I – À luz do disposto no art.º 552.º, n.º 1, alínea a), do CPC (na sua actual redacção), a indicação, na petição inicial, do número de identificação fiscal das partes (incluindo o dos réus) tem carácter obrigatório e a omissão dessa indicação constitui fundamento de recusa da petição nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 558.º.
II – Tais normas serão, contudo, inconstitucionais – por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais consagrado no art.º 20.º da CRP – quando interpretadas com o sentido de aquela omissão determinar a recusa da petição ainda que o autor alegue e demonstre a impossibilidade de cumprimento daquela exigência por não lhe ter sido possível obter aquele elemento de identificação do réu.
III – Não poderá, portanto, ser recusada a petição com fundamento nessa omissão se o autor justificar – no respectivo articulado – a impossibilidade de cumprimento daquela exigência legal, alegando e demonstrando que não lhe foi possível obter o número de identificação fiscal do réu.
IV – Caso não seja indicado o elemento em causa nem seja justificada essa omissão, a petição pode – e deve – ser recusada nos termos previstos no art.º 558.º, n.º 1, alínea b), do CPC.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I.
AA, residente na Rua ..., em ..., BB, residente na Urbanização ..., ..., Rua ..., lugar de ..., em ..., ... e CC, residente na mesma morada de ..., vieram instaurar acção contra DD, e mulher, EE, residentes na Rua ..., ..., ... ....
Os Autores não indicaram o NIF dos Réus, apondo a seguinte menção: “Declaro não ser possível obter a informação (552.º n.º 3 CPC)”.
A referida petição inicial veio a ser recusada pela secretaria, nos termos do art.º 17.º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto (com as alterações introduzidas pela Portaria 170/2017, de 13 de Março), pelo facto de não ter sido indicado o NIF dos Réus e referindo que “a invocada impossibilidade de obtenção da informação, previstas no nº 3 do artº 552º do CPC, apenas se aplica a partes que sejam pessoa coletiva”.
Na sequência dessa recusa, os Autores vieram reclamar, dizendo:
- Que a menção que fizeram constar no formulário da p.i. alusiva ao n.º 3 do art.º 552.º resultou de lapso, sendo certo que os Réus são pessoas singulares;
- Que não têm conhecimento, nem possibilidade de saber a identificação fiscal dos Réus, já que, nem sequer os conhecem pessoalmente, não tiveram com eles qualquer contacto nem esses dados lhe são fornecidos pela Autoridade Tributária;
- Que, nessas circunstâncias, a falta desse elemento não pode ser motivo de recusa da petição, na medida em que tal inibiria os Autores do direito de acesso à justiça consagrado na CRP.
Conclui pedindo que a petição inicial seja aceite e complementada, na parte omissa, com a consulta à Base de Dados donde tais elementos constarão.
Tal reclamação veio a ser julgada improcedente por despacho de 18/02/2025, que manteve o acto de recusa.
Inconformados, os Autores vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
Os Réus, apesar de citados para os termos do recurso e da causa, não responderam ao recurso.
II.
Questão a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se a petição inicial foi correctamente recusada pelo facto de não indicar o número de identificação fiscal dos Réus, analisando a questão de saber como deve ser interpretada a referida exigência legal à luz do princípio constitucional de acesso ao direito e aos tribunais e em face da (alegada) impossibilidade de obtenção, junto da AT, do número de identificação fiscal de pessoa singular.
III.
A decisão recorrida confirmou – como se disse – a recusa da petição inicial por parte da secretaria com fundamento na circunstância de os Autores não terem indicado o NIF dos Réus.
Considerou a decisão recorrida que a indicação do NIF é obrigatória à luz do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 552.º do CPC, sem que se preveja qualquer excepção no que toca à necessidade dessa indicação, pelo que a decisão da secretaria está em conformidade com o regime legal vigente. Mais considerou que, ao contrário do que diziam os Autores, não existia qualquer violação do art.º 20.º da CRP, tendo em conta que nem sequer havia sido alegada e demonstrada na petição inicial qualquer impossibilidade de obtenção dos elementos em falta e nada havia sido requerido no sentido de ultrapassar tal omissão.
