CRIME DE INCÊNDIO FLORESTAL AGRAVADO
PRISÃO PREVENTIVA
PERIGO DE CONTINUAÇÃO DA ACTIVIDADE CRIMINOSA
PERIGO DE PERTURBAÇÃO GRAVE DA ORDEM E TRANQUILIDADE PÚBLICAS
INEXISTÊNCIA DE PATOLOGIA ASSOCIADO AO FOGO
DE VONTADE DE FAZER MAL A TERCEIROS
DE INTENÇÃO DE VINGANÇA E DE OBTER GANHO ECONÓMICO
REVOLTA CONTRA O MUNDO
DEPRESSÃO
STRESS
DESORIENTAÇÃO
Sumário

I - O perigo de continuação da actividade criminosa determina-se em função do risco concreto de o arguido voltar a praticar factos integradores do mesmo tipo de ilícitos, devendo ser aferido em função de um juízo de prognose a partir dos factos indiciados e personalidade do arguido neles revelada
II - Se a causa do crime foi a grave depressão, revolta, stress, desorientação e tentativa de chamar a atenção, existe um elevado perigo de continuação da actividade criminosa se a grave depressão se mantiver.
III - O crime de incêndio florestal perturba, de forma grave, a ordem e a tranquilidade públicas, criando sentimentos de revolta, indignação e pânico nas populações e intenso alarme na comunidade, atendendo à facilidade com que os incêndios podem propagar-se e os seus efeitos potencialmente devastadores.
IV - As populações exigem uma resposta severa por parte dos tribunais nos casos de crime de incêndio florestal.
V - A medida de obrigação de permanência na habitação, ainda que com vigilância electrónica, não é medida de coacção adequada, nem suficiente, em caso de crime de incêndio florestal, porque a arguida sempre poderia sair de casa e praticar factos idênticos e porque em tais casos a comunidade espera uma resposta musculada por parte do aparelho judiciário.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.


A – Relatório


1. No Inquérito nº 63/25.6GAOLR, que corre termos nos Serviços do Ministério Público da Procuradoria da República da Comarca de Castelo Branco – 2ª Secção de Inquéritos, foi sujeita a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, nos termos do artigo 141º do Código de Processo Penal, pelo Juízo de Competência Genérica de Oleiros, a 11.7.2025, a arguida

2. No âmbito da referida diligência, foi proferido despacho pela Ex.ma Juiz de Instrução que determinou a aplicação à arguida … da medida de coacção de prisão preventiva, para além do TIR já prestado, ao abrigo do disposto nos artigos 191º, 192º, 202º, nº 1, alínea a) e 204º, alínea c) do Código de Processo Penal, pela indiciada prática de quatro crimes de incêndio florestal agravado, previstos e punidos pelo artigo 274º, nºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal.

3. Inconformada com tal despacho, veio a arguida interpor recurso do mesmo, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

“a) A medida de prisão preventiva aplicada à arguido é excessiva, desnecessária, desproporcional e desadequada;

b) A sua aplicação é violadora dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade impostos no artigo 193.º do C.P.P.;

d) Deste modo a decisão sub judice, violou, ainda, o disposto nos artigos 193, n.º 2 e 3 do C.P.P., ao aplicar de imediato a prisão preventiva sem dar preferência à obrigação de permanência na habitação;

e) Ou seja, a prisão preventiva só é aplicável em último ratio. Pelo que as medidas de coação para serem aplicadas deverão respeitar, também, os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade;

f) A medida aplicada foi-o sem que, em concreto, estivessem verificados os pressupostos do artigo 204.º do C.P.P.;

g) Pois não se verifica um perigo eminente da continuação da actividade criminosa ou perturbação grave da ordem e a tranquilidade públicas por parte da arguida (artigo 204, n.º 1, al. c) do C.P.P.);

h) De facto, quanto ao perigo da continuação da actividade criminosa, deveria o Tribunal a quo ter ponderado a confissão da arguida e os intentos que a levaram a cometer os crimes indiciados como factores de diminuição daquele risco, e não o fez.

j) Deve, assim, ser revogada a medida de coação aplicada por violadora dos princípios subjacentes à sua aplicabilidade, aplicando-se em concreto outra medida que seja necessária e adequada às exigências cautelares do caso concreto e proporcional à gravidade dos factos.

k) A medida de coacção privativa da liberdade de obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância electrónica, acautela as garantias exigidas e revela-se suficiente no caso em apreço”.

4. O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pela arguida, pugnando pela sua improcedência …

5. O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da sua improcedência …

6. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo a arguida respondido ao douto parecer.

7. Respeitando as formalidades aplicáveis, após o exame preliminar e depois de colhidos os vistos, o processo foi à conferência, face ao disposto no artigo 419º, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal.

8. Dos trabalhos desta resultou a presente apreciação e decisão.


*

B - Fundamentação


1.

2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pela arguida, as questões a decidir são as seguintes:

- se inexistem os perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas;

- se a medida de prisão preventiva aplicada à arguida é excessiva, desnecessária, desproporcional e desadequada, devendo ser substituída pela medida detentiva de permanência na habitação, sob vigilância electrónica.

3. Para decidir das questões supra enunciadas, vejamos o despacho recorrido que apresenta o seguinte teor:

I. QUESTÕES PRÉVIAS


*

II. FACTOS CONCRETAMENTE IMPUTADOS

Nos presentes autos, mostram-se fortemente indiciados os seguintes factos:

1) No dia 4 de julho de 2025, pelas 10h00min., … circulava apeava pela Estrada Nacional n.º ...12, no sentido de ....

