COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
TRANSMISSÃO E EXECUÇÃO DE SENTENÇAS EM MATÉRIA PENAL QUE IMPONHAM MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE
DURAÇÃO DA PENA DE PRISÃO APLICADA E DA QUE DELA FALTA CUMPRIR
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PERDÃO DE PENA
Sumário

I - O pressuposto da cooperação judiciária internacional é a confiança entre as autoridades dos países cooperantes e a lógica do cumprimento de sentença estrangeira, assente no menor desfiguramento possível da pena aplicada pelo país da condenação.
II - À luz do princípio da confiança o Estado da execução fica vinculado pela natureza jurídica e pela duração da sanção aplicada pelo tribunal do Estado da emissão, não podendo ponderar a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão aplicada se o tribunal da emissão decidiu pelo seu cumprimento efectivo.
III - A recusa de reconhecimento e execução que se prende com a duração da pena de prisão aplicada e da duração que dela falta cumprir só existe se a pena que estiver por cumprir no momento em que a sentença estrangeira for recebida for inferior a 6 meses.
IV - A execução do acórdão penal cujo reconhecimento e execução foi decidido faz-se em conformidade com a legislação processual penal e penitenciária portuguesa, beneficiando o condenado das medidas de clemência - amnistia, perdão genérico e indulto -, que tenham sido concedidas por Portugal mesmo antes de o condenado aqui ter iniciado a execução daquela sentença/acórdão.
V - Verificando-se os requisitos previstos no artigo 2.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, e não estando os crimes pelos quais o requerido foi condenado pelo acórdão cujo reconhecimento e execução foi decidido excluídos do perdão concedido por aquela lei, ele beneficia do perdão previsto no seu artigo 3.º, sob a condição resolutiva prevista no n.º 1 do artigo 8.º.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os juízes que constituem a 4ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. A Exma. Procuradora da República, a exercer funções neste Tribunal da Relação de Coimbra, ao abrigo da DECISÃO-QUADRO 2008/909/JAI do CONSELHO de 27 de novembro de 2008 e dos artigos 3.º, n.º 2, 13.º, 14.º, 16.º, 16.º-A e 17.º, todos da Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro, veio requerer o reconhecimento e a execução em Portugal, a fim de ser cumprido neste país, do acórdão nº ...09, em matéria penal, datada de 13 de junho de 2018, transitado em julgado em 4.07.2018, pelo Tribunal Judicial de Moulins, França, relativamente ao Requerido, ali condenado, formulado pela Justiça Francesa.

            Para tanto, alegou o seguinte [transcrição]:

“1. Pelo tribunal judicial de Moulins, e por sentença/acórdão nº ...09, de 13/06/2018, transitada em julgado em 4/07/2018, foi o requerido condenado, como autor de um crime de homicídio involuntário por condução de veículo terrestre em violação motora e manifestamente deliberada de um dever de segurança ou cuidado, cometido em Montbeugny, Allier França, entre 24 e 25 de Março de 2016, previsto e punido pelos artigos 221º-6-1 1º e 221º-6, al. i C, 22º-6-1, al. 2, 221º-8, 221º-10 C do código penal, e 232º-1 e L.224º-12 código da estrada franceses, e de um crime de ferimentos involuntários com incapacidade não superior a 3 (três) meses por condutor de veículo motorizado ou de violação manifestamente deliberado de um dever de segurança ou prudência, previsto e punido pelos artigos 222º-20-1 1º e 222º-19, al. i, L.232º-2 C, 222º-20-1, al. 2 , 222º-44, 222º-46, do código penal e L.22412 do código da estrada franceses, na pena de prisão de 1095 (mil e noventa e cincos) dias, ou, seja, de 3 (três) anos, com 97 (noventa e sete) dias de prisão preventiva, ocorrida entre 31/03/2016 e 8/07/2016, a descontar.

