INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÃO INILIDÍVEL
GERENTE DE DIREITO
INCUMPRIMENTO DE DEVERES
Sumário

I – Por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação; em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.
II – Nas situações previstas no nº 2 do art. 186º do CIRE, considera-se sempre culposa a insolvência, sem admissão de prova em contrário e sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa do devedor e de que existiu um nexo causal entre a actuação (dolosa ou gravemente culposa) do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência; e, é assim, porque o n.º 2 do art. 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas tem “um fim claramente preventivo, determinando a inadmissibilidade legal de ilisão da presunção nos casos ali referidos a fim de dissuadir a prática ou omissão de condutas que, segundo a experiência nos diz, são suscetíveis de ocasionar insolvências e estão habitualmente intimamente ligadas com tal desfecho da vida societária; é isso mesmo que justifica, nestes identificados casos, e por razões diversas, a declaração da insolvência como culposa sem necessidade de mostrar a ligação entre a conduta legalmente censurada aos administradores e a concreta insolvência ocorrida, estando legalmente vedada a prova em contrário dos referidos factos, ou seja, sendo a insolvência culposa mesmo quando concomitantemente se verifique a concorrência ou superveniência de elementos fortuitos que concorreram juntamente com a actuação dolosa ou culposa para a insolvência”.
III – O gerente de direito não exercendo, de facto, tais funções, que eram desempenhadas por uma outra pessoa, não o isenta das suas obrigações legais, enquanto gerente de direito, de, designadamente, apresentar a sociedade à insolvência e de cumprir com os deveres de informação e colaboração, ou de assegurar o cumprimento destes deveres.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A. Relatório

1.A sociedade A..., SA foi declarada insolvente por sentença já transitada em julgado, tendo sido, por despacho de 25.6.2023, declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência.

2.O administrador da insolvência alegou, em síntese, que o administrador da insolvente, AA, violou o dever de colaboração e que ao doar um imóvel da insolvente favoreceu terceiros e praticou atos de administração ruinosa. Indicou este administrador como a pessoa que deve ser afetada e indicou como fundamento legal da qualificação como culposa o artigo 186.º, n.ºs 1, 2, alínea a), b), c) i), 3, alíneas a) e b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (diploma a que pertencem as demais normas sem indicação de origem).

3.O credor BB, para além da mencionada doação, pronunciou-se no sentido de ter sido ocultado e dissipado património da insolvente, incluindo veículos automóveis e, bem assim, pela violação do dever de colaboração. Indicou AA e CC como as pessoas que devem ser afetadas e indicou como fundamento legal da qualificação como culposa o artigo 186.º, n.º 2, alíneas a) e i).

4.O credor DD pronunciou-se em sentido idêntico, tendo indicado AA e CC como as pessoas que devem ser afetadas e indicou como fundamento legal da qualificação como culposa o artigo 186.º, n.ºs 2, alíneas a), b), d), g), i) e 3, alínea a).

5.Justifica – o, assim, o administrador de insolvência:

(…)

4. Notificou o Administrador da Insolvente, Sr. AA, para pres-tar colaboração e facultar informação sobre a sociedade e este não respondeu.

5. O que fez através de carta enviada para o Sr. Administrador da sociedade insolvente AA, NIF - ...52, Endereço: Rua ..., ..., ..., ... ... - foi recebida a 26/04/2023 – Doc. 1.

6. Uma segunda carta enviada para o Sr. Administrador da sociedade insolvente, Rua ..., ... - ... foi devolvida, com indicação de “objecto não reclamado”. Doc 2.

7. A carta enviada para a morada da sede da sociedade insolvente, A..., SA, NIPC

...88, sita na Zona Industrial ..., Edificio ..., ... ... – ..., foi recebida a 27/04/2023 – Doc. 3.

8. Não tendo o Administrador da sociedade facultado qualquer documento contabilís-tico ou de outra natureza da empresa.

9. A insolvente tem registado em seu nome 5 viaturas (a saber: ..-ZD-.., Fiat 250; ..-IU-.. – FORD FIESTA; ..-MI-.. – RENAULT HR 460;- ..-MI-.. - RENAULT HR 460 e ..-EN-.. – IVECO), que não foram aprendidas pois nunca foram encontradas.

10. Da única vez que conseguiu contactar o Administrador por telefone, após várias diligências nesse sentido, este foi confrontado sobre o paradeiro das mesmas e alertado para o dever de colaboração.

11. Tendo transmitido que as viaturas não existiam e que tinha sido pessoalmente de-clarado insolvente.

12. Mais adiantou que: “…não queria saber do processo para nada nem ia responder a nada…(…) e que não o chateassem mais com o assunto..”

Ademais,

13. Constata-se que em 29 de Dezembro de 2022 (4 meses antes de entrada do pedido de insolvência) , a sociedade insolvente A..., S.A. alienou por Doação à sociedade B..., LDA. NIPC - ...06, cuja gerente é CC, administradora presidente da insolvente até 22-02-2022, tendo o registo da cessação de funções feito em 23-01-2023, o imóvel descrito na conservatória do registo predial ..., com o número ...30 e inscrito na matriz predial com o artigo ...77 da união das freguesias ... e ..., Concelho ..., Distrito .... - ...: 10 - UNIÃO DAS FREGUESIAS que esteve em nome da sociedade insolvente, A..., S.A. onde alegadamente deveria existir um edifício, que seria entre outras coisas a sua sede – Doc 4 e Doc 5.

14. Mas que na prática é um descampado – Cfr. Fotografias que se juntam como Doc. 6.

15. Factos que agravaram a situação de insolvência da sociedade.

16. E que, em tudo, obstam que os credores sejam ressarcidos através da venda dos activos da sociedade no presente processo.

17. Concluí o administrador judicial pela existência de fortes indícios de insolvência cul-posa pois a par do dever de falta de colaboração, existiu a doação do seu único activo para outra sociedade, detida pela filha da gerente.

18. Actos praticados dentro dos três anos anteriores ao início do processo de insolvên-cia estando dentro do limite temporal previsto no art.º 186.º n.º 1 do CIRE.

19. Considera o signatário que o Sr. AA, Administrador de facto e de direito da insolvente com as vendas, favorecimentos a terceiros e actos de administração ruinosa que levaram a cabo e que se alegam no presente parecer, preenchem as diversas alíneas do n.º 2 do art. 186º a saber:

a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte conside-rável, o património do devedor;

b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzidos lucros, causando nomea-damente a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;

c) Disposto dos bens de devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.

Assim, nos termos do art.º 186.º do CIRE, o Administrador Judicial dá parecer no sentido da insolvência ser qualificada como culposa, com afectação do Sr. AA administardor de facto e de direito da insolvente pois considera que a sua actuação preenche as als. a, b, c) e i) do n.º 2 e e als. a) e b) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE.

Pois entende que a situação de insolvência foi agravada em consequência da actuação dolosa e com culpa grave do mesmo prejudicando a generalidade dos credores.

6. O M. º P. º emite o seguinte parecer:

(…)

Perante esta factualidade entendemos, na esteira do Sr. Administrador e sem necessidade de quaisquer outras considerações, que nos termos do art.º 186.º do CIRE, a insolvência ser qualificada como culposa, com afectação do Sr. AA administardor de facto e de direito da insolvente pois que a sua actuação preenche as als. a, b, c) e i) do n.º 2 e e als. a) e b) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE, já que levou ao agravamento da situação de insolvência em consequência da actuação dolosa e com culpa grave do mesmo prejudicando a generalidade dos credores.