2) Após, a arguida … desceu umas escadas ali existentes, …

3) Nestas circunstâncias de tempo e lugar, e, sem que nada o fizesse prever, … aproximou-se de um muro que delimita um terreno inculto composto por árvores de fruto, videiras e erva seca, acendeu o isqueiro da marca “BIC” de cor amarela que trazia consigo e, com a chama acesa do mesmo, aproximou-o de vegetação seca ali existente.

4) Como consequência directa e necessária da sua conduta, o fogo por si ateado propagou-se pela zona florestal envolvente, composta por árvores de fruto, videiras e erva seca, numa extensão de cerca de 10 m2.

5) Perante o deflagrar das chamas, … continuou o seu caminho, tendo regressado à sua residência, sita …

6) O incêndio foi combatido por elementos da Junta de Freguesia … que ali se deslocaram de imediato, e, com recurso ao KIT de incêndio, conseguiram extingui-lo.

7) No dia 4 de julho de 2025, em ..., a temperatura máxima era 35.º graus, sem precipitação, e o vento era fraco.

8) O perigo de incêndio rural era máximo.

9) No dia 6 de julho de 2025, pelas 10h10min., na localidade de …, … circulava apeava pela Estrada Nacional n.º ...12, no sentido de ..., proveniente do café ….

10) Após, a arguida … desceu umas escadas ali existentes, as quais dão acesso a um atalho …

11) Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, e sem que nada o fizesse prever, … aproximou-se de uma rede de vedação que delimita um terreno agrícola inculto, pertencente a …, baixou-se, acendeu o isqueiro da marca “BIC” de cor amarela que trazia consigo e, com a chama acesa do mesmo, aproximou-o de vegetação seca ali existente.

12) Como consequência directa e necessária da sua conduta, os combustíveis mortos, finos e secos que ali existiam em abundância arderam descontroladamente, tendo-se propagado à vegetação ali existente.

13) Perante o deflagrar das chamas, … abandonou, de imediato, o local em direção à sua residência.

14) No decurso da actuação da arguida, ardeu, pelo menos, 0,002 hectares (20 m2) de vegetação espontânea, constituído essencialmente por combustíveis mortos, finos e secos.

15) O incêndio foi combatido por 10 bombeiros pertencentes aos Bombeiros Voluntários ... e dois elementos da GNR.

16) O incêndio foi declarado extinto cerca das 10h25min.

17) No dia 6 de julho de 2025, …, a temperatura máxima era 33, 8.º graus, sem precipitação, e o vento era fraco.

18) O perigo de incêndio rural era máximo.

19) No dia 8 de julho de 2025, pelas 08h05min., na localidade de …, … circulava apeava pela Estrada Nacional n.º ...12, no sentido de ....

20) Após, a arguida … desceu umas escadas ali existentes, as quais dão acesso a um atalho …

21) Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, e sem que nada o fizesse prever, … aproximou-se de um muro que delimita um terreno agrícola inculto composto por mato, baixou-se, acendeu o isqueiro da marca “BIC” de cor amarela que trazia consigo e, com a chama acesa do mesmo, aproximou-o de vegetação seca ali existente.

22) Como consequência directa e necessária da conduta da arguida, os combustíveis finos e mortos ali existentes entraram em combustão descontrolada que se propagou à vegetação ali existente.

23) Perante o deflagrar das chamas, … abandonou, de imediato, o local em direção à sua residência.

24) No decurso da atuação da arguida, ardeu, pelo menos, 0,002 hectares (20 m2) de vegetação espontânea.

25) O incêndio foi combatido por 7 (sete) bombeiros pertencentes aos Bombeiros Voluntários ....

26) O incêndio foi declarado extinto cerca das 08h20min..

27) O incêndio não atingiu maiores dimensões devido à rápida actuação dos Bombeiros Voluntários.

28) No dia 8 de julho de 2025, pelas 18h13min., na localidade de …, após ter-se deslocado ao curral onde tem os seus animais, … circulava apeada num caminho de terra batida em direção ao cemitério de ....

29) De seguida, AA continuou a circular apeada ao longo da estrada da ETAR no sentido poente.

30) Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, e sem que nada o fizesse prever, … aproximou-se de um talude florestal ali existente, baixou-se, acendeu o isqueiro da marca “BIC” de cor amarela que trazia consigo e, com a chama acesa do mesmo, aproximou-o de vegetação seca ali existente.

31) Como consequência directa e necessária da conduta da arguida, os combustíveis finos, médios, grossos e mortos ali existentes entraram em combustão, a qual se propagou lentamente à vegetação ali existente na direcção Sul-Norte.

32) Perante o deflagrar das chamas, … abandonou, de imediato, o local em direção à sua residência.

33) No decurso da atuação da arguida, ardeu, pelo menos 0,1 hectare de terreno constituído por sobreiros e 0,1 hectare de terreno constituído por mato e incultos.

34) O incêndio foi combatido por 114 (cento e catorze) bombeiros pertencentes aos Bombeiros Voluntários ....

35) O incêndio foi declarado extinto cerca das 19h00min..

36) Junto ao talude onde foi ateado o incêndio existia continuidade horizontal e vertical de vegetação arbórea e mancha florestal que dista a 160 metros da localidade ali existente.

37) No dia 8 de julho de 2025, em …, a temperatura máxima era 35, 5.º graus, sem precipitação, e o vento era moderado.

38) O perigo de incêndio rural era máximo.

39) Nos dias em apreço, o risco de incêndio rural determinado pelo IPMA era de “MÁXIMO” para o local, tendo em consideração a temperatura (superiores ou iguais a 35.º centígrados), humidade relativa, vento e ausência de precipitação.

