I – A contabilidade organizada corresponde ao registo contabilístico e este à anotação dos movimentos económicos ou factos contabilisticamente relevantes em livro/conta própria de acordo com o Sistema de Normalização Contabilística (SNC). É o registo/lançamento desses factos que vai permitir o apuramento dos saldos de cada conta e de cada rubrica que, por sua vez, vai permitir obter um balancete actualizado em cada momento em que se pretenda obter um retrato actual da situação da empresa e, no termo de cada ano - ou outro período aplicável -, o fecho de contas ou encerramento de exercício através da elaboração do balanço que integra as demonstrações financeiras e demais documentos de prestação de contas devidos e a apresentar pela administração para apreciação anual da situação da sociedade pelos sócios - art.º 65º do CSC.
II – A organização da contabilidade constitui instrumento privilegiado para obter a informação e prova da situação económica e financeira da devedora, constituindo aliás os elementos que se configuram como adequados para a abertura do incidente de qualificação; apenas as irregularidades contabilísticas, quanto aos exercícios da sociedade devedora dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, se situam no período relevante fixado no n.º 1, do artigo 186º CIRE.
III – Na ausência de prova em contrário, é de concluir que essas irregularidades impedem a compreensão da verdadeira situação económica e financeira daquela sociedade em cada um desses exercícios e também do seu evoluir, encontrando-se, por isso, preenchidos os factos base da ficção legal de insolvência culposa da al. h), do n.º 2, do art. 186º do CIRE; a verificação, em termos objectivos, da situação descrita na citada alínea implica necessariamente a qualificação da insolvência como culposa, sem necessidade de demonstração de culpa ou da existência de nexo causal com a criação ou agravamento da situação de insolvência e independentemente das razões, motivações ou intenções que estiveram subjacentes ao comportamento que deu origem a essa situação.
IV – A indemnização devida deverá, em princípio e tendencialmente, corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o ativo que compõe a massa insolvente logrou cobrir, pois é essa diferença que representa o prejuízo dos credores. Só assim poderá não ser se acaso os factos provados revelarem que o comportamento culposo do afetado não foi causal de todo esse dano, antes se tendo limitado a ser apto a produzir um certo dano menor (dano inferior ao do passivo não coberto pelas forças da massa).
V – A proporcionalidade para determinar o valor da indemnização não tem a ver com a concreta situação económica dos responsáveis, mas antes com a medida em que a actuação do gerente/administrador afectado tenha dado causa a uma concreta diminuição do valor dos bens da massa insolvente, por ser-lhe alheia a dissipação do remanescente do património da sociedade insolvente, justificando-se ver nessa medida limitada a sua responsabilidade.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam os Juízes da 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
1.Relatório
Nos presentes autos em que é insolvente a sociedade A..., Lda., com sede na ... - Lugar..., ..., veio o Administrador de Insolvência juntar alegações, nos termos do art.º 188º, n.º 1 do CIRE – será o diploma a citar sem menção de origem - , pugnando pela qualificação da insolvência como culposa e pedindo que com a qualificação da insolvência como culposa fossem afectados, os gerentes AA e BB, nos termos constantes do requerimento junto com ref.ª n.º 2340356, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
Alega, que a situação em que a sociedade insolvente se encontra, foi criada ou agravada em consequência de atuação culposa ou com culpa grave do devedor, ou dos seus administradores de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao processo de insolvência.
Alega a ausência de contabilidade organizada a que a insolvente estava obrigada, sendo que da análise feita contabilidade da insolvente a mesma não reflecte uma imagem verdadeira e apropriada da sua situação patrimonial e financeira.
Mais alega o incumprimento generalizado de dívidas e a exploração deficitária pois que, à data da declaração de insolvência já a sociedade insolvente registava o incumprimento generalizado, há mais de 6 (seis) meses, de dívidas junto dos seus trabalhadores, tendo sido reconhecidos créditos a estes credores no valor global de 300.000,00€. Acresce ainda referir que, apesar da sociedade insolvente não ter qualquer viabilidade financeira, pelo menos desde o ano de 2021 – ano em que começou a apresentar capitais próprios negativos – apenas se apresentou à insolvência no ano de 2023.
Acresce que sociedade insolvente apresentou capitais próprios negativos nos últimos 2 (dois) períodos, nomeadamente nos exercícios de 2021 e 2022, e ainda resultados líquidos negativos nos anos de 2021 e 2022, sendo que apesar da sociedade insolvente se encontrar em mora perante os trabalhadores (credores privilegiados) desde aproximadamente o ano de 2019, em Julho e Agosto do ano de 2023 a insolvente procedeu a amortizações antecipadas no valor de 20.000,00€ (em Julho de 2023) e 20.520,00€ (em Agosto de 2023) junto da Banco 1..., de empréstimos bancários nos quais os gerentes eram avalistas.
Por fim invoca o incumprimento do dever de se apresentar (atempadamente) à insolvência, uma vez que desde o ano de 2019 que a sociedade insolvente vem acumulando dívidas, especialmente aos ex-trabalhadores. Pelo que, apesar da sociedade insolvente já não possuir lucro desde o ano de 2019, e se encontrar numa situação de manifesta impossibilitada de cumprimento de algumas das suas obrigações, a sociedade insolvente continuou em laboração, tendo apenas requerido a sua insolvência no ano de 2023.
Conclui dever qualificar-se a insolvência como culposa, sendo afecto os gerentes supra identificados.
Na sequência, veio o Digno Magistrado do Ministério Público, através de ref.ª n.º 31091197, pronunciar-se no sentido da qualificação da insolvência como culposa, pedindo que com a qualificação da insolvência como culposa fossem afectados, os gerentes supra elencados.
Alegam para o efeito que, a insolvente detinha contabilidade devidamente organizada, cumprindo todas as obrigações legais decorrentes de normas contabilísticas.
Mais alegam que, na data em que foi proferida a sentença de insolvência, os trabalhadores da insolvente encontravam-se de férias, sendo pratica habitual na empresa, desde há longos anos, o encerramento da empresa para ferias do pessoal no período anual em questão na exacta medida em que, as empresas por conta de quem, habitualmente, prestavam serviço, também encerravam para ferias do pessoal nos mesmos períodos.
No que tange à inexistência depreciações alegam ser uma opção da gerência, que tomou a decisão de não realizar as mesmas nos últimos três exercícios, por motivos estruturais, não tendo daí resultado qualquer prejuízo relevante.
Sustentam ainda que não ocorreu qualquer incumprimento generalizado de dividas e exploração deficitária, uma vez que os gerentes fizeram questão de pagar pontualmente os salários devidos aos trabalhadores, sendo que todos os vencimentos foram pagos até ao mês de julho de 2023, sempre dedicando todo o seu tempo, laboral e extralaboral, ao desenvolvimento de uma actividade gratificante em termos monetários e na procura de melhores margens de lucro.
Quanto ao alegado incumprimento do dever de se apresentar a insolvência, remetem para o período pós pandemia covid 19 onde a insolvente se viu confrontada com o encerramento das fabricas de produção para as quais, habitualmente, realizava transportes rodoviários de mercadorias, viu-se confrontada, durante longos períodos com a inexistência, por completo, de encomendas de transportes, se sempre com os valores de encargos fixos a aumentar, tendo- se visto na a obrigação de suspender os contratos de trabalho e recorrer aos apoio estatais para tentar ultrapassar a crise gerada pelos factores externos. Apenas no momento em que se aperceberam da real situação da empresa, apresentaram-se imediatamente, requerendo a mesma, sem necessidade de que fossem terceiros a requer a insolvência da empresa.
Por tudo o exposto, o Tribunal decide:
1. Qualificar a insolvência de A..., Lda., Pessoa Colectiva n.º ...14, com sede na ... - Lugar..., ..., como culposa.
2. Julgar afectados pela qualificação da insolvência AA e BB.
3. Declarar a inibição de AA para a administração de patrimónios de terceiros; para o exercício do comércio bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de três anos e seis meses.
4. Declarar a inibição de BB para a administração de patrimónios de terceiros; para o exercício do comércio bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de dois anos.
5. Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA e BB;
6. Condenar, solidariamente, AA e BB a indemnizarem os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até à força do respectivo património, pelas quantias reconhecidas no âmbito do processo de insolvência.
*
Custas a cargo da massa insolvente, nos termos do art. 304.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, sem prejuízo do disposto no art. 39.º n.º 7 alínea d) do mesmo código.
*
Proceda-se às comunicações referidas no art. 189.º n.º 3 do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas – Conservatória do Registo Civil (Conservatória do local de nascimento do afectado) e Conservatória do Registo Comercial (serviços centrais), bem como ao Instituto de Registos e Notariado.
*
Registe e notifique.
A_ A Empresa, ora insolvente e recorrente , “A..., Lda “, foi constituída a 16 de Agosto do ano de 2004, tendo como Sócios – Gerentes o Sr. AA e esposa, BB, , como objeto social a exploração de Transportes Rodoviários, com melhor e mais cabal identificação nos autos.
B_ Entre o ano da sua constituição e o ano de 2019, a recorrente sempre apresentou resultados financeiros positivos, tendo tido uma “vida” empresarial normal.
C_ No ano de 2020, com maior acuidade e incidência nos anos de 2021, 2022 e primeiro semestre de 2023, a recorrente viu afetada a sua atividade empresarial, registando perdas e falta de liquidez.
D_Tal situação levou a que o Sócio-Gerente, AA, único sócio que de facto exercia poderes efetivos na vida do dia a dia da insolvente ( a Sócia BB é Enfermeira de profissão), viesse em nome desta a requerer o atual processo de insolvência, tendo o requerimento dado entrada, no Tribunal competente, a 04 de Agosto de 2023.
E_Com data de 16 de Agosto de 2023 foi proferida sentença a declarar a requerente Insolvente.
F_O processo continuou os seus normais e legais termos e por decisão/sentença, datada de 18 de Março do corrente ano, notificada ás partes em 19 de Março e efetivamente recepcionada por estas em 21 de Março, foi a Insolvência Qualificada como CULPOSA e por via disso, os Gerentes sentenciados como Culpados e consequentemente Afetados pela decisão, nos termos que da mesa consta e para a qual se remete.
