I – Dada a autonomia da litigância de má-fé face ao objeto principal do processo, existindo pedido de condenação em indemnização que foi desatendido, tem a parte vencida direito a recurso, agora segundo as regras da alçada; ou seja, a parte que pediu a condenação da outra em indemnização por litigância de má-fé, e não a obteve, ou obteve montante inferior ao peticionado, só pode recorrer desde que verificado o requisito a que se refere o art. 629.º, n.º 1 do CPC.
II- Consistindo o título na sentença que condenou no pagamento “contra a apresentação da competente fatura” tal título é inexequível se à data em que foi intentada a execução ainda não havia sido apresentada a fatura à devedora.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:
I-Relatório
A...-Sociedade Unipessoal, Lda. instaurou ação executiva contra B..., Lda., para cobrança coerciva da quantia global de € 23.153,03 (€ 18.147,50+€ 1224+€ 831,60).
A executada deduziu embargos invocando, no que ainda subsiste para apreciação, a inexistência do título, na medida em que só após a entrada do requerimento executivo a exequente emitiu e enviou a fatura com a liquidação do valor em dívida e de acordo com o determinado na sentença condenatória dada à execução e peticionando a condenação da exequente/embargada, como litigante de má-fé, no pagamento à executada/embargante de uma indemnização no valor de € 1.782,00 (sendo € 306,00, atinentes a taxa de justiça paga e € 1.476,00, referentes a honorários de advogado e respetivo IVA).
A exequente contestou, no demais defendendo a exequibilidade do título executivo e pugnando pela improcedência dos embargos.
Realizado o julgamento, foi, a 16.02.2025, proferida sentença contendo o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, decide o Tribunal julgar os presentes embargos de executado parcialmente procedentes e, em consequência, declara-se extinta a execução relativamente ao valor de 1.224,00 € peticionado a título de custas de parte, prosseguindo a execução apenas quanto ao demais peticionado”.
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A embargante interpôs recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:
(…).
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A exequente/embargada não respondeu.
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Dispensados os vistos, foi realizada conferência, com obtenção dos votos dos Exmos. Juízes Desembargadoras Adjuntos.
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II – Questão prévia: Da admissibilidade/inadmissibilidade do recurso na parte relativa ao pedido de condenação em indemnização por litigância de má-fé
Divergindo do decidido pelo Juízo de Competência Genérica de Idanha-a-Nova, a embargante continua, em sede de recurso, a clamar pela condenação da exequente/embargada, como litigante de má-fé, no pagamento de uma indemnização no valor de € 1.782,00 (sendo € 306,00, atinentes a taxa de justiça paga e € 1.476,00, referente a honorários de advogado e respetivo IVA), isto porque, segundo a mesma, aquando da entrada em juízo do requerimento executivo ainda não havia decorrido o prazo dado pela exequente/embargada para pagamento das custas de parte, nem tão pouco havia sido apresentada à executada/embargante a fatura para pagamento, tendo, como tal, deduzido pretensão cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer.
Por se ter afigurado ao relator que nessa parte a decisão não admitia recurso, foi efetuada a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem (arts. 652.º, n.º 1, b) e 655.º, n.º 1 do CPC), sendo que nenhuma delas respondeu.
Vejamos:
A decisão recorrida não condenou a parte como litigante de má-fé, pelo que não se trata da situação expressamente prevista no art. 542.º, n.º 3 do CPC.
Dada a autonomia da litigância de má-fé face ao objeto principal do processo[2], existindo pedido de condenação em indemnização que foi desatendido, tem a parte vencida direito a recurso, agora segundo as regras da alçada; ou seja, a parte que pediu a condenação da outra em indemnização por litigância de má-fé, e não a obteve, ou obteve montante inferior ao peticionado, só pode recorrer desde que verificado o requisito a que se refere o art. 629.º, n.º 1 do CPC[3].
A alçada dos tribunais de primeira instância é, como se sabe, de € 5.000 (art. 44.º, n.º 1 da LOSJ).
Assim, uma vez que, no caso, a decisão impugnada apresenta valor inferior (€ 1782), não admite recurso.
Em conformidade, não se toma conhecimento do recurso nessa parte.
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III-Objeto do recurso
Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).