40) Os incêndios supra descritos não tomaram maiores proporções devido à rápida intervenção dos bombeiros pertencentes à Corporação de Bombeiros Voluntários ... e aos elementos da Junta de Freguesia ....

41) A arguida conhecia os locais nos quais ateou os fogos, porquanto os mesmos são locais pelos quais a mesma circula diariamente.

42) Os locais onde ocorreram os incêndios suprarreferidos distam a cerca de 100 metros da residência da arguida.

43) Os locais onde ocorreram os incêndios suprarreferidos situam-se num caminho pedonal, caminho este utilizado pela arguida para se deslocar da sua residência até à Estrada Nacional n.º ...12, a qual atravessa a localidade de …

44) Os locais onde foram ateados os fogos situam-se junto às residências daquela localidade do ....

45) Ao todo, a arguida criou 4 focos de incêndio na localidade ….

46) A arguida conhecia as características dos locais onde ateou os fogos em apreço, sabendo que estes se caracterizavam por serem zonas compostas por mato e arvoredo – que não lhe pertenciam -, muito próximas de habitações e de locais de aglomeração de pessoas, e de fácil combustão, sendo que estava ciente das condições climatéricas (elevadas temperaturas) que se faziam sentir, propícias à propagação de incêndios.

47) A arguida ateou fogos durante os aludidos dias, sendo que logo após, se ausentou dos locais sem alertar os bombeiros e/ou autoridades competentes, e sem se preocupar com as consequências da deflagração dos incêndios.

48) A arguida ateou fogos às áreas de mato e arvoredo acimas descrita, colocando em perigo a integridade física e vida de todos quanto habitavam naquelas zonas, e uma vasta área de mato e habitações, que caso não fosse a pronta intervenção da corporação de bombeiros, ter-se-iam propagado ao mato e às habitações (que se encontravam ali próximas), pertencentes a terceiros, estas certamente de valor não inferior a valor não inferior a 5.100,00€ (cinco mil e cem euros).

49) Ao proceder sempre da forma supra descrita, pretendeu a arguida atear fogo aos matos existentes nos locais descritos, o que quis e logrou concretizar, bem sabendo que colocava em perigo a integridade física e vida dos habitantes das freguesias e localidades mencionadas, a zona de mato, arvoredo e habitações existentes nas imediações, bens de valor não inferior a 5.100,00€ (cinco mil e cem euros).

50) A arguida agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente e, não obstante ter conhecimento que a sua conduta era proibida e punível por Lei Penal, não se absteve de a realizar.

Mais se indiciou que:

51) Atualmente, o seu agregado familiar é constituído por si, pela sua filha, de 12 anos, e pelo seu companheiro.

52) Vivem em casa arrendada, num bairro da aldeia de ..., pela qual pagam cerca €225,00 de renda.

53) A arguida trabalha como auxiliar de ação direta no Centro Social ..., auferindo cerca de €820,00 mensais.

54) Atualmente encontra-se de baixa, desde fevereiro de 2025, pelo que se encontra a receber a quantia mensal €450,00.

55) Encontra-se a pagar mensalmente uma prestação de €40,00, referente a um crédito automóvel.

56) Dedica-se à agricultura para consumo doméstico, bem como à criação de animais, como ovelhas, cabras, coelhos e galinhas.

57) Esteve internada no Hospital …, na ala da psiquiatria, de 5 a 10 de março, por tentativa de suicídio.

58) Após a alta, tem sido acompanhada por psiquiatra, encontrando-se medicada para depressão.

59) A arguida averba a seguinte condenação anterior ao seu CRC:

a. No âmbito do processo nº 46/23...., por decisão datada de 26.09.2024, transitada em julgado em 28.10.2024, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1 do CP, na pena de 3 anos e 1 mês de prisão suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova.


III. MOTIVAÇÃO



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IV. QUALIFICAÇÃO JURÍDICA

Os factos fortemente indiciados consubstanciam a prática pela arguida, em autoria material, na forma consumada, dolosa, de quatro crimes de incêndio florestal agravado, previstos e punidos pelo artigo 274.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código Penal.


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V. PRESSUPOSTOS DA APLICAÇÃO DA MEDIDA DE COAÇÃO


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Face à factualidade indiciada supra exposta, importa considerar os seguintes elementos:

Em primeiro lugar, cumpre referir a particular gravidade dos factos, pela intencionalidade, persistência, desrespeito pelas consequências e risco real causado. Acresce que cada incêndio é grave isoladamente, especialmente o de 8 de julho à tarde, que exigiu mais de 100 bombeiros para o seu combate e colocou em perigo vidas humanas e património relevante.

A arguida ateou quatro focos de incêndio num curto espaço temporal (entre 4 e 8 de julho de 2025), agindo com plena consciência da perigosidade da sua conduta e escolhendo locais muito próximos da sua residência, frequentemente utilizados por si, revelando persistência e padrão de atuação, os quais apresentavam, na data da prática dos factos, condições climatéricas e geográficas de máxima propensão para a propagação de incêndios. Após a sua atuação, a arguida abandonou os locais sem alertar autoridades ou procurar mitigar as consequências.

Todo este circunstancialismo, faz recear não só pela repetição de condutas similares, como pelo agravamento das mesmas, com consequente perigo para a integridade física e a vida de terceiros, para o património natural, bem como para a paz social e segurança da comunidade local.