G_A recorrente não se conforma com a decisão sentenciada, no sentido da AFETAÇÃO pessoal e profissional dos seus sócios.
Com efeito,
H_Não existiu uma atuação REITERADA plasmada em DOLO ou CULPA GRAVE, por parte de nenhum dos sócios, no sentido de, entre 2019, ano em que a insolvente ainda deu lucro 04 de Agosto de 2023, que tivesse CRIADO ou AGRAVADO a situação de insolvência da devedora. ( Como exigido pelo nº 1 do artº 186º do CIRE)
I_A insolvente, com maiores ou menores deficiências, MANTEVE SEMPRE a contabilidade Organizada e PRERSTOU contas, conforma provado na sentença, e apresentou-se á Insolvência logo que percebeu que, efetivamente, estava numa situação de não poder, de todo, cumprir com as suas obrigações, v. g. solver os seus débitos.
J_Entre 2010/2020 e Agosto de 2023, a Insolvente teve sempre a esperança, a LEGITIMA expetativa de se REERGUER, de voltar á NORMAILDADE empresarial, de FATURAR e assim , cumprir com todas as suas obrigações.
L_A situação de insolvência que se iniciou em 2020, ficou a dever-se á PANDEMIA COVID-19 que lhe PARALISOU a vida empresarial, lhe SUSPENDEU /CANCELOU/ ANULOU contratos, como aconteceu a milhares de empresas e é de conhecimento oficial e oficioso, geral e público.
M_ No mês de Julho de 2023, antes de ser requerida, POR SI, não por terceiros, a sua Insolvência, os salários/ vencimentos dos trabalhadores foram todos pagos ( matéria provada)
N_Não existe qualquer NEXO DE CAUSALIADE entre a atuação dos Sócios e a situação de Insolvência verificada com a empresa.
O_Foram causas FORTUITAS , decorrentes da Pandemia Covi-19, que levaram a empresa á situação de Insolvência.
P_Os três trabalhadores que depuseram em Audiência, não falaram a verdade , quando disseram que a empresa não PAROU a sua atividade durante a Pandemia, ___” apenas uma pequena quebra no serviço” porque a atividade da empresa não implicava “um contacto direto com pessoas, o que possibilitou que continuassem a laborar.”
Q_Tal afirmação, repetida pelos três????___a mesma fórmula, as mesmas palavras, é falsa e tal é de conhecimento público e geral. Durante a Pandemia, nos anos mais críticos, 2020,2021 e parte de 2022, as atividades SUSPENDERAM, as Instituíçoes encerraram… e a ora Insolvente , nesse período, até passou por um processo de LAY – OFF__ os trabalhadores sabiam muito bem .
R_Tal como sabia o Sr Administrador da Insolvência, que não se coibiu de defender a CULPA da Insolvente e dos seus Administradores.
TERMOS EM QUE, SENHORES DRS. JUÍZES DESEMBARGADORES:
___A SENTENÇA DO TRIBUNAL “A QUO” é muito VAGA e IMPRECISA na fundamentação a que chegou para AFETAR os Sócios –Gerentes na CULPA da Insolvência.
Não deu relevância, não fundamentou, ( AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO) nem pela positiva, nem pela negativa, os efeitos nefastos causados pela Pandemia CVovid-19, que foram/são de conhecimento público, geral, oficial e que tanto “MAL” causaram á vida empresarial da Insolvente, como havia sido alegado em Sede de CONTESTAÇÃO ás Alegações do Sr. Administrador da Insolvência.
Acresce que não estabelece um claro e compreensível NEXO DE CAUSALIDADE, como é de Lei, de Jurisprudência e doutrina, entre a atuação “CULPOSA” dos sócios –gerentes e a situação de concreta Insolvência em que a empresa se viu.
Claramente, na modesta opinião da recorrente, devidamente explanada em todo o seu arrazoado, não á como, face ao exigido pelos artigos 186º , nomeadamente as alíneas g) e h) do seu nº2, as invocadas na Sentença, atribuir aos Sócios, nomeadamente á Sócia BB uma COMPROVADA ATUAÇÃO CULPOSA, de FACTO, que tenha nexo Causal com a Insolvência em presença.
Face ao período ANORMAL vivido entre 2020 e meados de 2023, nenhum outro comportamento se pode assacar aos Sócios da Insolvente, tendo estes agido em função do tempo e das circunstâncias.
A SENTENÇA EM RECURSO INCORREU EM ERRO DE APRECIAÇÃO E DE FUNDAMENTAÇÃO, VIOLANDO , NOMEADAMENTE, OS ARTIGOS 186º E 189º DO CIRE.
Razão/razões pelas quais, pede a recorrente a V.Exªs, Senhores Juízes Desembargadores que, substituam a sentença recorrida por um acórdão que considere e QUALIFIQUE a Insolvência como FORTUITA ( artº 189 nº 1 do CIRE) e Absolva os Sócios AA e BB da AFETAÇÃO a que foram condenados, assim ,
V. Exªs farão JUSTIÇA.
O ADVOGADO.
1. Por sentença proferida a 18.03.2025 decidiu-se qualificar a insolvência da sociedade A..., Lda., como culposa e julgar afectados pela qualificação da insolvência AA e BB.
2. A recorrente A..., Lda., interpôs recurso por não se conformar com a qualificação da insolvência como culposa e pela afectação dos sócios gerentes, AA e BB.
3. Os factos dados como provados e não provados na sentença traduzem a prova produzida em sede de audiência de julgamento, tendo o Tribunal a quo avaliado de forma correcta a prova produzida e fundamentado escrupulosamente a razão pela qual deu como provados e não provados os factos que elencou e enunciou de forma pertinente o direito aplicável.
4. O Tribunal a quo efectuo correcto enquadramento fáctico-jurídico, não tendo violado qualquer norma jurídica, regra de experiência ou critério da lógica.
5. Pelo que não merece reparo a qualificação como culposa da insolvência A..., Lda., nos termos decididos e com as consequências extraídas, designadamente quanto à abrangência de tal qualificação.
Pelo que, negando provimento ao recurso interposto e confirmando a douta sentença recorrida farão Vossas Excelências, como sempre, JUSTIÇA!
» Os factos levados aos autos permitem qualificar a insolvência da como culposa, e, em caso afirmativo, os requeridos devem ser afectados por essa qualificação e em que termos.
2.1 – Da impugnação da matéria de facto;
A 1.ª instância fixou, assim, a sua matéria de facto:
A – FACTOS PROVADOS
Em face da prova produzida em audiência de julgamento e do teor dos documentos importa considerar provados, com interesse para a boa decisão da causa os seguintes factos:
1. Por sentença proferida no dia 16 de Agosto de 2023, já transitada em julgado, foi a sociedade comercial “A..., Limitada” declarada insolvente.
2. No dia 16 de Agosto de 2004, foi constituída por contrato de sociedade inscrito na Conservatória do Registo Comercial ... a sociedade insolvente e que gira sob a firma “A..., Limitada”, pessoa coletiva com o n.º ...14, com o objeto social de “transportes rodoviários de mercadorias por conta de outrem”, com sede social atual na ... - Lugar..., Código Postal: ... ..., e com o capital social de 125.000,00€ (cento e vinte e cinco mil euros), sendo que a gerência (de direito e de facto) da sociedade insolvente era da incumbência dos seguintes intervenientes: - AA, com o número de identificação fiscal ...52, e -BB, com o número de identificação fiscal ...83.
3. Enquanto laborou, a sociedade insolvente desenvolvia a respetiva atividade na ... - Lugar..., Código Postal: ... ... e, ainda, num terreno rústico sito na Rua ..., ... ..., a coberto de um contrato de arrendamento, cujo arrendatário era CC, o qual tinha a duração inicial de um ano, contando-se o seu início a partir de 01 de Abril de 2017, sendo a renda acordada de 200,00€ (duzentos euros) mensais.
4. No dia 03 de Agosto de 2023, através do processo especial de insolvência, a sociedade insolvente veio reconhecer a sua actual situação de insolvência e requerer a respetiva declaração.
5. Na sequência da declaração de insolvência, foram reclamados e reconhecidos créditos sobre a insolvência, cujo montante global ascendeu à quantia de 607.254,44€, dos quais:
• 47.935,05€, de natureza garantida,
• 311.883,86€, de natureza privilegiada;
• 247.428,66€, de natureza comum, dos quais 96.912,65€, sob condição; e
• 6,87€, de natureza subordinada.
6. Do universo desses créditos destacam-se os créditos seguintes:
• créditos dos (ex)trabalhadores da sociedade insolvente, cujo valor global ascende à quantia aproximada de 300.000,00€; e
• créditos junto das instituições financeiras cujo valor global ascende à quantia aproximada de 283.000,00€, donde:
- Banco 1..., S.A. (contrato de mútuo), crédito no valor de 95.495,01€;
- Banco 2..., S.A. (contrato de mútuo), crédito no valor de 4.462,54€; e
- B..., S.A. (garantias autónomas – Banco 1... e Banco 2...), crédito no valor de 144.847,70€.
7. A insolvente tinha como Contabilista Certificado da sociedade insolvente o Exmo. Senhor Dr. DD, com o NIF: ...64, e domicílio profissional na Av. ..., concelho ....
8. Interpelado pelo Sr.º AI para prestar a necessária colaboração remeteu alguns documentos de suporte, como são os Saft’s da contabilidade dos anos de 2021, 2022 e 2023 (provisório), que permitiram analisar o estado da contabilidade da sociedade insolvente.
9. A sociedade insolvente é obrigada a ter contabilidade e estar organizada de acordo com os preceitos legais (NC-ME).
10. Foi relevada fiscalmente através da entrega das declarações fiscais e depósitos de contas até 2022.
11. Foram examinadas as demonstrações financeiras dos anos de 2020, 2021 e 2022, as quais compreendem Balanço, Demonstração de Resultados, Balancetes e as respetivas IES.
12. Do exercício de 2023, apenas compreende o balancete analítico de Junho de 2023 (provisório).
13. A contabilidade da sociedade insolvente não reflete uma imagem verdadeira e apropriada da sua situação patrimonial e financeira.
