I - No crime de violência doméstica não é obrigatória a aplicação de pena acessória.
II - Resulta do artigo 34.º-B, n.º 1, da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, que a lei entende o afastamento do agressor como regra a observar seja enquanto condição da suspensão da execução da pena de prisão, seja como pena acessória, seja como integrante do regime de prova.
III - A pena de prisão efectiva implica um real afastamento entre o agressor e a vítima, tornando-se desnecessário retirar à vítima a possibilidade de gerir o afastamento como entender.
IV - Se arguido e vítima têm uma filha menor em comum, tal implica a concertação de decisões entre ambos.
V - Sendo aplicada ao arguido pena de prisão efectiva mostra-se desnecessária a aplicação da pena acessória de proibição de contactos com a vítima.
Acordam, em conferência (turno), no Tribunal da Relação de Coimbra.
I.
No processo comum coletivo que, com o nº 65/24.0GACND, corre termos no juízo central criminal de Coimbra foi o arguido … condenado como autor material de um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelos artigos 152 nº 1 b), c) e 2 a) e de um crime de ameaça agravada, previsto e punido, pelos art. 153 nº 1 e 155 nº 1 a), com referência ao art. 131º, todos do Código Penal, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão efetiva.
*
Inconformado com a condenação recorreu para este Tribunal concluindo do seguinte modo ( transcrição):
1. Objecto do Recurso: …
2. Matéria de Recurso: Recurso em matéria de Direito;
3. Delimitação do objecto do presente recurso:
Pretende o recorrente a:
a) Suspensão da execução da pena concretamente aplicada, subordinada a deveres ou regras de conduta;
b) Não aplicação ao arguido da pena acessória de proibição de contactos com a vítima …
4. Da Suspensão da execução da pena concretamente aplicada, subordinada a deveres ou regras de conduta:
O recorrente rejeita, de facto, que a pena de prisão efetiva seja a única espécie de pena que realize, no caso concreto, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, uma vez que, não se encontram esgotadas todas as virtualidades pedagógicas e ressocializadoras que uma pena não detentiva poderá ainda ter sobre o mesmo.
5. O recorrente considera que o Tribunal a quo deveria ter partido de uma premissa que não partiu – da premissa de que as penas devem ter sempre um carácter ressocializador.
6. Pelo que entende o recorrente que o Acórdão recorrido deve ser revogado, devendo ser substituído por outro que determine a suspensão da execução da pena, por esta, ainda, realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
…
9. Contrariamente ao referido pelo Tribunal a quo, entende o recorrente que é, ainda, possível fazer um juízo de prognose social favorável.
…
12. Cumpre ressaltar que:
- até à sua prisão preventiva, o arguido estava activo profissionalmente;
- é visto como um trabalhador sério e honesto (ponto 41 dos factos provados);
- em ambiente prisional, vem experimentando o arguido um comportamento globalmente adequado às normas e regras institucionais, estando inserido na frequência escolar e colaborando em uma parceria de actividades externas com uma empresa de cerâmica local (ponto 43 dos factos provados);
- beneficia do apoio e contacto da sua mãe (ponto 44 dos factos provados);
- aliás, em rigor, de toda a família.
13. Mais: no caso de ser concedida ao recorrente a suspensão da execução da pena, o mesmo, de imediato, terá a faculdade de retomar o seu anterior emprego, como referido, em audiência de discussão e julgamento, pela testemunha …, gerente da sua antiga entidade patronal.
14. Acresce que, como decorre do relatório social, o recorrente: - “Instado a avaliar criticamente o tipo de conduta criminal em causa no presente processo, mostra-se capaz de identificar a incorreção da conduta, compreendendo a necessidade de intervenção da Justiça.
- Reconhece que o presente processo acarretou já significativo impacto na sua vida, uma vez que interrompeu os consumos de substâncias psicoactivas, verbalizando disponibilidade para dar prossecução a intervenção terapêutica fora do contexto prisional”.
15. E nesse sentido, o Recorrente reitera, aqui, o que declarou ao Tribunal a quo:
- não pretende uma suspensão simples;
- mas sim uma suspensão subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta.
16. Entende o recorrente que as suas anteriores condenações não devem ser um impedimento à suspensão ora pretendida.
17. Nenhum dos crimes anteriores é da mesma natureza dos crimes do presente processo.
…
21. Não aplicação ao arguido da pena acessória de proibição de contactos com a vítima …
Decidiu o Tribunal a quo aplicar ao recorrente a pena acessória de proibição de contactos (por qualquer meio – presencial, interposta pessoa, telefónico, escrito ou através das redes sociais) com a vítima …, pelo período de quatro anos.
