, quer de culpa por parte dos Insolventes, quer de nexo de causalidade entre a atuação dos mesmos e a situação de insolvência.

Como nos diz Luís Menezes Leitão, ob. cit., págs. 285 e 286:

Exige-se, assim, para a qualificação da insolvência como culposa, não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor e seus administradores mas também um nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência, consistente na contribuição desse comportamento para a criação o agravamento da situação de insolvência.

Com interesse para os autos, pela semelhança da factualidade em causa, ver ainda acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de Julho de 2023, proferido no processo nº 2556/18.2T8FNC-B.L1-1, disponível em www.dgsi.pt, onde se diz:

I. Em face do disposto no n.º 1 do artigo 186.º do CIRE[1], são requisitos cumulativos da insolvência culposa: a) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores (tanto de direito, como de facto), nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; b) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave); e c) o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.

II. Não obstante, verificando-se alguma das situações descritas nas diversas alíneas do n.º 2 do mesmo artigo, fica imediatamente estabelecido o juízo normativo de culpa, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a actuação ali elencada e a situação de insolvência ou o seu agravamento.

III. Por força do n.º 4 do artigo 186.º, as previsões constantes do seu n.º 2, são aplicáveis às pessoas singulares, com as necessárias alterações.

IV. Estando demonstrado que a devedora (pessoa singular declarada insolvente por sentença de 15/05/2018) procedeu à venda da fracção autónoma da qual era proprietária pelo preço de 65.500€ (em 30/11/2017) – a qual havia sido adquirida pelo preço de 71.000€ (em Setembro de 2008) e, à data da venda, tinha um valor patrimonial de 55.036,57€ -, tendo com o produto de tal venda liquidado o empréstimo bancário a que estava obrigada (liquidando, a esse título, o montante de 61.056,62€), dessa forma permitindo o cancelamento da hipoteca voluntária que sobre o bem incidia, não se mostra preenchida a previsão do artigo 186.º, n.º 2, al. d), porquanto sempre estaríamos perante um titular de crédito garantido que, em sede de insolvência, obteria preferência pelo produto da venda do imóvel, para além de não ter sido apurado que a venda tenha ocorrido por montante inferior ao valor real ou comercial.

Deste modo, optaria por considerar não estarem reunidos os pressupostos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, julgando procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, substituindo-a por outra que não o indeferisse, seguindo-se os demais termos do processo, nomeadamente com a fixação do rendimento indisponível.

Anabela Marques Ferreira


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7, do CPC.

(…).


[1] A sentença recorrida contém um lapso, pois a declaração de insolvência da G..., Lda., foi declarada a 17-09-2023, e não a 17-09-2024, como aí se fez constar.
[2] Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, 8ª ed., p. 160.
[3] Assunção Cristas, “Exoneração de Devedor Pelo Passivo Restante, local citado, pp. 169-170.
[4] Letícia Marques Costa, “A Insolvência de Pessoas Singulares”, Teses, Almedina, p.128-129.
[5] Cfr., quanto ao agrupamento em três categorias, das várias alíneas do nº2 do art. 186º, Carvalho Fernandes, “A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor”, in Revista Themis, 2005, Edição Especial – Novo Direito da Insolvência, p. Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência, 8ª ed., Almedina, pp. 157-158,
[6] Manuel Carneiro da Frada, “A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, Lisboa, setembro de 2006, pp. 696-697.
[7] Maria do Rosário Epifânio, “Manual (…), pp. 159-160.
[8] Maria da Graça Trigo, “Comentário ao Código Civil, Parte Geral”, Universidade Católica Editora, p. 802-803.
[9] Também acórdãos deste Tribunal da Relação de Coimbra de 12 de Julho de 2017, proferido no processo nº 370/14.3YJCBR-A.C1, e de 7 de Fevereiro de 2012, proferido no processo nº 2273/10.1TBLRA-B.C1, disponíveis em www.dgsi.pt.