14. Quanto ao exercício de 2023, apesar de se apurar um resultado líquido positivo de 47.332,02€, o mesmo não tem qualquer correspondência com a realidade.
15. Na data em que foi proferida a sentença de insolvência, os trabalhadores da insolvente encontravam-se de férias, sendo pratica habitual na empresa, desde há longos anos, o encerramento da empresa para férias do pessoal no período anual em questão.
16. O imobilizado da sociedade insolvente apresenta um valor líquido de 61.434,50€, o qual não foi objeto de depreciações nos últimos 3 (três) exercícios para não agravar os resultados líquidos e ainda a situação dos capitais próprios.
17. Na classe de “Ativos Não Correntes”, nomeadamente a conta “Ativos Fixos Tangíveis”, regista-se um valor líquido de 61.434,50€, conforme melhor identificado no seguinte mapa:
17. Os “Ativos Fixos Tangíveis” são constituídos, apenas, por “Equipamentos de Transporte”;
18. O valor líquido de 61.434,580€, o mesmo resulta da sociedade insolvente não ter procedidos às respetivas depreciações nos 3 (três) últimos exercícios.
19. A conta “sócios” apresenta um saldo devedor de 82.680,66€.
20. Da contabilidade da sociedade resulta também um saldo devedor de 78.148,98€, na conta “2784-Gasóleo”, conta esta na qual eram debitados os consumos dos abastecimentos efetuados em Espanha.
21. A conta “2784-Gasóleo” não se encontra conciliada.
22. Da análise ao balancete da sociedade insolvente, concretamente, da rúbrica “clientes conta-corrente”, créditos sobre clientes no montante global de 280.274,56€, donde:
- a quantia de 134.963,48€, referente ao cliente “cliente”, não sendo possível apurar os nomes dos clientes que compõem este saldo;
- a quantia de 126.912,29€, referente ao cliente “C..., S.A.”;
- a quantia de 18.398,79€, referente ao cliente “D..., SL.
23. A rúbrica “clientes conta-correntes” constam “clientes” sem a mínima identificação, o que impede, definitivamente, a (tentativa) de cobrança de tais quantias.
24. A conta “caixa” apresenta um saldo de 1.297,60€; que não foi apreendido, tendo sido aplicado, no pagamento de despesas ainda não refletidas na contabilidade.
25. A conta “depósito à ordem” apresenta um saldo de 13.727,37€, sendo de 3.145,09€, na Banco 1..., e de 10.582,28€, na Banco 2....
26. O volume de negócios da insolvente tem vindo a decrescer em todos os períodos analisados, sendo que apresenta capitais próprios negativos, pelo menos, nos dois últimos períodos analisados, apresentando resultados negativos nos exercícios de 2021 e 2022.
27. A sociedade insolvente não ter qualquer viabilidade financeira, pelo menos desde o ano de 2021 – ano em que começou a apresentar capitais próprios negativos.
28. A sociedade insolvente encontra-se em mora perante os trabalhadores (credores privilegiados) desde aproximadamente o ano de 2019.
29. Em Julho e Agosto do ano de 2023 a insolvente procedeu a amortizações antecipadas no valor de 20.000,00€ (em Julho de 2023) e 20.520,00€ (em Agosto de 2023) junto da Banco 1..., de empréstimos bancários nos quais os gerentes eram avalistas.
30. Ao não apresentar a sociedade à insolvência, no ano de 2019, a gerência da sociedade insolvente fez com que as dívidas aos respetivos credores fossem atingindo valores cada vez mais elevados.
31. A insolvente cumpriu com o dever legal de presentação de contas e de publicação das mesmas.
32. No que respeita ao exercico do 2023, o encerramento das contas do ano de 2023, iria ocorrer até 31 de Dezembro do referido ano, o que não veio a suceder em decorrência da declaração de insolvência.
33. Os vencimentos dos trabalhadores foram pagos até ao mês de julho de 2023.
34. Alguns dos trabalhadores da insolvente trabalhavam na empresa há cerca de 20 anos (tal como o sócio gerente), motivo pelo qual as indemnizações devidas são elevadas.
*
B– FACTOS NÃO PROVADOS
a) A insolvente viu-se confrontada, durante longos períodos com a inexistência, por completo, de encomendas de transportes.
A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5 do CPC, conjugado com a disciplina adjectiva dos artigos 410.º e segs. e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil , designadamente o artigo 396.º no que respeita à força probatória dos depoimentos das testemunhas.
É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes - Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 591-, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância.
Mas não podemos esquecer que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação. Por esta razão, Ana Luísa Geraldes (ob. cit. página 609) salienta que, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.
Acresce, no caso em análise, que por força da nova redacção do corpo do n.º 3, do artigo 186.º, introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, que, numa clara interpretação autêntica deste preceito, passou a afirmar que se presume unicamente a existência de culpa grave, não prescindindo, portanto, da prova do nexo de causalidade exigido pelo n.º 1, do mesmo artigo - ao contrário do n.º 2, que estabelece presunções inilidíveis de insolvência culposa (que alguma doutrina e jurisprudência prefere qualificar como “ficções legais”), o n.º 3 consagra meras presunções relativas de culpa grave, não dispensando a prova do nexo de causalidade entre a conduta do gerente/administrador e a situação de insolvência.
Para além do exposto, importa ainda realçar que, a insolvência culposa tem consequências gravosas, previstas nos n.2 e 3 do art.º 189.º, traduzidas em inibições várias, às quais é conferida publicidade, por via da inscrição no registo civil e no registo comercial. Por isso, deve a matéria de facto provada fornecer uma inequívoca demonstração do preenchimento dos requisitos exigidos pelas diversas hipóteses do art.186º – neste preciso sentido, o Acórdão do STJ, de 29.10.2019 (proc. n.º 434/14.3T8VFX-C.L1.S1), pesquisável em www.dgsi.pt.
Ora, neste particular, os Apelantes, além de invocarem os efeitos da pandemia do COVID- 19, alegam:
“Porém Exmºs Senhores Drs. Juízes Desembargadores ,
12_Para já e a titulo meramente indicativo, á frente voltaremos a esta questão, em algum momento se PROVOU que os Sócios –Gerentes da Insolvente, AA e BB, tenham “DESTRUÍDO”, “DANIFICADO”, “INUTILIZADO”, “OCULTADO”, ou “FEITO DESAPARECER …….O PATRIMÓNIO DO DEVEDOR”?__ al.a) do nº 2 do artº 186º do CIRE.
(…)
ESTES OS FATOS PROVADOS EM AUDIÊNCIA E RELEVANTES PARA A BOA DECISÂO DA Causa, nomeadamente para considera a insolvência CULPOSA e AFETAR, POR VIA DISSO OS DOIS SÓCIOS –GERENTES.
Sem prescindir,
44_ESCLARECER que apenas o Sócio Gerente AA, era efetivamente GESTOR na empresa, a Sócia BB, esposa do mesmo, não exerceu nunca poderes de gerência na empresa, sendo ENFERMEIRA de profissão, aso serviço do Estado Português.
MATÉRIA DADA COMO NÃO PROVADA ( Fatos Não Provados , folha 10 da sentença)
45_”A INSOLVENTE VIU-SE CONFRONTADA, DURANTE LONGOS PERÍODOS COM A INEXISTÊNCIA, POR COMPLETO, DE ENCOMENDAS DE TRANSPORTES.”_Folha 10 da sentença.
(…)
MERITISSIMOS DRS. JUIZES DESEMBARGADOIRES.
Numa situação TEMPORAL ( 2019 a 2023) de NORMALIDADE Social e Empresarial, toda a douta argumentação da Mª Juiz do Tribunal “a quo” mereceria total e indiscutível acolhimento e este recurso não estaria a ser produzido, como efetivamente está.
A verdade , porém, é que, na modesta opinião da recorrente, o Tribunal “a quo”, não deu a devida relevância a factos que direta e indiretamente são de fundamental importância para a boa e sobretudo JUSTA decisão da causa.
Antes da análise critica á matéria, provada, não provada e outra que de forma INDIRETA, mas que se revela, na nossa opinião, absolutamente decisiva para uma justa composição da lide e boa decisão da causa, veja-mos o que escrevem Professores como A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, Quid júris, Lisboa 2009, páginas 609 a 612….
60_” a insolvência CULPOSA implica SEMPRE uma ATUAÇÃO DOLOSA ou com CULPA GRAVE do devedor ou dos seus administradores de DIREITO OU DE FACTO, determinados nos termos do artº 6º. Essa ATUAÇÃO DEVE TER CRIADO ou AGRAVADO a situação de insolvência em que o devedor se encontra” . Mais se entende que a actuação deixa de ser considerada se não tiver tido lugar nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, sem prejuízo de se ponderar a atuação REITERADA, verbi gratia a VIOLAÇÃO do dever de apresentação à insolvência ou de manter a contabilidade organizada.
Mais se acrescenta, é Jurisprudencial:
61_ Necessário se exige, para se considerar a insolvência culposa, que se ALEGUE e se PROVE a ATUAÇÃO CULPOSA ou DOLOSA do devedor ou dos seus administradores, como ALEGAR E COMPROVAR O NEXO DE CAUSALIDADE entre essa actuação e a situação da insolvência, nos termos exigidos pelo nº 1 do artº 186º do CIRE (Ac. da RP 10-02-2011)
EXMªS SENHORES DRS. JUIZES DESEMBARGADORES…
Por outra ordem de razões que explanaremos de seguida, mas também por ser entendimento da recorrente que, no caso em apreço, falta o NEXO DE CAUSALIDADE entre a atuação dos Sócios-Gerentes da Insolvente e a verificada situação de Insolvência, deve a sentença ora em recurso, afinal, negar o carácter culposo da insolvência e a consequente afetação dos sócios, AA e BB.
