I – O indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, nos termos previstos no art.º 238.º do CIRE, pressupõe que esteja efectivamente demostrada uma das situações que ali são enunciadas como determinantes desse indeferimento; existindo elementos nos autos com base nos quais se possa ter como verificada uma dessas situações, o juiz pode – e deve – indeferir o pedido, ainda que nenhum interessado/interveniente o tenha pedido, sem qualquer vinculação à posição que, em sentido contrário, tenha sido assumida nos autos pelo administrador de insolvência ou por qualquer outro interessado e independentemente de quem tenha carreado para os autos os elementos em causa (sendo irrelevante saber se esses elementos foram – ou não – trazidos aos autos por quem tinha o ónus de provar os factos em causa).
II – O repúdio de uma herança é acto que – pela sua natureza e independentemente de qualquer outro facto – implica, em maior ou menor grau, uma diminuição do activo e, em consequência, a criação ou agravamento de uma situação de insolvência; sendo praticado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, com dolo ou culpa grave, determina o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo nos termos da alínea e) do n.º 1 do art.º 238.º conjugado com o n.º 1 do art.º 186.º do CIRE.
III – Para efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo é irrelevante que o acto em questão venha a ser resolvido em benefício da massa; não obstante possa eliminar o prejuízo que dele resultou para os credores, tal resolução não apaga a censurabilidade da conduta do devedor e a sua falta de boa fé que estão subjacentes ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I.
AA, solteira, residente na Rua ..., ..., ..., ... ..., veio apresentar-se à insolvência, requerendo também a exoneração do passivo restante.
Tendo sido declarada a sua insolvência por sentença de 26/11/2024, a Sr.ª Administradora da Insolvência veio apresentar relatório no qual fez constar, designadamente, que havia sido identificado um direito a um quinhão hereditário na Herança aberta por óbito de BB, falecido em 21/01/2006, do qual fazia parte um imóvel, mas que a Insolvente havia repudiado essa herança por escritura realizada em 27/03/2024.
Mais declarou não se opor a que fosse proferido despacho inicial sobre o pedido de exoneração do passivo restante.
Perante essa informação e por se ter considerado que o repúdio da herança poderia configurar fundamento para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, atento o agravamento da situação de insolvência, ao abrigo do disposto no art.º 238º, nº 1, al. e), do CIRE, determinou-se – por despacho de 07/03/2025 – a notificação da Insolvente para se pronunciar, querendo, sobre essa questão.
A Insolvente veio pronunciar-se sobre a matéria, dizendo, em resumo, que está de relações cortadas e sem contacto com a família há vários anos situação que se agravou com a morte do pai, tendo sido por essa razão – e para concretizar definitivamente o corte da relação com a família – que repudiou a herança. Mais alega que, dado o valor insignificante da sua quota no imóvel e dada a dificuldade de vender um imóvel em situação de indivisão, o aludido repúdio em nada agravou a sua situação de insolvência.
Conclui reiterando o pedido de concessão da exoneração do passivo restante.
Na sequência desse acto e por despacho de 07/04/2025, decidiu-se indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante ao abrigo do disposto na alínea e) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE.
Inconformada com essa decisão, a Insolvente veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
Não foi apresentada resposta ao recurso.
II.
Questão a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se há (ou não) fundamento para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante ao abrigo do disposto na alínea e) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE o que equivale a saber se existem elementos bastantes para concluir que o acto de repúdio da herança por parte da devedora/Apelante implicou a criação ou o agravamento da situação de insolvência e que, quando o praticou, a devedora actuou com dolo ou culpa grave.
III.
A decisão recorrida deu como assentes os seguintes factos:
1. A Requerente apresentou-se à insolvência em 16.11.2024.
2. Alegou não possuir qualquer património.
3. Por sentença datada de 26.11.2024 foi declarada a insolvência do Requerente.
4. A Requerente é solteira.
5. Vive com os seus dois filhos menores.
6. A Requerente recebe uma pensão de alimentos no valor de 156,00 euros referente à filha menor CC.
7. Trabalha na empresa A...-Unipessoal Lda e aufere o salário mensal de 850,00 euros ilíquidos.
8. É proprietária de uma viatura marca BMW modelo 525 TDS, matrícula ..-..-LX, do ano de 1992.