7.Notificada a insolvente e citados os propostos afetados AA e de CC, estes apresentaram oposição, assim concluindo:

1. Não é verdade que “a insolvente” não tendo informado o Agente de execução em qualquer execução do paradeiro de viaturas penhoradas,

2. Acresce que o Requerente não identificou a execução ou execuções que refere nos Artºs 3 a 5 do seu requerimento.

3. Pelo que estão os oponentes impedidos de exercerem o contraditório relativamente à factualidade ali alegada.

4. O Requerente não concretiza que diligencias é que terão sido iludidas e por quem uma vez que a sociedade não pode iludir ninguém.

5. Não identificando o Requerente “quem” terá iludido tais diligencias e quando é que se terá verificado tal alegada ilusão.

6. Também não identificou o requerente em concreto os “diversos expedientes” que abstratamente refere no seu Artº 6.

7. Alegou o Requerente que a insolvente deduziu incidente à penhora como se tal oposição fosse legalmente inadmissível.

8. Parecendo querer confundir o Tribunal com factualidade processual legalmente inadmissível e efetivamente admitida noutros processos judiciais.

9. Conclui alegando que “esses expedientes eram meramente dilatórios” sendo certo que, contrariamente ao alegado, em nenhum processo instaurado contra a insolvente foi decidido que alguma peça processual apresentada pela sociedade tenha sido um qualquer “expediente dilatório”.

10. Aliás o requerente não identifica nenhum concreto processo judicial ou outro onde a insolvente tenha apresentado qualquer peça que tenha sido julgada como “expediente dilatório;

11. Não identificando qualquer concreta peça processual;

12. Concluindo alegando que foi devido a “atos de gestão deste “que a insolvente foi acumulando dividas atrás de dividas

13. Sem identificar nenhum “ato concreto de gestão” que padecesse de qualquer vício

14. Por outro lado as comunicações registadas identificadas em 9 não foram recebidas pelo Administrador da Sociedade

15. Que delas não tomaram conhecimento

16. Sendo certo que o Sr. Administrador tinha o contacto telefónico do Administrador AA tendo contactado com este sempre que teve necessidade de algum esclarecimento ou informação.

17. Contrariamente ao alegado no ponto 10 o Administrador da Sociedade prestou sempre ao Sr. Administrador todos os esclarecimentos e colaboração solicitados.

18. Por outro lado a factualidade identificada no ponto 11 apesar de formalmente ter sido celebrada uma doação tratou-se efetivamente de uma dação em cumprimento

19. Não tendo a mesma representado qualquer prejuízo para a insolvente ou para os seus credores;

20. Não tendo constituído tal alienação qualquer benefício para terceiros nomeadamente para o beneficiário da doação.

21. Contrariamente ao alegado a Insolvente não dissipou nem tentou dissipar os seus ativos

22. A insolvente e o seu Administrador não sabem que diligências o Requerente terá feito para localizar as viaturas automóveis identificadas no ponto 14 do seu requerimento;

23. Sendo que o Requerente também não identifica que diligencias é que efetuou

24. Contudo tendo sido ordenada a sua apreensão seria fácil proceder à sua localização e apreensão

25. Bastando para isso solicitar às entidades policiais a sua efetiva apreensão.

26. Podendo o Sr. Administrador de Insolvência requerer também o cancelamento das suas matrículas para evitar a sua circulação

27. Acontece que tais viaturas haviam sido entregues a um credor para regularização de um seu crédito sobre a sociedade;

28. Não se encontrando as mesmas na alteração ou disponibilidade da Sociedade nem na do seu Administrador

29. A Sociedade e a sua Administração não praticou qualquer ato de dissipação do património da sociedade

30. O Administrador da Sociedade AA não praticou qualquer ato lesivo dos credores da Sociedade,

31. E todos os atos da sua administração foram praticados no sentido de viabilizar a atividade da Sociedade

32. E de garantir os direitos dos seus credores

33. Contrariamente ao alegado o Art. 28º a eventual qualificação da insolvência não deverá afetar a Ex Administradora CC que renunciou ao exercício das suas funções em 22 de Fevereiro de 2022 e ainda porque o Requerente não alega qualquer ato por si praticado que pudesse ser lesivo da Sociedade e dos seus credores

34. Concluindo ate que foi o administrador AA quem terá incumprido os seus deveres de administração criteriosa da Sociedade

35. E de não apresentação da Sociedade à insolvência no prazo legalmente estabelecido para o efeito.

36. Nada dizendo relativamente à anterior Administradora CC

37. A culpa grave alegada pela Requerente no ponto 36 do seu Requerimento não se presume

38. Devendo assentar em qualquer concreta atuação da Administração da sociedade que agrave a situação da insolvência da Sociedade

39. Não tendo sido imputados quaisquer ações ou omissões à Administradora CC deverá o presente incidente improceder relativamente a si;

40. O mesmo devendo verificar-se relativamente ao Administrador AA.

TERMOS EM QUE

Deverá o incidente ser julgado improcedente por não provado não se declarando a insolvência como culposa e consequentemente não deverá ser o seu Administrador AA afetado por tal qualificação,

O mesmo se devendo verificar relativamente à Ex Administradora CC uma vez que relativamente à mesma não é alegada qualquer factualidade suscetível de culminar na sua afetação pela qualificação da Insolvência como culposa


*

No Juízo de Comércio de Viseu – Juiz 2 foi proferida, a final, a seguinte decisão:

“Nestes termos, qualifica-se como fortuita a insolvência da sociedade A..., SA.

*

Nos termos do disposto no artigo 303º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a atividade processual relativa ao incidente de qualificação da insolvência, quando as custas devam ficar a cargo da massa, não é objeto de tributação autónoma.

Assim, e porque no caso concreto as custas são a cargo da massa insolvente, não há lugar a tributação autónoma.

*

Notifique”.


*

 DD, melhor identificado nos autos, não se conformando tal decisão dela interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

(…).


*

2. Do objecto do recurso

Interessa saber e decidir o seguinte:

– A sentença proferida na 1.ª instância violou o disposto no artigo 615.º, n.º 1, c) do Código do Processo Civil?

- A 1.ª instância fixou correctamente a matéria de facto?

- Os factos permitem qualificar a insolvência da sociedade A..., S.A como culposa, e, em caso afirmativo, se os requeridos AA e CC devem ser afectados por essa qualificação e em que termos?


*

2.1- Da nulidade;

Vem o Apelante DD arguir, desde logo, a nulidade da sentença com fundamento no disposto no artigo 615.º, n.º 1, c) do Código do Processo Civil – será o diploma a citar sem menção de origem.

Para tanto, alega, em síntese, que existe oposição entre o facto não provado 1) com os factos dados como provados a 16) e 18); entre o facto não provado 2) e os factos de 11) a 17) dados como provados; entre o facto não provado 3) e os factos dados como provados de 6) a 10); e, por último, entre o facto não provado 4) e o facto provado no ponto 18).

Diz-se neste preceito, que é nula a sentença quando, os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, sendo que os vícios do artigo 615.º são vícios de actividade do juiz, também designados com a expressão latina error in procedendo –as nulidades previstas no art.º 615.º, n.º 1, são vícios formais e intrínsecos da sentença, procedimentais, distintos do erro de julgamento, seja de facto, de Direito ou de ambos.

