COMPRA E VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL USADO
DESCONFORMIDADE DA COISA
ACIONAMENTO DA GARANTIA CONVENCIONADA
TERCEIRO ADQUIRENTE DO BEM GARANTIDO
Sumário

I – Tratando-se de um contrato de compra e venda de uma viatura automóvel, em que o comprador denuncia uma desconformidade nela existente, é aplicável o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, na redacção operada pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio (âmbito temporal), o qual veio transpor para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas,
II – Com efeito, de há muito se sentia que o regime regra do Código Civil não apresentava plasticidade suficiente para acomodar todos os casos de compra e venda de um bem defeituoso, corporizando este diploma um regime especial e prevalente.
III – Se durante o prazo da garantia convencionada, esta for accionada por terceiro adquirente do bem garantido, a Recorrente, enquanto empresa profissional na área do comércio de viaturas automóveis – mesmo que não tenha vendido esse veículo automóvel ao accionador da garantia –, mantém-se responsável, em face do art. 4.º, n.º 6.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Recurso de Apelação

Tribunal a quo: Tribunal Judicial da Comarca de Leiria/Juízo Local Cível de Leiria (J1)

Recorrente: A... – Unipessoal, Lda.

Sumário (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):

(…).

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I.

AA intentou acção declarativa de condenação contra A... – Unipessoal, Lda., e BB, todos ali melhor identificados, invocando ser proprietário do veículo de marca Volvo, matrícula ..-RM-.., adquirida em 22 de Março de 2022, ao 2.º R., por 14 000 €, e que este, por sua vez, adquirira à co-R., em 4 de Novembro de 2021, sendo certo que a 1.ª R. vendeu a viatura automóvel, dando ao 2.º R. uma garantia de 1 ano para problemas relacionados com o motor. 

Antes desta garantia expirar, o A. detectou problemas no motor do veículo automóvel, tendo procedido à sua reparação, não assumindo os RR. a responsabilidade pelo pagamento.

Conclui pedindo para «… ser a 1.ª Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de 5.407,20 € (cinco mil, quatrocentos e sete euros e vinte cêntimos), referente ao custo da reparação do veículo em causa nos Autos, acrescida dos juros vencidos às sucessivas taxas comerciais em vigor desde a data da factura de reparação (23.01.2023) até efectivo e integral pagamento e que em 19.03.2023 se comportam em 702,48 € (setecentos e dois euros e quarenta e oito cêntimos);

Subsidiariamente, Caso assim não se entenda,

Deve o A. ter-se como sub-rogado na posição do 2.º Réu e nessa medida ser o 1.º Réu condenado a pagar-lhe a quantia de 5.407,20 € (cinco mil, quatrocentos e sete euros e vinte cêntimos), referente ao custo da reparação do veículo em causa nos Autos, acrescida dos juros vencidos às sucessivas taxas comerciais em vigor desde a data da factura de reparação (23.01.2023) até efectivo e integral pagamento e que em 19.03.2024 se comportam em 702,48 € (setecentos e dois euros e quarenta e oito cêntimos)[2], conforme ampliação do pedido, oportunamente deferida.

Só a 1.ª R. contestou, excepcionando a ilegitimidade activa e passiva – desatendida em sede de Despacho Saneador – e a caducidade do direito, e no mais, impugnou os factos e requereu a condenação do A. como litigante de má-fé.

Por Sentença cuja prolação ocorreu 10 de Novembro de 2024, foi decidido no segmento pertinente:

«VII – Decisão

Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência:

A – Condenar a Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, a pagar ao Autor AA a quantia de 4406,59 € (quatro mil quatrocentos e seis euros e cinquenta e nove cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal prevista na Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril – 4% –, desde o dia 27/07/2023, até efectivo e integral pagamento.

B – Absolver o Réu BB de todos os pedidos.

C – Absolver o Autor AA do pedido de condenação como litigante de má fé.».

II.

Não concordando com o seu teor, a R. interpôs Recurso de Apelação, e das suas alegações promanam as seguintes

«CONCLUSÕES

(…)».