No caso, perante as conclusões apresentadas, as questões a apreciar e decidir, de acordo com a respetiva precedência lógica, são as de saber se:
i) deve ser alterada a decisão proferida quanto à matéria de facto quanto ao facto provado sob o n.º 13 e facto não provado sob a alínea A)
e, face a essa alteração,
ii) dever considerar-se que inexiste título executivo quanto à restante quantia exequenda (€ 19.236,35).
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IV-Fundamentação
Com vista a habilitar a decisão das questões a apreciar, passa a transpor-se a factualidade que o tribunal de primeira instância considerou provada e não provada (indo o texto colocado a negrito na parte em que foi objeto de impugnação):
“Factos provados (…)
1. No processo n.º 49/22.2T8IDN, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Idanha-a-Nova, em que foi autora A... - Sociedade Unipessoal, Lda. e ré B..., Lda., foi proferida sentença em 19/06/2023 que condenou a ré nos seguintes termos: «Julgar a ação intentada pela autora A... - Sociedade Unipessoal, Lda. parcialmente procedente e, em consequência, condena-se a ré B..., Lda. a pagar à autora a quantia de € 18.147,50 (dezoito mil, cento e quarenta e sete euros e cinquenta cêntimos), acrescido de IVA à taxa legal aplicável, mas apenas contra a apresentação da competente fatura».
2. Em 18/09/2023, a Ré B..., Lda. interpôs recurso da sentença proferida.
3. Por despacho datado de 07/11/2023, foi o recurso de apelação admitido tendo-lhe sido atribuído efeito meramente devolutivo.
4. Foi proferido acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, em 20/02/2024, que julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida.
5. As partes foram notificadas do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra em 26/02/2024.
6. A sentença proferida no processo n.º 49/22.2T8IDN transitou em julgado em 05/04/2024.
7. Em 22/02/2024, a exequente/embargada enviou à executada/embargante, carta registada com aviso de receção, com o seguinte teor: «Como será do s/ inteiro conhecimento, a ação instaurada pela n/constituinte A... - Sociedade Unipessoal, Lda. contra v/Exa. foi julgada procedente e o recurso interposto por V/Exas. julgado improcedente, pelo que é responsável pelo pagamento das custas de parte no montante de € 1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), cfr. anexo. Assim, solicitamos a Vs. Exas. que, no prazo máximo de 5 (cinco) dias, procedam ao pagamento da totalidade da quantia em dívida, no montante de € 1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), mediante transferência bancária para o IBAN: ...05, com a obrigatória indicação do seu n.º de processo: 49/22.2T8IDN».
8. Em 22/02/2024, a exequente/embargada emitiu a fatura n.º FT2024/8, no valor de 19.236,35 €, e com data de vencimento no dia 22/02/2024.
9. A executada/embargante recebeu a carta registada com aviso de receção mencionada em 7. em 23/02/2024.
10. Em 23/02/2024, por carta registada com aviso de receção, a exequente/embargada enviou à executada/embargante a fatura n.º FT2024/8, no valor de 19.236,35 €, com data de vencimento no dia 22/02/2024.
11. Em 27/02/2024, a executada/embargante procedeu a uma transferência bancária no valor de 1.224,00 € para o IBAN ...05.
12. Em 28/02/2024 a executada/embargante recebeu a carta mencionada em 10.
13. Em 29/02/2024, a exequente deu entrada em juízo do requerimento executivo.
14. Em 03/03/2024, a executada/embargante procedeu a uma transferência bancária no valor de 19.236,35 € para o IBAN ...77 do destinatário A... - Sociedade Unipessoal, Lda. com o descritivo: «Pagamento de fatura FT2024/8 de 22/02/2024».
Com relevância e interesse para a decisão da causa, considero não demonstrada a seguinte factualidade:
A) O requerimento executivo deu entrada em juízo em 26/02/2024”.
A – Da impugnação da matéria de facto
No entender da embargante/recorrente deve ser alterada a decisão da matéria de facto proferida no tocante ao facto provado n.º 13 e ao que consta da alínea A) dos factos não provados, devendo ser considerado provado que
“Em 26/02/2024, a exequente deu entrada em juízo do requerimento executivo”,
e não, como decidido, que o requerimento executivo deu entrada em 29.02.2024.