Acresce que a arguida praticou os factos em análise em pleno período de uma suspensão de execução de pena, pela qual foi condenada no âmbito do processo 46/23...., o que demonstra que não interiorizou o sentido da punição anterior, nem assimilou as consequências dos seus atos.

Verifica-se, assim, a existência do perigo de continuação da atividade criminosa (artigo 204º, al. c) do CPP).

A arguida atuou com total indiferença pelas consequências dos seus atos, retirando-se imediatamente após o deflagrar dos focos de incêndio, sem alertar quaisquer autoridades ou tentar minimizar os danos provocados.

A sua conduta revela uma alarmante ausência de autocontrolo, insensibilidade perante o perigo criado e uma postura de aparente impunidade, sendo que, apesar da intervenção dos meios de socorro, foi colocada em risco a integridade física e a vida de terceiros, bem como o património de elevado valor, só não tendo as chamas atingido proporções mais devastadoras devido à rápida e eficaz atuação dos bombeiros.

Além do perigo de continuação da atividade criminosa, devidamente evidenciado pelo carácter sequencial e concentrado dos quatro focos de incêndio ateados em apenas cinco dias, verifica-se também o perigo de perturbação da ordem pública, dada a forte inquietação social que comportamentos desta natureza naturalmente geram.

A atuação da arguida, nestas circunstâncias, assume assim particular ressonância pública e é suscetível de gerar alarme social, abalar a confiança das populações na proteção das suas comunidades e colocar em causa o sentimento de segurança coletiva, especialmente em meios rurais vulneráveis onde os recursos são escassos e os habitantes vivem sob permanente receio de novas ignições.


*

Como decorre do artigo 193º, nºs 2 e 3 do CPP, a aplicação da medida de coação de prisão preventiva está estritamente vinculada a um critério de subsidiariedade, ou seja, para a sua aplicação ter lugar, deve estar demonstrado que a inadequação ou a insuficiência das restantes medidas de coação, para os fins cautelares que se visavam atingir.

No caso, a arguida encontra-se indiciada da prática de quatro crimes de incêndio florestal agravado, previstos e punidos pelo artigo 274.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código Penal, pelo que é enquadrável na medida de coação mais gravosa, prisão preventiva, nos termos do artigo 202º, nº1, al. a).

Pelo exposto, entendemos que, face à forte indiciação dos crimes em apreço e à existência dos perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem pública, a prisão preventiva será a única adequada, proporcional e necessária a demover tais perigos, nos termos dos artigos 191º, 192º, 202º, nº 1, al. a) e 204º, al. c) do CPP.


*

VI. DECISÃO

…”.


*

*


4. Cumpre agora apreciar e decidir.

Começa-se por conhecer se inexistem os perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.

A recorrente não concorda com a medida de coacção de prisão preventiva que lhe foi aplicada, defendendo, desde logo, que não estão verificados os pressupostos para a sua aplicação face à inexistência dos aludidos perigos.

Vejamos quais as finalidades das medidas de coacção e pressupostos da sua aplicação.

Enquanto medidas limitadoras da liberdade pessoal do arguido, as medidas de coacção têm por fim acautelar a eficácia do procedimento penal, tendo em vista a boa administração da justiça, a descoberta da verdade e o próprio restabelecimento da paz jurídica.

De facto, a aplicação das medidas de coacção está enquadrada na confluência de valores antagónicos: de um lado, a procura da verdade e da segurança; de outro, a dignidade da pessoa humana.

O direito à liberdade plasmado no artigo 27º, nº 1, da nossa Lei Fundamental, só pode ser restringido, e apenas na medida do necessário, em face de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, como preceitua o artigo 18º, nº 2, da Constituição; não se podendo olvidar igualmente o princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32º, nº 2, da CRP, relativamente ao qual as medidas de coacção significam uma necessária restrição.

Constituindo, pois, as medidas de coacção, todas elas, em maior ou menor grau, limitações aos direitos, liberdades e garantias dos arguidos, que se presumem inocentes, é natural que a sua previsão e aplicação deva revestir-se das maiores cautelas, encontrando-se, por isso, sujeitas a princípios estritos de legalidade ou tipicidade, necessidade, adequação e proporcionalidade.

“Para a convergência dos valores neste difícil equilíbrio, em que se deve ter sempre presente o princípio da presunção de inocência do arguido, o legislador sujeitou a aplicação das medidas de coacção a vários princípios (a ponderação abstracta), que se devem entender como regras regulamentadoras da decisão do caso em apreciação pela autoridade judiciária (a ponderação concreta), do objectivo dali resultante, a compatibilização prática dos indicados valores” – cfr. Ac. da RC de 19.1.2011, in www.dgsi.pt.

Continua o mesmo aresto afirmando que “neste quadro, é preciso ter bem presente o carácter excepcional das medidas de coacção, perante a restrição que representam nos direitos fundamentais dos cidadãos, direitos esses que resultam do artigo 18º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa. Por isso, compreende-se que se imponham vários princípios processuais para a aplicação de tais medidas de coacção, desde logo, os de necessidade, legalidade, tipicidade, proporcionalidade e adequação, especialidade e subsidiariedade (quanto à prisão preventiva)”.

Como ensina o Prof. Germano Marques da Silva, as medidas de coacção “são meios processuais de limitação da liberdade pessoal que têm por finalidade acautelar a eficácia do procedimento tanto quanto ao seu desenvolvimento, como quanto à execução das decisões condenatórias” – cfr. Curso de Processo Penal, Vol. II, 4ª. edição, Verbo Editora; 2008; pág. 285-286.