Esta nulidade respeita à estrutura da sentença/acórdão – cfr. artigo 666.º - não podendo haver contradição lógica entre os fundamentos e a decisão, isto é, quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e, em vez de a tirar, o tribunal decidir noutro sentido, oposto ou divergente, ainda que juridicamente correcto – a nulidade da decisão ocorre, quando os fundamentos invocados pelo tribunal deveriam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que vier a ser expresso.

Por isso, o alegado erro de julgamento é sempre irrelevante para efeitos de aplicação do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) – por ex. no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Novembro de 2020, pesquisável em www.dgsi.pt: “quando, embora indevidamente, o julgador entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, está-se perante o erro de julgamento e não perante oposição entre os fundamentos e a decisão geradora de nulidade”.

Ora, nas palavras do Apelante, com a factualidade descrita a sentença recorrida, da clara oposição entre os factos provados e os factos não provados, e por consequência com a decisão, pelo que consequentemente deverá ser declarada nula de acordo com o disposto no art.º 615º, n.º 1, al. c).

Salvo o devido respeito, não tem razão. Lida a motivação do julgador do Juízo de Comércio de Viseu - Juiz 2, percebemos que dando, embora, como provados certos factos, entende  não foi produzida prova que permitisse emitir um juízo probatório positivo quanto à factualidade não provada, designadamente que os propostos afetados ocultaram ou fizeram desaparecer, no todo ou em parte, o património da devedora em proveito pessoal ou de terceiros; nem que a insolvente e os propostos afetados conheciam a situação de incapacidade da sociedade insolvente para cumprir com as suas obrigações vencidas e não ignoravam, sem culpa, a inexistência de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica; nem que os propostos afetados causaram a celebração pela devedora de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas e/ou a insolvente incumpriu em termos substanciais a obrigação de manter a contabilidade organizada e praticou irregularidades contabilísticas com prejuízo relevante para a compreensão da sua situação patrimonial e financeira, pelo que, não existe tal contradição.

Nas palavras do julgador da 1.ª instância, a sua alegação resulta, essencialmente, da interpretação que faz dos factos e, nesse seguimento, a concluir que, na sua perspetiva, os mesmos se encontram em contradição.

Pois bem, as partes podem, naturalmente, não concordar com a decisão (dispositivo e fundamentação) e até inclusivamente aduzir outro tipo de argumentação que, na sua perspetiva, poderia levar a outro tipo de decisão.

Todavia, tal situação não consubstancia fundamento de nulidade e, por conseguinte, nulidade da decisão, antes podendo, em tese, consubstanciar erro de julgamento, o que são coisas diferentes, tanto mais que o tribunal tomou posição relativamente a todos os factos, explicitando na respetiva motivação a fundamentação subjacente a cada um, isto é, explicando as concretas razões da resposta aos factos provados e da resposta aos factos não provados e cuja leitura permite, com o devido respeito, compreender que inexiste qualquer contradição.

De modo que, sem outros considerandos, entende-se que a decisão sub judice não padece da arguida nulidade.

Questão diferente é a de saber, se a 1.ª instância avaliou e fixou correctamente a matéria de facto que considerou como não provada – nas suas palavras, porque ainda que dúvidas não restem quanto à existência de diversas execuções pendentes contra a requerida e os valores entretanto reconhecidos aos credores, a realidade é que estes factos, por si só, são insuficientes para permitir ao Tribunal afirmar, sem mais, que os propostos afetados sabiam que a sociedade se encontrava insolvente, sendo que ainda que se provasse este facto impunha-se prova quanto à concreta data em que tiveram conhecimento dessa situação, facto esse que não resultou demonstrado (…) É certo que o Exmo. Sr. Administrador de Insolvência se referiu a alguns dos referenciados factos no seu parecer e na audiência de julgamento e que abstratamente poderiam servir para ancorar a qualificação da insolvência como culposa, contudo, entende-se que essa factualidade carecia de ser melhor concretizada e, mais que isso, provada em julgamento, até porque a falta de resposta a cartas onde se solicitavam informações não significa, sem mais, que os seus destinatários tivessem violado o dever de colaboração, bastando, para tanto, equacionar que, no assinalado período se encontravam, por exemplo, impedidos de responder ou esclarecer o solicitado por alguma razão de saúde e/ou outra que os impedisse de responder àquilo que lhes era pedido, até porque o proposto afetado AA em julgamento teve o cuidado de sublinhar que, apesar de ter sido contactado para prestar algumas informações, não respondeu porque ignorava se de facto quem lhe estava a ligar era ou não o Exmo. Sr. Administrador de Insolvência, convidando-o a que o fizesse por escrito, o que, segundo referiu, não chegou a suceder.

Isto é, enquanto a lei não presumir a falta de colaboração por ausência de resposta a uma ou mais cartas, entende-se que a prova de uma factualidade com esta natureza não pode ser alcançada mediante a simples ausência de resposta às cartas pois que, como se disse, podem ser diversas as razões pelas quais os requeridos não respondem e, esta ausência de resposta, apenas permite afirmar um único facto e que é justamente o das cartas não terem sido respondidas e não que tenha existido já algum propósito, consciente e deliberado de não colaborar com o Exmo. Sr. Administrador de Insolvência, sobretudo quando a informação que pretendia poderia ser facilmente obtida junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e das Conservatórias de Registo Predial e Automóvel.

Improcede, pois, a 1.ª conclusão.

2.2 – Da impugnação da matéria de facto;

A 1.ª instância fixou, assim, a sua matéria de facto:

FACTOS PROVADOS

Discutida a causa, julgam-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:

1) A sociedade A..., S.A., pessoa coletiva n.º ...88, com sede na Zona Industrial ..., Edifício ..., ..., Concelho ..., encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o mesmo número e a respetiva constituição foi registada pela AP. ...09 de 12-02-2018;

2) Foi declarada insolvente por sentença proferida no dia 13.04.2023.

3) A sociedade A..., S.A tem o seguinte objeto social: consultadoria para os negócios e gestão; indústria de transformação de madeiras e seus derivados; aluguer de veículos ligeiros e pesados de mercadorias sem condutor; comércio de máquinas e equipamentos; comércio por grosso e a retalho de peças e acessórios para veículos automóveis; transporte rodoviário de mercadorias; comércio, importação e exportação de veículos automóveis.

4) Tem o capital social de €819.500,00 (oitocentos e dezanove mil e quinhentos euros);

5) Para obrigar a sociedade era necessária a intervenção de qualquer um dos membros do conselho de administração e da sua matrícula comercial só consta como administrador AA;

6) Na matrícula comercial da insolvente mostra-se averbado o depósito das contas de 2018 a 2021.

7) Em 25 de fevereiro de 2023 e 12 de abril de 2023, a insolvente constava da lista de devedores à administração fiscal no escalão de €10.000,00 a €50.000,00.

8) A insolvente tinha quinze processos executivos instaurados contra a mesma em que é peticionado valor superior a €95.000,00.

9) À data em que foi declarada a insolvência era desconhecida qualquer atividade à insolvente.

10) O Exmo. Sr. Administrador de Insolvência relacionou créditos sobre a insolvente no valor de 506.984,92€.

11) O Sr. Administrador da Insolvente notificou o proposto afetado AA para prestar colaboração e facultar informação sobre a sociedade e este não respondeu.

12) O que fez através de carta enviada para o Sr. Administrador da sociedade insolvente AA, NIF - ...52, Endereço: Rua ..., ..., ..., ... ... - foi recebida a 26/04/2023.

13) Uma segunda carta enviada para o Sr. Administrador da sociedade insolvente, Rua ..., ... - ... foi devolvida, com indicação de “objecto não reclamado”.