III.

O A. respondeu ao recurso, colhendo-se estas  

«CONCLUSÕES

(…).

IV.

Aquando do despacho que admitiu o recurso, o Tribunal a quo consignou:

«Nas suas alegações de recurso, a Ré “A..., Unipessoal, Lda.”, refere que a sentença recorrida não contém o Dispositivo.

Pois bem, o dispositivo de uma sentença cível consiste na decisão do Tribunal.

Uma sentença que omita o dispositivo é inexistente.

Apenas porque não consta da sentença uma referência literal ao termo Dispositivo, não significa que não o tenha. Caso a Ré não tenha reparado, o dispositivo da sentença recorrida consta expressamente do seu capítulo VII – Decisão.».

V.

Questões decidendas

Não descurando a apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o âmbito da apelação (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil):

- Da nulidade da Sentença, por omissão do Dispositivo e por omissão «de forma clara, concisa e directa de qual a condenação».

- Das contradições na prova.

- Da excepção da caducidade do direito do Recorrido.

- Do regime jurídico aplicável (venda de coisa defeituosa ou venda de bens de consumo).

VI.

Dos Factos

Vêm provados os seguintes factos (transcrição):

1. A Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, é uma sociedade comercial, com sede em ..., ..., ... ..., que se dedica ao comércio, importação e exportação de veículos automóveis ligeiros e pesados, motociclos, novos ou usados, bem como equipamentos e acessórios relacionados com a actividade.

2. A Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, explorava um stand de venda de automóveis usados.

3. Em 04/11/2021, a Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, vendeu o veículo automóvel usado da marca Volvo, modelo S80, 1.6 TD Summum, matrícula ..-RM-.., ao Réu BB.

4. A data da primeira matrícula do veículo era de 30/01/2012.

5. A Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, comprometeu-se a reparar eventuais avarias no motor e na caixa de velocidades do veículo que surgissem no prazo de um ano a contar da venda do veículo.

6. Em 22/03/2022, o Réu BB vendeu o referido veículo ao Autor, pelo preço de 14000,00 €.

7. Em 18/09/2022, durante uma viagem, surgiu um aviso no painel de instrumentos do veículo a indicar a falta de líquido de refrigeração do motor.

8. Acto contínuo, o Autor encheu o depósito do líquido de refrigeração do motor.

9. Poucos dias depois, surgiu um novo aviso de falta de líquido de refrigeração do motor.

10. O Autor voltou a encher o depósito do líquido de refrigeração do motor.

11. Em 01/10/2022, surgiu novamente um aviso de falta de líquido de refrigeração do motor.

12. O Autor voltou a encher o depósito do líquido refrigerador e levou o automóvel a uma oficina de reparação de automóveis.

13. Na oficina, verificou-se não existir qualquer fuga de líquido refrigerador do depósito ou dos tubos de circulação do líquido.

14. E foi comunicado ao Autor que o problema poderia estar relacionado com o motor e que reparação iria custar alguns milhares de euros.

15. O Autor contactou o Réu BB para que suportasse as despesas com a reparação do veículo.

16. Em 31/10/2022, o Autor enviou uma carta registada, com aviso de recepção, à Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, a comunicar que o veículo tinha uma avaria no motor pelo que a reparação estava abrangida pela garantia prestada pelo vendedor.

17. E questionava se a reparação poderia ser efectuada na oficina aonde tinha sido detectada a avaria ou noutra a indicar pela Ré.

18. A carta foi entregue na morada da sede da Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, em 03/11/2022.

19. A Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, respondeu mediante carta de 06/11/2022, declinando responsabilidades pelo pagamento da reparação do veículo sob o pretexto de não o ter vendido ao Autor.

20. Em 10/11/2022, o Autor enviou uma nova carta à Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, por correio registado e com aviso de recepção, a comunicar que, no prazo de 5 dias, ia proceder à reparação do veículo na oficina aonde o tinha levado, pois não podia continuar com o automóvel avariado.