Começa por se recordar que o tribunal recorrido motivou a decisão proferida quanto à data da instauração da execução no “requerimento executivo registado em 29/02/2024, com a ref.ª Citius 3520883”.
Não obstante, exatamente com base nesse mesmo requerimento executivo, o tribunal devia ter considerado que a entrada em juízo do requerimento executivo teve lugar a 26.02.2024 e não 29.02.2024.
Trata-se de um ato praticado por via eletrónica nos termos da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto (art. 132.º, n.º 2 do CPC).
De acordo com o disposto no art. 144.º, n.º 1 do CPC, vale como data da sua prática, a da sua expedição.
Resulta do documento que a assinatura pelo subscritor (Dr. AA) teve lugar a 26.02.2024 pelas 19h32´ e 20´´.
Nos termos do art. 6.º, n.º 4 da referida Portaria tal assinatura corresponde ao “momento da apresentação da peça processual, assegurando o sistema informático que essa assinatura garante a integridade, integralidade e não repúdio da peça processual”.
Assim, independentemente da data da autuação efetuada pelo sistema com vista à fase executiva (essa sim verificada a 29.02.2024), o requerimento executivo deu entrada a 26.02.2024 (segunda feira)[4].
Pelo exposto, dá-se procedência ao recurso nesta parte, com a consequente alteração da redação do facto provado n.º 13, que passa a ser a seguinte: “Em 26/02/2024, a exequente deu entrada em juízo do requerimento executivo” e eliminando-se o facto não provado sob A).
B – Da invocada inexistência de título
No âmbito do recurso defende a recorrente que à data da instauração da execução não existia título também no que respeita à quantia de € 19.236,35 porquanto nessa data a fatura emitida ainda não tinha sido recebida pela embargante, o que apenas veio a ocorrer dois dias após a entrada da execução.
Resulta evidenciado nos autos que o título executivo se formou no processo n.º 49/22.2T8IDN, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Idanha-a-Nova
Título esse consubstanciado na sentença que condenou a embargante B..., Lda. a pagar à exequente/embargada A... - Sociedade Unipessoal, Lda. a quantia de € 18.147,50, acrescida de IVA à taxa legal aplicável, “contra a apresentação da competente fatura”.
Também decorre da factualidade apurada que a exequente/embargada apenas emitiu a fatura em causa (FT2024/8) a 22.02.2024 (facto provado n.º 8), e que a remeteu à devedora, por via postal, sob registo, no dia seguinte (facto provado n.º 10), sendo que esta apenas a recebeu a 28.02.2024.
Significa isto que, à data da instauração da execução (26.02.2024), a “apresentação da fatura” a que se encontrava condicionado o pagamento ainda não havia ocorrido, o que se traduz, à data, na inexequibilidade do título (art. 729.º, a) do CPC).
Inexequibilidade que advém da circunstância de, à data, ainda não se ter ainda verificado a condição suspensiva da exigibilidade do pagamento, consistente na apresentação da fatura à devedora.
Como tal, assiste razão à embargante, impondo-se, que os embargos sejam julgados procedentes também nesta parte, com a consequente revogação do decidido.
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Sumário[5]
(…).
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V - DECISÃO.
Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em
a) não admitir o recurso quanto ao decidido a respeito da indemnização por litigância de má-fé,
b) alterar a decisão da matéria de facto nos termos pretendidos pela recorrente,
c) revogar a decisão recorrida, julgando integralmente procedentes os embargos de executado e, em consequência, declara-se extinta a execução.
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Custas pela recorrente e pela recorrida na proporção do decaimento e que é de 8,48% e 91,52%, respetivamente (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC).
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Coimbra, 8 de julho de 2025
(Paulo Correia)
______________________
(José Avelino Gonçalves)
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(Chandra Gracias)
[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – José Avelino Gonçalves e Chandra Gracias.
[2] - Não relevando, sequer, para a fixação do valor da causa – cfr. Ac. do TRC de 16.03.2011, CJ, Tomo II, pág. 13.
[3]- Neste sentido, v.g. Ac. do STJ, de 29.4.2010 (proc. 46/10-OYFLSB).
[4] - De assinalar, de resto, que ambas as partes sempre estiveram de acordo em como o requerimento executivo deu entrada a 26.02.2024 – ars. 3.º da p.i. e art. 9.º da constestação.
[5] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).