22. Entende-se que tal proibição determinará, inevitavelmente, o fim do projecto familiar do casal e quando existe uma filha, apenas com 5 (cinco) anos de idade.
23. Nenhuma relação resiste a um “afastamento” tão longo.
24. Importa referir que a vítima …, após ter conhecimento da aplicação de tal proibição, veio, aos autos, declarar que pretende continuar a ter contactos com o recorrente (cfr. Refª Citius 9632123, de 01 de abril último).
25. Há que respeitar tal vontade, sob pena de ilegítima ultrapassagem da liberdade e da autonomia de vontade da própria ofendida; neste sentido, veja-se Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 29.11.2016, Processo nº 195/15, Relator João Amaro, consultável em www.jusnet.pt, referência JusNet 8172/2016.
26. A manter-se tal pena acessória, está-se também a penalizar a …, o que é uma injustiça.
27. Pelo que, deve o arguido ser absolvido da aplicação da pena acessória decretada.
29. Das normas violadas: artigos 40º; 50º e nº 4, do artigo 152º, todos, do Código Penal.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, decretar-se:
a) a suspensão da execução da pena de prisão concretamente aplicada ao arguido, com a imposição dos deveres e regras de conduta que se julgarem convenientes;
b) a absolvição do arguido da pena acessória de proibição de contactos com a vítima.
Assim se fazendo JUSTIÇA.
*
Admitido o recurso, a ele respondeu o Ministério Público na primeira Instância defendendo a confirmação da decisão recorrida.
II.
Cumpre apreciar e decidir, tendo em conta que a apreciação do recurso é balizada pelas conclusões do recorrente - sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – e que, analisando a síntese conclusiva, são apenas duas as questões a solver: a de saber se a pena de prisão imposta ao recorrente deve ser suspensa na sua execução e se deve ser revogada a pena acessória de proibição de contactos com a ofendida.
*
Por ter interesse para a decisão do presente recurso passa a transcrever-se a matéria de facto fixada em primeira instância, e bem assim as considerações sobre a não suspensão da pena e sobre a imposição da pena acessória:
1 – o arguido e … viveram como se marido e mulher fossem desde o dia 8 de Novembro de 2018, primeiramente na Rua …, durante cerca de dois ou três anos, depois em …, ao longo de um ano, e, posteriormente, na Rua …, na casa do pai do arguido, até este último (arguido) ser preso preventivamente à ordem dos presentes autos;
2 – da união acabada de referir nasceu, em ../../2019, …, que se encontra à guarda dos avós maternos desde 2021;
3 – um ano após o início do relacionamento, o arguido começou a demonstrar um comportamento ciumento e controlador, verificando as redes sociais da …, controlando os seus contactos e limitando as suas saídas, chegando mesmo a proibi-la de manter os encontros com as amigas à quinta-feira, como era hábito;
4 – o arguido mantém consumos de bebidas alcoólicas e de produtos estupefacientes (haxixe e cocaína) e, quando influenciado por tais consumos, altera o seu comportamento, exaltando-se e tornando-se violento;
5 – quando a … se encontrava grávida de seis ou sete meses, na residência comum em …, durante a tarde, o arguido jazia deitado no chão da casa de banho, embriagado, e, quando aquela se aproximou, o arguido desferiu-lhe um empurrão, atingindo-a na zona do peito;
6 – quando a filha do casal tinha cerca de três meses, e se encontravam a residir temporariamente em …, em casa de amigos, o arguido chegou a casa já influenciado pela ingestão de bebidas alcoólicas e, quando foi confrontado pela … para ser mais responsável, exaltou-se, colocando a sua companheira na rua, ficando com a bebé no interior da residência;
7 – nesse momento, a aludida … ouviu a sua filha … chorar e, atemorizada, face ao estado do arguido, partiu o vidro de uma janela e entrou na residência, mas nesse instante o arguido desferiu-lhe um empurrão, tendo ambos caído no chão junto a umas escadas, o que provocou hematomas nos braços e nas pernas da …;
8 – já após a chegada dos pais da …, o arguido muniu-se de uma faca, mas o pai daquela retirou-lha de imediato;
9 – em um sábado de Julho de 2020, após um almoço com um casal amigo, o arguido embriagou-se e mostrou-se fisicamente incapaz de sair com aquele casal e a sua companheira;