21. A carta foi entregue na morada da sede da Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, em 14/11/2022.

22. A Ré nada disse.

23. O Autor levou o veículo à oficina de reparação de automóveis “B..., Lda.”, para reparar a avaria.

24. Ao desmontar o motor do veículo, verificou-se que o bloco do motor apresentava uma ovalização excessiva e os êmbolos estavam muito desgastados.

25. No âmbito da reparação da avaria do motor do veículo, a oficina efectuou os seguintes serviços:

- substituição do filtro do ar;

- substituição do radiador de ar condicionado;

- substituição dos bronzes biela;

- substituição dos bronzes de apoio cambota;

- substituição dos pistons com segmentos;

- substituição das anilhas de encosto de cambota;

- substituição dos parafusos de cabeça;

- substituição das juntas de descarbonização;

- substituição das juntas de conversão;

- substituição da massa de vedação;

- substituição do termostato;

- substituição do radiador s. refrigeração;

- substituição da bomba de água;

- substituição da junta de cabeça;

- colocação de spray para remoção das juntas;

- substituição das relas de bloco;

- substituição das anilhas do injector;

- substituição dos retentores da caixa de diferencial;

- imputação da taxa Eco-Lub;

- substituição do core do turbo;

- substituição das juntas do turbo;

- calibragem da geometria;

- consumíveis inerentes à reparação;

- reparação e equilíbrio do turbo;

- ancoragem;

- aditivo/teste de fugas s. refrigeração;

- carregamento ar condicionado;

- teste e afinação de cabeça, faceamento de cabeça, teste e faceamento de bloco do motor, afinação, rectificação de sedes de válvulas, válvulas, encamisar 4 cilindros, rectificações várias de bloco e cabeça;

- substituição de camisas de bloco do motor;

- aditivo óleo – protecção contra desgaste;

- substituição do anticongelante RX;

- diagnóstico electrónico e parametrizações;

- imputação de taxa de resíduos, consumíveis diversos de limpeza, lubrificação, material de lavagem, parafusos, abraçadeiras, diversos;

- reparação de motor e serviços associados.

26. O custo da reparação do veículo ascendeu a 4406,59 €, incluído IVA à taxa de 23%.

27. A factura emitida pela oficina de reparação de automóveis em 23/01/2023 foi integralmente paga pelo Autor.

28. A presente acção foi intentada em 24/07/2023.

29. A Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, foi citada para a acção em 27/07/2023.



Factos Não Provados

1. Que a reparação da avaria do motor do veículo implicasse a prestação de serviços de substituição do filtro de habitáculo, do filtro de combustível, do filtro do óleo, do kit de embraiagem, do rolamento hidráulico da embraiagem, do kit de distribuição, da correia do alternador, do óleo do motor, do apoio do motor, do aditivo limpa vidros, do óleo dos travões, e do óleo da transmissão DCTF, com o custo total de 813,51 €, sem IVA.

VII.

Do Direito

No recurso que é trazido a este Tribunal, a Recorrente imputa à sentença em crise o vício da nulidade, por omissão do Dispositivo e por omissão «de forma clara, concisa e directa de qual a condenação», chamando à colação o art. 615.º do Código de Processo Civil.

Do mero confronto com a Sentença, é indesmentível, quanto à 1.ª parte, a falta de razão da Recorrente, posto que aquela contém, de modo individualizado e destacado, o ponto VII – Decisão, como se apura na parcela supra transcrita (ponto I, parte final), e se evidencia no despacho de admissão do recurso, supra reproduzido (ponto IV). 

Igualmente se diga no que concerne à 2.ª parte desta sua alegação, já que são perfeitamente perceptíveis e compreensíveis os termos da condenação da Recorrente.  

No tocante às contradições na prova, assinala-se, tal como frisado pelo Recorrido, que a Recorrente não impugnou a matéria fáctica adquirida nos autos (art. 640.º do Código de Processo Civil), nela não se detectando qualquer omissão, contradição ou insuficiência, ex officio.