Em desacordo com a decisão, argumentam os Apelantes que, apesar de ser correcto do ponto de vista formal, o entendimento sufragado na decisão recorrida viola o princípio de que a interpretação da lei processual deve ser feita num quadro de razoabilidade em que tenha por principio estruturante o direito de acesso à justiça consagrado no artigo 20º do C.R.P.. Com efeito – argumentam – tendo em conta o sigilo fiscal – que impossibilitava os Autores de obter o NIF dos Réus – e sendo certo que a lei não contém qualquer válvula de escape em relação a pessoas singulares (ao contrário do que acontece em relação a pessoas colectivas), o entendimento plasmado na decisão recorrida implicaria que os Autores ficassem impedidos de propor a acção o que corresponderia a violação do direito constitucional consagrado no art.º 20.º da CRP.
Apreciemos então a questão.
O art.º 552.º do CPC, estabelecendo os requisitos a que deve obedecer a petição inicial, estabelece na alínea a) do n.º 1 que nela deve o autor “designar o tribunal e respetivo juízo em que a ação é proposta e identificar as partes, indicando os seus nomes, domicílios ou sedes, número de identificação fiscal ou número de identificação de pessoa coletiva e, obrigatoriamente, no que respeita ao autor, e sempre que possível, relativamente às demais partes, números de identificação civil, profissões e locais de trabalho” (sublinhado e negrito nossos).
Ainda que preveja – nos n.ºs 2 a 4 – um regime específico em relação à identificação de pessoas colectivas, a lei não estabelece qualquer ressalva ou excepção relativamente a pessoas singulares e tal significa que a indicação do NIF das pessoas singulares é obrigatória. Essa obrigatoriedade resulta, aliás, com clareza da última parte do referido n.º 1, onde se enunciam os elementos de identificação que apenas têm que ser indicados quando possível (números de identificação civil, profissões e locais de trabalho do réu), deixando claro que os elementos constantes da 1.ª parte (onde se inclui o NIF de todas as partes) são de indicação obrigatória sem que o legislador tivesse considerado uma eventual “impossibilidade” da sua indicação.
Refira-se que o citado regime foi introduzido recentemente pelo Dec. Lei n.º 87/2024 de 07/11, sendo que, até então, a indicação do NIF do réu fazia parte dos elementos que o autor apenas tinha que indicar se tal lhe fosse possível, o que evidencia a clara intenção do legislador de passar a exigir, com carácter de obrigatoriedade (e não apenas quando fosse possível) a indicação do NIF do réu.
Importa notar, aliás, que a referida alteração veio apenas consignar para a acção declarativa a solução que já vigorava, desde 2013, em relação à acção executiva (cfr. art.º 724.º, n.º 1, alínea a), do CPC).
Nas circunstâncias referidas e dispondo a alínea b) do n.º 1 do art.º 558.º que é fundamento de rejeição da petição inicial o facto de ela omitir a identificação das partes e os elementos a que alude a alínea a) do n.º 1 do artigo 552.º que dela devam obrigatoriamente constar, impor-se-á concluir que a recusa da petição pela secretaria e a decisão recorrida que manteve/confirmou essa recusa estão em perfeita conformidade com a letra da lei actualmente em vigor.
Sustentam, no entanto, os Apelantes que esse entendimento implicaria que os Autores ficassem impedidos de propor a acção o que corresponderia a violação do direito constitucional consagrado no art.º 20.º da CRP, dada a sua impossibilidade de obter o NIF dos réus por força do sigilo fiscal.
Ora bem.
Não havendo dúvidas – como acima se disse – que a lei impõe a obrigatoriedade de indicação do NIF, é certo que, caso se tivesse como absolutamente impossível a obtenção do NIF de outrem (no caso dos Réus), a norma em questão teria que ser considerada inconstitucional porquanto violaria, de forma clara, o direito de acesso aos tribunais constitucionalmente garantido no art.º 20.º da CRP; o autor – estando impossibilitado de obter o NIF dos réus – ficaria impedido de cumprir a exigência legal, ficando, na prática, impossibilitado de instaurar uma acção para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
Sucede que não é possível concluir – em termos gerais e absolutos – pela impossibilidade de cumprimento da referida exigência legal.