9. O passivo da Requerente ascende a €36.040.69, distribuído da seguinte forma:
a. Banco 1..., SA: €463.05 relativos a utilização de cartão de crédito, vencido em 11.03.2024; €765.76 relativos a utilização de cartão de crédito, vencido em 01.08.2024; €9.657.00 proveniente de contrato de crédito pessoal e €6.993.45, ambos vencidos no mês de Dezembro de 2023.
b. Instituto da Segurança Social, IP: €17.298.15 Contribuições e juros de mora de 2022/09 a 2023/06- Reversão de dívida de B... Unipessoal, Lda; €406.71 a titulo de custas; €138.17 provenientes de prestações indevidas de subsídio de desemprego de 24/09/2024 a 30/09/2024 e €318.40 provenientes de Prestações indevidas de abono de família desde Abril a Agosto de 2020
10. Por escritura pública, datada de 27.03.2024, a Requerente repudiou a herança aberta por óbito de seu pai, BB, falecido a 21.01.2006.
11. Na escritura referida em 10 consta ainda que a Requerente tem como únicos descendentes os seus dois filhos.
12. Tal herança integra a meação do falecido no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ..., composto de casa de habitação de cave, rés do chão e logradouro, com a área total de 1.131m2, com o valor patrimonial tributário apurado no ano de 2023 de €116.980,00.
13. BB deixou como herdeiros a cônjuge sobreviva, a devedora e DD.
14. A Requerente não tem antecedentes criminais.
IV.
A decisão recorrida indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante por ter considerado que se verificava a situação prevista na alínea e) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE, ou seja, por ter considerado que existiam elementos nos autos que indiciavam com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º.
Tendo sido esse o único fundamento da decisão recorrida, podemos concluir, desde já, pela total irrelevância da argumentação da Apelante que consta das conclusões 3 e 4 das alegações e pela sua total inaptidão para alterar a decisão. Na verdade, essa argumentação reporta-se – claramente – ao fundamento de indeferimento liminar que consta da alínea d) do n.º 1 do citado art.º 238.º e não foi com esse fundamento que a decisão recorrida indeferiu liminarmente o pedido de exoneração; o indeferimento liminar fundamentou-se na alínea e) e, portanto, em situação que nada tem a ver com a verificação dos requisitos a que se reporta a Apelante nas citadas conclusões das suas alegações.
Argumenta também a Apelante – nas conclusões 7 a 11 das alegações – que a alegação e prova da não concessão da exoneração do passivo restante deveria ter sido feita pelos credores e administradora da insolvência, uma vez que os fundamentos do n.º 1 do art.º 238 do CIRE são impeditivos do direito à exoneração e que tal não foi feito – sendo que a Administradora da Insolvência até se pronunciou no sentido da concessão da exoneração do passivo restante – acabando o tribunal por “decidir contra tudo e contra todos”.
É certo que o indeferimento liminar da exoneração do passivo pressupõe a efectiva constatação/verificação de alguma das situações previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do citado art.º 238.º; é isso que resulta – clara e expressamente – da letra da lei quando preceitua que o pedido “…é liminarmente indeferido se…” ocorrer algumas das situações aí previstas. Não estão em causa, portanto, factos constitutivos do direito à exoneração, mas sim factos impeditivos desse direito (por isso mesmo determinam o indeferimento do pedido e, consequentemente, a não concessão da exoneração). E é por isso que se diz – tendo em conta o disposto no art.º 342.º do CC – que não cabe ao insolvente o ónus de provar a não verificação de nenhuma dessas situações, cabendo aos credores ou ao administrador de insolvência o ónus de carrear para o processo os factos e os elementos probatórios que permitam concluir pela efectiva verificação de alguma das situações referidas[1]. Ou seja, o indeferimento liminar do pedido não se basta com a circunstância de o insolvente não ter feito qualquer prova no sentido de não ocorrer nenhuma das situações susceptíveis de determinar tal indeferimento; tal indeferimento pressupõe – como resulta, aliás, dos termos da lei – que esteja efectivamente demostrada uma das situações que ali são enunciadas como determinantes do indeferimento liminar do pedido.
Isso não significa, porém, ao contrário do que parece sustentar a Apelante, que o juiz não possa indeferir o pedido se nenhum interessado tiver solicitado esse indeferimento e não significa que, para o efeito, o juiz não possa tomar em consideração todos os factos e elementos probatórios constantes do processo independentemente de quem os tenha carreado para os autos.
Na verdade, a lei não faz depender o indeferimento liminar do pedido de requerimento de qualquer interessado; tal indeferimento traduz, na verdade, um poder-dever do juiz de analisar o pedido formulado e de verificar se existem (ou não) circunstâncias que, nos termos previstos na lei, devam obstar ao seu prosseguimento, caso em que pode – e deve – indeferi-lo liminarmente sem qualquer vinculação à posição que, em sentido contrário, tenha sido assumida nos autos pelo administrador de insolvência ou por qualquer outro interessado[2].
