DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE
REGISTO DE ENCERRAMENTO DA LIQUIDAÇÃO
TERMO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
PROSSEGUIMENTO DAS AÇÕES JUDICIAIS
RESPONSABILIZAÇÃO DOS SÓCIOS
Sumário

I – Dissolvida a sociedade, esta entra em liquidação, momento temporal em que ainda mantém a sua personalidade jurídica, e é o registo de encerramento da liquidação que marca o termo da personalidade jurídica da sociedade comercial, que fica então extinta.
II – Procurando evitar a frustração dos credores sociais, as acções em que a sociedade seja parte continuam após a sua extinção, que se considera substituída pela generalidade dos antigos sócios (ou seus sucessores), representados pelos liquidatários, sendo que a instância não se suspende nem é necessária a habilitação, ou seja, a substituição é automática.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Recurso de Apelação

Tribunal a quo: Tribunal Judicial da Comarca de Leiria/Juízo de Execução de Ansião (J2)

Recorrente: AA

Sumário (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):

(…).

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I.

Em 26 de Junho de 2024, AA propôs acção executiva contra A..., Lda., ambos ali melhor identificados, visando a condenação desta no pagamento de 65 824,66 € (sessenta e cinco mil oitocentos e vinte e quatro euros e sessenta e seis cêntimos), a título de capital, a que acrescem custas de parte, taxa de justiça e juros moratórios.

Consta da Sentença dada à execução, exarada em 28 de Fevereiro de 2024, que «Na falta de quem representasse a sociedade Ré (por virtude do falecimento de quem, nos termos do pacto social, incumbia a gerência), e não se encontrando ainda definidos os titulares das quotas sociais, procedeu-se à nomeação, como curador especial – cfr. art. 25º nº 2 CPC - de BB, …».

Da consulta do Registo Comercial, datada de 12 de Novembro de 2024, consta a dissolução, encerramento da liquidação e o cancelamento da matrícula da Executada, pelo que o Exequente requereu o prosseguimento dos autos com a notificação do curador ad litem, uma vez que já havia ocorrido o decesso de ambos os sócios, o que foi indeferido.

Por Sentença cuja prolação ocorreu em 21 de Fevereiro p.p. foi decidido, entre o mais:

«Consequentemente, não se pode considerar a sociedade substituída pela generalidade dos seus sócios, mantendo-se a sua falta de personalidade jurídica e judiciária (artigo 11º, n.º1 e 2) do C.P.C., que acarreta a sua absolvição da instância, o que se determina – artigo 577º, alínea c), 578º e 576º, n.º2 do C.P.Civil.

Custas pelo exequente (cfr. art.º 527.º, n.º 1 e 2 do NCPC).

Registe e notifique (também o Ex.mo Sr. Agente de Execução).

Valor da acção: o da Execução.».

II.

Não convencido, o Exequente interpôs Recurso de Apelação, de onde emergem as seguintes

«CONCLUSÕES

(…).».

III.

Questões decidendas

Para além da apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o âmbito da apelação (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil):

- Do conhecimento do processo administrativo de cancelamento da matrícula.

- Da nulidade da Sentença, pela prolação de decisão surpresa.

- Da decisão de absolvição da instância executiva, por falta de personalidade jurídica e judiciária.

IV.

Dos Factos

Por consulta à plataforma informática consigna-se que:

1. Relativamente aos sócios da sociedade Executada, constam «CC, casada com DD, quota em comum e sem determinação de parte ou direito, CC, viúva, EE, casada com FF e AA, casado com GG.».

2. À ordem destes autos foram penhorados bens.

3. Por despacho de 17 de Dezembro de 2024, o Exequente foi notificado que «… para a execução só poderá prosseguir contra os sócios da executada nos termos dos artigos 162.º e 163.º do Código das Sociedades Comerciais, sendo que só no caso de se apurar que receberam algum montante na partilha é que a execução poderá prosseguir contra os mesmos, o que deverá a Exequente fazer prova nos presentes autos.».

4. Em 14 de Janeiro de 2025, o Exequente respondeu «…estando em partilha o capital da sociedade (quotas dos ex-sócios) em processo de Inventário Judicial que corre seus termos no Juízo Local Cível de Pombal – Proc. Nº 3457/16.... – J2 – mostra-se tal dissolução oficiosa violadora da lei que prescreve sobre a transmissão das quotas dos sócios falecidos,..», e «… a sociedade apesar da sua inatividade progressiva, jamais liquidou ou partilhou o seu activo já identificado nos autos.».

V.

Do Direito

Previamente à análise das objecções suscitadas pelo Recorrente, importa aferir qual o concreto enquadramento efectuado pelo Tribunal a quo.

«Pela Ap. AP. ...06 foi averbada a DISSOLUÇÃO E ENCERRAMENTO DA LIQUIDAÇÃO da sociedade executada.

Através da AP. ...06 foi averbado o CANCELAMENTO DA MATRÍCULA da mesma.