10 – no período em que a … se encontrava a residir em casa dos seus progenitores, o arguido disse-lhe que ia esfolar o gato do casal, tendo-lhe enviado um vídeo, no qual era visível um animal pendurado;
11 – pouco tempo antes de o casal emigrar para a …, no domicílio comum, o arguido iniciou uma discussão com a … e, nesse decurso, puxou-lhe os cabelos, provocando a sua queda no solo, depois a arrastando pelo chão, até ao exterior da residência;
12 – no dia 4 de Abril de 2024, pelas 23 horas, no domicílio comum, o arguido manteve uma discussão com a …, mantendo-se muito nervoso pelo facto de a mesma ter defendido o seu colega de trabalho e, no decurso do diferendo, desferiu puxões de cabelo à sua companheira, provocando-lhe dores;
13 – no dia 6 de Abril de 2024, pelas 23 horas, o arguido deslocou-se ao local de trabalho da …, … e, ali chegado, demonstrando exaltação e estar influenciado pela ingestão de bebidas alcoólicas, perguntou pela …, porém não a localizando (pois a mesma havia-se escondido na cozinha do estabelecimento);
14 – nessa sequência, o arguido foi abordado, em dois momentos distintos, embora subsequentes, por … e … os quais lhe pediram para abandonar o local;
15 – na aludida ocasião, quando foi abordado pelo …, o arguido, em tom sério, disse-lhe que ia a casa buscar uma pistola e o matava;
16 – ainda nessas circunstâncias, o arguido efetuou um telefonema para a sua companheira …, em cujo decurso disse que a matava;
17 – nessa noite de 6 de Abril de 2024, quando a … ainda se encontrava no Posto Territorial de …, o arguido enviou-lhe do telefone com o número …, através da rede social “Messenger”, mensagens de texto com o seguinte teor: “eu mato te hoje”; “Tu hje vais ver o Diabo”; “Tas onde puta”; “Dessa n te livras”; “Atende já crlh”; “Eu vou perder a cabeça”; “Agr digo te já se n atenderes neste momento”; “Quando chegares a casa cravo te uma malha mas isso é certo”;“Quand vires a tua cadela morta aí abres os olhos”; “Tua vais morres”; “Puta de merda atende isso”; “Olha vou a pé pá casa agente vai falar depois disso é a última que te digo”; “Tende já crlh”; “Hje escreve tu morte”; “A tua cadela e Agr”; “Atende e melhor”; “Ou queres o vídeo da tua cadela morta”; “Se quiseres e Agr”; “Eu envio o tô”; “E a seguir és tu”; “Escreve isso”; “Vais atender”; “?”, “Amanhã tou aí cm a pistola”; “Acredita nisso e vou te marcar”; “Vou te matar a ti tmbm”; “Acredita nisso”;“Vou te matar puta”; “Sais te as 24 hoje”; “eu mato te”; “Tou a ir a pé outra x pá baixo hje n brincas cmg”; “Vou te matar agradeço”; “Vou aí kool Agr”; “E vais ver”; “Tu hje eu apanho te”; “Quando chegares a casa cravo te uma malha mas isso é certo”; “Tenho 2 de bar”; “Vais morrer hje”; “Escreve isso”; “Vou-te dar uma malha”; “Queres la ver morrer?”; “Top”; “E isso mm que quero fazer”;
18 – no dia 9 de Maio de 2024, encontravam-se na casa do pai do arguido (na morada referida na parte final do ponto 1 dos presentes factos assentes), onde este último e a sua companheira … então estavam alojados, duas munições, calibre 7,65 milímetros, de marca “Sellier & Bellot” (Classe B);
19 – desde data não concretamente apurada, mas pelo menos até à data aludida no ponto 18 (destes factos provados), o pai do arguido manteve na sua posse e guardou na dita residência as munições acabadas de descrever, sem que fosse titular de licença válida e emitida pelo organismo competente para a detenção, uso e porte daqueles objectos;
20 – no dia 8 de Junho de 2024, cerca das 22 horas e 30 minutos, no exterior da residência comum, o arguido, no decurso de uma discussão, quando a … estava a entrar na habitação, foi atrás desta e puxou-a por uma perna, fazendo com que caísse nas escadas, batendo com os braços no chão;
21 – de seguida, quando a … ainda se encontrava prostrada no solo, o arguido mordeu-a por várias vezes nas costas e nas pernas, do lado direito;
22 – após, e com o intuito de dissuadir o arguido do prosseguimento da sua actuação, a … agarrou em uma faca e, nesse momento, o arguido agarrou-a pelo pulso esquerdo, torcendo-o, puxando-lhe o braço para trás, fazendo com que deixasse cair a mencionada faca;
23 – em acto contínuo, o arguido agarrou a … pelo maxilar, exercendo força sobre a sua boca, tentando abrir-lha, partindo-lhe três dentes e fazendo com que começasse a sangrar;