14) A carta enviada para a morada da sede da sociedade insolvente, A..., SA, NIPC ...88, sita na Zona Industrial ..., Edificio ..., ... ... – ..., foi recebida a 27/04/2023.

15) O proposto afetado AA não facultou qualquer documento contabilístico ou de outra natureza da empresa.

16) A insolvente tem registado em seu nome cinco viaturas (a saber: ..-ZD-.., Fiat 250; ..-IU-.. – FORD FIESTA; ..-MI-.. – RENAULT HR 460;- ..-MI-.. - RENAULT HR 460 e ..-EN-.. – IVECO), que não foram aprendidas.

17) Da única vez que conseguiu contactar o Administrador por telefone, após várias diligências nesse sentido, este foi confrontado sobre o paradeiro das mesmas e alertado para o dever de colaboração.

18) Em 29 de Dezembro de 2022, a insolvente A..., S.A. alienou por doação à sociedade C..., LDA. NIPC - ...06, cuja gerente é CC, administradora presidente da insolvente até 22-02-2022, tendo o registo da cessação de funções sido feito em 23-01-2023, o imóvel descrito na conservatória do registo predial ..., com o número ...30 e inscrito na matriz predial com o artigo ...77 da união das freguesias ... e ..., Concelho ..., Distrito .... - ...: UNIÃO DAS FREGUESIAS que esteve em nome da sociedade insolvente, A..., S.A.

19) O imóvel atrás identificado é um descampado.

*

FACTOS NÃO PROVADOS

Com interesse para a boa decisão da causa, não se provou que:

1) Os propostos afetados ocultaram ou fizeram desaparecer, no todo ou em parte, o património da devedora em proveito pessoal ou de terceiros.

2) A insolvente e os propostos afetados violaram o seu dever de colaboração para com o Exmo. Sr. Administrador de Insolvência.

3) Os propostos afetados conheciam a situação de incapacidade da sociedade insolvente para cumprir com as suas obrigações vencidas.

4) Os propostos afetados causaram a celebração pela devedora de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas.

5) O proposto afetado AA tivesse dito ao Exmo. Sr. Administrador de Insolvência que as viaturas identificadas nos factos provados não existiam.

6) Os factos descritos nos factos provados obstaram a que os credores sejam ressarcidos através da venda dos ativos da sociedade no presente processo.


*

O Apelante motiva, assim, a sua discordância quanto à matéria de facto:

(…)

9. O recorrente entende que, atendendo à prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, bem como à prova documental, ocorreu erro notório na apreciação da prova quanto aos factos não provados 1- Os propostos afetados ocultaram ou fizeram desaparecer, no todo ou em parte, o património da devedora em proveito pessoal ou de terceiros; 2 - A insolvente e os propostos afetados violaram o seu dever de colaboração para com o Exmo. Sr. Administrador de Insolvência; 3 - Os propostos afetados conheciam a situação de incapacidade da sociedade insolvente para cumprir com as suas obrigações vencidas; 4 - Os propostos afetados causaram a celebração pela devedora de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas; e 6 - Os factos descritos nos factos provados obstaram a que os credores sejam ressarcidos através da venda dos ativos da sociedade no presente processo -, que devem ser considerados provados.

10. Quanto ao facto não provado 1), no seguimento e reiterando o supra referido, o tribunal a quo, deu como factos provados, nomeadamente 16) e 18), onde é assente, que “A insolvente tem registado em seu nome cinco viaturas … que não foram aprendidas.”, e “Em 29 de Dezembro de 2022, a insolvente A..., S.A. alienou por doação à sociedade C..., LDA. NIPC - ...06, cuja gerente é CC, administradora presidente da insolvente até 22-02-2022, tendo o registo da cessação de funções sido feito em 23-01-2023, o imóvel descrito na conservatória do registo predial ..., com o número ...30”;

11. Foi admitido pelo próprio requerido AA, apesar de tais declarações não merecerem qualquer reconhecimento de veracidade que quanto às referidas viaturas, primeiro disse que lhes perdeu o rasto por terem penhores a favor da Autoridade Tributária, depois alega que foram vandalizadas e por fim, que teriam ido para a sucata, por serem viaturas velhas, porém são viaturas dos anos de 2008 a 2019, pelo que tal história, não faz qualquer sentido.

12. Assim, encontrando-se provado quer pelas declarações prestadas pelo Exmo. Sr. Administrador de Insolvência, mas também pela prova documental junta aos autos, tais factos 16) e 18), é de concluir que o facto não provado 1), deverá se considerado como facto provado.

13. Quanto ao facto não provado 2), o Tribunal a quo, deu como provados os factos 11) a 17), sucede que, com todo o devido respeito pelo Tribunal a quo, não podes este vir arranjar desculpas para os requeridos, ao alegar “equacionar que, no assinalado período se encontravam, por exemplo, impedidos de responder ou esclarecer o solicitado por alguma razão de saúde e/ou outra que os impedisse de responder àquilo que lhes era pedido”, nenhuma defessa veio alegar qualquer impedimento, e não cabe ao tribunal apresentar a defesa dos requeridos.

14. O requerido AA, confrontado se tinha sido contactado pelo Sr. Administrador Judicial disse que o mesmo lhe ligou e disse: ““Quero saber onde é que está o património da empresa A...”, e eu perguntei-lhe quem é que falava, e ele disse “Eu sou um Administrador de Insolvência”. Todo bem, e eu respondi-lhe, olhe mande-me isso por escrito, por email, que eu respondo-lhe. O homem continuou a ser agressivo e eu desliguei-lhe, pura e simplesmente lhe disse que não queria saber disso para nada, que não sabia com quem estava a falar e desliguei-lhe o telefone.”

15. Sendo que por sua vez, o Sr. Administrador Judicial, disse que aquando da referida chamada, se apercebeu que o requerido AA, estava perfeitamente dentro do assunto, e que simplesmente disse directamente que não estava para colaborar.

16. Ora, quanto a uma eventual problemática de receção ou não de cartas, o que no nosso entendimento não se verifica pelo supra exposto, o Tribunal da Relação de Guimarães, no seu Ac. de 12.04.2011, do processo n.ᵒ 3489/08.6TBGMR-A.G1, decidiu que

“1º- A indisponibilidade do gerente da sociedade para prestar colaboração à Administradora da Insolvência, decorrente da impossibilidade de ser contactado por esta, não pode deixar de corresponder a um incumprimento reiterado do seu dever de colaboração. 2º- A violação reiterada do dever de colaboração previsto no artigo 83º, nº1, al. c) do CIRE determina a qualificação da insolvência como culposa nos termos do art. 186º, nº 2, alínea i) do mesmo diploma.”.

17. Pelo que, o facto não provado 2), deverá se considerado como facto provado.

18.No que concerne ao facto não provado 3), apreciou no nosso entendimento, erradamente o Tribunal a quo a prova produzida, pois dos factos dados como provados pelo tribunal a quo, nomeadamente 6) a 10), onde é dado como provado, que na “matrícula comercial da insolvente mostra-se averbado o depósito das contas de 2018 a 2021.”;

19.E que, “Em 25 de fevereiro de 2023 e 12 de abril de 2023, a insolvente constava da lista de devedores à administração fiscal no escalão de €10.000,00 a €50.000,00.”, que já tinha “quinze processos executivos instaurados contra a mesma em que é peticionado valor superior a €95.000,00.”, “À data em que foi declarada a insolvência era desconhecida qualquer atividade à insolvente.”, e por fim “O Exmo. Sr. Administrador de Insolvência relacionou créditos sobre a insolvente no valor de 506.984,92€.” – negrito nosso.