2. Da sentença, e como factos consubstanciadores do ilícito típico, consta que na noite de 24 para 25 de Março de 2016, ocorreu um acidente de viação entre uma carrinha Mercedes Sprinter, com reboque, e um camião de Itália, sendo que aquela carrinha se desviou da faixa de rodagem onde seguiu, vindo a colidir frontalmente com esse camião. A carrinha foi encontrada na vala, por baixo da faixa de rodagem. …, que conduzia uma carrinha Mitsubishi com cinco pessoas no interior e que seguia a carrinha Mercedes, confiou a condução desta ao requerido/condenado, então com 19 (dezanove) anos de idade, no âmbito de uma actividade não declarada de transporte de passageiros entre a Suíça e Portugal. Esta carrinha tinha sido convertida à mão, para 12 (doze) lugares, enquanto a respectiva homologação apenas previa 6 (seis). O requerido/condenado não tinha experiência de condução, nem carta de condução para transportar mais de 9 (nove) pessoas. No momento do acidente, a carrinha Mercedes, conduzida pelo requerido/condenado, tinha iniciado a ultrapassagem a um camião e, vindo de frente o primeiro referido camião, não teve tempo de parar e de evitar a colisão, apesar da tentativa do condutor italiano de evitar o acidente. A carrinha Mercedes estava sobrecarregada, com pneus lisos, em mau estado, cintos de segurança desadequados e equipamento geral inadequado para a segurança dos passageiros. A manobra de ultrapassagem perigosa, dadas as condições de tráfego, foi causa do acidente e da tragédia. Os 12 (doze) passageiros da carinha Mercedes, de nacionalidade portuguesa e com idades compreendidas entre os 7 (sete) e os 62 (sessenta e dois) anos, foram atirados para a frente do veículo e morreram na hora.

3. O requerido esteve presente no julgamento e não solicitou novo julgamento ou procedimento de recurso no prazo fixado.

4. Não decorreu o prazo de prescrição da pena, nem no Estado de emissão (imprescritível), nem no Estado de execução (10 anos a contar do trânsito em julgado da sentença - cf. Artigo 122º do código penal português).

5. O Estado de emissão pede a execução em Portugal da pena de prisão aplicada, porquanto o condenado é cidadão português e tem residência em Portugal.

6. Todo o supra alegado consta do expediente que se junta e que foi transmitido para que este tribunal proceda ao reconhecimento e execução da sentença, em conformidade com o disposto na decisão-quadro 2008/909/JAI de 27 de Novembro de 2008, transposta para o direito interno pela lei n.º 158/2015, de 17 de Setembro, não existindo qualquer dúvida sobre a sua autenticidade.

7. O pedido foi emitido de acordo com o formulário cujo modelo constitui o anexo I deste diploma, encontrando-se devidamente preenchido e traduzido - cf. os artigos 16.º, n.º 1 e 19.º, n.º 2, da Lei n.º 158/2015.

8. Os crimes pelos quais foi o requerido condenado encontram correspondência no código penal português, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação, no artigo 137º - homicídio por negligência -, punível com pena de prisão até 3 (três) anos ou multa, ou, no caso de negligência grosseira, até 5 (cinco) anos e no artigo 148º - e no artigo 148º - ofensa à integridade física por negligência, -, punível com pena de prisão té 1 (um) ano ou pena de multa até 120 (cento e vinte) dias ou com pena de prisão até 2 (dois) anos ou pena de multa até 240 (duzentos e quarenta) dias (se resultar ofensa à integridade física grave).

9. Do expediente remetido pela justiça francesa não resulta, à partida, nenhuma causa de recusa de reconhecimento e de execução da sentença, designadamente as que são mencionadas no artigo 17.º da citada lei n.º 158/2015.

10. O Ministério Público tem legitimidade para o pedido e o Tribunal da Relação de Coimbra é o territorialmente competente para reconhecer a sentença condenatória, de acordo com o disposto no artigo 13.º, n.º 1, da dita lei n.º 158/2015 - cf., ainda, os artigos 16º, n.º 1, e ss. do mesmo diploma.

Do perdão previsto na lei 38-A/2023, de 2/08

11. O condenado tinha menos de 30 anos à data dos factos e crime pelos quais foi condenado.

12. Os crimes previstos e punidos no artigo 137º e 148º do código penal português não estão excluídos do perdão previsto naquela lei.

13. Assim, à pena aplicada deve ser declarado perdoado 1 (um) ano de prisão, sob condição resolutiva - cf. artigos 2º, 3º, 7º e 8º da indicada lei e 4º da lei 158/2015.”

Conclui requerendo:

“ -O reconhecimento da sentença condenatória, com a aplicação do perdão de 1 (um) de prisão e desconto dos 97 (noventa e sete) dias de prisão preventiva, a fim de ser executada em Portugal, procedendo-se, depois, às habituais notificações/comunicações;

-A posterior transmissão do decidido ao competente tribunal de execução de penas para a respectiva execução, de acordo com o disposto no artigo 13º, nº 2, da dita lei.