24 – nesse instante, a … conseguiu fugir para a casa de uma vizinha, que mora em uma rua perpendicular, não sem antes o arguido a instar a dizer que tinha caído, porque senão ia ter problemas;
25 – como consequência direta e necessária dos actos do arguido, a … perdeu dentição, teve dores na face, na boca e na mão esquerda e sofreu uma equimose na zona da espinha ilíaca anterior superior direita;
26 – pelo menos em dez ocasiões, nas quais a … disse ao arguido que pretendia sair da residência e terminar o relacionamento, o arguido respondeu-lhe, em tom sério, que se isso acontecesse a mataria, bem como aos seus pais e à filha de ambos;
27 – ainda nessas circunstâncias, o arguido, sabendo do afecto que a … nutre pela sua cadela, disse-lhe que mataria tal animal, caso abandonasse a residência comum;
28 – em algumas situações em que a … disse ao arguido que ia sair do domicílio comum, chegando a fazer as malas para esse efeito, o arguido rasgou-lhe a roupa;
29 – no dia 26 de Junho de 2024, após a sua constituição em tal qualidade processual (ou seja, como arguido) e inerente interrogatório, o arguido telefonou para a …, dizendo-lhe que estava a ir para casa e que “iam ter uma conversinha”, causando pavor àquela;
30 – mesmo após a … recusar as chamadas subsequentes, o arguido telefonou-lhe, pelo menos, 27 vezes;
31 – o arguido actuou sabendo que estava a maltratar física e psicologicamente a sua companheira na residência comum, afectando a dignidade pessoal e a saúde daquela e violando os deveres de respeito e solidariedade que sabia lhe incumbirem, querendo agir da forma por que o fez;
32 – o arguido, ao actuar da forma descrita, fê-lo ainda sabendo que atingia a … na honra e consideração que lhe é devida, que molestava o corpo e a saúde da sua companheira, mãe da sua filha, causando-lhe dores, e agindo ainda com o propósito logrado de lhe provocar susto, inquietação e receio de vir a sofrer qualquer acto atentatório da sua integridade física ou mesmo da sua vida, querendo comportar-se da forma como o fez;
33 – o arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, com intenção, concretizada, de atingir a sua companheira na respectiva saúde física e psíquica, causando-lhe dores, stress psicológico e receio, lesando a sua integridade, honra e respeitabilidade pessoal e social, não se abstendo de levar a cabo tais condutas no domicílio da … e perante terceiros;
34 – o arguido sabia que tais actuações eram aptas a causar, como causaram e causam ainda, à sua (então) companheira dores, mal-estar, medo, tensão, inquietação, perturbação e trauma psicológico, dessa forma a humilhando e fragilizando psiquicamente, o que quis;
35 – ao agir da forma descrita, ao proferir a expressão acima referida a …, nas circunstâncias em que o fez e no tom sério e credível em que a proferiu, anunciando que ia buscar uma pistola e o iria matar, o arguido sabia que a sua conduta era adequada a fazer o visado sentir receio pela sua integridade física e pela sua vida, o que quis, representou e logrou;
36 – o arguido actuou de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito concretizado de provocar em … susto, inquietação e receio de vir a sofrer qualquer ato atentatório da sua integridade física e da sua vida, querendo agir da forma por que o fez;
37 – o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal;
38 – o arguido nasceu e cresceu no seio de uma família que sempre se debateu com alguns problemas de natureza relacional, mormente no que toca a episódios de alcoolismo e violência do pai sobre a progenitora do arguido, até ocorrer o divórcio de ambos e, mais tarde, a condenação do primeiro em pena de prisão efectiva por violência doméstica;
39 – o arguido sentiu diversos problemas de adaptação e ajustamento às normas vigentes em ambiente escolar, concluindo um curso profissional de restauração, com equivalência ao nono ano de escolaridade, contava ele 18 anos de idade;
40 – começou, depois, a laborar em diversas áreas de actividade, primeiramente em restaurantes e estabelecimentos afins, mesmo no período de tempo em que esteve emigrado na … (durante cerca de um ano, entre fins de 2022 e finais de 2023) e, por outro lado, como desmatador e agente de limpeza de florestas;