Avançando nas questões substanciais, a Recorrente dissente, quer da apreciação que foi efectuada a título da excepção da caducidade do direito do Recorrido, como do regime jurídico aplicado.

Eis o que referiu a decisão em exame:

«A Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, veio invocar a caducidade do direito do Autor alegando que a denúncia da falta de conformidade do bem deve ser feita dentro do prazo de um ano a contar da entrega do bem, sendo que a Ré só teve conhecimento das desconformidades do veículo após o decurso desse prazo.

Ora, tratando-se de venda de coisas defeituosas regem os arts. 913 e seguintes do Código Civil.

A presente acção foi proposta em 24/07/2023 e a primeira comunicação que o Autor enviou à Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, a denunciar a avaria do motor do veículo data de 31/10/2022, tendo sido recebida em 03/11/2022. Assim, à data em que a presente acção foi proposta, já o direito que o Autor pretende fazer valer em juízo tinha caducado por força do disposto no art. 916.º, n.º 2 do Código Civil.

De facto, estabelece o art. 916.º, n.º 2 do CC para a venda de coisa móvel, que os defeitos da coisa devem ser denunciados no prazo de trinta dias a contar do seu conhecimento, e sempre dentro do prazo de deis meses a contar da entrega da coisa. Se esse prazo for ultrapassado, caducam os direitos do comprador.

Sucede que, estando em causa uma compra e venda de bens de consumo, o regime previsto nos artigos 913.º e ss. do Código Civil, é substituído pela aplicação do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio[3].

O Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08/04, transpôs para o nosso ordenamento jurídico a Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas. Este regime reconhece ao consumidor um direito à qualidade dos bens ou serviços destinados ao consumo, direito esse que é objecto de uma garantia contratual legalmente imposta de conformidade do bem entregue.

Nos termos do art. 1.º do diploma, o regime é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores.

O Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio, veio estender o âmbito de aplicação  do regime especial da venda de bens de consumo também aos contratos de empreitada de bens de consumo.

Entre os bens de consumo incluem-se os bens móveis (art. 1.º-B, al. b) do DL n.º 67/2003, de 08/04, na redacção do DL n.º 84/2008, de 21/05). Por conseguinte, as vendas de veículos automóveis estão abrangidas por este regime especial. Ponto é que esteja em causa uma relação de consumo, isto é, que de um lado esteja um vendedor que seja um profissional (comerciante ou empresa), e do outro um comprador que seja não profissional (um consumidor), destinando-se o veículo a uso não profissional (arts. 1.º-A, n.º 1, e 1.º-B, als. a) e c) do diploma). Vejamos então se o contrato celebrado entre a Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, e o Réu BB se enquadra no âmbito de uma relação de consumo.

Ora, no caso em apreço ficou provado que a Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, é uma sociedade comercial que se dedica à actividade profissional de comércio, importação e exportação de veículos automóveis ligeiros e pesados, motociclos, novos ou usados, bem como equipamentos e acessórios relacionados com a actividade. No exercício da sua actividade, a Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, vendeu o veículo automóvel usado da marca Volvo, modelo S80, 1.6 TD Summum, matrícula ..-RM-.., ao Réu BB, em 04/11/2021. O Réu BB interveio no negócio a título particular.

Posto isto, verifica-se que a entidade que vendeu o veículo era uma vendedora profissional de automóveis novos e usados; o primeiro comprador do veículo usado de matrícula ..-RM-.. não se dedica profissionalmente à actividade de compra e venda de veículos usados; e o veículo destinava-se ao uso privado do comprador. Face a estes factos, comprova-se que o contrato entre a Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, e o Réu BB foi celebrado no âmbito de uma relação de consumo, nos termos e para efeitos do art. 1.ºA, n.º 1 do DL n.º 67/2003, de 08/04, na redacção do DL n.º 84/2008, de 21/05.