Por outro lado, o que releva para efeitos de indeferimento liminar é apenas a circunstância de existirem nos autos elementos suficientes para atestar a verificação de uma das situações que, nos termos da lei, conduzem ao indeferimento liminar do pedido, sendo irrelevante saber se esses elementos foram trazidos aos autos por quem tinha o ónus de provar os factos em causa. É isso que resulta, desde logo, do princípio da aquisição processual – consagrado no art.º 413.º do CPC (cfr. art.º 17.º do CIRE), onde se determina que “O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las...”. A prova dos factos considera-se, portanto, adquirida para o processo, podendo e devendo ser valorada pelo juiz ainda que tenha sido produzida por quem não tinha o ónus de o fazer. Só assim não será se estiver em causa um facto cuja alegação a lei considere irrelevante quando não seja feita por determinado interessado, o que não acontece na situação que analisamos.
É certo, portanto, que, se existirem elementos nos autos com base nos quais se possa ter como verificada uma das situações que, nos termos previstos na lei, o devam determinar, o juiz pode – e deve – indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, ainda que nenhum interessado/interveniente o tenha pedido e independentemente de quem tenha carreado para os autos os elementos em causa.
Assim sendo, aquilo que realmente importa saber é se os autos fornecem (ou não) elementos bastantes para concluir – como se concluiu na decisão recorrida – pela verificação da situação prevista na alínea e) do n.º 1 do citado art.º 238.º, sendo certo que foi esse o fundamento invocado para o indeferimento liminar.
Passamos, então, a analisar essa matéria.
Segundo o disposto na referida alínea e), o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se “Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º”.
A situação descrita remete-nos para o disposto no art.º 186.º e para a questão de saber se existem (ou não) elementos no processo com base nos quais se possa concluir, à luz do disposto nesse preceito legal, que, com toda a probabilidade, a insolvência será de qualificar como culposa.
Segundo o disposto no n.º 1 da norma citada, “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”. Assim, ressalvando os casos em que se configure alguma das presunções referidas nos n.ºs 2 e 3, a qualificação da insolvência como culposa pressupõe a demonstração dos seguintes pressupostos: que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada por determinada conduta ou actuação do devedor ou dos seus administradores; que tal actuação seja dolosa ou gravemente culposa e que esta actuação tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
No caso dos autos, a decisão recorrida considerou verificada essa situação com fundamento no repúdio da herança que foi efectuado pela Insolvente por escritura de 17/03/2024, ou seja, oito meses antes do início do processo e, portanto, dentro do período temporal a que alude a citada disposição legal. Considerou, para o efeito, que o acto em questão – praticado com dolo ou culpa grave – implicou agravamento da situação de insolvência em que a Apelante se encontrava, por força da diminuição do activo que ele representou.
Para fundamentar a sua discordância em relação a tal decisão, a Apelante, além de sustentar que o tribunal não deu como provados e não considerou factos que eram relevantes, questiona o facto de o acto ter agravado a situação de insolvência e determinado prejuízo para os credores, dizendo que o tribunal retirou essa conclusão sem a fundamentar e sem qualquer facto que a possa sustentar, até porque – diz – o acto em questão é susceptível de resolução, nos termos do art.º 121.º n.º 1, al b) do CIRE (resolução que a Sr.ª Administrador já declarou ter intenção de efectuar).
Pensamos, salvo o devido respeito, que não assiste razão à Apelante, porquanto há elementos bastantes para concluir pela verificação dos pressupostos acima mencionados e os factos a que se reporta (alegadamente desconsiderados) não têm relevância.
Estamos, no caso, perante um acto de repúdio de uma herança. Ou seja, mediante escritura de 27/03/2024, a Insolvente/Apelante declarou repudiar a herança por morte de seu pai BB, falecido no dia 21/01/2006, na qual se integra o prédio urbano descrito na matéria de facto, com o valor patrimonial tributário apurado no ano de 2023 de 116.980,00€.
Está em causa, naturalmente, um acto que – pela sua natureza e independentemente de qualquer outro facto – implica uma diminuição do activo; por via desse repúdio, a Apelante renunciou a um direito com valor patrimonial que existia na sua esfera jurídica e que, nessa medida, criou ou agravou a sua situação de insolvência.