“Durante qualquer das fases do processo o arguido poderá furtar-se à acção da justiça, fugindo ou procurando fugir, poderá dificultar a investigação, procurando esconder ou destruir meios de prova ou coagindo ou intimidando as testemunhas e poderá continuar a sua actividade criminosa. Para evitar esses riscos, o CPP predispõe uma série de medidas cautelares de natureza pessoal com o fim de impor limitações à liberdade pessoal dos arguidos. Expressando o princípio constitucionalmente acolhido da legalidade, o artigo 191º, nº 1, do CPP, estabelece que a liberdade das pessoas só pode ser limitada em função de exigências cautelares que o caso reclame. A necessidade, a adequação e a proporcionalidade são legalmente reconhecidas expressamente no nº 1 do artigo 193º, do Código de Processo Penal” – cfr. Monteiro, José Tadeu da Costa Medidas de coacção: análise e perspectivas http://hdl.handle.net/11067/3529.

O artigo 204º do Código de Processo Penal dispõe expressamente que nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:

a) Fuga ou perigo de fuga;

b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou

c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.”

Voltando ao caso concreto e começando pelo perigo de continuação da actividade criminosa, alega a arguida que este perigo não se encontra absolutamente vincado por duas ordens de grandeza.

Em primeiro lugar, porque, como frisou a arguida nas suas declarações - que cremos, com veracidade – a mesma não detinha como animus ou resolução criminosa, o incêndio florestal propriamente dito.

Isto é, é certo não há dúvidas da sua intenção dolosa, mas o propósito não se presidiu por qualquer patologia associado ao fogo, para fazer mal a terceiros, por vingança ou até por razões de ganho económico.

Como referiu, atravessa uma grave depressão, inclusive com internamento na ala da psiquiatria do Hospital ..., em ..., após um episódio de tentativa de suicídio, apontando como factores desestabilizadores o facto de nunca ter ultrapassado a violação da sua filha mais velha pelo próprio progenitor, e mais recentemente, a morte do seu pai.

Por revolta contra o mundo e para chamar a atenção, por stress e desorientação, cometeu os crimes que cometeu, sendo despiciendo referir o quão errado isso foi.

Pelo que, sendo verdade que a sua debilidade emocional e psicológica poderia e pode vir a espoletar uma nova circunstância, o ontem nem sempre é o pressuposto e o condicionalismo fáctico do amanhã.

Por outro lado, e essa parece-nos a pedra de toque da nossa discordância, a arguida confessou todos os factos dos quais é indiciada.

Ora, uma confissão encerra sempre em si um certo arrependimento. Ainda para mais quando, sem ela, os indícios do agente da prática do crime constantes dos autos seriam diminutos.

E se assim é, tal confissão, atento até que os crimes foram todos praticados muito perto da residência da arguida, reduz substancialmente a possibilidade de o mesmo agente, já sob a guilhotina do cometimento dos crimes anteriores (e não da mera suspeição), vir a cometer crimes da mesma natureza. Isto por razões de lógica atinentes à normalidade social prevalente e às regras da experiência.

Pois bem.

O perigo de continuação da actividade criminosa determina-se em função do risco concreto do arguido voltar a praticar factos integradores do mesmo tipo de ilícitos, devendo ser aferido em função de um juízo de prognose a partir dos factos indiciados e personalidade do arguido neles revelada – cfr. Acs. da RP de 19.9.2012 e da RC de 11.3.2009, ambos em www.dgsi.pt.

No mesmo sentido, veja-se o Ac. da RG de 24.4.2017, in www.dgsi.pt, segundo o qual “relativamente ao perigo de continuação da actividade criminosa, o Professor Germano Marques da Silva salienta que «A aplicação de uma medida de coacção não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão só a continuidade criminosa pela qual o arguido está indiciado. (…). Assim, se atentas as circunstâncias do crime e a personalidade do arguido for de presumir a continuação da actividade criminosa pelo qual o arguido está indiciado no processo pode justificar-se a aplicação de uma medida de coacção».

Resultou fortemente indiciado que a arguida esteve internada no Hospital …, na ala da psiquiatria, de 5 a 10 de março, por tentativa de suicídio.

Após a alta, tem sido acompanhada por psiquiatra, encontrando-se medicada para depressão.

Como a arguida admitiu na peça recursória, atravessa uma grave depressão, inclusive com internamento na ala da psiquiatria do Hospital …, após um episódio de tentativa de suicídio, apontando como factores desestabilizadores o facto de nunca ter ultrapassado a violação da sua filha mais velha pelo próprio progenitor, e mais recentemente, a morte do seu pai.

Por revolta contra o mundo e para chamar a atenção, por stress e desorientação, cometeu os crimes que cometeu.

Isto é, segundo o que afirma, a grave depressão não está ultrapassada e cometeu os crimes por revolta, para chamar a atenção, por stress e desorientação.

Ora, neste circunstancialismo, não há dúvida, de que existe um elevado perigo de voltar a cometer factos da mesma natureza.

Aliás, a desorientação e descontrolo da arguida manifesta-se, desde logo, no número de crimes cometidos, num curto espaço temporal.

Acresce que, como resulta do despacho recorrido, os crimes indiciados foram praticados no período de suspensão de execução de uma pena de prisão que lhe foi aplicada, sem que esse facto a tivesse inibido da sua prática. Actuou com completa indiferença pela anterior condenação e pelas consequências dos seus actos.

Assim, face à personalidade da arguida, aos problemas de saúde que atravessa com a confessada desorientação, à completa indiferença pelo perigo causado e

aos bens jurídicos violados (além da vida, da integridade física e do património de outrem, o ecossistema florestal próprio, incluindo matas, ou pastagens, mato e formações vegetais naturais e terrenos agrícolas), entende-se que existe um elevado perigo de continuação da actividade criminosa.