Sendo aplicável o regime especial instituído pelo do DL n.º 67/2003, de 08/04, os prazos para o exercício dos direitos do comprador e para a denúncia dos defeitos são os estabelecidos nesse diploma e não os que resultam do Código Civil. Assim, o consumidor pode exercer os direitos à reparação ou eliminação dos defeitos, redução do preço ou resolução do contrato, quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois anos a contar da entrega do veículo (arts. 4.º e 5.º, n.º 1 do diploma).

No caso vertente, as partes acordaram em reduzir o prazo para um ano, nos termos do n.º 2 do art. 5.º do diploma.

Na hipótese de serem detectados defeitos no veículo usado dentro desse prazo de um ano, o consumidor deve denunciá-los ao vendedor no prazo de dois meses a contar da data em que os detectou (art. 5.º-A, n.º 2). E depois de os ter denunciado ao vendedor, o consumidor tem um prazo de dois anos para intentar a respectiva acção judicial de responsabilidade contratual, sob pena de caducidade dos seus direitos (art. 5.º-A, n.º 3).

Ora, tendo o veículo sido entregue ao Réu BB em Novembro de 2021, e tendo os defeitos sido detectados pelo Autor em 18/09/2022, é forçoso concluir que os defeitos surgiram dentro do prazo de garantia de um ano fixado no art. 5.º, n.º 2 do diploma.

Por sua vez, os prazos para a denúncia dos defeitos ao vendedor e para a instauração da acção judicial de responsabilidade contratual também foram respeitados: o Autor denunciou os defeitos à Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, por carta enviada em 31/10/2022[4], e recebida pela Ré em 03/11/20222, passando a contar-se a partir desta data o prazo de 2 anos para a instauração da competente acção judicial, a qual foi intentada em 24/07/2023.

Em suma, a avaria no motor do veículo usado foi detectada no decurso do prazo de 1 ano, correspondente à garantia legal mínima; os defeitos foram denunciados ao vendedor do veículo usado no prazo legal de 2 meses a contar do seu conhecimento; e, por fim, a presente acção judicial foi instaurada dentro do prazo de 2 anos a contar da data da denúncia dos defeitos à Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, pelo que foi observado o prazo de caducidade.

Face ao exposto, é forçoso concluir pela improcedência da invocada excepção de caducidade do direito do Autor para intentar a presente acção de responsabilidade contratual, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 5.º, n.º 1, e 5.º-A, n.ºs 1, 2, e 3 do DL n.º 67/2003, de 08/04, na redacção do DL n.º 84/2008, de 21/05.».

Em sede de Despacho Saneador, o conhecimento do mérito desta excepção peremptória foi relegado para final, exactamente por depender de produção de prova.

Compulsada a factualidade provada alcança-se que a primitiva venda (da Recorrente ao 2.º R.) foi efectuada em Novembro de 2021 (facto n.º 3); a subsequente transmissão (do 2.º R. para o Recorrido), data de Março de 2022 (facto n.º 6); a detecção de uma possível avaria remonta a Setembro de 2022 (facto n.º 7); a comunicação da mesma, por via postal registada, do Recorrido à Recorrente, ocorreu em Outubro de 2022, tendo a última recepcionado tal carta em 3 de Novembro de 2022, e respondido nesse mês (factos n.ºs 16 a 19), e, finalmente, a instauração desta acção verificou-se em Julho de 2023 (facto n.º 28).        

Apurar da (im)procedência desta excepção é indissociável do regime jurídico que caiba à situação em apreço.   

Com o que se fará uma apreciação conjunta dos fundamentos recursivos.

O Tribunal a quo a este respeito teceu estas considerações:

«Nos termos gerais, o contrato deve ser cumprido pontualmente (arts. 406.º, n.º 1 e 762.º, n.º 1do CC), de acordo com as regras da boa fé (art. 762.º, n.º 2) e integralmente (art. 763.º), entrando o devedor em mora no caso de não cumprimento pontual (art. 804.º do CC).

Ora, no âmbito do contrato de compra e venda em causa, provou-se que a Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, vendeu ao Réu BB o veículo automóvel usado da marca Volvo, modelo S80, 1.6 TD Summum, matrícula ..-RM-.., ao Réu BB, em 04/11/2021.