Veja –mos pois:
62_A sociedade insolvente foi constituída em 16 de Agosto de 2023 ._ ponto 2 dos factos provados;
63_A sociedade, ora insolvente, foi constituída tendo como Sócios-Gerentes o AA e sua mulher, BB, estes Sócios e não outros, apenas por uma questão de conveniência e não “meter estranhos” numa sociedade que se quis “familiar”…
64_Pois que, á partida, era de conhecimento e era querer de ambos os sócios, marido e mulher, que a sociedade fosse gerida, de facto, no dia a dia, como efetivamente foi, pelo Sócio AA, até porque a Sócia BB, além de nada perceber de vida empresarial e de transportes, era/é ENFERMEIRA de profissão. ( V. depoimento do Sr. Contablista, folha 11 da sentença, do Sócio AA, folha 12 da sentença)
65_A sociedade insolvente laborou e fez a sua vida ativa, sem sobressaltos de maior, até pelo menos o ano de 2019. ( conclusão nossa e não infirmada em qualquer fase deste processo de insolvência.), ano em que até ainda teve lucro ( V. motivação da sentença, folha 12, depoimento do Sr,. Contabilista e pontos 26 2 27 dos factos provados, em que se afirma, claramente, que a insolvente apenas nos anos de 2021 e 2022 é que começou a “apresentar capitais próprios negativos)
66_ A sociedade APRESENTOU_SE voluntariamente á Insolvência , em 04-08 de 2023, vindo a ser declarada Insolvente em 16 de Agosto desse mesmo ano.
67_Como se deixou dito, a insolvente desde a sua constituição em 2004, até 2019, laborou de forma continua, no âmbito do seu objeto social, honrando os seus compromissos, quer com os trabalhadores, quer com terceiros, nomeadamente fornecedores , clientes , fisco, segurança social, banca , etc..etc…
68_A descrita situação alterou-se, primeiro de forma leve, pouco a pouco de forma mais ACENTUADA e depois de forma BRUSCA , CAÓTICA e INULTRAPASSÁVEL, a partir do final do ano de 2019, em virtude da pandemia CÓVID-19.
69_A mesma pandemia Cóvid -19, que como é, aliás, do conhecimento público, geral e com REPERCUSSÂO OFICIAL a nível nacional, começou de “mansinho” no ano de 2019, foi-se alastrando e IMPONDO á Sociedade em Geral durante os anos de 2020, 2021 e 2022.
70_No ano de 2020 e parte do ano de 2021, é de conhecimento publico generalizado, que, por IMPOSIÇÃO legal/Governamental, o País “FECHOU”, “PAROU”___ foram largos meses de IMOBILIZAÇÃO total em todos os setores.
71_A esta situação a insolvente não foi alheia, bem pelo contrário__aliás, em abono da verdade, centenas de empresas (e até muitas pessoas singulares), viram as suas atividades IRREMEDIÁVELMENTE afetadas, a ponto de terem que recorrer a processos de Insolvência.
72_A insolvente viu a sua atividade PARADA, como aconteceu a milhares, como todos sabemos e vivenciámos de uma forma ou de outra.
73_Foram largos meses, dois , três anos sem faturar, mas com as obrigações sobre os “ombros”, situação , aliás, refletida na contabilidade.
74_Esta situação__ SEVERA QUEBRA de FATURAÇÃO, CAMIONS PARADOS, ATÉ POR IMPOSIÇÃO LEGAL, COMO SE REITERA, a insolvente passou, inclusivamente, por Processo de LAY OFF, não pode deixar de nos levar a concluir que a Mª Juiz do Tribunal “a quo” foi induzida em ERRO quando não deu por provada a matéria articulada pela insolvente ___ “ A INSOLVENTE VIU -SE CONFRONTADA, DURANTE LONGOS PERÍODOS COM A INEXISTÊNCIA , POR COMPLETO, DE ENCOMENDAS DE TRANSPORTES…” folha 10 da sentença.
75_Ao mesmo tempo a Mª Juiz do Tribunal “a quo”, MOTIVOU a conclusão precedente, artigo 74, com as afirmações de três testemunhas, (ex-trabalhadores da insolvente) que declararam que “DURANTE A PANDEMIA COVID-19, NUNCA deixaram de trabalhar, verificando-se apenas uma PEQUENA QUEBRA NO SERVIÇO. Mais esclareceram que tal circunstância se deveu ao facto de da atividade desenvolvida pela devedora-transporte de mercadorias, NÃO IMPLICAR um CONTACTO DIRETO COM PESSOAS, o que possibilitou que continuassem a laborar.”
76_Foi público, todos sabemos que não foi assim, a Pandemia PAROU o País, e a industria de transportes, faz-se como?, as cargas e descargas fazem-se como ?, não é com pessoas e entre pessoas???__ A Mº juiz do Tribunal “a quo”, com todo o respeito, até por força do seu conhecimento da situação á época vivida, por força das REGRAS da EXPERIÊNCIA , não podia dar acolhimento a tal tese.
77_Também os dados contabilísticos referentes a estes anos de Pandemia e sobretudo aos mais severos, segundo semestre de 2020, 2021 e atá meados de 2022, são bem demonstrativos do que se deixa dito, ou seja, de que a insolvente passou por um período de grande crise que a levou á situação de Insolvência.
78_Veja-se a este titulo o que está escrito na sentença a folhas 9, ponto 26 dos factos provados.
79_Escreve a Mª Juiz do Tribunal “a quo”_ folhas 9 da sentença, ponto 27, factos provados, ….” A SOCIEDADE INSOLVENTE NÃO TER (tem, óbviamente) QUALQUER VIABILIDADE FINANCEIRA, PELO MENOS DESDE O ANO DE 2021”.
80_Lá está o que temos dito supra, foi , ou não foi a Pandemia que levou a Insolvente para a descrita situação? Claro que foi e tal é de conhecimento público. Aliás, pergunta-se,
81_Se não foi por força do papel extremamente nefasto da Pandemia, porque razão desde 2004 e até á altura da mesma __Fase mais AGUDA- 2021,, a insolvente foi sempre SOLVENTE e CUMPRIDORA DAS SUAS OBRIGAÇÕES ?
82_Será razoável hoje, em 2025, vir “EXIGIR” que naquela altura em que a Covid-19 nos deixou a todos, á sociedade em geral, em Pânico, sem saber – mos o dia de amanhã, mas tendo que CUMPPRIR com as regras impostas, nomeadamente a paragem de atividades, de vidas até, será razoável dizer, hoje e exigir, …, ESTES SÓCIOS –GERENTES TINHAM A OBRIGAÇÃO DE VIR PEDIR A INSOLVÊNCIA DA SUA EMPRESA, LOGO EM 2019 E SÓ O FIZERAM EM 2023….., quando, em 2019 , SALIENTA-SE, a insolvente até teve lucro…..
ENTENDE A RECORRENTE, MªS JUÍZES, QUE NÃO, TAL NÃO ERA EXIGÍVEL, PELO CONTRÁRIO,
83_Aliás, até os Tribunais tiveram um longo período de encerramento, de processos parados, de Srs. Funcionários, Srs,. Magistrados em casa.
83_E o Sócio - Gerente de facto da Insolvente, Senhor AA, teve a ESPERANÇA, como milhares de cidadãos tiveram que, passada a fase critica da Pandemia, tudo voltasse ao normal e a sua empresa se recompusesse e seguisse em frente..
84_A Sócia BB, nestes anos críticos passou-os nos Hospitais, nomeadamente no Hospital ... a cuidar dos cidadãos que tando dela necessitaram, enquanto enfermeira….
85_Será correto, normal, que agora em pleno 2025, se venha assacar á Sócia BB a responsabilidade de, naqueles fatídicos anos, não ter vindo requerer a Insolvência da Empresa? Claro que não….
86_Empresa que, agora insolvente, tem débitos para com entidades privadas e alguns trabalhadores, mas, a RETIDÃO e HONESTIDADE dos seus sócios não permitiu que, até á data em que foi requerida a insolvência __Agosto de 2023__ os mesmos ficassem PRIVADOS DOS SEUS SALÁRIOS.
87_” Os VENCIMENTOS DOS TRABALHADORES FORAM PAGOS ATÉ AO MÊS DE JULHO DE 2023.” _ V. ponto 33 , folhas 10 da sentença.
88_ A insolvência foi requerida em 4 de Agosto de 2023, …..mas, os VENCIMENTOS dos trabalhadores foram pagos.
89_Ao contrário do que é noticiado neste País, todos os dias e em situações semelhantes.
90_Por tudo o que se deixa explanado supra, a presente Insolvência não pode ser considerada CULPOSA .
91_Em primeiro lugar porque, por força do período de Pandemia a ANORMALIDADE apoderou-se da sociedade e as regras determinadas no artigo 186º do CIRE, que levam á qualificação nos termos do nº 1 do artigo 189º do mesmo diploma não se podem aplicar, subjetiva nem objetivamente, sob pena de se estarem a penalizar os Sócios , por atuações que não puderam ser NORMAIS, verificadas num quadro de grande anormalidade e instabilidade, não EXISTINDO O NECESSÀRIO NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE OS FACTOS, A FORMA, O MODO, O TEMPO DA SUA OCORRÊNCIA E A INSOLVÊNCIA QUE ENTRETANTO SOBREVEIO.
92_ Retoma-mos, agora, a matéria explanada no artigo 12 desta peça de recurso, remetendo para o mesmo e acrescentando:
93_ Em algum momento, os Sócios, terão “CRIADO, OU AGRAVADO, ARTIFICIALMENTE PASSIVOS OU PREJUIZOS OU REDUZIDO LUCROS, CAUSANDO, NOMEADAMENTE, A CELEBRAÇÃO PELO DEVEDOR DE NEGÓCIOS RUINOSOS EM SEU PROVEITO OU NO DE PESSOAS COM ELES ESPECIALMENTE RELACIONADOS?”
94_ A Mª Juiz do Tribunal “a quo”, entendeu que a atuação dos Sócios –Gerentes da insolvente se enquadra na matéria plasmada nas alíneas g) e h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE.
E, nas conclusões, os Apelantes motivam, assim, a sua discordância quanto à matéria de facto:
P_Os três trabalhadores que depuseram em Audiência, não falaram a verdade , quando disseram que a empresa não PAROU a sua atividade durante a Pandemia, ___” apenas uma pequena quebra no serviço” porque a atividade da empresa não implicava “um contacto direto com pessoas, o que possibilitou que continuassem a laborar.”