Neste particular consta do despacho recorrido que “Em primeiro lugar, cumpre referir a particular gravidade dos factos, pela intencionalidade, persistência, desrespeito pelas consequências e risco real causado. Acresce que cada incêndio é grave isoladamente, especialmente o de 8 de julho à tarde, que exigiu mais de 100 bombeiros para o seu combate e colocou em perigo vidas humanas e património relevante.

A arguida ateou quatro focos de incêndio num curto espaço temporal (entre 4 e 8 de julho de 2025), agindo com plena consciência da perigosidade da sua conduta e escolhendo locais muito próximos da sua residência, frequentemente utilizados por si, revelando persistência e padrão de atuação, os quais apresentavam, na data da prática dos factos, condições climatéricas e geográficas de máxima propensão para a propagação de incêndios. Após a sua atuação, a arguida abandonou os locais sem alertar autoridades ou procurar mitigar as consequências.

Todo este circunstancialismo, faz recear não só pela repetição de condutas similares, como pelo agravamento das mesmas, com consequente perigo para a integridade física e a vida de terceiros, para o património natural, bem como para a paz social e segurança da comunidade local.

Acresce que a arguida praticou os factos em análise em pleno período de uma suspensão de execução de pena, pela qual foi condenada no âmbito do processo 46/23...., o que demonstra que não interiorizou o sentido da punição anterior, nem assimilou as consequências dos seus atos.

Verifica-se, assim, a existência do perigo de continuação da atividade criminosa (artigo 204º, al. c) do CPP)”.

Considerações que se acompanham integralmente.

Assim, reafirma-se o elevado perigo de continuação da actividade criminosa.

Relativamente ao perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, alega a recorrente que “na teia dos argumentos da aplicação da medida de coacção mais gravosa, acrescenta-se ainda que o crime em causa provoca alarme social e perturba de forma grave a ordem e a tranquilidade públicas.

Contudo, como referiu Teresa Pizarro Beleza, em «Prisão Preventiva e Direitos do Arguido - Que Futuro Para o Direito Processual Penal», Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coimbra Editora, 2009, pág. 673, «a Constituição não parece autorizar a privação da liberdade de um suspeito (arguido) – alguém que não foi condenado e pode bem não o ser, nunca é demais lembrar – para dar sossego aos seus concidadãos (…) e coacção porque coage o arguido. Retira-lhe a liberdade de movimentos, sujeita-o a um controlo minucioso de todos os aspectos do seu dia a dia, impede-o de prosseguir a sua vida profissional, familiar, pessoal e afectiva.”

Por isso, a sua aplicação não deve ser um acto reflexo, baseado na facilidade e no automatismo, mesmo quando está em causa uma acusação ou indiciação por crimes de uma certa gravidade ou que causem agitação social”.

No despacho recorrido, quanto a este perigo, consta que “a arguida atuou com total indiferença pelas consequências dos seus atos, retirando-se imediatamente após o deflagrar dos focos de incêndio, sem alertar quaisquer autoridades ou tentar minimizar os danos provocados.

A sua conduta revela uma alarmante ausência de autocontrolo, insensibilidade perante o perigo criado e uma postura de aparente impunidade, sendo que, apesar da intervenção dos meios de socorro, foi colocada em risco a integridade física e a vida de terceiros, bem como o património de elevado valor, só não tendo as chamas atingido proporções mais devastadoras devido à rápida e eficaz atuação dos bombeiros.

Além do perigo de continuação da atividade criminosa, devidamente evidenciado pelo carácter sequencial e concentrado dos quatro focos de incêndio ateados em apenas cinco dias, verifica-se também o perigo de perturbação da ordem pública, dada a forte inquietação social que comportamentos desta natureza naturalmente geram.

Portugal tem sido particularmente fustigado nos últimos anos com incêndios de grandes dimensões, dos quais o de Pedrógão Grande, em 2017, se destacou pela sua tragédia inigualável – ceifando 66 vidas e deixando um profundo trauma coletivo. Mais recentemente, têm-se registado dezenas de focos ativos em simultâneo, sobretudo em zonas do interior, o que reacende o medo generalizado na população. As consequências destes incêndios não se esgotam na destruição imediata: prolongam-se por anos, com a erosão dos solos, a perda de biodiversidade e a degradação irreversível dos ecossistemas locais.

A atuação da arguida, nestas circunstâncias, assume assim particular ressonância pública e é suscetível de gerar alarme social, abalar a confiança das populações na proteção das suas comunidades e colocar em causa o sentimento de segurança coletiva, especialmente em meios rurais vulneráveis onde os recursos são escassos e os habitantes vivem sob permanente receio de novas ignições.

A atuação reiterada, consciente e indiferente da arguida, num contexto já de elevada tensão nacional, ameaça comprometer a ordem pública, justificando-se, por isso, a imposição de medida de coação que, além de prevenir o risco de reiteração, assegure a tranquilidade social e a proteção da comunidade local, em respeito pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade consagrados no artigo 193.º do Código de Processo Penal.

…”.

Vejamos.

No que respeita ao perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, começa-se por dizer que os crimes indiciados perturbam, sem dúvida, de forma grave a ordem e a tranquilidade públicas, criando um intenso alarme na comunidade atendendo à facilidade com que os incêndios podem propagar-se e os seus efeitos potencialmente devastadores. São crimes que criam um sentimento de revolta, indignação e pânico nas populações, reclamando uma resposta assertiva por parte dos tribunais.