-a sujeição do requerido/condenado a termo de identidade e residência - a justiça francesa pede a sujeição a medidas com vista a assegurar a permanência do condenado no território nacional /cf. artigos 22º, nº 1, da lei 158/2015, de 17/09 e 196º do código de processo penal.”


*

2. A Digníssima Requerente juntou o pedido de execução da pena formalizado pela justiça francesa; certificado emitido ao abrigo da Decisão-Quadro 2008/909/JAI de 27 de novembro de 2008, devidamente traduzido; cópia da sentença/acórdão condenatória(o) proferido pelo Tribunal De grande Instância de Moulins devidamente traduzida e demais expediente recebido da autoridade judiciária francesa.

*

3. Nomeado defensor oficioso e cumprido o disposto no art. 16º-A, nº1 da Lei n.º 158/2015, de 17.09, o Requerido veio deduzir oposição, alegando que [transcrição]:

“1º

Nos termos do artigo 3 nº1 da Lei 158/2015 de 17 de Setembro não poderá haver reconhecimento e execução da presente Sentença porquanto a pena aplicada ao arguido é inferior a 3 anos de prisão .

Com efeito o arguido foi condenado a uma pena de prisão de 3 anos ,tendo já cumprido 97 dias;

E a esta pena de prisão irá ser declarada perdoado 1 ano de prisão ,de harmonia com a Lei nº38-A/2023 de 20 de Agosto .

Assim Sendo a Sentença do requerido é uma Sentença de 633 dias que corresponde a 1 ano e 9 meses . LOGO,

A presente Sentença não pode ser reconhecida ,nem executada o que se requer seja declarado;

MAS AINDA QUE ASSIM NÃO FOSSE ,

A presente Sentença no ordenamento Juridico Português deveria sempre beneficiar da Suspensão da Execução da pena, nos termos do artigo 50 do Código Penal . COM EFEITO ,

O requerido é primário e após a sua condenação não voltou a cometer qualquer crime seja ele de que natureza seja .

Está integrado na sociedade; é bem visto e respeitado quer no local onde vive ,quer nas aldeias vizinhas . LOGO

Cumpre os requisitos para que a execução da pena seja suspensa ,o que se requer .

            POR ISSO REQUER-SE:

A)

Que a presente Sentença não seja reconhecida e em consequência executada, porque inferior a 3 anos de prisão nos termos do artigo 3 nº1 da Lei 158/2015 de 17 de Setembro

B)

Se reconhecida ,o requerido porque condenado em pena inferior a 5 anos beneficie da Suspensão da Execução da pena nos termos do artigo 50 do Código Penal”


*

4. Produzidas alegações escritas, nos termos do disposto no nº 4 do art. 16º-A da Lei n.º 158/2015, de 17.09, a Exma. Procuradora –geral adjunta requerente pugnou pela improcedência dos fundamentos da oposição e o Requerido reiterou o por si alegado nesta.

*

5. foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II- Cumpre apreciar e decidir

O Tribunal da Relação de Coimbra é territorialmente competente para o pedido de reconhecimento e execução de sentença formulado, por ser o tribunal da Relação da área da residência conhecida em Portugal do condenado, ….

Não se verificam nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.


*

Face ao teor dos documentos juntos aos autos, designadamente, da certidão emitida pela autoridade de emissão, da cópia do acórdão condenatório em apreço e do demais expediente recebido da autoridade judiciária francesa, ressuma provado o seguinte:

1) Pelo Tribunal de Grande Instância de Moulins, por acórdão nº ...09, de 13.06.2018, transitado em julgado em 4.07.2018, foi o requerido condenado, como autor de um crime de homicídio involuntário por condução de veículo terrestre em violação motora e manifestamente deliberada de um dever de segurança ou cuidado, cometido em Montbeugny, Allier França, entre 24 e 25 de Março de 2016, previsto e punido pelos artigos 221º-6-1 1º e 221º-6, al. i C, 22º-6-1, al. 2, 221º-8, 221º-10 C do código penal, e 232º-1 e L.224º-12 código da estrada franceses, e de um crime de ferimentos involuntários com incapacidade não superior a 3 (três) meses por condutor de veículo motorizado ou de violação manifestamente deliberado de um dever de segurança ou prudência, previsto e punido pelos artigos 222º-20-1 1º e 222º-19, al. i, L.232º-2 C, 222º-20-1, al. 2 , 222º-44, 222º-46, do código penal e L.22412 do código da estrada franceses, na pena de prisão de 1095 (mil e noventa e cincos) dias, ou, seja, de 3 (três) anos.