Q_Tal afirmação, repetida pelos três????___a mesma fórmula, as mesmas palavras, é falsa e tal é de conhecimento público e geral. Durante a Pandemia, nos anos mais críticos, 2020,2021 e parte de 2022, as atividades SUSPENDERAM, as Instituíçoes encerraram… e a ora Insolvente , nesse período, até passou por um processo de LAY – OFF__ os trabalhadores sabiam muito bem .
R_Tal como sabia o Sr Administrador da Insolvência, que não se coibiu de defender a CULPA da Insolvente e dos seus Administradores.
Decidindo.
A norma do art.º 640º do Código do Processo Civil – será o diploma a citar sem menção de origem - , exige que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, e que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos - os ónus enunciados nesta norma pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objecto do recurso e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido/ a apreciação da satisfação das exigências estabelecidas nesta norma deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco/por todos, o Acórdão do STJ de 20.6.2023. proc. 2644/16.0T8LSB.L1-A.S1, pesquisável em www.dgsi.pt., sendo que, se os depoimentos tiverem sido gravados, deve indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda.
Como é sabido, o nosso regime de sindicância da decisão de facto pela 2.ª instância tem em vista não um segundo julgamento latitudinário da causa, mas sim a reapreciação dos juízos de facto parcelares impugnados, na perspetiva de erros de julgamento específicos, o que requer, por banda do impugnante, uma argumentação probatória que, no limite, os configure – neste preciso sentido, o Acórdão do STJ de 7.9.2017, processo 959/09.2TVLSB.L1.S1, pesquisável em www.dgsi.pt.
Ora, devassando a alegação dos Apelantes, é manifesto que estes não cumpriram tal ónus, impedindo, por isso, que esta Relação possa verificar da bondade da matéria de facto fixada na 1.ª instância – que se estendeu por várias sessões – que a motivou assim.
“Antes do mais, cumpre esclarecer que a matéria de facto consignada supra resulta da conjugação daquilo que foi alegado pelo Sr.ª Administrador de Insolvência e Ministério Público nos seus pareceres, e bem assim da oposição apresentada pela insolvente, que foram objecto de prova por declarações e esclarecimentos ao Sr.ª A.I.( que esclareceu as razões pelas quais apresentou o seu parecer de qualificação da insolvência), declarações de parte do legal representante da insolvente, demais prova testemunhal produzida e prova documental junta aos autos, conjugados com a matéria apurada pelo Tribunal nos termos do art. 11º do CIRE, e resultante, designadamente, dos autos principais.
Assim, relativamente aos factos provados elencados sob os números 1 a 6 resultam da sentença proferida nos autos principiais, apenso de reclamação de créditos e certidão permanente de registo comercial.
O facto elencado sob o n.º 7, resulta assente por acordo.
Quanto aos factos elencados sob o n.º 8 a 32 a 34 e, resultam provados em face da documentação junta aos autos a fls.57 a 108v., em conjugação com as declarações da testemunha DD.
Assim, revelou-se essencial à decisão da causa o depoimento da testemunha DD, contabilista da Devedora, que de forma sincera, até em eventual prejuízo próprio, elucidou este Tribunal no que tange ao modo como era feita a contabilidade da Devedora. Assim, referiu que fora sempre o gerente AA quem tratara, directamente consigo ou com as suas funcionárias, da contabilidade da empresa, uma vez que a gerente BB é enfermeira. No entanto, quando confrontado com os factos descritos nos pontos 13 e seguintes, visivelmente embaraçado, não fora de explicar o seu modus operandi, designadamente, no que diz respeito às depreciações que não foram realizadas, chegando mesmo a referir que tais depreciações não foram realizadas “para a sociedade não ter mais prejuízo”, as contas que não se mostram conciliadas, as amortizações que apenas favoreceram os sócios gerentes em detrimentos dos credores da insolvente.
Assim, sem prejuízo de explicações que foram sendo avençadas para a falta de rigor na elaboração da contabilidade da Insolvente, como se verificou, por exemplo, no que diz respeito à conta gasóleo e, que fora corroborada pelas declarações do legal representante da Devedora, a verdade é que o depoimento da testemunha DD não deixou quaisquer dúvidas a este Tribunal ao referir expressamente que “o Sr.º AA lhe pediu para ver o que era possível fazer para não mostrar tanto prejuízo”, afirmando que “desde o ano de 2020 que o Sr.º AA se queixava da situação da empresa, sendo que em 2019 ainda teve lucro”. Importa salientar que esta última declaração fora confirmada pelo sócio gerente, nas suas declarações de parte.
Ouvido em declarações de parte o legal representante da Devedora, explanou as dificuldades por que passou para “tentar salvar a empresa”, referindo que nunca pediu ao contabilista para “alertar as contas”, pois tem o 6.º ano de escolaridade e não percebe de contabilidade. No entanto, quando confrontado com as transferências da conta de sócios e das amortizações antecipadas realizadas em Julho e Agosto de 2023 não soube explicar, limitando-se a afirmar que é a sociedade da Insolvente quem lhe deve dinheiro. Mais elucidou quanto à ausência de participação da esposa no dia a dia da sociedade insolvente, sendo esta enfermeira de profissão.
O facto elencado sob a alínea a) resultou não provado em face das declarações dos ex-trabalhadores da Devedora, EE, EE, FF e GG que, de forma unânime e credível referiram que durante a pandemia Covid-19, nunca deixaram de trabalhar, verificando-se apenas uma “pequena quebra no serviço”. Mais esclareceram que tal circunstância se deveu ao facto da actividade desenvolvida pela Devedora- transporte de mercadorias, não implicar um contacto directo com pessoas o que possibilitou que continuassem a laborar.
O Tribunal ficou efectivamente convicto de que, pelo menos desde o ano de 2021, que a empresa se encontrava em situação de insolvência.
No que tange ao facto n.º 33 o mesmo resultou provado em face das declarações de parte do legal representante da Devedora, sócio gerente AA, em conjugação com os depoimentos dos trabalhadores EE, EE, FF e GG”.
Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto.
Como é sabido, os incidentes de qualificação da insolvência destinam-se a apurar - sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil, conforme decorre do preceituado no artigo 185º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa -, em primeira linha, se a insolvência é fortuita ou culposa – este incidente de constitui uma fase do processo de insolvência, que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência e consequentemente se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor/ a verificação de alguma das situações previstas no n.º 2 do art.º 186.º do CIRE faz presumir, de forma inilidível a culpabilidade na insolvência.
A lei não define o que deve entender-se por insolvência fortuita consagrando apenas a definição do que deve entender-se por insolvência culposa, sendo que aquela se delimitará por exclusão de partes: a insolvência será fortuita se não se verificarem os pressupostos da insolvência culposa – sobre esta matéria, aconselhamos a leitura de Luís Carvalho Fernandes, revista THEMIS, edição especial 2005, pág. 95 -.
Diz-nos a norma do artigo 186º do CIRE:
“1- A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 – Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantendo uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º
3. Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.”
O Administrador alega, desde logo, o incumprimento generalizado de dívidas e a exploração deficitária pois que, à data da declaração de insolvência já a sociedade insolvente registava o incumprimento generalizado, há mais de 6 (seis) meses, de dívidas junto dos seus trabalhadores, tendo sido reconhecidos créditos a estes credores no valor global de 300.000,00€. Acresce ainda referir que, apesar da sociedade insolvente não ter qualquer viabilidade financeira, pelo menos desde o ano de 2021 – ano em que começou a apresentar capitais próprios negativos – apenas se apresentou à insolvência no ano de 2023.
No seguimento, o Tribunal da Guarda qualificou, desde logo, a insolvência como culposa por considerar verificada a circunstância previstas na al. a), do n.º 3, do artigo 186.ºdo CIRE, e demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta aí prevista e o agravamento da situação de insolvência - por força da nova redacção do corpo do n.º 3, do artigo 186.º, introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, que, numa clara interpretação autêntica deste preceito, passou a afirmar que se presume unicamente a existência de culpa grave, não prescindindo, portanto, da prova do nexo de causalidade exigido pelo n.º 1, do mesmo artigo.
Ora, nos termos desta norma legal, presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência. Esta presunção remete-nos para o disposto no artigo 18.º, de acordo com o qual o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la.
De acordo com o citado artigo 3.º, n.º 1, do CIRE é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas - esta definição legal de insolvência erige como critério aferidor dessa situação a impossibilidade financeira de cumprir as obrigações vencidas, não relevando outros critérios, inclusivamente a evolução dos capitais próprios. É pacificamente aceite pela doutrina e pela jurisprudência que esta impossibilidade de cumprir não pressupõe o incumprimento de todas as obrigações vencidas do devedor. Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda - Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. I, Lisboa 2005, págs. 70 e 71 -, [o] que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos. Assim mesmo, pode até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante.
Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º - Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos: i) Tributárias; ii) De contribuições e quotizações para a segurança social; iii) Dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato; iv) Rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência.
No caso em análise, e neste particular, mostra-se provado que:
4. No dia 03 de Agosto de 2023, através do processo especial de insolvência, a sociedade insolvente veio reconhecer a sua actual situação de insolvência e requerer a respetiva declaração.
(…)
26. O volume de negócios da insolvente tem vindo a decrescer em todos os períodos analisados, sendo que apresenta capitais próprios negativos, pelo menos, nos dois últimos períodos analisados, apresentando resultados negativos nos exercícios de 2021 e 2022.
27. A sociedade insolvente não ter qualquer viabilidade financeira, pelo menos desde o ano de 2021 – ano em que começou a apresentar capitais próprios negativos.
28. A sociedade insolvente encontra-se em mora perante os trabalhadores (credores privilegiados) desde aproximadamente o ano de 2019.
Perante esta factualidade, podemos assentar, desde logo, que o prazo de 30 dias previsto no artigo 18.º, n.º 1, do CIRE não começou a correr antes da declaração da Pandemia de Civid-19, ocorrida em Março de 2020 – os factos genéricos levados ao Ponto 28 dos factos provados, não o permitem, só por si, situar no ano de 2019 o começo do incumprimento generalizado de obrigações.