41 – tais actividades laborais foram-se revestido de um carácter mais ou menos regular (sendo o arguido visto como um trabalhador sério e honesto), embora com diversos períodos temporais de inacção motivados, essencialmente, pelos efeitos do consumo de bebidas alcoólicas e substâncias estupefacientes, hábitos que adquiriu com 13 anos de idade e dos quais nunca se libertou ao longo da vida;
42 – para além da filha em comum que mantém com a acima identificada …, o arguido é ainda pai de outra criança, na actualidade com 12 anos, fruto de uma relação pontual, e que se encontra a viver junto da respectiva família materna, com a qual o arguido não mantém contacto;
43 – em ambiente prisional, vem experimentando o arguido um comportamento globalmente adequado às normas e regras institucionais, estando inserido na frequência escolar e colaborando em uma parceria de actividades externas com uma empresa de cerâmica local;
44 – vai beneficiando do apoio e do contacto da sua mãe;
…
*
Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa.
Assim, e designadamente, não se apurou que:
…
*
…
O preceito do art. 50º C.P. consagra um verdadeiro poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização das finalidades da punição, sempre que se verifiquem os pressupostos necessários.
Para o efeito referido será então necessário que o julgador possa fazer o tal juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena se mostrará adequada e bastante para realizar os fins punitivos e, consequentemente, a ressocialização (em liberdade, note-se) do mesmo arguido.
Pois bem, o que se passa no nosso caso?
Passa-se inexistirem fundamentos susceptíveis de sustentarem a formulação do acima referido juízo de prognose social favorável relativamente ao arguido.
Com efeito, e reafirmando uma ideia que já tentámos expressar no presente acórdão, crê-se que a situação concreta não pode ser desenquadrada daquilo que parece uma clara apetência do arguido para a prática de delitos criminais em geral e particularmente delicados em especial (bastando pensar, a propósito, nos crimes de tráfico de estupefacientes de condenação mais ou menos temporalmente recente).
Outro aspecto essencial: bastará recordar que os factos em causa nos nossos autos ocorreram em pleno período de duas (e não apenas de uma…) suspensões de execução da pena, com regime de prova, relativas a duas condenações por, além do mais (e como há pouco referimos), crimes de tráfico de estupefacientes (sendo um deles, ainda assim, de menor gravidade)…
…
Mas também as exigências gerais de prevenção (maxime as que se ligam à ideia, já acima focada, de reforço da validade “fáctica” das normas violadas pelos comportamentos do arguido, ou seja, as que regem a necessidade de respeito pela personalidade e dignidade do outro, sobretudo quando esse outro é alguém notoriamente mais débil ou fraco e próximo do agente) quadrar-se-iam mal, neste momento, com uma hipotética suspensão de execução da pena de prisão.
…
*
Estabelece o n.º 4 do art. 152º C.P. que «nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima» (a especificar e controlar nos termos do n.º 5 do mesmo art. 152º) «e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de 6 meses a 5 anos, e de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica».
…
Ora, crê-se que o caso dos presentes autos revela os requisitos acabados de apontar, no tocante à necessidade de assegurar uma situação de afastamento do arguido em relação à vítima dos seus comportamentos criminalmente relevantes em termos de violência doméstica.
…
Portanto, ditarão a mais elementar prudência e o mais evidente bom senso que, após trânsito da presente decisão, e como pena acessória, se cristalize o actual estado de apartamento relativamente à sua ex-companheira AA.
No mais, relativamente à hipotética proibição de uso e porte de armas, por um lado, e à obrigação de frequência do arguido em programas específicos de prevenção da violência doméstica, por outro lado, crê-se apresentar-se a situação sub judicio algo inócua, dado que, como se compreenderá, não se demonstrou a perpetração do crime de violência doméstica através da utilização de armas, no mais assumindo a questão dos apontados programas profilácticos um pendor quase conatural à execução da pena principal e no âmbito do múnus próprio do órgão judicial competente para o controlo dessa mesma execução (Tribunal de Execução de Penas).