Foi convencionada uma garantia de bom funcionamento do veículo, nos termos da qual a Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, se comprometia a reparar eventuais avarias no motor e na caixa de velocidades do veículo que surgissem no prazo de um ano a contar da venda.

Em 22/03/2022, o Réu BB vendeu o referido veículo ao Autor.

Em Setembro de 2022, o painel de instrumentos do veículo alertou para a falta de líquido de refrigeração do motor. Umas semanas depois, numa oficina de reparações, verificou-se que a avaria estava no motor: o bloco do motor apresentava uma ovalização excessiva e os êmbolos estavam muito desgastados.

A Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, declinou responsabilidades pelo pagamento da reparação do veículo por não o ter vendido ao Autor.

No âmbito da reparação da avaria do motor do veículo, foram efectuados os seguintes serviços:

O custo da reparação do veículo ascendeu a 3582,59 €, mais IVA à taxa de 23%.

Mais se provou que o Autor pagou a reparação.

Importa salientar que o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08/04, na redacção do Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21/05, “prevalece sobre a lei geral pois que se assume mais favorável para o consumidor, o que decorre, essencialmente: i) de o produtor/vendedor responder ex vi da desconformidade do bem/obra - presumida em função dos factos índice estabelecidos no n.º 2 do art. 2.º; ii) de responder, mesmo que tenha agido sem culpa, a não ser que prove que as causas do defeito não dimanam da sua atuação; iii) de o comprador poder optar por várias hipóteses de ressarcimento.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/02/2023, disponível em www.dgsi.pt).

O art. 2.º, n.º 1 do diploma impõe ao vendedor uma obrigação de entrega dos bens de consumo em conformidade com o contrato de compra e venda, estabelecendo “uma garantia contratual relativamente aos bens de consumo consistente na imposição da sua conformidade com as descrições constantes do contrato” [5].

Nos termos do n.º 2 do citado preceito, presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos:

a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;

b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual  enha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;

c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;

d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, as declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.

Basta que se verifique alguma destes factos negativos para que presuma a não conformidade do bem entregue com o contrato.

Quanto ao terceiro elemento da presunção de não conformidade (al. c), Menezes Leitão declara que se presume “a falta de conformidade sempre que inexista essa adequação [adequação às utilizações habitualmente dadas a bens do mesmo tipo], independentemente do fim específico referido pelo comprador”.[6]

No tocante ao quarto elemento da presunção de não conformidade (al. c), ensina o mesmo autor que estão aqui definidos dois critérios, “sendo o primeiro a correspondência das qualidades e desempenho com o habitual em bens do mesmo tipo e o segundo as expectativas razoáveis do consumidor, face à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas”[7].

Revertendo ao caso sub judice, verificamos que veículo usado de matrícula ..-RM-.. apresentava graves problemas no motor que o impediam de circular em segurança.

Parece-nos assim evidente que a utilização do veículo para os seus fins normais que se destinava ficou seriamente afectada com os problemas que tinha no motor (alíneas c) e d) do n.º 2 art. 2.º).

Resulta, assim, evidente que os defeitos no motor do veículo configuram um desvio em relação ao programa contratual convencionado, susceptível de excluir ou reduzir a sua aptidão para desempenhar as funções normais, e até o valor de mercado do veículo fica afectado em caso de uma eventual alienação.

Está assim concretamente verificada uma situação de não conformidade do veículo com o contrato celebrado.

Houve, assim, um cumprimento defeituoso por parte da Ré “A... – Unipessoal, Lda.”: a sua prestação de entrega do veículo usado realizou-se, mas não como se impunha.