2) O requerido sofreu 97 (noventa e sete) dias de privação de liberdade por virtude os factos que levaram à sua condenação, tendo estado detido em prisão preventiva entre 31.03.2016 e 8.07.2016.

3) … foi condenado com base nos seguintes factos:

- na noite de 24 para 25 de Março de 2016, ocorreu um acidente de viação entre uma carrinha Mercedes Sprinter, com reboque, e um camião de Itália, sendo que aquela carrinha se desviou da faixa de rodagem onde seguiu, vindo a colidir frontalmente com esse camião. A carrinha foi encontrada na vala, por baixo da faixa de rodagem. …, que conduzia uma carrinha Mitsubishi com cinco pessoas no interior e que seguia a carrinha Mercedes, confiou a condução desta ao requerido/condenado, então com 19 (dezanove) anos de idade, no âmbito de uma actividade não declarada de transporte de passageiros entre a Suíça e Portugal. Esta carrinha tinha sido convertida à mão, para 12 (doze) lugares, enquanto a respectiva homologação apenas previa 6 (seis). O requerido/condenado não tinha experiência de condução, nem carta de condução para transportar mais de 9 (nove) pessoas. No momento do acidente, a carrinha Mercedes, conduzida pelo requerido/condenado, tinha iniciado a ultrapassagem a um camião e, vindo de frente o primeiro referido camião, não teve tempo de parar e de evitar a colisão, apesar da tentativa do condutor italiano de evitar o acidente. A carrinha Mercedes estava sobrecarregada, com pneus lisos, em mau estado, cintos de segurança desadequados e equipamento geral inadequado para a segurança dos passageiros. A manobra de ultrapassagem perigosa, dadas as condições de tráfego, foi causa do acidente e da tragédia. Os 12 (doze) passageiros da carinha Mercedes, de nacionalidade portuguesa e com idades compreendidas entre os 7 (sete) e os 62 (sessenta e dois) anos, foram atirados para a frente do veículo e morreram na hora.

4) A pena em que o arguido foi condenado, e que tem ainda por cumprir, consta da certidão e do acórdão juntos e foram transmitidas a este tribunal para reconhecimento e execução em conformidade com o disposto na Decisão-Quadro 2008/909/JAI de 27 de novembro de 2008, transposta para o direito interno pela Lei n.º 158/2015, de 17 de novembro, não oferecendo, por isso, dúvida a autenticidade dos documentos remetidos.

5) A certidão foi emitida de acordo com o formulário cujo modelo constitui o anexo I deste diploma, encontrando-se devidamente preenchida, estando assegurada a sua tradução (cf. os artigos 16.º, n.º 1 e 19.º, n.º 2, da Lei n.º 158/2015).

6) O Requerido compareceu pessoalmente na audiência realizada em 13 de junho de 2018 06/2018 e não solicitou novo julgamento ou procedimento de recurso no prazo fixado, a qual, por isso, transitou em julgado em 4 de julho de 2018.

7) O Requerido tem nacionalidade portuguesa, possui residência em Portugal, tendo a autoridade de emissão considerado que a execução da condenação em Portugal contribuirá para atingir o objetivo de facilitar a reinserção social do condenado.


*

A transmissão do acórdão a este Tribunal da Relação para o seu reconhecimento foi efetuada com base em pedido para tanto formulado pela entidade competente - Procurador da Republica de Moulins - visando que seja reconhecido e executado em Portugal o acórdão proferido em 13 de junho de 2018 (acórdão nº ...09 ) transitado em julgado no dia 4 de julho de 2018, nos termos do qual o Requerido foi condenado numa pena de 1095 (mil e noventa e cincos) dias, ou, seja, de 3 (três) anos de prisão, pela prática de:

- um crime de homicídio involuntário por condução de veículo terrestre em violação motora e manifestamente deliberada de um dever de segurança ou cuidado, cometido em Montbeugny, Allier França, entre 24 e 25 de Março de 2016, previsto e punido pelos artigos 221º-6-1 1º e 221º-6, al. i C, 22º-6-1, al. 2, 221º-8, 221º-10 C do código penal, e 232º-1 e L.224º-12 código da estrada franceses; e de

- um crime de ferimentos involuntários com incapacidade não superior a 3 (três) meses por condutor de veículo motorizado ou de violação manifestamente deliberado de um dever de segurança ou prudência, previsto e punido pelos artigos 222º-20-1 1º e 222º-19, al. i, L.232º-2 C, 222º-20-1, al. 2 , 222º-44, 222º-46, do código penal e L.22412 do código da estrada franceses.

A sobredita pretensão estriba-se na Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro, na redação que lhe foi introduzida pela Lei nº 115/2019, de 12 de setembro, que aprovou o regime jurídico da transmissão e execução de sentenças em matéria penal que imponham penas de prisão ou outras medidas privativas da liberdade, para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia, bem como o regime jurídico da transmissão e execução de sentenças e de decisões relativas à liberdade condicional para efeitos da fiscalização das medidas de vigilância e das sanções alternativas.

O petitório consubstancia-se no reconhecimento e execução em Portugal da sentença em matéria penal que impôs ao Requerido uma pena de prisão, proferida pela autoridade competente de outro Estado membro da União Europeia (França), com o objetivo de facilitar a reinserção social do condenado - cf. art. 1º, n.º 1, 2ª parte, da Lei n.º 158/2015, de 17.09. Esta Lei nº 158/2015, transpondo a Decisão-Quadro 2008/909/JAI, de 27 de novembro, do Conselho, veio substituir o regime de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira, previsto e regulado nos arts. 234º a 240º do Código de Processo Penal, estabelecendo para estes casos um procedimento específico mais simples e célere, que se insere no âmbito da cooperação internacional em matéria penal, visando concretamente o reconhecimento da sentença penal estrangeira e a execução, em Portugal, da condenação. Com efeito, de acordo com o disposto no art. 229º do referido código, os efeitos das sentenças penais estrangeira são regulados pelos tratados e convenções internacionais e, na sua falta ou insuficiência, pelo disposto em lei especial e ainda pelas disposições do seu Livro V (Relações com autoridades estrangeiras e entidades judiciárias internacionais).

Preceitua o artigo 16º, n.º 1, da Lei nº 158/2015 [diploma legal a que nos referimos sempre que outro não seja invocado], que “Recebida a sentença, devidamente transmitida pela autoridade competente do Estado de emissão e acompanhada da certidão emitida de acordo com modelo que consta do anexo i à presente lei, o Ministério Público promove o procedimento de reconhecimento, observando-se o disposto no artigo seguinte.”

Por seu turno, dispõe o artigo 17º [com a epígrafe "Causas de recusa de reconhecimento e de execução"]:

“1- A autoridade competente recusa o reconhecimento e a execução da sentença quando:

a) A certidão a que se refere o artigo 8.º for incompleta ou não corresponder manifestamente à sentença e não tiver sido completada ou corrigida dentro de um prazo razoável, entre 30 a 60 dias, a fixar pela autoridade portuguesa competente para o reconhecimento;

b) Não estiverem preenchidos os critérios definidos no n.º 1 do artigo 8.º;

c) A execução da sentença for contrária ao princípio ne bis in idem;

d) Num caso do n.º 2 do artigo 3.º, a sentença disser respeito a factos que não constituam uma infração, nos termos da lei portuguesa;

e) A pena a executar tiver prescrito, nos termos da lei portuguesa;

f) Existir uma imunidade que, segundo a lei portuguesa, impeça a execução da condenação;

g) A condenação tiver sido proferida contra pessoa inimputável em razão da idade, nos termos da lei portuguesa, em relação aos factos pelos quais foi proferida a sentença;

h) No momento em que a sentença tiver sido recebida, estiverem por cumprir menos de seis meses de pena;

i) De acordo com a certidão, a pessoa em causa não esteve presente no julgamento, a menos que a certidão ateste que a pessoa, em conformidade com outros requisitos processuais definidos na lei do Estado de emissão:

i) Foi atempada e pessoalmente notificada da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão, ou recebeu efetivamente por outros meios uma informação oficial da data e do local previstos para o julgamento, de uma forma que deixou inequivocamente estabelecido que tinha conhecimento do julgamento previsto e que foi atempadamente informada de que podia ser proferida uma decisão mesmo não estando presente no julgamento;