20. E das pesquisas realizadas numa plataforma informática de informação comercial, verifica-se a existência de 18 (quinze) processos judiciais contra a Insolvente, maioritariamente executivos, desde 2018. Bem como o facto de a mesma já constar da lista de devedores à administração fiscal, ter dividas no valor de 506.984,92€, e o mais evidente de todo, que era falta de qualquer atividade conhecida à insolvente;

21. Sendo também de destacar, que ambos os requeridos tinham uma vasta experiência profissional no sentido, de apurar o estado da insolvente, conforme melhor supra se expõem;

22. Pelo que, dúvidas não há que os propostos afetados conheciam a situação de incapacidade da sociedade insolvente para cumprir com as suas obrigações vencidas”, devendo concluir que o facto não provado 3), deverá se considerado como facto provado.

23. Quanto ao facto não provado 4), entendeu o Tribunal a quo, que os propostos afetados, não “causaram a celebração pela devedora de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas.”, porém dà como facto provado o ponto 18), que se reporta ao facto de em 29 de Dezembro de 2022, a insolvente A..., S.A. alienou por doação a outra sociedade com ligações aos requeridos.

24. Ora, a doação de um prédio urbano, correspondente a um lote de construção numa zona industrial, a uma sociedade, em que a gerente da referida sociedade, é a aqui requerida CC, administradora da insolvente alegadamente até 22.02.2022, tendo porém o registo da cessação de funções sido feito somente em 23.01.2023, e assinado a referida escritura de doação em 29.12.2022, data posterior à alegada cessação de funções, ou seja, um acto na qual a mesma assinou pela insolvente e pela adquirente, em representação das duas sociedades, terá sempre de ser considerado um negócio ruinoso, em proveito da requerida CC ou no de pessoa com ela especialmente relacionada.

25. Devendo assim, o facto não provado 4), ser considerado como facto provado.

26. Quanto ao facto não provado 6), não pode o ora recorrente, aceitar o entendimento do Tribunal a quo, pois, além de tal facto facto não provado, ser o culminar de toda a oposição existente entre factos provados e não provados, mencionados supra. A verdade é que o Tribunal recorrido, deu como facto provado que a insolvente tinha cinco viaturas e não as entregou ao Sr. Administrador Judicial, facto 16), bem como, que tinha um prédio urbano que doaram a uma sociedade que também é gerida pela antiga administradora presidente da insolvente, facto 18);

27. Assim, o facto não provado 6), deverá ser considerado como facto provado.


*

Ora, nos termos da norma do artigo 662.º, n.º 1, o Tribunal da Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, conjugado com a disciplina adjectiva dos artigos 410.º e segs. e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil , designadamente o artigo 396.º no que respeita à força probatória dos depoimentos das testemunhas.

É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes - Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 591-, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância.

Mas não podemos esquecer que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação. Por esta razão, Ana Luísa Geraldes (ob. cit. página 609) salienta que, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.

Acresce, no caso em análise, que por força da nova redacção do corpo do n.º 3, do artigo 186.º, do CIRE, introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, que, numa clara interpretação autêntica deste preceito, passou a afirmar que se presume unicamente a existência de culpa grave, não prescindindo, portanto, da prova do nexo de causalidade exigido pelo n.º 1, do mesmo artigo - ao contrário do n.º 2, que estabelece presunções inilidíveis de insolvência culposa (que alguma doutrina e jurisprudência prefere qualificar como “ficções legais”), o n.º 3 consagra meras presunções relativas de culpa grave, não dispensando a prova do nexo de causalidade entre a conduta do gerente/administrador e a situação de insolvência.

Para além do exposto, importa ainda realçar que, a insolvência culposa tem consequências gravosas, previstas nos n.2 e 3 do art.º 189.º do CIRE, traduzidas em inibições várias, às quais é conferida publicidade, por via da inscrição no registo civil e no registo comercial. Por isso, deve a matéria de facto provada fornecer uma inequívoca demonstração do preenchimento dos requisitos exigidos pelas diversas hipóteses do art.186º do CIRE – neste preciso sentido, o Acórdão do STJ, de 29.10.2019 (proc. n.º 434/14.3T8VFX-C.L1.S1), pesquisável em www.dgsi.pt.

Adiantamos, desde já, que no caso em análise e ao contrário do decidido na 1.ª instância, entendemos que os factos provados sob os Pontos 11) a 18) e na nossa avaliação, mostram-se suficientes para a procedência do recurso em matéria de direito.

Mais, os factos 1 - Os propostos afetados ocultaram ou fizeram desaparecer, no todo ou em parte, o património da devedora em proveito pessoal ou de terceiros -; 2 - A insolvente e os propostos afetados violaram o seu dever de colaboração para com o Exmo. Sr. Administrador de Insolvência; 4 - Os propostos afetados causaram a celebração pela devedora de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas -, e 6 - Os factos descritos nos factos provados obstaram a que os credores sejam ressarcidos através da venda dos ativos da sociedade no presente processo -, são claramente conclusivos - basta ver que aquilo que se diz para os julgar provados assenta e resulta de outros factos provados (sinal claro de que estão em causa meras conclusões a extrair desses factos já provados. Além de se conclusivos, são, inclusivamente conclusões de direito, pelo que, e por essa razão, são retirados da matéria de facto não provada.

De todo o modo, quanto ao Ponto 3 dos factos não provados - os propostos afetados conheciam a situação de incapacidade da sociedade insolvente para cumprir com as suas obrigações vencidas -, esmiuçados os documentos trazidos aos autos e escutada a restante prova, assiste razão ao Apelante na sua discordância quanto à matéria de facto fixada na 1.ª instância.

Quanto ao facto não provado 3) -

Entendeu a 1.ª instância dar o facto como não provado , “porque ainda que dúvidas não restem quanto à existência de diversas execuções pendentes contra a requerida e os valores entretanto reconhecidos aos credores, a realidade é que estes factos, por si só, são insuficientes para permitir ao Tribunal afirmar, sem mais, que os propostos afetados sabiam que a sociedade se encontrava insolvente, sendo que ainda que se provasse este facto impunha-se prova quanto à concreta data em que tiveram conhecimento dessa situação, facto esse que não resultou demonstrado.”;

Não podemos, com todo o respeito, seguir tal raciocínio, atenta a prova levada aos autos. Basta, desde logo, considerar os factos dados como provados pelo Juízo de Comércio de Viseu - Juiz 2, nomeadamente 6) a 10), onde é dado como provado, que na matrícula comercial da insolvente mostra-se averbado o depósito das contas de 2018 a 2021, resultando, assim, que desde 2022 que não apresentava contas, tendo sido declarada insolvente em 13.04.2023; e que Em 25 de fevereiro de 2023 e 12 de abril de 2023, a insolvente constava da lista de devedores à administração fiscal no escalão de €10.000,00 a €50.000,00, que já tinha quinze processos executivos instaurados contra a mesma em que é peticionado valor superior a €95.000,00; À data em que foi declarada a insolvência era desconhecida qualquer atividade à insolvente, e por fim “O Exmo. Sr. Administrador de Insolvência relacionou créditos sobre a insolvente no valor de 506.984,92€.