No decurso da execução constata-se que se encontra registado o encerramento da liquidação da sociedade executada, pelo que, não pode a execução prosseguir contra a sociedade dissolvida, por evidente falta de personalidade jurídica

Estabelece o n.º 2 do artigo 160.º, do Código das Sociedades Comerciais (doravante, CSC) que uma sociedade se considera extinta pelo registo de encerramento da liquidação.

Porém, não obstante a extinção, tal não afecta as acções em que a sociedade seja parte, como resulta do disposto nos artigos 162.º, 163.º e 164.º do CSC.

Assim, no que toca às acções pendentes em que a sociedade seja parte, o art.º 162.º estipula, no seu n.º 1, que tais acções continuam após a extinção da sociedade, considerando-se esta substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163.º, n.ºs 2, 4 e 5 e 164.º, n.ºs 2 e 5. E acrescenta, no seu n.º 2, que a instância não se suspende e que a habilitação não é necessária: em tal situação, as acções em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários (n.º 1, da artigo 162.º, do CSC); e os sócios respondem pelo passivo não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam em partilha (n.ºs 1, dos artigo 163.º e 197.º, do CSC).

Contudo, para que os sócios possam responder é necessário que o credor alegue e prove que aqueles obtiveram bens da sociedade resultantes da partilha do seu património (cfr. neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do 13-01-2014, Processo n.º 472/06.0TTSTS-C.P1, acessível em www.dgsi.pt).

Ora, no caso em apreço, o exequente nada alegou sobre se os sócios da sociedade executada obtiveram bens da sociedade resultantes da partilha do seu património.

Aliás, da decisão final do processo de liquidação resulta:

Este não é o local próprio para colocar em causa a decisão final e/ou os trâmites (notificações, documentos que instruíram tal procedimento) ali proferida, assim se indeferindo o pedido de remessa integral de tal procedimento.

O que é inegável é que nesse procedimento consta o supra-transcrito e nesta sede, o Exequente, não alegou nem fez prova que os sócios obtiveram bens da sociedade resultantes da partilha do seu património.

Consequentemente, não se pode considerar a sociedade substituída pela generalidade dos seus sócios, mantendo-se a sua falta de personalidade jurídica e judiciária (artigo 11º, n.º1 e 2) do C.P.C., que acarreta a sua absolvição da instância, o que se determina – artigo 577º, alínea c), 578º e 576º, n.º2 do C.P.Civil.».

Preliminarmente frisa-se que o Recorrente foi notificado de todos os elementos juntos aos autos e teve, sobre os mesmos, a oportunidade processual de se pronunciar, não se divisando a prolação de qualquer decisão com a qual não pudesse legitimamente contar.

O que é distinto do Recorrente concordar ou discordar com o conteúdo dos despachos proferidos. 

A personalidade judiciária, enquanto pressuposto processual, consiste na susceptibilidade de ser parte, sendo certo que quem tem personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária, no dizer do art. 11.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Nos termos do art. 5.º do Código das Sociedades Comerciais, as sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tal a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, sendo entidades dotadas de personalidade jurídica e judiciária, que não se confunde com a dos seus sócios, e que persiste mesmo na fase de dissolução e liquidação.

Dissolvida a sociedade, esta entra em liquidação, momento temporal em que ainda mantém a sua personalidade jurídica, conforme decorre do art. 146.º, n.ºs 1 e 2, e é o registo de encerramento da liquidação que marca o termo da personalidade jurídica da sociedade comercial (art. 160.º, n.º 2), que fica então extinta.

Na presente instância executiva é inequívoco que a dissolução, o encerramento da liquidação e o cancelamento da matrícula da Executada são posteriores à data da propositura daquela, e bem assim, que com o registo do encerramento da liquidação, a sociedade considera-se «extinta, mesmo entre os sócios»[2].

Sendo assim, é certo que deixou de existir a pessoa colectiva que perdeu a sua personalidade jurídica e judiciária, mas as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem, o que se alcança dos arts. 162.º e 163.º[3].

Detalhando melhor.

Procurando evitar a frustração dos credores sociais, as acções em que a sociedade seja parte continuam após a sua extinção, que se considera substituída pela generalidade dos antigos sócios[4], representados pelos liquidatários, nos termos dos arts. 163.º, n.ºs 2, 4 e 5, e 164.º, n.ºs 2 e 5, sendo que a instância não se suspende nem é necessária a habilitação, ou seja, a substituição é automática[5].

Por relevante transcreve-se o seguinte excerto:

«O regime neles previsto distingue e regula dois modos diferentes de fazer intervir os sócios em ação instaurada por obrigações da sociedade extinta, consoante a ação esteja pendente à data da extinção da sociedade ou seja instaurada após a extinção da sociedade.

A ação em que a sociedade seja parte continua após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários (art. 162.º). Logo, a contrario sensu, extinta a sociedade antes da propositura da ação não há lugar à aplicação do art. 162.º, que se destina a regular os casos em que a sociedade seja parte na ação e a extinção ocorra na pendência desta.