Mas, se assim é, impõe-se concluir também que esse prazo não começou a correr antes de 5 de Julho de 2023. Na verdade, o referido prazo foi suspenso a partir de 9 de Março de 2020, por força do disposto, sucessivamente:
- No artigo 7.º, n.º 6, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção introduzida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril;
- No artigo 6.º-A, n.º 6, al. a), da mesma Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção introduzida pela Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio;
- No artigo 6.º-B, n.º 6, alínea a), da mesma Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro;
- No artigo 6.º-E, n.º 7, alínea a), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril.
Esta suspensão apenas cessou em 5 de Julho de 2023, por força do artigo 3.º, al. a), da Lei n.º 31/2023, de 4 de Julho.
Assim, como se escreve no ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13.09.2024 (proc. n.º 1722/21.8 T8FNC-E.L1-1), acessível em www.dgsi.pt, os devedores obrigados à apresentação à insolvência, que tiveram conhecimento de tal situação no decurso da suspensão do prazo, deveriam dar cumprimento a tal dever até ao dia 5/8/2023.
É precisamente esta a situação em apreço nestes autos, já que, no dia 03 de Agosto de 2023, através do processo especial de insolvência, a sociedade insolvente veio reconhecer a sua actual situação de insolvência e requerer a respetiva declaração.
Não se verifica, pois, a situação prevista no artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE.
Este Tribunal - entre muitos, os Acórdãos desta Relação de Coimbra de 14.1.2014 e 21.1.2014, ambos colocados no site www.dgsi.pt - já decidiu que, “ Nas situações previstas no nº 2 do art. 186º do CIRE, considera-se sempre culposa a insolvência, sem admissão de prova em contrário e sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa do devedor e de que existiu um nexo causal entre a actuação (dolosa ou gravemente culposa) do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
E, é assim, porque o n.º 2 do art. 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas tem “um fim claramente preventivo, determinando a inadmissibilidade legal de ilisão da presunção nos casos ali referidos a fim de dissuadir a prática ou omissão de condutas que, segundo a experiência nos diz, são suscetíveis de ocasionar insolvências e estão habitualmente intimamente ligadas com tal desfecho da vida societária.
É isso mesmo que justifica, nestes identificados casos, e por razões diversas, a declaração da insolvência como culposa sem necessidade de mostrar a ligação entre a conduta legalmente censurada aos administradores e a concreta insolvência ocorrida, estando legalmente vedada a prova em contrário dos referidos factos, ou seja, sendo a insolvência culposa mesmo quando concomitantemente se verifique a concorrência ou superveniência de elementos fortuitos que concorreram juntamente com a actuação dolosa ou culposa para a insolvência”.
Neste mesmo sentido, pronunciou-se o Tribunal Constitucional por acórdão de 26.11.2008, publicado no Diário da República, 2ª Série, nº 9, de 14.1.2009, ao decidir que, “Provada qualquer uma das situações enunciadas nas alíneas do nº 2, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador/gerente, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento”, sendo que o gerente de direito não exercendo, de facto, tais funções, que eram desempenhadas por uma outra pessoa, não o isenta das suas obrigações legais, enquanto gerente de direito, de, designadamente, apresentar a sociedade à insolvência, de cumprir com o dever de colaboração, de elaborar as contas anuais ou de assegurar o cumprimento destes deveres - a equiparação dos administradores de direito aos administradores de facto nos n.º 2 e 3 do art.º 186.º do CIRE não visa isentar de responsabilidade os gerentes de direito que não exerçam as funções de facto, mas, ao invés, estender a responsabilidade legal aos actos praticados pelos administradores de facto.
Naturalmente que tal presunção não determina que o afectado fique impedido de alegar e provar que não se verificaram os factos que a lei, pela sua gravidade, ali associa à existência de uma insolvência culposa, estando dessa forma garantido o direito previsto constitucionalmente a um processo equitativo.
Mais, se a jurisprudência tem enquadrado a pandemia de Covid-19 no âmbito da alteração anormal das circunstâncias, a suspensão generalizada do desenvolvimento das actividades económicas, com fundamento na crise pandémica COVID-19 não desencadeia, por si só, a possibilidade de funcionamento do instituto da alteração anormal das circunstâncias, que não opera ipso iure. Nas palavras do Acórdão do STJ de 8.4.2025, pesquisável em www.dgsi.pt, vale, nesta sede, a regra do art.º 342.º, n.º 1, do CC. A invocabilidade do art. 437.º, n.º 1, do CC, exige a alegação e a prova dos elementos constitutivos da respetiva previsão ou facti-species.
Esmiuçando.
Determina a al. h) do n.º 2 do artigo 186.º, que se considera sempre culposa, a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantendo uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
A contabilidade organizada corresponde à escrituração legalmente obrigatória, que corresponde ao registo contabilístico e este à anotação dos movimentos económicos ou factos contabilisticamente relevantes em livro/conta própria de acordo com o Sistema de Normalização Contabilística (SNC). É o registo/lançamento desses factos que vai permitir o apuramento dos saldos de cada conta e de cada rubrica que, por sua vez, vai permitir obter um balancete actualizado em cada momento em que se pretenda obter um retrato actual da situação da empresa e, no termo de cada ano - ou outro período aplicável -, o fecho de contas ou encerramento de exercício através da elaboração do balanço que integra as demonstrações financeiras e demais documentos de prestação de contas devidos e a apresentar pela administração para apreciação anual da situação da sociedade pelos sócios - art.º 65º do CSC.
Acerca das irregularidades contabilísticas - evidencia-se com mediana clareza que a organização da contabilidade constitui instrumento privilegiado para obter a informação e prova da situação económica e financeira da devedora, constituindo aliás os elementos que se configuram como adequados par a abertura do incidente de qualificação -, pode ler-se, por ex., no Acórdão do STJ de 28.1.2025, acessível em www.dgsi.pt, que:
I. No contexto de um incidente de qualificação da insolvência como culposa
5. Apenas as irregularidades contabilísticas, quanto aos exercícios da sociedade devedora dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, se situam no período relevante fixado no n.º 1, do artigo 186º CIRE. Contudo, nada impede que se ponderem os factos desencadeantes ocorridos em período anterior, cujos efeitos se repercutam na contabilidade do assinalado período de três anos, em ordem a melhor compreensão da situação económica e financeira da sociedade.
6. Cumpre aos gerentes diligenciar para que sejam inscritos, inicialmente, como “provisão” os créditos reclamados pelos autores de ações intentadas contra a sociedade e, posteriormente, transitada em julgado a decisão de condenação, como “passivo” da sociedade devedora.
7. De igual sorte lhes compete fazer corresponder os registos contabilísticos à realidade da empresa, o que não acontece quando no balancete geral acumulado da sociedade devedora, respeitante ao exercício económico de determinado ano, tenha sido registado que aquela era detentora de um crédito no montante de € 137.586,10, quando afinal era devedora desse mesmo montante.
8. Na ausência de prova em contrário, é de concluir que essas irregularidades impedem a compreensão da verdadeira situação económica e financeira daquela sociedade em cada um desses exercícios e também do seu evoluir, encontrando-se, por isso, preenchidos os factos base da ficção legal de insolvência culposa da al. h), do n.º 2, do art. 186º do CIRE.
Nos Acórdãos desta Relação de Coimbra de 13.5.2025 (Relatora Maria João Areias) - II – As irregularidades contabilísticas só assumem relevância para a qualificação da insolvência como culposa por força da al. h), do nº 2 do art. 186º do CIRE, na medida em que dificulte a compreensão sobre a real situação patrimonial ou financeira da empresa -, e 14.3.2023 (Relatora Catarina Gonçalves) - Para os efeitos previstos na alínea h) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE, existe incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada quando os termos em que foi cumprida – ou incumprida – inviabilizam ou são susceptíveis de afectar e comprometer, de modo sério e relevante, a concretização do resultado que se pretende obter com essa obrigação, ou seja, quando a contabilidade – nos termos que foi organizada – não fornece uma imagem compreensível, completa, fiável e real da situação financeira da empresa, seja porque os termos em que foi organizada não permitem ou dificultam, de modo relevante, a exacta interpretação e compreensão da situação financeira que ali se pretendeu retratar, seja porque induz à percepção de uma situação financeira e patrimonial que não coincide com a real situação da empresa. II – A verificação, em termos objectivos, da situação descrita na citada alínea implica necessariamente a qualificação da insolvência como culposa, sem necessidade de demonstração de culpa ou da existência de nexo causal com a criação ou agravamento da situação de insolvência e independentemente das razões, motivações ou intenções que estiveram subjacentes ao comportamento que deu origem a essa situação – ambos pesquisáveis em www.dgsi.pt.
Ora, neste particular, não poderemos de deixar de concordar com a 1.ª instância, quando escreve:
“Por outro lado, a contabilidade da sociedade insolvente não traduz uma imagem verdadeira e apropriada da sua situação patrimonial e financeira atual, sendo prova disso as irregularidades acima apontadas, especialmente nas rubricas “Ativos Fixos Tangíveis”, “sócios”, “2784-Gasóleo”, “clientes conta-corrente”, conta “caixa” e “depósitos à ordem”.
Os elementos contabilísticos existentes não são suficientes para se concluir que a Insolvente cumpria com o dever de manter contabilidade organizada, pois não basta dizer-se que a sociedade tem uma contabilidade organizada, atribuindo tal tarefa a um terceiro, in casu, contabilista certificado, é pois necessário que a ánalise da referida contabilidade permita para além da determinação e controlo do lucro tributável das pessoas coletivas, traduza todos os movimentos e a real situação económico-financeira da insolvente para que disso possam ter conhecimento todos os interessados, designadamente, os respetivos parceiros comerciais e credores, refletindo todas as operações realizadas pelo sujeito passivo, assim proporcionando informação acerca da real posição financeira e dos resultados das operações da empresa, informações que são úteis não só aos investidores, mas também aos fornecedores e trabalhadores.