Como alega a Apelante:

Ora, das pesquisas realizadas numa plataforma informática de informação comercial, verifica-se a existência de 18 (quinze) processos judiciais contra a Insolvente, maioritariamente executivos, desde 2018 - conforme consta do Doc. n.º 4 do Requerimento inicial do incidente do ora recorrente, datado de 13/06/2023 - relembrando todavia, que a mesma somente havia sido constituída em 2018.

Destacando-se que os primeiros processos executivos, reportam-se logo a 2018, seguindo-se de processos em 2019, 2020, 2021 e por aí adiante, o que é por si demonstrativo do “objecto” da sociedade insolvente.

E anda, o facto de a mesma já constar da lista de devedores à administração fiscal, ter dividas no valor de 506.984,92€, e o mais evidente de todo, que era falta de qualquer atividade conhecida à insolvente;

Sendo também de destacar, que ambos os requeridos tinham uma vasta experiência profissional no sentido, de apurar o estado da insolvente, uma vez que o requerido AA, foi Administrador entre 10.09.2020 e 04.11.2022 da sociedade D... S.a., pessoa colectiva n.º ...67, com sede na Rua ..., ... ... e foi Gerente entre 15.03.2021 e 26.10.2022 da sociedade E..., Unipessoal Lda., pessoa colectiva n.º ...38, com sede na Rua ..., ... ...; E a requerida CC, era sócia e gerente da C..., Lda., pessoa colectiva n.º ...06, com sede na Rua ..., ... ..., ..., administradora da F..., Sgps, S.a., pessoa colectiva n.º ...37, com sede na Rua ..., ... ..., sócia e gerente da G..., Unipessoal Lda., pessoa colectiva n.º ...59, com sede na Rua ..., ... ... e administradora da H..., S.A., pessoa colectiva n.º ...16, com sede na Rua ..., ... ...; Sendo de notar que após o período de gestão do mesmo, ambas as sociedades são inundadas de processos judiciais, muitos eles executivos, o que demonstra claramente o teor da sua gerência - conforme consta dos Docs. n.º 5 a 19 do Requerimento inicial do incidente do ora recorrente, datado de 13/06/2023.

Pelo que, dúvidas não temos de que os ora requeridos - propostos afectados - conheciam a situação de incapacidade da sociedade insolvente para cumprir com as suas obrigações vencidas, provando-se, em consequência, os factos levados pela 1.ª instância ao ponto 3) dos não provados.

Procede, pois, a impugnação da matéria de facto.


*

2.3- Estes factos permitem qualificar a insolvência da sociedade A..., SA como culposa e, em caso afirmativo, os requeridos AA e CC devem ser afectados por essa qualificação?

Como é sabido, os incidentes de qualificação da insolvência destinam-se a apurar - sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil, conforme decorre do preceituado no artigo 185º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa -, em primeira linha, se a insolvência é fortuita ou culposa – este incidente de constitui uma fase do processo de insolvência, que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência e consequentemente se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor/ a verificação de alguma das situações previstas no n.º 2 do art.º 186.º do CIRE faz presumir, de forma inilidível a culpabilidade na insolvência.

A lei não define o que deve entender-se por insolvência fortuita consagrando apenas a definição do que deve entender-se por insolvência culposa, sendo que aquela se delimitará por exclusão de partes: a insolvência será fortuita se não se verificarem os pressupostos da insolvência culposa – sobre esta matéria, aconselhamos a leitura de Luís Carvalho Fernandes, revista THEMIS, edição especial 2005, pág. 95 -.

Diz-nos a norma do artigo 186º do CIRE:

“1- A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

2 – Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;

c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;

d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;

f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;

g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantendo uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º

3. Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;

b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.”

Este Tribunal - entre muitos, os Acórdãos desta Relação de Coimbra de 14.1.2014 e 21.1.2014, ambos colocados no site www.dgsi.pt - já decidiu que, “ Nas situações previstas no nº 2 do art. 186º do CIRE, considera-se sempre culposa a insolvência, sem admissão de prova em contrário e sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa do devedor e de que existiu um nexo causal entre a actuação (dolosa ou gravemente culposa) do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

E, é assim, porque o n.º 2 do art. 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas tem “um fim claramente preventivo, determinando a inadmissibilidade legal de ilisão da presunção nos casos ali referidos a fim de dissuadir a prática ou omissão de condutas que, segundo a experiência nos diz, são suscetíveis de ocasionar insolvências e estão habitualmente intimamente ligadas com tal desfecho da vida societária.

É isso mesmo que justifica, nestes identificados casos, e por razões diversas, a declaração da insolvência como culposa sem necessidade de mostrar a ligação entre a conduta legalmente censurada aos administradores e a concreta insolvência ocorrida, estando legalmente vedada a prova em contrário dos referidos factos, ou seja, sendo a insolvência culposa mesmo quando concomitantemente se verifique a concorrência ou superveniência de elementos fortuitos que concorreram juntamente com a actuação dolosa ou culposa para a insolvência”.

Neste mesmo sentido, pronunciou-se o Tribunal Constitucional por acórdão de 26.11.2008, publicado no Diário da República, 2ª Série, nº 9, de 14.1.2009, ao decidir que, “Provada qualquer uma das situações enunciadas nas alíneas do nº 2, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador/gerente, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento”, sendo que o gerente de direito não exercendo, de facto, tais funções, que eram desempenhadas por uma outra pessoa, não o isenta das suas obrigações legais, enquanto gerente de direito, de, designadamente, apresentar a sociedade à insolvência, de cumprir com o dever de colaboração, de elaborar as contas anuais ou de assegurar o cumprimento destes deveres - a equiparação dos administradores de direito aos administradores de facto nos n.º 2 e 3 do art.º 186.º do CIRE não visa isentar de responsabilidade os gerentes de direito que não exerçam as funções de facto, mas, ao invés, estender a responsabilidade legal aos actos praticados pelos administradores de facto.

Nos presentes autos, o incidente da qualificação foi requerido, desde logo, pelo Administrador Judicial, com afectação de AA, por considerar que a sua actuação preencheu as alíneas a), b), c) e i) do n.º 2 e as alíneas a) e b) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE. Também o credor BB, requereu a afectação de AA e de CC, com fundamento nas alíneas a) e i) do n.º 2 e a alínea a) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE;

O Apelante também requereu a afectação de AA e de  CC, nos termos do disposto nas alíneas a), b), d), g) e i) do n.º 2 e a alínea a) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE, sendo que por sua vez, a promoção do Ministério Público, pugnou também que a insolvência fosse qualificada como culposa, com afectação de AA, pois a sua actuação preencheu as alíneas a), b), c) e i) do n.º 2 e as alíneas a) e b) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE.

Ora, o que transpiram os autos:

Os factos dados como provados 16) e 18) - nomeadamente que a insolvente tinha cinco viaturas e que o requerido AA, nunca as entregou ao  Administrador Judicial, bem como a alienação, meses antes da insolvente, por doação à sociedade C..., LDA. NIPC - ...06, do prédio urbano descrito na conservatória do registo predial ..., com o número ...30 e inscrito na matriz predial com o artigo ...77 da união das freguesias ... e ... cuja gerente é a requerida CC, administradora presidente da insolvente até 22-02-2022, tendo porém o registo da cessação de funções sido feito somente em 23-01-2023, data posterior à escritura de doação, escritura esta, diga-se assinada pela mesma, em representação das duas sociedades -, permitem concluir que se verifica o estipulado nas alíneas a) e b), sendo afectos pela mesma ambos os requeridos AA e CC.