Como se refere no Ac. da RP de 21.12.2016, in www.dgsi.pt., “Quanto ao alarme social, e sem discutir a sua concreta ocorrência, convém sublinhar, contudo, que esse deixou de ser um dos parâmetros que o artigo 204º do Código de Processo Penal previa autonomamente, mas que, apesar disso, não deixa de estar presente quando na al. c) de tal normativo se alude ao perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, já que aqui se engloba claramente este específico tipo de preocupação. Na verdade, é consabido que o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas decorre diretamente dos termos em que são perpetrados certos crimes, pela revolta e insegurança que geram nas pessoas, sobretudo quando não se lhes segue uma imediata reação reasseguradora por parte do aparelho repressivo em que repousa a crença da ordem e segurança comunitárias”.

Assim, o perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas advém, em grande parte, da natureza e da forma como são levados a cabo certos crimes, causando revolta, insegurança e alarme nas populações.

Neste sentido veja-se o Ac. da RE de 12.3.2019, in www.dgsi.pt, segundo o qual “o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas verifica-se, tendo em conta a natureza do crime indiciado e a sua moldura penal, aliadas às circunstâncias da prática do mesmo e à comoção demonstrada pela comunidade. A jurisprudência mais recente tem considerado que este perigo deve estar relacionado com o direito à liberdade e à segurança, instituído pelo art.º 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), não apenas na perspetiva do arguido, mas também na dos cidadãos que possam ser potenciais vítimas da sua conduta criminosa. Não está aqui em causa, propriamente, uma questão de defesa social, mas antes um objetivo de salvaguarda da paz social, que foi afetada pelo comportamento do arguido (de contenção do conflito social provocado pela atividade delituosa)”.

Tudo isto para dizer que os crimes, graves, que se encontram indiciados, perturbam, sem dúvida, a ordem e a tranquilidade públicas, causando pânico, revolta e grande alarme nas populações, mormente nesta época do ano, com as condições climatéricas a provocar um risco máximo de incêndio e com vários incêndios activos, o que causa medo, aflição, pânico e autênticas tragédias.

Como se pode ler no Ac. da RP de 10.1.2024, in www.dgsi.pt, “a exigência cautelar de perturbação grave da ordem e tranquilidade pública cfr. art. 204º nº 1 al.c) do CPP, não tem que ver com o “previsível comportamento futuro do arguido”, antes afere os resultados sociais iminentes e próximos de delitos graves, concretizados nos sentimentos de revolta imediata, com perigo de desacatos, motins, vindicta, ou de movimentos de justiça popular, se a justiça cautelar não atuar rapidamente; ou, quando a sucessão de crimes cometidos instala um clima de medo agudo ou sério, que coarte as liberdades públicas, resultados que a lei processual pretende reverter de imediato.

Essa exigência cautelar não supõe qualquer violação ao princípio da presunção da inocência, inexistindo sequer proximidade ou confusão de conceitos entre o perigo de perturbação da tranquilidade pública e as exigências de prevenção geral da pena”.

Também neste ponto não assiste razão à arguida, não infirmando os seus argumentos a fundamentação do tribunal a quo.

Nada há a apontar ao despacho recorrido, verificando-se no caso concreto o aludido perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.

Em suma, verificam-se os perigos vertidos no despacho recorrido, sem que as alegações da recorrente abalem o juízo feito pelo tribunal recorrido.


*


Passa-se agora a apreciar se a medida de prisão preventiva aplicada à arguida é excessiva, desnecessária, desproporcional e desadequada, devendo ser substituída pela medida detentiva de permanência na habitação, sob vigilância electrónica.

Alega a arguida que, por inexistirem os perigos supra aludidos, “a medida de coação aplicada à arguida é excessiva e violadora dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade impostos no artigo 193.º do C.P.P.

Devendo ser aplicada à mesma a obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância electrónica – artigo 201.º do C.P.P.

A medida aplicada foi-o sem que, em concreto, estivessem verificados os pressupostos do artigo 204.º do C.P.P.; Pois não se verifica um perigo eminente da continuação da actividade criminosa ou perturbação grave da ordem e a tranquilidade públicas por parte da arguida (artigo 204, n.º 1, al. c) do C.P.P”.

Vejamos quais as finalidades das medidas de coacção e pressupostos da sua aplicação.

Enquanto medidas limitadoras da liberdade pessoal do arguido, as medidas de coacção têm por fim acautelar a eficácia do procedimento penal, tendo em vista a boa administração da justiça, a descoberta da verdade e o próprio restabelecimento da paz jurídica.

De facto, a aplicação das medidas de coacção está enquadrada na confluência de valores antagónicos: de um lado, a procura da verdade e da segurança; de outro, a dignidade da pessoa humana.

O direito à liberdade plasmado no artigo 27º, nº 1, da nossa Lei Fundamental, só pode ser restringido, e apenas na medida do necessário, em face de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, como preceitua o artigo 18º, nº 2, da Constituição; não se podendo olvidar igualmente o princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32º, nº 2, da CRP, relativamente ao qual as medidas de coacção significam uma necessária restrição.

Constituindo, pois, as medidas de coacção, todas elas, em maior ou menor grau, limitações aos direitos, liberdades e garantias dos arguidos, que se presumem inocentes, é natural que a sua previsão e aplicação deva revestir-se das maiores cautelas, encontrando-se, por isso, sujeitas a princípios estritos de legalidade ou tipicidade, necessidade, adequação e proporcionalidade.