Ora, in casu em face das omissões e irregularidades supra descritas e que resultaram provadas, desde logo em face das declarações prestadas pelo contabilística da sociedade Insolvente, consubstanciam, sem qualquer dúvida, incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada”.
Nas palavras do Acórdão da Relação de Lisboa de 13.9.2024, acessível em www.dgis.pt, tendo ficado provado que na contabilidade da sociedade devedora relativa ao período de três anos não se encontravam reflectidos a integralidade dos montantes facturados e suportados pela mesma, não permitindo tal contabilidade saber o destino de quantias que deviam ter sido recebidas e suportadas pela sociedade, encontra-se verificada a presunção prevista na referida alínea h) do artigo 186º do CIRE.
Quanto à alínea g), que a 1.ª instância usou, também, para qualificar a insolvência, e na qual se estabelece que a insolvência é culposa no caso de o devedor ter prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência, mostram os autos que:
26. O volume de negócios da insolvente tem vindo a decrescer em todos os períodos analisados, sendo que apresenta capitais próprios negativos, pelo menos, nos dois últimos períodos analisados, apresentando resultados negativos nos exercícios de 2021 e 2022.
27. A sociedade insolvente não ter qualquer viabilidade financeira, pelo menos desde o ano de 2021 – ano em que começou a apresentar capitais próprios negativos.
28. A sociedade insolvente encontra-se em mora perante os trabalhadores (credores privilegiados) desde aproximadamente o ano de 2019.
29. Em Julho e Agosto do ano de 2023 a insolvente procedeu a amortizações antecipadas no valor de 20.000,00€ (em Julho de 2023) e 20.520,00€ (em Agosto de 2023) junto da Banco 1..., de empréstimos bancários nos quais os gerentes eram avalistas.
Ora, salvo o devido respeito, entendemos que estes factos melhor se enquadram na alínea d) - Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros - do artigo 186.º - quando se enquadra a factualidade tida em conta pela decisão da 1.ª instância em outra ou outras das alíneas de condutas presuntivas do art.º 186º, não estamos perantes questões novas, uma vez que a questão única ainda é nesta sede a qualificação ou não da insolvência como culposa. Como esclarece o Acórdão da Relação de Lisboa de 02.10.2023, proc. 1941/13.0TYLSB-A.L1-1, consultável in www.dgsi.pt/jtrl “[a]qui, em causa estão atos de disposição que se qualificam como prejudiciais do património da devedora e, por isso, dos respetivos credores, porque deles resulta diminuição do ativo da devedora, com consequente diminuição do valor da massa insolvente constituída com a sua declaração de insolvência, e consequente agravamento da possibilidade de satisfação do coletivo dos credores da insolvência…”
A norma abrange a transmissão de bens da esfera jurídica do insolvente para a esfera jurídica de administradores, de direito ou de facto ou de terceiros, que essa transmissão seja em proveito desses administradores, de direito ou de facto ou de terceiros, visando um benefício à custa e em prejuízo da insolvente e, por consequência, dos seus credores – o sentido e alcance dos elementos normativos disposto de bens e proveito pessoal ou de terceiros que integram o facto qualificador da insolvência previsto pela al. d) do nº 2 do art.º 186ºdevem ser determinados por referência aos princípios estruturantes do processo de insolvência da garantia patrimonial e do tratamento igualitário dos credores sociais.
O proveito obtido por via de actos de disposição de bens do devedor que releva para efeitos de qualificação da insolvência nos termos da alínea d) do mesmo nº 2 do art.º 186º, corresponde a um benefício que não seja devido ou a um benefício que, apesar de devido, não deveria ter sido atribuído e concedido nas concretas circunstâncias de tempo em que o foi - só na sentença de verificação e graduação de créditos o juiz irá concluir pela verificação dos créditos reconhecidos e não reconhecidos e proceder à respetiva graduação, por forma a definir a ordem do seu pagamento - cfr. art.º 140.º do CIRE.
Nas palavras do Acórdão da Relação de Lisboa de 02.10.2023 – pesquisável em www.dgsi.pt -, “(…) o processo de insolvência liquidatário traduz-se em processo de execução universal e concursal, que tem como finalidade primeira a satisfação dos interesses patrimoniais dos credores através da liquidação do património para afetação do respetivo produto na satisfação dos direitos dos credores. Execução universal porque, conforme definição de massa insolvente que consta do art.º 46º do CIRE, com exceção dos bens isentos de penhora, abrange todo o património do devedor à data da declaração da insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. Concursal porque, conforme arts. 90º, 128º e 146º do CIRE, visando a liquidação do passivo global do devedor, procede-se para o efeito à citação de todos os credores do devedor para concorrerem ao produto que resulte da liquidação dos bens que integram o património do devedor, na medida das forças deste e em função da hierarquia/graduação dos créditos de acordo com a respetiva natureza.
Para cumprimento daquele fim a declaração da insolvência do devedor determina a apreensão material de todos os bens que integram a massa insolvente, incluindo o produto da venda desses bens, ainda que arrestados, penhorados, apreendidos ou por qualquer outra forma detidos. A preocupação do legislador em salvaguardar a garantia patrimonial dos credores e o cumprimento da universalidade da insolvência liquidatária vai ao ponto de dotar o AI do poder-dever de proceder à resolução extrajudicial de negócios para recuperação das atribuições patrimoniais que, nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência foram concedidas com prejuízo para o património do devedor e, assim, com prejuízo das garantias patrimoniais dos respetivos credores (cfr. arts. 120º e ss. do CIRE).
Subjacente à tutela legal visada cumprir com os institutos da qualificação da insolvência e da resolução de atos de caráter patrimonial pelo AI (este com efeito directo sobre a massa insolvente) estão dois princípios estruturante do processo falimentar: a garantia patrimonial dos bens e direitos dos credores dada pelo património do devedor, e a satisfação igualitária dos direitos dos credores. É também em benefício da preservação desta garantia patrimonial e da melhor e mais rápida satisfação dos direitos dos credores que o legislador previu a obrigação específica de o devedor se apresentar à insolvência nos 30 dias seguintes à data do seu conhecimento, presumindo-o de forma inilidível decorridos três meses sobre o incumprimento generalizado de créditos fiscais, contribuições sociais, créditos laborais, ou rendas de qualquer tipo de locação (cfr. arts. 18º e 20º, al. g) do CIRE), impondo o cumprimento da liquidação/venda dos bens do insolvente no âmbito do processo de insolvência para controlo da legalidade do mesmo e da afetação legal devida do produto que dela resulte.
No contexto destes princípios e finalidade, a qualificativa prevista pela al. d), tal como as previstas pelas als. e), f) e g), assumem uma função de pré-proteção dos credores do devedor em situação de insolvência atual ou iminente, sancionando condutas suscetíveis de em abstrato lesar o património e prejudicar a solvabilidade do devedor, independentemente da verificação do perigo concreto de conduzirem a essa situação. Exige ‘apenas’ que de qualquer um dos atos ali previstos resulte benefício para o administrador que o praticou ou para terceiro especialmente relacionado com o devedor nos termos taxativamente previstos pelo art.º 49º, enquanto manifestação sintomática da violação do específico dever de fidelidade a que o administrador está vinculado na gestão do património que lhe está confiado e, assim, daquele perigo (abstrato) de lesão do património e da solvabilidade do respetivo titular. É por referência a estes princípios – da garantia patrimonial e de tratamento igualitário dos credores sociais - que se impõe entender o alcance dos elementos normativos ‘disposto de bens’ e ‘proveito pessoal ou de terceiros’ que integram o facto qualificador da insolvência previsto pela al. d).”
Ora, mostrando os autos, que os sócios gerentes, constituindo-se avalistas em empréstimos cedidos à sociedade, empréstimos esses, que em Julho e Agosto do ano de 2023 a insolvente procedeu a amortizações antecipadas no valor de 20.000,00€ (em Julho de 2023) e 20.520,00€ (em Agosto de 2023) junto da Banco 1..., estes beneficiaram-se, em prejuízo da insolvente e, por consequência, dos seus credores.
Improcede, também nesta parte, a Apelação.
As duas primeiras, asseguram finalidades essencialmente punitivas e representam afectações da capacidade de exercício de direitos - indiretamente asseguram finalidades securitárias ou de prevenção. A terceira das consequências da qualificação tem natureza mista, sancionatória - pela privação da vantagem que o afetado poderia invocar sobre a insolvência ou a massa ou obrigando-o a repor a que tivesse recebido em bens ou direitos - e reconstitutiva - pelo efeito reflexo do reforço da massa, com a qual se dará pagamento mais substancial aos créditos reconhecidos.
Já a quarta consequência é claramente ressarcitória, pois à massa insolvente - enquanto património autónomo afecto por natureza à satisfação dos créditos reconhecidos na insolvência - faz acrescer a expectativa de ressarcimento à custa dos patrimónios dos afetados, em moldes próximos aos da reversão fiscal.
No que toca aos critérios que o juiz se deve socorrer para fixar a medida da inibição, tem sido maioritariamente entendido que relevam, para esse efeito, o grau de culpa, a gravidade do comportamento do afectado, incluindo o número das circunstâncias qualificadoras preenchidas – neste sentido, por ex., o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.02.2023, disponível em www.dgsi.pt -, as consequências lesivas, o valor do passivo, a contribuição isolada ou não para a criação ou agravamento da insolvência, e todas as circunstâncias agravantes e atenuantes emergentes do caso concreto – entre outros, os Acórdãos do STJ de 06.09.2022, Tribunal da Relação de Guimarães de 31.01.2019 e 19.01.2023, todos acessíveis em www.dgsi.pt..
Mais, na sentença o juiz, além de inibir as pessoas afectadas pela qualificação da insolvência como culposa, condena-os a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados - cfr. art. 189.º, n.º 2, als. a) e e) do CIRE na redação que lhe foi conferida pela Lei nº 9/2022, de 11.11.