Mais, uma vez que a doação do mencionado prédio se reporta num negócio ruinoso em proveito exclusivo de uma sociedade também controlada e detida pela requerida CC, sendo que ambos os requeridos, tinham plena consciência de tal negócio, uma vez que conforme consta da referida escritura da doação, ambos assinaram a mesma, terá de se concluir pela verificação do estipulado na alínea b) e d), sendo afectos pela mesma ambos os requeridos AA e CC.

Mas mais, tendo a 1.ª instância provado os factos 11) a 17) - onde são factos assentes, que “O Sr. Administrador da Insolvente notificou o proposto afetado AA para prestar colaboração e facultar informação sobre a sociedade e este não respondeu.”, que tal foi realizado “através de carta enviada para o Sr. Administrador da sociedade insolvente AA, NIF - ...52, Endereço: Rua ..., ..., ..., ... ... - foi recebida a 26/04/2023.”, seguida de uma segunda carta “enviada para o Sr. Administrador da sociedade insolvente, Rua ..., ... - ... foi devolvida, com indicação de “objecto não reclamado””, sendo que a “carta enviada para a morada da sede da sociedade insolvente, … , foi recebida a 27/04/2023”; Sendo que, “O proposto afetado AA não facultou qualquer documento contabilístico ou de outra natureza da empresa.”, e a “insolvente tem registado em seu nome cinco viaturas … que não foram aprendidas.” -  de concluir, pela verificação do estipulado na alínea i), sendo afecto pela mesma o requerido AA.

Nas palavras do Apelante:

“I – Todas as situações elencadas no art. 186.º, n.º 2, do CIRE configuram presunções absolutas de insolvência culposa, pelo que, tendo-se demonstrado qualquer um desses comportamentos, a insolvência presume-se iuris et de iure como culposa, sem necessidade de demonstrar que a atuação do devedor foi causa da situação de insolvência ou do seu agravamento (nexo de causalidade).” - Tribunal da Relação de Coimbra, no seu Ac. de 14.06.2022, do processo n.ᵒ 4114/19.5T8LRA-C.C1.

Por sua vez, o n.º 3 do art.º 186.º do CIRE, refere que “Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido: a) O dever de requerer a declaração de insolvência; b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.”

Em face da presunção legal existente, caberiam aos requeridos na afectação da qualificação ilidir tal presunção, o que não se verificou, pois nenhuma justificação foi apresentada ou prova apresentada quer para o facto de não terem pedido a insolvência da sociedade, quer para a falta da prestação de contas.

Pelo que, não tendo os mesmos afastado tais presunções, terá de se concluir que se verifica o estipulado nas alíneas a) e b) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE”.

(..)

Face ao exposto e nos termos do artigo 186.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas é evidente que estamos perante uma insolvência que deve ser considerada dolosa, consequentemente,

28.

A qualificação desta insolvência como culposa deve afectar o seu administrador, AA, que era o administrador de direito e de facto da sociedade insolvente, bem como CC, que também foi administradora da insolvente, flagrantemente conivente e co-autora dos actos de dissipação e ocultação de património, aliás convivente com o administrador de direito e, presumivelmente, vivendo com ele em união de facto.

(…)

e, em consequência,

- Devem ser afectados por essa qualificação os seus administradores AA e CC.

- Tudo com as legais consequências”.

Procede, pois, também neste particular, a Apelação.


*

Como é sabido, os administradores/gerentes, de direito ou de facto, afectados pela qualificação da insolvência como culposa, devem ser identificados na sentença, que fixará o respectivo grau de culpa, e, além do mais, inibe-os para administrarem patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio bem como a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa por um período de 2 a 10 anos -art. 189.º, n.º 2, als. a) a c)/ Estamos perante uma restrição legal nos casos em que o âmbito de proteção de um direito fundado numa norma constitucional é direta ou indiretamente limitado através da lei. De um modo geral, as leis restritivas de direitos diminuem » ou limitam as possibilidades de ação garantidas pelo âmbito de proteção da norma consagradora desses direitos e a eficácia de proteção de um bem jurídico inerente a um direito fundamental - J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2.ª Ed., Almedina, p. 1276; sobre o conceito, em sentido mais amplo, v., também, JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, 2003, pp. 157”.

A natureza da inibição é discutida na doutrina, sendo considerada por Coutinho de Abreu - Direito Comercial, vol. I, 9.ª edição, Almedina, 2013, págs 141 e segs. -, uma situação de incompatibilidade absoluta, uma vez que está mais em causa a tutela do mercado comercial em geral perante o insolvente e afectados. Nas palavras de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda - Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, pág. 695, nota 9.  - a sanção de inibição é fundamentada por uma atitude de desconfiança quanto à actuação, na área económica, em relação a quem, pelo seu comportamento, como dolo ou culpa grave, de algum modo contribuiu para a insolvência. Estas inibições a que fica sujeito o afectado, têm, em certa medida, natureza sancionatória, alicerçada, como esclareceu o Tribunal Constitucional, em razões de prevenção de condutas culposamente atentatórias da segurança do comércio jurídico em geral - Ac.TC de 173/2009 de 04.05 que decretou inconstitucional, com força obrigatória geral, a inabilitação civil do afectado pela qualificação da insolvência.

Tânia Cunha e Maria João Machado - A Responsabilidade pela Insolvência Culposa, Revista Julgar on line, Abril de 2013 – escrevem:

“O efeito previsto na al. b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE resulta de uma inovação legislativa, sem correspondência na legislação anterior, e a sua atual formulação foi enunciada numa das mais importantes reformas do CIRE, levada a cabo pela Lei n.º 16/2012, de 20/04. Antes dessa alteração, e adotando a expressão “inhabilitación” do regime da Ley Concursal espanhola, o legislador decretava a inabilitação das pessoas afetadas, o que implicava que ficassem impedidas de praticar atos de disposição e de administração dos seus bens, salvo se agissem mediante autorização de curador. Dada a falta de regulação específica, a doutrina sustentava a aplicação do regime civil da inabilitação (regulado nos artigos 152.º e 157.º do Código Civil (CC), na redação anterior à Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto), porém, não é possível aplicar na lei insolvencial um regime civil que “implica restrições ao direito fundamental à capacidade civil. (…) Quanto à inibição para o exercício do comércio, o legislador pretendeu demonstrar a preocupação com a segurança do comércio e do tráfico jurídico em geral, impedindo que quem contribuiu para a situação de insolvência ou seu agravamento pratique atos de comércio, direta ou indiretamente, realizados em nome próprio ou em nome alheio, ou atos praticados enquanto comércio profissional. No que respeita à sua natureza, a inibição da prática de atos de comércio não constitui uma incapacidade para o exercício do comércio, mas uma incompatibilidade absoluta, fruto da qualificação da insolvência como culposa. (…)”.

No que toca aos critérios que o juiz se deve socorrer para fixar a medida da inibição, tem sido maioritariamente entendido que relevam, para esse efeito, o grau de culpa, a gravidade do comportamento do afectado, incluindo o número das circunstâncias qualificadoras preenchidas – neste sentido, por ex., o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.02.2023, disponível em www.dgsi.pt -, as consequências lesivas, o valor do passivo, a contribuição isolada ou não para a criação ou agravamento da insolvência, e todas as circunstâncias agravantes e atenuantes emergentes do caso concreto – entre outros, os Acórdãos do STJ de 06.09.2022, Tribunal da Relação de Guimarães de 31.01.2019 e 19.01.2023, todos acessíveis em www.dgsi.pt..