Em primeiro lugar, porque há casos em que a parte já dispõe do NIF da outra parte, designadamente quando estão em causa litígios relacionados com contratos em que esse elemento já lhe foi disponibilizado e, em segundo lugar, porque, ainda que não seja esse o caso, não é seguro afirmar que esse elemento não lhe seja facultado pela AT se assim o solicitar.
Com efeito, ainda que se considere que o NIF é um elemento ou dado pessoal do contribuinte que está protegido pelo dever de sigilo fiscal previsto no art.º 64.º da LGT (Dec. Lei n.º 398/98 de 17/12) – como se considerou no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 25/06/2020 (citado pelos Apelantes)[1] – e pela Lei de Protecção de Dados Pessoais (Lei n.º 58/2019 de 08/08), pelo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (Regulamento (UE) 679/2016 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016) e pela Lei n.º 26/2016, de 22 de Agosto (que regula o acesso a documentos administrativos que contenham dados pessoais), a verdade é que, face à obrigatoriedade legal de indicação do NIF na petição inicial, o fornecimento desse elemento a terceiro que pretenda instaurar acção judicial poderá encontrar cobertura na previsão constante dos aludidos diplomas onde se legitima o acesso a essa informação ao terceiro que demonstre “...ser titular de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante após ponderação, no quadro do princípio da proporcionalidade, de todos os direitos fundamentais em presença e do princípio da administração aberta, que justifique o acesso à informação” (cfr. art.º 6.º, n.º 5, alínea b), da Lei 26/2016 e art.º 6.º, n.º 1, alínea f), do Regulamento acima referido), como seria o caso do terceiro que pretende instaurar acção contra o titular dos dados.
Tem sido esse, aliás, o entendimento da CADA (Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos) nos vários pareceres que tem emitido na sequência de queixas apresentadas por quem queria obter da AT o NIF da pessoa contra quem pretendia instaurar acção executiva (à data, como se referiu, era apenas nas acções executivas que a indicação desse elemento era obrigatória e só recentemente passou a ser exigido nas acções declarativas), onde se considerou que, por se mostrar verificada a situação prevista no art.º 6.º, n.º 5, alínea b) da Lei 26/2016 (alterada pela Lei n.º 58/2019 de 08/08)[2], o NIF tinha que ser facultado a quem o solicitasse para aquela finalidade (ou seja, para instaurar acção), ali se referindo, em conclusão, o seguinte:
“- O número de identificação fiscal é um dado pessoal, cujo acesso por terceiro segue o regime previsto nas alíneas no artigo 6º, n.ºs 5 e 9, da LADA;
- O artigo 724º do atual Código do Processo Civil exige, a par de outros dados pessoais, a indicação do número de identificação fiscal do executado como requisito obrigatório do requerimento executivo, pelo que o requerente que solicita estas informações, com a finalidade de intentar ação executiva, reúne os requisitos previstos no artigo 6º, nº 5, b), e nº 9, da LADA;
- Deve ser facultado o número de identificação fiscal solicitado”.
Vejam-se, a propósito e entre outros, os seguintes pareceres:
- Parecer n.º 201/2020, de 15/09/2020 (processo n.º 322/2020);
- Parecer n.º 270/2020, de 18/11/2020 (processo n.º 499/2020);
- Parecer n.º 271/2020, de 18/11/2020 (processo n.º 500/2020);
- Parecer n.º 125/2023, de 17/05/2023 (processo n.º 1089/2022);
- Parecer n.º 247/2024, de 19/06/2024 (processo n.º 431/2024)[3].