ii) Tendo conhecimento do julgamento previsto, conferiu mandato a um defensor por si designado ou beneficiou da nomeação de um defensor pelo Estado, para sua defesa, e foi efetivamente representada por esse defensor; ou

iii) Depois de ter sido notificada da decisão e expressamente informada do direito a novo julgamento ou a recurso que permita a reapreciação do mérito da causa, incluindo a apresentação de novas provas, que pode conduzir a uma decisão distinta da inicial, declarou expressamente que não contestava a decisão ou não requereu novo julgamento ou recurso dentro do prazo aplicável;

j) Antes de ser tomada qualquer decisão sobre o reconhecimento e execução da sentença, Portugal apresentar um pedido nos termos do n.º 4 do artigo 25.º, e o Estado de emissão não der o seu consentimento, nos termos da alínea g) do n.º 2 do mesmo artigo, à instauração de um processo, à execução de uma condenação ou à privação de liberdade da pessoa em causa devido a uma infração praticada antes da sua transferência mas diferente daquela por que foi transferida;

k) A condenação imposta implicar uma medida do foro médico ou psiquiátrico ou outra medida de segurança privativa de liberdade que, não obstante o disposto no n.º 4 do artigo anterior, não possa ser executada em Portugal, em conformidade com o seu sistema jurídico ou de saúde;

l) A sentença disser respeito a infrações penais que, segundo a lei interna, se considere terem sido praticadas na totalidade ou em grande parte ou no essencial no território nacional, ou em local considerado como tal.”

Urge ainda trazer à liça o artigo 3º, n.º 2, que prescreve que “No caso de infrações não referidas no número anterior, o reconhecimento da sentença e a execução da pena de prisão ou medida privativa da liberdade, da fiscalização das medidas de vigilância e das sanções alternativas, bem como o reconhecimento da decisão relativa à liberdade condicional pela autoridade judiciária portuguesa competente, ficam sujeitos à condição de a mesma se referir a factos que também constituam uma infração punível pela lei interna, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação na legislação do Estado de emissão(sublinhado nosso).

No caso vertente, o acórdão objeto de reconhecimento condenou o ora Requerido pela prática de um crime de homicídio involuntário por condução de veículo terrestre em violação motora e manifestamente deliberada de um dever de segurança ou cuidado, previsto e punido pelos artigos 221º-6-1 1º e 221º-6, al. i C, 22º-6-1, al. 2, 221º-8, 221º-10 C do código penal, e 232º-1 e L.224º-12 código da estrada franceses; e de um crime de ferimentos involuntários com incapacidade não superior a 3 (três) meses por condutor de veículo motorizado ou de violação manifestamente deliberado de um dever de segurança ou prudência, previsto e punido pelos artigos 222º-20-1 1º e 222º-19, al. i, L.232º-2 C, 222º-20-1, al. 2 , 222º-44, 222º-46, do código penal e L.22412 do código da estrada franceses, com a corresponde previsão e tipificação no Código Penal Português, constituindo os factos pelos quais foi condenado, elencados supra.

Independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação, o crime de homicídio por negligência, p. e p. nos termos do disposto no art. 137º do citado diploma legal, sendo punível com pena de prião até 3 (três) anos ou multa, ou, no caso de negligência grosseira, até 5 (cinco) anos de prisão, e o crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. nos termos do disposto no art. 148º do mesmo diploma legal, sendo punível com pena de prisão até 1 (um) ano ou multa até 1 20 (cento e vinte) dias ou com pena de prisão até 2 (dois) anos ou multa até 240 (duzentos e quarenta) dias, se resultar ofensa à integridade física grave, pelo que se verifica condição da dupla incriminação, exigida pelo citado nº2 do art. 3º da Lei nº 158/2015.

A argumentação em que o Requerido sustenta o não reconhecimento e execução do acórdão que vem requerido, ancorada em que a pena nela aplicada ao mesmo pela justiça francesa é inferior a 3 anos de prisão, não constitui fundamento para tanto, porque, como decorre do disposto na alínea h) do nº1 do art. 17º da citada Lei, o motivo de recusa de reconhecimento e execução que se prende com a duração da pena de prisão aplicada e da duração que dela falta cumprir, só existe se a pena que estiver por cumprir no momento em que a sentença estrangeira for recebida for inferior a 6 (seis) meses, o que, manifestamente, não se verifica no caso em vertente.