De nada relevam os factos – que a Apelante alega terem sido desconsiderados – de apenas ser titular de uma quota de 1/6 no aludido prédio ou de ser difícil proceder à sua venda porque, nas suas palavras, “ninguém compraria numa situação de indivisão”, não sendo legítimo afirmar, como pretende a Apelante, que, por essas razões, o acto em questão nada acrescentou ou diminuiu à sua situação de insolvência e não contribuiu para o agravamento dessa situação.
Cabe assinalar que o imóvel em causa tem um valor patrimonial tributário de 116.980,00€ e, portanto, o valor do quinhão hereditário da Apelante de 1/6 (no pressuposto de que a herança apenas incluía a meação do respectivo autor e de que existiam mais dois herdeiros) não será, propriamente, insignificante como a Apelante pretende fazer crer, tanto mais que o passivo não é muito elevado. Mas, ainda que fosse, isso não deixaria de implicar um agravamento da situação de insolvência relevante para efeitos de qualificação de insolvência, sendo certo que a lei não exige que esse agravamento seja significativo. Ainda que o valor em causa fosse reduzido, seria sempre uma mais-valia para os credores, sendo certo que “pouco será sempre melhor que nada” e tendo em conta que, ao que tudo indica e como emerge dos autos (petição inicial e relatório da Sr.ª Administradora), a Insolvente não tem bens (a não ser um veículo automóvel de 1992 cujo valor comercial não será relevante) e não tem rendimentos relevantes (auferindo apenas um salário mensal ilíquido de 850,00€).
Também não é oportuno apelar, neste momento, às alegadas dificuldades de venda do referido quinhão. Podendo ser mais difícil a venda, ou podendo implicar que ela apenas pudesse ser feita por valor inferior ao real, nada permite afirmar, neste momento, que ela não fosse possível e, de qualquer forma, isso não teria idoneidade para afastar a conclusão – que temos como evidente – que o repúdio implicou a renúncia a um direito e, consequentemente, uma efectiva diminuição do património que, obviamente, se reflecte na situação de insolvência da Apelante determinando, em maior ou menor grau, o seu agravamento.
Temos como certo, portanto, que o acto em questão agravou a situação de insolvência da Apelante.
E também pensamos ser de concluir que ele foi praticado, se não com dolo, pelo menos com culpa grave.
Correspondendo a culpa/negligência a uma omissão da diligência e deveres de cuidado que, naquelas circunstâncias, eram exigíveis e que seriam adoptados por uma pessoa normalmente diligente, ela é qualificável como grave quando se configura como violação grosseira dos deveres de cuidado e prudência que, no caso, eram exigíveis e eram elementares, ou seja, quando, em face das circunstâncias do caso, só uma pessoa particularmente descuidada teria omitido esses deveres de cuidado que teriam permitido prever e evitar o resultado[3].
Ora, na situação dos autos a Apelante praticou um acto que, conforme se assinalou, representou uma perda patrimonial e uma efectiva diminuição da garantia patrimonial dos seus credores e fê-lo num momento em que já existiam créditos vencidos (veja-se que pelo menos os créditos do Banco 1... no valor de 9.657.00€ e 6.993.45€ estavam vencidos desde Dezembro de 2023) sem que tivesses meios ou rendimentos de proceder ao respectivo pagamento. Nas circunstâncias referidas, só um devedor particularmente descuidado deixaria de prever que o repúdio de uma herança nesse momento iria agravar essas dificuldades financeiras e, consequentemente, criar uma situação de insolvência ou agravar a que já existisse, pondo em causa a satisfação dos seus credores e, portanto, só um devedor particularmente negligente se dispunha a praticar um acto daquela natureza em claro e evidente prejuízo dos credores.
Em justificação da sua conduta, argumenta a Insolvente/Apelante:
- Que estava de relações cortadas com a família, não se falavam há vários anos e nem tinha qualquer contacto com a mesma;
- Que a situação se agravou com a morte do seu pai derivado à partilha dos bens da herança;
- Que essa conflituosidade se agravou e culminou com uma situação extremada da insolvente ao repudiar a herança por óbito do seu pai.
Tais factos são, no entanto, totalmente irrelevantes para efeitos de justificar a sua conduta e afastar a sua culpa.
Essas pretensas razões verificam-se – como diz a própria Apelante – há vários anos e o seu agravamento – como também diz – ocorreu na sequência da morte do pai que ocorreu em 21/01/2006 (há 18 anos, tendo como referência a data do repúdio) e, apesar disso, nunca a Apelante sentiu a necessidade de repudiar a herança. É, portanto, incompreensível – e sobretudo, não é credível – que tenha sentido agora essa necessidade, justamente num momento em que sabia ter passivo vencido que não conseguia pagar com os seus rendimentos e poucos meses antes de vir requerer a declaração da sua insolvência.