O momento relevante para a averiguação da falta de conformidade com o contrato é o da entrega do bem ao comprador (art. 3.º, n.º 1). No entanto, o n.º 2 do preceito estabelece uma presunção de que as faltas de conformidade que se verifiquem no prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, já existiam nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade. Nas palavras de Menezes Leitão “existe assim uma presunção específica a estabelecer a responsabilidade do vendedor por cumprimento defeituoso do contrato, relativamente a defeitos que ocorram no período de dois ou de cinco anos após a entrega da coisa, consoante se trate de móvel ou imóvel, presunção essa que é aliás inderrogável pelas partes”[8]. Porém, tratando-se de coisa móvel usada, as partes podem acordar na redução do prazo de dois anos para um ano. Foi, justamente, o que fizeram a Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, e o Réu BB o contrato de compra e venda do veículo de matrícula ..-RM-...

Tendo em conta que os defeitos surgiram no prazo de um ano a contar da entrega do veículo usado, a responsabilidade pela falta de conformidade do bem comprado continua a correr por conta da Ré “A... – Unipessoal, Lda.”.

De salientar, neste ensejo, “que a responsabilidade do vendedor, no regime da venda de bem de consumo, aproxima-se de uma responsabilidade objectiva, no âmbito da qual, perante o consumidor, será irrelevante a responsabilidade que o vendedor tenha tido na desconformidade, bastando a prova desta.” (in Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/06/2023, disponível em www.dgsi.pt).

Pressente-se, no entanto, uma objecção com foros de decisiva: a Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, vendeu o veículo de matrícula ..-RM-.. ao Réu BB, e não ao Autor. Logo, atenta a inadmissibilidade da eficácia externa das obrigações, a garantia de bom funcionamento do veículo prestada pela Ré “A... –Unipessoal, Lda.”, só podia abranger a venda ao Réu BB. A venda posterior do veículo que este fizesse a terceiro já não estaria abrangida por aquela garantia.

Todavia, a objecção é apenas aparente porque, nos termos do art. 4.º, n.º 6 do diploma, os direitos atribuídos ao consumidor face ao vendedor profissional transmitem-se a terceiro adquirente do bem[9]. Portanto, durante o prazo da garantia, o vendedor profissional mantém-se vinculado à obrigação de garantia perante os sucessivos adquirentes do bem. A título de exemplo, veja-se como nas empreitadas de construção de imóveis, a garantia prestada pelo empreiteiro ao dono da obra se transmite para os posteriores adquirentes dos imóveis.

Não existe, por isso, qualquer dúvida sobre os direitos conferidos ao Autor pelo regime da venda de bens de consumo.

Em suma, estando comprovada a desconformidade do veículo usado ..-RM-.., nos termos das alíneas c) e d) do n.º 2 do art. 2.º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08/04, na redacção do Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21/05, bem como a transmissão para o Autor da garantia de bom funcionamento do veículo usado prestada pela vendedora ao Réu BB (art. 4.º, n.º 6), resta saber quais os direitos que o Autor pode exercer nesta situação.».

Tratando-se de um contrato de compra e venda de uma viatura automóvel, em que o comprador denuncia uma desconformidade nela existente, é aplicável o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, na redacção operada pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio (âmbito temporal), o qual veio transpor para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, alterando a Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, visando expressamente a protecção do consumidor.

Com efeito, de há muito se sentia que o regime regra do Código Civil não apresentava plasticidade suficiente para acomodar todos os casos de compra e venda de um bem defeituoso, corporizando este diploma um regime especial e prevalente.

Em termos de âmbito material, aplica-se aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, como sejam a Recorrente e o 1.º R., incidindo sobre bem de consumo, bem móvel, destinado a uso não profissional (arts. 1.º-A, n.º 1, e 1.º-B, als. a) a c), por remissão para os factos n.ºs 1 e 2).

Sucede, no entanto, que no decurso da garantia de um ano concedida pela Recorrente (art. 5.º, n.ºs 1 e 2, e facto n.º 5), o veículo automóvel veio a ser alienado pelo seu adquirente originário a outro consumidor (2.º R. ao Recorrido), mantendo-se o seu uso privado, e paralelamente, constatada a existência de uma avaria, abrangida por essa garantia, que impedia a sua normal fruição (factos n.ºs 6 e 7), a qual foi reportada à Recorrente (factos n.ºs 16 a 18).  