Com efeito, a pena aplicada ao Requerido no acórdão cujo reconhecimento e execução vem peticionado a este Tribunal, foi a de 1095 (mil e noventa e cincos) dias de prisão, ou, seja, 3 (três) anos de prisão, estando, por isso, fora da abrangência do motivo de recusa de reconhecimento e de execução previsto na citada alínea h) do nº1 do art. 17º da referida Lei 158/2015.

Cremos que, ao sedimentar o não reconhecimento e execução do acórdão que vem peticionado no nº1 do art. 3º da Lei 158/2015, o Requerido confundiu o requisito da dupla incriminação, que se exige, no nº2 do mesmo art. 3º, para as infrações que não estão elencadas nas alíneas a) a ff) de tal preceito legal - como é o caso dos crimes pelos quais o requerido foi condenado – com a dispensa do mesmo para as infrações que estão elencadas nas alíneas a) a ff) do invocado nº1 daquele art. 3º, quando estas sejam puníveis, de acordo com a lei do Estado de emissão, com pena privativa de liberdade de duração máxima não inferior a três anos.

In casu não estamos em presença de nenhuma das infrações elencadas no nº1 do citado art. 3º, e, por isso, sendo exigível, como é, o controlo da dupla incriminação, nos termos do nº2 do mesmo, o requisito da dupla incriminação verifica-se, como já deixámos dito, não constituindo motivo para o não reconhecimento e execução do acórdão proferido pelo tribunal do Estado emissor relativamente à pena de prisão que nele foi aplicada ao Requerido, porque, aquando do recebimento desse acórdão, mostra-se dela por cumprir muito mais do que 6 meses da pena nele aplicada ao Requerido, mesmo que a esta cumpra descontar, aquando da respetiva execução, 97 dias de prisão preventiva sofridos pelo mesmo (a título de medida de coação e não de pena), como previsto no artigo 80º do Código Penal Português.

Também quanto à pretendida suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada, igualmente almejada pelo Requerido em sede de oposição, não poderá a mesma proceder.

E, tal assim é, porque, o pressuposto da cooperação judiciária internacional é a confiança entre as autoridades dos países cooperantes, por um lado, e a lógica do cumprimento de sentença estrangeira, assente no menor desfiguramento possível da pena aplicada pelo país da condenação.

Á luz de tal princípio o tribunal português, do Estado da execução, fica vinculado pela natureza jurídica e pela duração da sanção aplicada pelo tribunal do Estado da emissão, no caso o tribunal francês, não podendo, por isso, ser ponderada pelo tribunal do Estado da execução a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao Requerido por este almejada, porque o tribunal francês que o condenou se decidiu pelo seu cumprimento efetivo da mesma, não podendo, por isso, deixar de manter-se inalterada a efetividade da pena de prisão aplicada.

Assim, não poderá deixar de improcede a oposição deduzida pelo Requerido, uma vez que se mostram preenchidos todos os pressupostos de que depende o reconhecimento da sentença estrangeira em questão e a execução, em território português, da pena de prisão nela aplicada ao Requerido, conforme é solicitado.

Com efeito, desde logo a sentença foi transmitida a Portugal para esses efeitos, pela autoridade competente do Estado de emissão (França), acompanhada da certidão cujo modelo consta do anexo I à Lei n.º 158/2015, a qual se mostra devidamente preenchida e traduzida para a língua portuguesa, correspondendo à decisão judicial (cf. arts. 8º, n.º 1, 16º, n.º 1, 17º, n.º 1, als. a) e b), e 19º, n.ºs 1 e 2, desse diploma).

Por outro lado, não se verifica qualquer outra das causas de recusa de reconhecimento e de execução previstas nas restantes alíneas do n.º 1 do artigo 17º, nem qualquer dos motivos de adiamento dos mesmos nos termos do seu artigo 19º.

Particularmente, não há notícia de que a execução contrarie o princípio ne bis in idem, nos termos da lei portuguesa, a pena não se mostra prescrita, não existe uma imunidade que impeça a execução da condenação, o condenado mostra-se imputável em razão da idade (nasceu a ../../1996, sendo que os factos foram perpetrados no na noite do 24 para 25 de Março de 2016).