Além do mais, na perspectiva de um devedor de boa fé em relação aos seus credores (como deve ser o caso do devedor que se apresenta a requerer a exoneração do passivo restante), outras razões se deveriam sobrepor às razões que, alegadamente, teriam motivado a Apelante a praticar o acto em questão; um devedor minimamente cuidadoso e de boa fé para com os seus credores, não deixaria de ter ponderado que o acto em questão punha em causa a satisfação dos seus credores (porque não tinha outros meios para os satisfazer) e que, nessa medida, o seu interesse em cortar definitivamente os laços com a família não podia nem devia sobrepor-se ao interesse dos seus credores. Refira-se que – como assinala, aliás, o preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE – a exoneração do passivo restante corresponde a um beneficio que se pretendeu reservar para os devedores de boa-fé que, como tal, se revelem merecedores desse benefício, seja pela conduta recta, honesta e pautada pela boa-fé que adoptaram antes da insolvência, seja pela conduta – igualmente recta, honesta e pautada pela boa-fé – que venham a adoptar após a insolvência e, mais concretamente, durante o período da cessão. Ora, boa-fé e rectidão em relação aos seus credores é algo que, seguramente, não esteve presente no acto de repúdio da herança que a Apelante praticou nas circunstâncias acima descritas.
Entendemos, portanto, – como também se entendeu na decisão recorrida – que, ao praticar o acto em questão, a Insolvente/Apelante actuou pelo menos com culpa grave (ou mesmo dolo), criando – ou pelo menos agravando – a situação de insolvência em que se encontra, o que, à luz do disposto no art.º 186.º, n.º 1, determina a qualificação da insolvência como culposa e, consequentemente, o indeferimento liminar do pedido de exoneração nos termos previstos na alínea e) do n.º 1 do art.º 238.º.
Essa conclusão não sofre alteração por via da circunstância – invocada pela Apelante – de o acto em questão ser susceptível de resolução em benefício da massa insolvente (art.º 120.º e segs) e de a Sr.ª Administradora ter manifestado intenção de proceder a tal resolução.
A eliminação do acto e do prejuízo que ele representou por efeito de resolução que venha a ter lugar (e ainda não há notícia dos autos da efectivação dessa resolução) não elimina a censurabilidade da conduta do devedor e é esta que releva para efeitos de qualificação da insolvência e para efeitos de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante.
Importa relembrar que a exoneração do passivo restante é um importante e relevante benefício concedido ao devedor singular (na medida em que lhe dá a possibilidade de se libertar de algumas das suas dívidas e de, por essa via, conseguir alcançar a sua reabilitação económica) que, conforme resulta do preâmbulo do CIRE e de várias disposições desse Código, é reservado aos devedores que dele se revelem merecedores, ou seja, aos devedores que tenham adoptado uma conduta recta, cumpridora e de boa fé, designadamente no período anterior à insolvência. E é isso precisamente que está em causa na maioria das situações que conduzem ao indeferimento liminar do referido pedido, sendo certo que estão em causa situações que evidenciam uma conduta contrária àquela que justificaria esse benefício, ou seja, uma conduta que é contrária à actuação de boa fé que se exige ao devedor para o efeito de lhe ser concedido o referido benefício. E essa actuação e postura do devedor no período anterior à insolvência não é eliminada com a resolução ou destruição do acto que praticou, continuando a evidenciar que o devedor não é merecedor do benefício que veio requerer.
É irrelevante, portanto, que o acto em questão venha a ser resolvido em benefício da massa; ainda que essa resolução possa apagar o prejuízo que dele resultou para os credores, ela não apaga a censurabilidade da conduta do devedor e a sua falta de boa fé e é isto que está subjacente ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo.
Improcede, portanto, o recurso e confirma-se a decisão recorrida.
SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
(…).
V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves)
(Chandra Gracias)
(José Avelino Gonçalves)
[1] Cfr., Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, pág. 855 e, entre outros, os Acórdãos do STJ de 17/06/2014 e 21/01/2014 (processos n.ºs 985/12.4T2AVR.C1.S1 e 497/13.9TBSTR-E.E1.S1, respectivamente), bem como o Acórdão da Relação de Coimbra de 07/09/2021 (processo n.º 3/21.1T8CBR-B.C1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 856.
[3] Cfr. Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 3ª ed., pág. 304 e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3ª ed., pág. 467, nota 3.