De qualquer forma, ainda que não seja possível afirmar – em termos gerais e absolutos – pela impossibilidade de cumprimento da referida exigência legal, não poderá ser excluída a possibilidade de, no caso concreto, a parte ter ficado efectivamente impossibilitada de obter o NIF da pessoa contra quem pretende instaurar acção, designadamente porque esse elemento lhe foi negado pela AT a quem o houvesse solicitado sem que tivesse outros meios de o obter e, em tal situação, não pode lhe poderá negada a possibilidade de instaurar a acção porque que tal implicaria violação do direito constitucionalmente garantido de acesso ao direito e aos tribunais.
A norma em questão – que exige, com carácter obrigatório, a indicação do NIF do réu – será, portanto, inconstitucional se interpretada no sentido de obstar à aceitação da petição quando o autor alegue e demonstre a impossibilidade de cumprimento daquela exigência por não lhe ter sido possível obter aquele elemento de identificação do réu.
Podemos então concluir, à luz do que foi exposto:
- Que o autor está obrigado a indicar na petição inicial o NIF do réu;
- Que, caso esteja impossibilitado de cumprir essa exigência, tem que justificar essa impossibilidade, alegando e demonstrando que não lhe foi possível obter esse elemento – designadamente porque, apesar de o ter pedido, esse elemento não lhe foi disponibilizado pela AT –, solicitando a colaboração do tribunal para o efeito, caso em que a petição não pode ser recusada com fundamento naquela omissão;
- Que, caso não seja indicado o elemento em causa nem seja justificada essa omissão, a petição é recusada nos termos previstos no art.º 558.º, n.º 1, alínea b), do CPC.
Revertendo ao caso dos autos e aplicando as considerações efectuadas, verifica-se que os Autores/Apelantes não indicaram o NIF dos Réus e não justificaram essa omissão, alegando e demonstrando que, apesar de o terem solicitado, esse elemento não lhes foi disponibilizado.
Refira-se que os Autores – por intermédio do seu mandatário – tiveram clara percepção da obrigatoriedade de indicação daquele elemento já que, conforme referem nas suas alegações, o sistema informático nem sequer admitia a entrada da petição inicial sem esse elemento, razão pela qual fizeram menção à impossibilidade de o indicar nos termos do art.º 552.º, n.º 3, do CPC (já que era essa a única excepção que podia viabilizar a entrada da petição inicial).
Os Autores, por intermédio do seu advogado, sabiam, contudo, – não podiam deixar de saber – que aquela situação se reportava a pessoas colectivas (única situação em que a lei dispensa a indicação do NIF com fundamento na impossibilidade de o obter) e sabiam que ela não se adequava à petição que estavam a submeter onde os réus eram pessoas singulares. Sem prejuízo de utilizar aquela excepção (já que não conseguiam de outra forma dar entrada da petição), os Autores tinham que justificar essa situação no próprio articulado, alegando e demonstrando que haviam tentado obter, designadamente junto da AT, o NIF dos réus e que esse elemento não lhes havia sido disponibilizado, solicitando a colaboração do tribunal para o efeito. Tendo em conta as considerações acima explanadas e tendo em conta os pareceres da CADA referidos, não se pode ter como certo (e automaticamente demonstrado) que a AT não fornecesse o elemento em causa aos Autores e, portanto, tinham que justificar a omissão, demonstrando que, apesar de o terem solicitado, ele não lhes havia sido disponibilizado.
Nas circunstâncias referidas, tendo em conta que os Autores/Apelantes não indicaram o NIF dos Réus nem justificaram, de qualquer forma, essa omissão, não nos é permitido concluir pela incorrecção da decisão de recusa da petição inicial.
Improcede, portanto, o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
(…).
IV.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes.
Notifique.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves)
(Paulo Correia)
(Anabela Marques Ferreira)
[1] Proferido no processo n.º 2796/19.7BELRS, disponível em http://www.dgsi.pt.
[2] O citado art.º 6.º, n.º 5, alínea b), dispõe nos seguintes termos:
“Um terceiro só tem direito de acesso a documentos nominativos:
(...)
b) Se demonstrar fundamentadamente ser titular de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante, após ponderação, no quadro do princípio da proporcionalidade, de todos os direitos fundamentais em presença e do princípio da administração aberta, que justifique o acesso à informação”.
[3] Disponíveis em https://www.cada.pt.