Acresce que o requerido esteve presente no julgamento e foi assistido por defensor [cfr. al. ii) do artigo 17º], e nenhuma das infrações em causa foi praticada em território nacional ou em local considerado como tal [cfr. al. l) do artigo 17º].

Mais se constata que o requerido tem nacionalidade portuguesa e encontra-se a residir em Portugal, tendo a autoridade de emissão considerado que a execução da condenação neste país contribuirá para atingir o objetivo de facilitar a reinserção social do condenado, prescindindo a lei do consentimento do requerido para o efeito – cf. arts. 10º, nº5 a) e 17º, nº1, al. b).

Por fim, cumpre, ainda, dizer o seguinte, tendo em conta o que para tanto se preceitua no art. 4º, nº1 da Lei 158/2015:

A execução do acórdão penal cujo reconhecimento e execução vem peticionado, faz-se em conformidade com a legislação processual, penal e penitenciária portuguesa, beneficiando o condenado das medidas de clemência - amnistia, perdão genérico e indulto - que tenham sido concedidas por Portugal mesmo antes de o condenado aqui ter iniciado a execução daquela sentença/acórdão.

No caso em vertente, os crimes pelos quais o Requerido foi condenado no acórdão cujo reconhecimento e execução vem pedido, mostram-se previstos e punidos nos termos dos arts. 137º e 148º do Código Penal Português, não estão excluídos do perdão concedido pela Lei 38-A/2023, de 2.08 e o Requerido tinha à data da prática dos factos que estão subjacentes a tal condenação idade inferior a 30 anos.

Face ao que, não pode deixar de beneficiar da aplicação do perdão de 1 (um) ano de prisão, previsto nos art. 2º, 3º, nº1, sob a condição resolutiva prevista no nº1 do art. 8º da citada Lei.

Por conseguinte, cumpre proceder ao reconhecimento do acórdão e à execução da condenação em Portugal que vem peticionada, declarando perdoado 1 (um) ano de prisão à pena de 3 (três) anos de prisão aplicada ao requerido.

Para o cômputo a que se refere o artigo 477.º, n.º 2 do CPP será levado em conta todo o tempo de privação de liberdade sofrido pelo requerido, nos termos considerados provados em II- 2), em conformidade com a certidão junta aos presentes autos (original e tradução).

Tendo em vista a execução do acórdão em apreço, há que atender à regra de competência constante do artigo 13.º, n.º 2 da citada Lei n.º 158/2015, e bem assim aos termos previstos no artigo 14.º do mesmo diploma, mormente os referentes ao estabelecimento prisional para aquela execução.

           


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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação em:

a) Reconhecer e declarar exequível o acórdão proferido em 13.06.2018, pelo Tribunal de Grande Instância de Moulins, França, transitado em julgado em 4.07.2018, confirmando a respetiva condenação do cidadão português …, na pena de 3 (três) anos de prisão, da qual se declara perdoado 1 (um) ano de prisão, ao abrigo do disposto no art. 2º, 3º, nº1, sob a condição resolutiva prevista no nº1 do art. 8º da mesma citada Lei.

b) Determinar que a referida pena de prisão seja executada em Portugal, após o cômputo da liquidação da mesma, quanto ao remanescente que falta cumprir, competindo tal execução ao tribunal da área da última residência conhecida do requerido, em conformidade com o preceituado no artigo 13.º, n.º 2 da Lei n.º 158/2015, de 17 de Setembro, ao qual competirá, ainda, a sujeição do Requerido a Termo de Identidade e Residência, requerido pela justiça francesa, como medida com vista a assegurar a permanência do condenado em território nacional (art. 22º, nº1 da Lei 158/2015, de 17.09, e art. 196º do CPP).

- Sem custas.

- Notifique.

- Após trânsito:

- Informe nos termos previstos nos artigos 20.º, n.º 1 e 21.º, alínea c), ambos da Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro.

- Cumpra o disposto no artigo 14.º, n.º 1, com referência ao artigo 13.º, n.º 2, ambos da Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro.


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Coimbra, 23 de julho de 2025

(Turno de férias)

(Texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários – art. 94º, nº2 do CPP )

(Maria José Guerra – relatora)

(Cristina Branco– 1ª adjunta)

(Paulo Correia– 2º adjunto)