…
Pelo que, e em suma, crê-se adequado (sobretudo perante o quantum de pena parcelar principal atinente à violência doméstica) impor ao arguido, e tão-somente, a pena acessória de proibição de contactos (por qualquer meio – presencial, interposta pessoa, telefónico, escrito ou através de redes sociais) com a vítima …, pelo período de 4 anos.
(…)
A primeira questão trazida á apreciação deste tribunal diz respeito à suspensão da pena imposta ao recorrente. Não discute o recorrente a dimensão das penas parcelares, nem da pena única, apenas não se conforma com o facto de a pena de 4 anos e 6 meses de prisão não ter sido suspensa na sua execução.
…
Nos termos do artigo 50º do Código Penal, o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 (cinco) anos se atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Conforme decorre da lei, e é incontroverso, a suspensão de uma pena de prisão depende, portanto, da verificação de dois pressupostos: um formal - a sua duração inferior a 5 (cinco) anos - e um material - a prognose de que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição -.
Quanto ao pressuposto formal, ele está preenchido uma vez que o recorrente foi condenado numa pena de 4 anos e 6 meses de prisão.
Já quanto ao pressuposto material exige a lei, no referido artigo 50º do Código Penal, que o Tribunal ao tomar a decisão olhe, por um lado, para o arguido, isto é,
- para a sua personalidade,
- para as suas condições de vida,
- para a sua conduta anterior e posterior ao crime e
- para as circunstâncias em que o crime foi praticado,
e, por outro lado, olhe
- para a sociedade, sobretudo para as razões de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa da própria sociedade.
Vejamos, então, se é possível de forma “fundada e calculada”, usando as palavras de Figueiredo Dias in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do crime § 521, página 344, correr o risco de afirmar que a socialização do recorrente em liberdade pode ser alcançada, na certeza de que se houver razões para duvidar da capacidade do recorrente de não cometer crimes se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e, com ele, negada a suspensão.
Analisemos, pois, a pretensão do recorrente, confrontando os vários segmentos do pressuposto material do artigo 50º com a matéria de facto provada e definitivamente assente.
Comecemos por atentar na personalidade do arguido.
Resulta, em apertada síntese, da sentença recorrida que o arguido é ciumento e controlador, violento, sobretudo quando ingere bebidas alcoólicas e consome drogas, ameaçador, agressivo e impulsivo, tantas são as situações de agressão física e psicológica que se provaram.
A personalidade do arguido, assim resumida, é reveladora de uma deficiente formação pessoal, de dificuldade em viver pacificamente em família, de se autocontrolar. A facilidade com que reage com agressividade, sem controlo de impulsos, conjugada com o consumo de álcool e drogas, torna muito difícil, se não impossível, olhar com esperança o futuro do arguido em liberdade. De facto, não obstante ter já ultrapassado os trinta anos de idade, o arguido não se tem revelado capaz de moldar a sua personalidade às exigências da vida em família e em sociedade, apresentando um modo de ser que carece seriamente de correção.
Atentemos agora nas condições da sua vida.
Consta da matéria de facto que o recorrente nasceu e cresceu no seio de uma família com problemas de relacionamento, com episódios de violência doméstica que culminaram no divórcio dos pais e na prisão efetiva do pai; que sentiu problemas de adaptação e ajustamento às normas vigentes em ambiente escolar e que desenvolveu atividades profissionais variadas, de forma positiva, mas condicionada pela problemática aditiva de que sofre desde os 13 anos de idade e da qual nunca se libertou.
As circunstâncias de vida do arguido evidenciam restrições e limitações ao desenvolvimento pessoal harmonioso e equilibrado. Mas se, como é sabido, todos estes fatores são condicionantes da personalidade, também é certo que muitas pessoas há que, enfrentando níveis de vida difíceis, encetam dinâmicas pessoais de superação e não enveredam por caminhos desviantes.
Ao arguido, como a qualquer pessoa, seria exigível que tirasse partido da sua capacidade de trabalho, dado ser um fator essencial para a integração social, e que se sujeitasse seriamente a tratamento contra as dependências, tendo em vista a sua valorização pessoal.
É que, por pior que sejam as circunstâncias da vida é sempre possível tentar mudá-las, não se percebendo que o arguido sequer tenha questionado o que podia ter feito de diferente na condução da sua vida, ao longo dos últimos 15 anos, correspondentes ao tempo da sua vida adulta.