Mais, na sentença o juiz, além de inibir as pessoas afectadas pela qualificação da insolvência como culposa, condena-os a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados  - cfr. art. 189.º, n.º 2, als. a) e e) do CIRE na redação que lhe foi conferida pela Lei nº 9/2022, de 11.11.

A alteração do artigo 189.º, n.º 2, al. e) do CIRE, com a introdução das palavras até e máximo-até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, teve como objectivo o esclarecimento a temática da quantificação da indemnização dos sujeitos afectados pela qualificação - Segundo Catarina Serra - in Julgar, n.º 48, O Incidente de Qualificação da insolvência depois da Lei n.º 9/2002-Algumas observações ao regime com ilustrações da jurisprudência, pág. 27 -,  O montante dos créditos não satisfeitos deixa de poder ser utilizado como ponto de partida ou como padrão para o cálculo da indemnização e o (novo) critério, disponibilizado no artigo 189.º, n.º 4, passa a ser o montante dos prejuízos sofridos.” Acrescenta, com interesse, que “ao montante dos créditos não satisfeitos resta imputar uma única função: a de limitar o montante da indemnização, o que significa que em nenhum caso (seja qual for o montante dos danos) a indemnização poderá ser superior àquele montante.” Conclui que “com isto o regime da responsabilidade por insolvência culposa perde grande parte da sua dimensão punitiva ou sancionatória (…) e reaproxima-se do regime geral da responsabilidade civil, com um desvio, atendendo à fixação de um (do tal) máximo.”

A lei determina que o juiz fixe o valor das indemnizações devidas aos credores, ou, caso tal não seja possível em virtude de não dispor dos elementos necessários ao cálculo dos prejuízos sofridos, deverá estabelecer os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efectuar em liquidação de sentença - cfr. n.º 4.

Pronunciando-se sobre a questão, o Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 06.09.2022, pesquisável em www.dgsi.pt, concluiu que “Porém, seja como for (e como decorre das supra aludidas fundamentações), a indemnização devida deverá, em princípio e tendencialmente, corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o ativo que compõe a massa insolvente logrou cobrir, pois é essa diferença que representa o prejuízo dos credores. Só assim poderá não ser se acaso os factos provados revelarem que o comportamento culposo do afetado não foi causal de todo esse dano, antes se tendo limitado a ser apto a produzir um certo dano menor (dano inferior ao do passivo não coberto pelas forças da massa). Cremos que uma tal conclusão recebe algum respaldo na alínea a) do n.º 2 do art. 189.º do CIRE, que se reporta justamente à fixação do grau de culpa “sendo o caso”.”

Assim, considerando que a sociedade insolvente, constituída a 12-02-2018 e declarada insolvente por sentença proferida no dia 13.04.2023, apenas apresentou as contas de 2018 a 2021; que para obrigar a sociedade era necessária a intervenção de qualquer um dos membros do conselho de administração e da sua matrícula comercial só consta como administrador AA; que à data em que foi declarada a insolvência era desconhecida qualquer actividade à insolvente; que o Administrador de Insolvência relacionou créditos sobre a insolvente no valor de 506.984,92€.

Considerando, ainda, os factos levados aos Pontos 11) a 18), que nos mostram uma maior culpa do afetado AA, em relação à afetada CC, fixamos a sua inibição para administrarem patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio bem como a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa por um período de três (3) anos (a afetada CC) e em quatro (4) anos (o afetado AA).

Quanto à fixação do valor das indemnizações a suportar pelos afetados, considerando a avareza dos factos trazidos aos presentes autos, teremos de os condenar a indemnizarem os credores da devedora declarada insolvente, em montante correspondente à diferença entre o valor global do passivo - não resultando da factualidade provada que parte dos prejuízos suportados pelos credores sempre se verificariam, independentemente da actuação dos recorrentes, não faz sentido limitá-los aquém do montante dos créditos não satisfeitos - e o que o activo que compõe a massa insolvente logrou cobrir - pois é essa diferença que representa o prejuízo dos credores no montante dos créditos não satisfeitos -, cuja quantificação se remete para liquidação de sentença, com esta particularidade:

Tendo em conta que não sabemos o valor dos bens em causa, tendo em conta que a qualificação, quanto ao afetado AA, assentou  também na violação do dever de informação e colaboração, entendemos que a indemnização, quanto a este deverá corresponder à totalidade dos créditos não satisfeitos  - que, no caso, é a totalidade do passivo porque nenhum bem foi apreendido, sendo que não sabemos que outros bens ele poderá ter desencaminhado, vendido ou ocultado por qualquer forma – sendo que, quanto à afetada CC, será solidariamente responsável pela diminuição do activo correspondente ao valor do imóvel doado, com o limite máximo do valor dos créditos insatisfeitos.

Como se decidiu nos Acórdãos da Relação do Porto de 15.01.2019 e de 29.06.2017, acessíveis em www.dgsi.pt ,“Visa a norma dissuadir o agente da prática de condutas dolosas ou gravemente culposas susceptíveis de criar ou agravar a situação de insolvência nas condições referidas no art.º 186º (…) Daqui resulta que a proporcionalidade para determinar o valor da indemnização não tem a ver com a concreta situação económica dos responsáveis, mas antes com a medida em que a actuação do gerente afectado tenha dado causa a uma concreta diminuição do valor dos bens da massa insolvente, por ser-lhe alheia a dissipação do remanescente do património da sociedade insolvente, justificando-se ver nessa medida limitada a sua responsabilidade. A indemnização a suportar deve aproximar-se do montante dos danos causados pelo comportamento do afectado que conduziu à qualificação da insolvência, correspondendo o prejuízo dos credores ao valor dos seus créditos contra a empresa insolvente; a responsabilização dos gerentes compreende-se, conforme sublinha Luís Menezes Leitão, (“Direito da Insolvência”, Junho de 2018, 8ª edição, página 292)“(...) devido à culpa do devedor, e dos seus administradores de direito e de facto, em relação à frustração dos créditos que a insolvência provoca nos credores, o que constitui fundamento de responsabilidade civil, nos termos gerais (artigo 483º do Código Civil)”. A obrigação de indemnização visa a remoção do dano imputado ao respectivo sujeito (artº 562 do Código Civil). E em matéria de cálculo da indemnização em dinheiro, rege o n.º2 do art. 566º do C. Civil, que consagra a teoria da diferença, segundo a qual, o montante da indemnização se deve medir pela "diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos".


*

Resta concluir:

(…).


*

3. Decisão

Assim, na procedência da instância recursiva, revogamos a decisão proferida pelo Juízo de Comércio de Viseu - Juiz 2 e, em consequência:

a) Declara-se a insolvência da sociedade A..., SA culposa, julgando por ela afectados AA e CC, com as seguintes consequências:

b) Decreta-se a inibição dos afectados AA e CC, para administrarem patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 3 (três) anos (a afetada CC) e 4 (quatro) anos (o afetado AA);

c) Condena-se o afectado   AA a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente, na proporção dos respetivos créditos e em montante correspondente à diferença entre o valor global do passivo e o que o activo que compõe a massa insolvente logrou cobrir, a liquidar em execução de sentença.

d) Condena-se a afectada CC, solidariamente, a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente,  na proporção dos respetivos créditos e em montante correspondente ao valor do imóvel doado, com o limite máximo do valor dos créditos insatisfeitos, a liquidar em execução de sentença

Custas pelos Requeridos.

Coimbra, 24 de Junho de 2025

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(Catarina Gonçalves - 1.ª adjunta)

(Maria João Areias – 2.ª adjunta)