Sendo assim, deve atentar-se na previsão normativa do seu art. 5.º-A, que estipula o prazo para o exercício de direitos, sob pena de caducidade.

Recuperam-se as circunstâncias fácticas já enumeradas e acrescenta-se que verificada a existência de uma desconformidade, o consumidor deve denunciá-la ao vendedor no prazo de dois meses a contar da data em que a detectou (art. 5.º-A, n.º 2, por referência aos factos n.ºs 16 a 18), gozando de 2 anos para instaurar a respectiva acção judicial (art. 5.º-A, n.º 3, e facto n.º 28).

Todos estes prazos foram escrupulosamente observados por parte do Recorrido, com o que se confirma o juízo de improcedência da excepção de caducidade. 

Ademais, não colhe o argumento da Recorrente de que, por não ter vendido o veículo automóvel ao Recorrido, estava legitimada a declinar a responsabilidade pelo pagamento da reparação.

De acordo com o art. 4.º, intitulado Direitos do consumidor, seu n.º 6, «Os direitos atribuídos pelo presente artigo transmitem-se a terceiro adquirente do bem.», o que significa que, durante o prazo da garantia convencionada, a Recorrente, enquanto empresa profissional na área do comércio de viaturas automóveis, mantinha-se responsável se tal garantia fosse accionada por terceiros adquirentes do bem garantido, como aconteceu com o Recorrido.

Soçobra, desta forma, o recurso, confirmando-se a douta decisão recorrida.

Em função do vencimento, a Apelante suporta o pagamento das custas processuais (arts. 527.º e 607.º, n.º 6, este ex vi 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).

VIII.

Decisão:

Segundo explanado, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.

O pagamento das custas processuais é encargo da Apelante.

Registe e notifique.


      8 de Julho de 2025


(assinatura electrónica – art. 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)


[1] Juiz Desembargadora 1.ª Adjunta: Dra. Maria João Areias
Juiz Desembargador 2.º Adjunto: Dr. José Avelino Gonçalves

[2] Na petição inicial o pedido era: «…ser a 1.ª Ré. condenada a pagar ao Autor a quantia de 5.407,20 € (cinco mil, quatrocentos e sete euros e vinte cêntimos), referente ao custo da reparação do veículo em causa nos Autos;

Subsidiariamente, e caso assim não se entenda, Deve o A. ter-se como sub-rogado na posição do 2.º Réu e nessa medida ser o 1.º Réu condenado a pagar-lhe a quantia de 5.407,20 € (cinco mil, quatrocentos e sete euros e vinte cêntimos), referente ao custo da reparação do veículo em causa nos Autos.».
[3] Diploma vigente à data dos factos. O Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, entrou em vigor em
01/01/2022.
[4] A carta foi enviada, por correio registado e aviso de recepção, para a morada da sede da Ré “A... – Unipessoal, Lda.”, e foi efectivamente entregue na morada do destinatário, conforme resulta da assinatura do aviso de recepção. Tratando-se da morada da sede de uma pessoa colectiva, presume-se que quem tenha assinado o aviso de recepção tenha sido um funcionário da Ré. Não restam dúvidas que o correio postal enviado a uma pessoa colectiva pode ser recebido por qualquer pessoa relacionada com ela, mesmo como mero prestador de serviços de segurança (a propósito da citação das pessoas colectivas, Abrantes Geraldes-Paulo Pimenta-Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2.ª edição, Almedina, 2020, página 270), havendo ainda que pressupor que o distribuidor do serviço postal desempenhou de forma adequada as suas funções, e, consequentemente, nas instalações/sede da Ré, contactou funcionário desta e não qualquer outra pessoa alheia à empresa.
[5] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, 3ª Edição, pg. 137 e 138.
[6] Ob., cit., pgs. 143 e 144.
[7] Ob., cit., pgs. 144 e 145.
[8] Ob., cit., pg. 151.
[9] Nesse sentido, podemos ver o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/09/2022, disponível em
www.dgsi.pt.