Olhemos agora para a conduta anterior e posterior ao crime.
Como decorre do certificado de registo criminal e está projetado nos pontos 45 a 48 da matéria de facto, o arguido desde 2010 vem praticando crimes tendo sido condenado por crimes de furto qualificado, condução sem habilitação legal, furto de uso de veículo, introdução em lugar vedado ao público, tráfico de menor gravidade, tráfico de estupefacientes e detenção de arma proibida; foi sujeito a penas privativas e não privativas de liberdade e estava em cumprimento de pena suspensa, quando cometeu o crime em apreciação nos autos.
Este resumido comportamento fala por si: o arguido desde a sua juventude não se intimidou com as penas não privativas de liberdade que lhe foram aplicadas, não refletiu sobre as causas e consequências do seu comportamento, não mudou de vida e de valores comportamentais, enfim, não procurou aprender a viver em sociedade.
Finalmente, recordemos o crime que foi praticado.
Resulta da matéria de facto provada que o arguido exerceu violência sobre a vítima …, traduzida em diversos comportamentos de grande agressividade física e psicológica que não deixaram qualquer dúvida sobre a correção da sua condenação pelo crime de violência doméstica.
A violência doméstica é um dos crimes que atualmente a sociedade mais reprova, por deixar marcas nas vítimas, se não insuperáveis, pelo menos durante muito tempo, como é do conhecimento geral.
Estamos, portanto, perante um crime grave, cuja punição é reclamada socialmente de forma inequívoca.
Terminado aqui o olhar que recaiu sobre o arguido é possível concluir que analisados, pelo confronto com a matéria de facto provada, cada um dos segmentos do pressuposto material exigido pelo artigo 50º do Código Penal para a suspensão da pena de prisão, não há dúvida de que bem andou o Tribunal a quo em negar o juízo de prognose positiva que a suspensão pressupunha.
É que quer pela personalidade, quer pelas condições de vida, quer pelos antecedentes criminais o Tribunal não consegue sustentar a confiança de que em liberdade o arguido não cometeria crimes.
Acresce, ainda, que – e olhando agora para a sociedade - mesmo que as exigências de prevenção especial não fossem elevadas – e são-no efetivamente – à suspensão claramente se opunham considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, porque por elas se limita sempre o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto da suspensão da pena (Cfr. Figueiredo Dias ob cit § 520, 344). Efetivamente, pergunta-se: compreenderia a sociedade que ficasse em liberdade um indivíduo a quem tantas oportunidades foram judicialmente concedidas e que estando a cumprir uma pena suspensa por um crime tão grave e lesante da própria sociedade como é o tráfico de droga, pratica um outro crime grave como é a violência doméstica? Certamente que não.
Portanto, o juízo de prognose é claramente negativo, pelo que bem andou o tribunal a quo ao não suspender a pena imposta.
…
Vejamos agora a segunda questão invocada pelo recorrente e que diz respeito à não imposição da pena acessória de proibição de contactos.
Efetivamente ao arguido foi imposta a pena acessória de proibição de contactos (por qualquer meio – presencial, por interposta pessoa, telefónico, escrito ou através de redes sociais) com a vítima … (incluindo na residência e no eventual local de trabalho desta, com cumprimento a ser oportunamente fiscalizado, e se necessário, por meios técnicos de controlo à distância), pelo período de 4 anos.
Discorda o recorrente da imposição da pena acessória de proibição de contactos pelo entendimento que tal proibição “determinará inevitavelmente o fim do projeto familiar do casal e quando existe uma filha apenas com 5 anos de idade”.
Entende o tribunal a quo que tal se mostra imprescindível para proteção da vítima porque lidamos com uma pessoa que, com violência e indiferença, fez tábua rasa de valores essenciais do Estado de Direito a saber, os que se prendem com o respeito pelo semelhante, no caso a sua ex-companheira, razão pela qual afirma ser da mais elementar prudência e bom senso cristalizar o estado de apartamento entre ambos.
Vejamos, se assim é fazendo um breve enquadramento legal.
A tutela penal do crime de violência doméstica foi sendo, como se sabe, reforçada ao longo dos tempos, reforço esse que se estendeu às penas acessórias, especialmente a partir da revisão penal de 2007.
As penas acessórias apesar de pressuporem a aplicação de uma pena principal são autónomas em relação a esta, são graduadas dentro da sua própria moldura e com recurso a critérios gerais de determinação da pena. Mas não podem ser entendidas como efeitos das penas, porque o não são.