Tratando-se de ação a instaurar após a extinção da sociedade por dívida não paga nem acautelada no ato da liquidação, terá que ser proposta contra a generalidade dos sócios, também representados pelos liquidatários, e considerando que cada sócio apenas responde até ao montante que recebeu na partilha (art. 163°, n° 1), o demandante terá que justificar, na petição inicial, que, aquando do encerramento da liquidação, a extinta sociedade possuía bens e/ou valores e que esses bens e/ou valores foram distribuídos pelos sócios demandados.

O primeiro critério de aplicabilidade de cada um desses preceitos reside no facto de a ação já estar pendente à data da extinção da sociedade ou de vir a ser instaurada após a verificação dessa extinção.»[6].

Por conseguinte, esta instância executiva deve prosseguir contra os sócios (ou seus sucessores), representados pelos liquidatários, sob pena de total desprotecção do crédito exequendo.

É indesmentível que, nestes casos, entrando em linha de conta com a distinção entre o património social e o património individual dos sócios, e em obediência à autonomia da personalidade jurídica de cada um, a lei determina que os sócios só responderão pelo passivo social não satisfeito até ao montante que receberam na partilha, razão pela qual o exequente, ao requerer o prosseguimento da execução contra os sócios, tem que alegar e demonstrar – art. 342.º, n.º 1, do Código Civil – o recebimento, por banda destes, de bens ou direitos em partilha do património societário suficientes para o pagamento do crédito reclamado.

Para responsabilizar os sócios é necessário que se demonstre que a sociedade tinha bens e que, em consequência da sua dissolução e extinção, esses bens foram partilhados e distribuídos pelos sócios[7].

Ora, nesta instância executiva foram penhorados bens da sociedade executada – cf. facto n.º 2.

Acresce, por outro lado, que, na sequência da notificação expressa endereçada pelo Tribunal, o Recorrente mencionou a pendência de acção e que por essa circunstância ainda não foi feita partilha dos seus bens – cf. facto n.º 3.

Por isso entende-se não colher o argumento que o Recorrente «…não alegou nem fez prova que os sócios obtiveram bens da sociedade resultantes da partilha do seu património.».

Desta forma, procede a pretensão do Recorrente revogando-se o despacho recorrido, determinando-se o prosseguimento da acção executiva, sem suspensão e sem habilitação, com a citação dos sócios (ou seus sucessores), representados pelos liquidatários.

Nestes termos, fica prejudicada a apreciação do processo administrativo de cancelamento da matrícula.

O pagamento das custas processuais responsabiliza a parte vencida, a final (arts. 527.º e 607.º, n.º 6, este ex vi 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).

VI.

Decisão:

De acordo com o exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que determine a continuação dos termos processuais, nos termos indicados.

O pagamento das custas processuais é encargo da parte vencida a final.

Registe e notifique.


     8 de Julho de 2025


(assinatura electrónica – art. 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)


[1] Juiz Desembargadora 1.ª Adjunta: Dra. Maria João Areias
Juiz Desembargadora 2.ª Adjunta: Dra. Maria Catarina Gonçalves
[2] Pinto Furtado in, Curso de Direito das Sociedades, 3.ª Edição, p. 546.
[3] Acórdãos dos Tribunais da Relação de Lisboa, Proc. n.º 14587/19.0T8LSB-A.L1, de 23-03-2023, e da Relação do Porto, Proc. n.º 639/10.6TTMTS.1.P1, de 21-09-2015, disponíveis, como os demais, em www.dgsi.pt. 
[4] Raul Ventura in, Dissolução e Liquidação de Sociedades, p. 436, afirma que «A extinção de uma sociedade validamente constituída ocorre pela inscrição no registo do encerramento da liquidação», e mais adianta que «desaparecida a sociedade-sujeito, e mantidos vivos os direitos da sociedade ou contra esta, só os sócios podem ser os novos titulares desse activo e passivo. A explicação jurídica dessa instituição reside na extensão do direito de cada sócio relativamente ao património ex-social. Os sócios têm direito ao saldo da liquidação, distribuído pela partilha. Se tiverem recebido mais do que era seu direito, porque há débitos sociais insatisfeitos, terão de os satisfazer; Se tiverem recebido menos, porque não foram partilhados bens sociais, terão direito a estes. (…).
Os actos extintivos da sociedade são válidos e esta validade constitui o pressuposto necessário das disposições legais que ordena a referida sucessão para os sócios, ou melhor, antigos sócios.» – p. 480.
[5] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. n.º 64/18.0YHLSB.L1, de 28-02-2019.
[6] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Proc. n.º 576/24.7T8PTL.G1, de 14-11-2024.

[7] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 4022/06.0TCLRS.L2.S1, de 01-10-2019, e no Proc. n.º 3275/15.7T8MAI-A.P1.S2, de 25-10-2018, e dos Tribunais da Relação de  Coimbra, Proc. n.º 2529/20.5T8ACB.C1, de 27-06-2023, da Relação de Guimarães, Proc. n.º 228/16.1T8VNF-A.G1, de 04-04-2019, e da Relação do Porto, Proc. n.º 582/15.2T8PRT.P1, de 22-10-2018.