A alteração do artigo 189.º, n.º 2, al. e) do CIRE, com a introdução das palavras até e máximo-até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, teve como objectivo o esclarecimento da temática da quantificação da indemnização dos sujeitos afectados pela qualificação - Segundo Catarina Serra - in Julgar, n.º 48, O Incidente de Qualificação da insolvência depois da Lei n.º 9/2002-Algumas observações ao regime com ilustrações da jurisprudência, pág. 27 -, O montante dos créditos não satisfeitos deixa de poder ser utilizado como ponto de partida ou como padrão para o cálculo da indemnização e o (novo) critério, disponibilizado no artigo 189.º, n.º 4, passa a ser o montante dos prejuízos sofridos.” Acrescenta, com interesse, que “ao montante dos créditos não satisfeitos resta imputar uma única função: a de limitar o montante da indemnização, o que significa que em nenhum caso (seja qual for o montante dos danos) a indemnização poderá ser superior àquele montante.” Conclui que “com isto o regime da responsabilidade por insolvência culposa perde grande parte da sua dimensão punitiva ou sancionatória (…) e reaproxima-se do regime geral da responsabilidade civil, com um desvio, atendendo à fixação de um (do tal) máximo.”
A lei determina que o juiz fixe o valor das indemnizações devidas aos credores, ou, caso tal não seja possível em virtude de não dispor dos elementos necessários ao cálculo dos prejuízos sofridos, deverá estabelecer os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efectuar em liquidação de sentença - cfr. n.º 4.
Pronunciando-se sobre a questão, o Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 06.09.2022, pesquisável em www.dgsi.pt, concluiu que “Porém, seja como for (e como decorre das supra aludidas fundamentações), a indemnização devida deverá, em princípio e tendencialmente, corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o ativo que compõe a massa insolvente logrou cobrir, pois é essa diferença que representa o prejuízo dos credores. Só assim poderá não ser se acaso os factos provados revelarem que o comportamento culposo do afetado não foi causal de todo esse dano, antes se tendo limitado a ser apto a produzir um certo dano menor (dano inferior ao do passivo não coberto pelas forças da massa). Cremos que uma tal conclusão recebe algum respaldo na alínea a) do n.º 2 do art. 189.º do CIRE, que se reporta justamente à fixação do grau de culpa “sendo o caso”.”
Ou seja, a indemnização devida pela pessoa afetada pela qualificação como culposa deve, em princípio, corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o activo, que compõe a massa insolvente, logrou cobrir, possibilitando-se que esse valor possa ser fixado em montante inferior sempre que o comportamento da pessoa afetada pela qualificação justifique essa diferenciação.
Para o cálculo da indemnização há que atender à contribuição causal do sujeito afetado – ou, havendo vários, de cada um deles – para a ocorrência dos danos, sendo que a condenação das pessoas afetadas pela qualificação pode ser genérica, o que sucederá, designadamente, quando não for ainda possível liquidar o montante dos créditos não satisfeitos, por não estarem ainda concluídas as fases processuais da verificação de créditos, da apreensão de bens, das impugnações dos atos de resolução de negócios em benefício da massa insolvente e, em especial, da liquidação do ativo - em tal hipótese, impõe-se que o juiz fixe, de forma rigorosa, os critérios a observar na ulterior liquidação da indemnização.
Acompanhando o decidido na 1.ª instância:
No que diz respeito à actuação dos gerentes (casados entre si), não obstante ter resultado provado que a actuação do gerente AA assumia maior preponderância na gestão da sociedade, exercendo a gerente BB a profissão de enfermeira, não poderá esta última deixar de ser afetada pela qualificação da insolvência.
Assim, sendo casada com o sócio gerente AA, aceitou exercer o cargo de sócia gerente, beneficiando dos resultados positivos da sociedade insolvente, exercendo a gerência de facto, desde logo constituindo-se avalista em empréstimos cedidos à sociedade, empréstimos que em Julho e Agosto do ano de 2023 a insolvente procedeu a amortizações antecipadas no valor de 20.000,00€ (em Julho de 2023) e 20.520,00€ (em Agosto de 2023) junto da Banco 1..., de empréstimos bancários nos quais os gerentes eram avalistas, o que uma vez mais, beneficiou a sócia gerente.
Assim, admitimos que a mesma não estava presente no dia a dia de empresa, exercendo a profissão de enfermeira, mas tal, em nosso entender não significa que a aquela não representasse a sociedade quando era para tal solicitada, como no exemplo supra explanado, constituindo-se avalista da sociedade, responsabilizando-se por essa via, pelo pagamento em caso de incumprimento (empréstimo que viria a ser amortizado poucos meses antes da apresentação da sociedade à insolvente) ou seja, exerceu, ainda que de forma mínima a gestão da sociedade.
A verdade é que assunção de um cargo de sócio gerente têm consequências jurídicas pois, a não ser assim em casos como o dos presentes autos, em que os sócios gerentes são casados um com o outro, estar-se-ia a “deixara entrar pela janela o que não se deixa entrar pela porta”.
Nos termos do n.º 2 do art. 189º do CIRE e atento os factos provados sob os n.ºs 2 e seguintes, cumpre considerar afectado pela qualificação AA e BB, considerando o seu grau de culpa, mediano, desde logo em face do lapso temporal em que persistiram na actuação.
Teremos, ainda, em linha de conta o facto de ter sido a insolvente a apresentar-se à insolvência.
Em face do grau de culpa decide-se fixar, no que tange ao gerente AA, em três anos e seis meses e, em dois anos para a gerente BB, o período de inibição para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, bem como, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade Comercial ou Civil, associação ou Fundação Privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, nos termos do disposto no artigo 189º, n.º 2, al. c), do CIRE.
Determinar ao abrigo da alínea d), do n.º 2 do art. 189º do CIRE, a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelos supra referidos Administradores, bem como restituição de eventuais bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
Nos termos do disposto no art. 189º, n.º 2, al. e), do CIRE, cumpre ainda condenar AA e BB a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património.
Concordamos, reduzindo, apenas, o tempo da inibição fixado ao Apelante AA para 3 (três) anos, atenta a ausência da situação prevista no artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE.
E, quanto à fixação do valor das indemnizações a suportar pelos afetados, entendemos que, no caso em análise, a indemnização não pode corresponder ao valor dos créditos não satisfeitos - a qualificação assentou nas alíneas d) e h).
Em relação à alínea d) o que está em causa são os pagamentos antecipados que foram feitos nos valores de 20.000€ e 20.520€ e, portanto, a medida do agravamento da insolvência por força dessa conduta - e, consequentemente, o valor do prejuízo a indemnizar - não é superior a esses valores.
Em relação à alínea h), diremos, desde logo, que o valor da depreciação dos activos fixos tangíveis - que não foi tida em conta na contabilidade - não tem idoneidade para determinar agravamento da situação de insolvência e, portanto, não será tido em conta para o valor do prejuízo. Relevante nesta matéria, ou seja, a medida do agravamento da insolvência e a medida do prejuízo a indemnizar são os seguintes valores:
- O valor de 134.963,48€ que consta da conta clientes sem identificação dos devedores e tendo em conta que essa circunstância impede a cobrança dos créditos;
- O valor de 1.297,60€ correspondente ao saldo da conta caixa, uma vez que não foi apreendido (ou seja, não foi encontrado).
Também em relação ao valor de 78.148,98€ - correspondente à conta gasóleo que não está conciliada -, estarão em causa despesas de gasóleo não comprovadas que, aparentemente, não foram pagas e estão registadas na contabilidade como débito. Tendo em conta que a contabilidade revela um débito da sociedade sem comprovação, este também é relevante para agravamento da situação de insolvência e, consequentemente, para fixação da indemnização.
Como se decidiu nos Acórdãos da Relação do Porto de 15.01.2019 e de 29.06.2017, acessíveis em www.dgsi.pt ,“Visa a norma dissuadir o agente da prática de condutas dolosas ou gravemente culposas susceptíveis de criar ou agravar a situação de insolvência nas condições referidas no art.º 186º (…) Daqui resulta que a proporcionalidade para determinar o valor da indemnização não tem a ver com a concreta situação económica dos responsáveis, mas antes com a medida em que a actuação do gerente afectado tenha dado causa a uma concreta diminuição do valor dos bens da massa insolvente, por ser-lhe alheia a dissipação do remanescente do património da sociedade insolvente, justificando-se ver nessa medida limitada a sua responsabilidade. A indemnização a suportar deve aproximar-se do montante dos danos causados pelo comportamento do afectado que conduziu à qualificação da insolvência, correspondendo o prejuízo dos credores ao valor dos seus créditos contra a empresa insolvente; a responsabilização dos gerentes compreende-se, conforme sublinha Luís Menezes Leitão, (“Direito da Insolvência”, Junho de 2018, 8ª edição, página 292)“(...) devido à culpa do devedor, e dos seus administradores de direito e de facto, em relação à frustração dos créditos que a insolvência provoca nos credores, o que constitui fundamento de responsabilidade civil, nos termos gerais (artigo 483º do Código Civil)”. A obrigação de indemnização visa a remoção do dano imputado ao respectivo sujeito (artº 562 do Código Civil). E em matéria de cálculo da indemnização em dinheiro, rege o n.º2 do art. 566º do C. Civil, que consagra a teoria da diferença, segundo a qual, o montante da indemnização se deve medir pela "diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos".
Procede, assim, parcialmente a Apelação.
Resta concluir:
(…).
Assim, na procedência parcial da instância recursiva:
a) Reduzimos o tempo da inibição fixado ao apelante AA a 3 (três) anos;
b) Condenamos, solidariamente, AA e BB a indemnizarem os credores da insolvente no montante total de €254.930,06 (duzentos e cinquenta e quatro mil, novecentos e trinta euros e seis cêntimos) - correspondente aos valores de 134.963,48€ (que consta da conta clientes sem identificação dos devedores); de 1.297,60€ (saldo da conta caixa, uma vez que não foi apreendido); de 78.148,98€ ( conta gasóleo);
c) No mais, mantemos a decisão proferida pelo Juízo Local Cível da Guarda - Juiz 1.
Custas a cargo dos Apelantes.
Coimbra, 8 de Julho de 2025
(José Avelino Gonçalves - Relator)
(Catarina Gonçalves - 1.ª adjunta)
(Maria João Areias – 2.ª adjunta)