A pena acessória de proibição de contactos com a vítima foi pela primeira vez prevista na lei 7/2000 de 27 de maio.
Desde aí foi-se densificando, especialmente a partir da lei 59/2007 de 04/09, e é hoje entendida como uma importante forma de proteger a vítima do agressor condenado por violência doméstica.
O avanço da tecnologia permitiu, por sua vez, que a implementação da pena acessória de afastamento e proibição de contactos com a vítima pudesse ser fiscalizada por meios técnicos, popularmente designados por pulseira eletrónica (cfr. artigos 35º e 36º da Lei 112/2009 de 16/09 e Lei 33/2010 de 02/09). (Assim, existem situações em que ao arguido é imposta como pena acessória uma pulseira que avisa o órgão de controlo do local onde se encontra (tagging) - o que implica o consentimento do arguido - ou situações em que a pulseira sinaliza ao órgão de controlo a aproximação do arguido à residência ou local de trabalho da vítima (reverse tagging) - o que implica não só o consentimento do arguido, mas também da vítima).
Já o dissemos, a aplicação de uma pena acessória, como pena que é, tem de ser justificada e como constitui uma séria condicionante da vida do arguido, a sua implementação também não pode ser feita de forma injustificada.
Contrariamente ao que acontece, por exemplo, com a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor (artigo 69º do CP), a imposição de uma pena acessória nos crimes de violência doméstica não é obrigatória, bastando confrontar a redação legal para assim necessariamente se concluir: enquanto que no nº 1 do artigo 69º é dito que "é condenado na proibição de conduzir (…) quem for punido (…) por crimes ..." - não deixando a lei ao juiz qualquer possibilidade e equacionar a não aplicação da pena acessória, já o nº 4 do artigo 152º do Código Penal prevê que "nos casos previstos nos números anteriores (…) podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima(…)", conferindo ao juiz a possibilidade e o encargo de ponderar a necessidade de sublinhar a condenação na pena principal, com uma condenação em pena acessória.
Por outro lado, por força do que dispõe o artigo 34º-B, nº 1 da Lei 112/2009 de 16/09, que estabelece que "a suspensão da execução da pena de prisão do condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, impostos separada ou cumulativamente, ou ao acompanhamento do regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos por qualquer meio”, a lei entende o afastamento do agressor como regra a observar seja enquanto condição da suspensão, seja como pena acessória, ou como integrante do regime de prova.
No caso que nos ocupa o arguido foi condenado numa pena de prisão efetiva em estabelecimento prisional, o que implica, necessariamente, o afastamento da vítima, (que aliás, quando o soube veio aos autos (ref. 9632123) já depois da leitura da sentença, opor-se expressamente ao imposto afastamento e, consequentemente, à impossibilidade de sequer visitar o arguido, pai da sua filha, no estabelecimento prisional). De facto, a aplicação de uma pena de prisão efetiva, por força da própria natureza da pena, já implica um real afastamento, tornando-se desnecessário retirar à vítima a possibilidade de gerir o afastamento como entendesse e se o entendesse, tanto mais quanto, estando preso, o arguido deixou de oferecer perigosidade que tivesse de ser acautelada.
É certo que o tribunal a quo diz ao impor a pena acessória que é necessário cristalizar o apartamento entre ambos, mas estando necessariamente separados e à mercê da vontade da vítima que só visita o arguido se quiser, não se percebe qual o juízo de imprescindibilidade feito, nem quais os direitos da vítima que não ficariam acautelados de outro modo.
Acresce que resulta da matéria de facto que o arguido e a vítima estão separados, mas que têm uma filha em comum o que implica, naturalmente, a concertação de decisões entre os pais, porque o bem estar da filha o reclama.
Assim sendo, não se configura necessário impor a pena acessória de proibição de contactos, uma vez que os objetivos com ela pretendidos ficam assegurados com a situação de reclusão decidida e agora confirmada.
Procede, assim, neste segmento, a pretensão do recorrente.
*
III.
DECISÃO.
Em face do exposto decide-se julgar parcialmente procedente o recurso interposto por … absolvendo-o da pena acessória de proibição de contactos imposta em 1ª instância.
Em tudo o mais confirma-se o acórdão recorrido.
Sem custas.
Notifique.
Coimbra, 28 de julho de 2025
Maria Teresa Coimbra
Alexandra Guiné
Paula Roberto