“Para a convergência dos valores neste difícil equilíbrio, em que se deve ter sempre presente o princípio da presunção de inocência do arguido, o legislador sujeitou a aplicação das medidas de coacção a vários princípios (a ponderação abstracta), que se devem entender como regras regulamentadoras da decisão do caso em apreciação pela autoridade judiciária (a ponderação concreta), do objectivo dali resultante, a compatibilização prática dos indicados valores” – cfr. Ac. da RC de 19.1.2011, in www.dgsi.pt.

Continua o mesmo aresto afirmando que “neste quadro, é preciso ter bem presente o carácter excepcional das medidas de coacção, perante a restrição que representam nos direitos fundamentais dos cidadãos, direitos esses que resultam do artigo 18º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa. Por isso, compreende-se que se imponham vários princípios processuais para a aplicação de tais medidas de coacção, desde logo, os de necessidade, legalidade, tipicidade, proporcionalidade e adequação, especialidade e subsidiariedade (quanto à prisão preventiva)”.

Como ensina o Prof. Germano Marques da Silva, as medidas de coacção “são meios processuais de limitação da liberdade pessoal que têm por finalidade acautelar a eficácia do procedimento tanto quanto ao seu desenvolvimento, como quanto à execução das decisões condenatórias” – cfr. Curso de Processo Penal, Vol. II, 4ª. edição, Verbo Editora; 2008; pág. 285-286.

“Durante qualquer das fases do processo o arguido poderá furtar-se à acção da justiça, fugindo ou procurando fugir, poderá dificultar a investigação, procurando esconder ou destruir meios de prova ou coagindo ou intimidando as testemunhas e poderá continuar a sua actividade criminosa. Para evitar esses riscos, o CPP predispõe uma série de medidas cautelares de natureza pessoal com o fim de impor limitações à liberdade pessoal dos arguidos. Expressando o princípio constitucionalmente acolhido da legalidade, o artigo 191º, nº 1, do CPP, estabelece que a liberdade das pessoas só pode ser limitada em função de exigências cautelares que o caso reclame. A necessidade, a adequação e a proporcionalidade são legalmente reconhecidas expressamente no nº 1 do artigo 193º, do Código de Processo Penal” – cfr. Monteiro, José Tadeu da Costa Medidas de coacção: análise e perspectivas http://hdl.handle.net/11067/3529.

O artigo 204º do Código de Processo Penal dispõe expressamente que nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:

a) Fuga ou perigo de fuga;

b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou

c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.”

Voltando ao caso concreto, quanto ao argumento da inexistência dos perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, nada mais há a dizer face ao já supra explanado.

Esses perigos existem, como se disse, e tal fundamento cai por terra.

Continuando.

Dispõe o artigo 193°, nº 1, do Código de Processo Penal, que “as medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas”.

Com fundamento constitucional, decorrente do princípio do Estado de direito democrático, temos o princípio da proibição do excesso ou princípio da proporcionalidade em sentido amplo que constitui, na realidade, um princípio de controlo a respeito da medida tomada pela autoridade judicial, no sentido de saber da sua conformidade aos subprincípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade.

Há, pois, que ter em conta os princípios da conformidade ou adequação de meios, da exigibilidade ou da necessidade e da proporcionalidade em sentido restrito.

A aplicação da prisão preventiva está, assim, condicionada à inadequação e à insuficiência de qualquer outra medida.

Como se refere no Ac. da RC de 19.6.2013, in www.dgsi.pt, que cita o Prof. Germano Marques da Silva, “a lei estabelece uma certa progressão da gravidade das diversas medidas cuja diversa gravidade deve ser sempre tida em conta pelo juiz no momento da escolha da que julgue mais idónea a salvaguardar as exigências cautelares de cada caso” in Curso de Processo Penal”, II, ed. Verbo, 1993, pág. 219.

No presente caso, dada a natureza dolosa dos crimes indiciados (4 crimes de incêndio florestal agravado, previstos e punidos pelo artigo 274º, nºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal) e a respectiva moldura penal (prisão de 3 a 12 anos), superior a 5 anos de prisão, mostra-se, desde já, preenchido o requisito específico para aplicação da prisão preventiva, definido no artigo 202º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal.

No que respeita à satisfação das exigências cautelares, depois de afirmar a existência dos perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, concluiu o tribunal recorrido que face à forte indiciação dos crimes em apreço e à existência dos perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem pública, a prisão preventiva será a única adequada, proporcional e necessária a demover tais perigos, nos termos dos artigos 191º, 192º, 202º, nº 1, al. a) e 204º, al. c) do CPP.

Mais afirma que:

“A medida de obrigação de permanência na habitação não se afigura passível de prevenir os riscos supramencionados, na medida em que, no presente caso, o perigo de continuação da atividade criminosa está fortemente presente e é difícil de controlar apenas com uma vigilância eletrónica passiva, desde logo, porque OPH não impede a arguida de voltar a atear fogo, mesmo nas imediações da sua residência, bastando-lhe aceder a zonas exteriores com vegetação próxima.

Neste sentido, entende-se que a medida de obrigação de permanência na habitação, ainda que complementada com a vigilância eletrónica, esta apenas servirá para verificar o cumprimento da medida, não obstando a que a atividade ilícita desenvolvida até ora continue”.

Considerações que se acompanham.

De facto, atendendo à gravidade dos crimes de incêndio florestal fortemente indiciados, e aos perigos mencionados no despacho recorrido e sua intensidade, a prisão preventiva revela-se a medida adequada, proporcional e a necessária a prevenir tais perigos. Nenhuma outra medida se mostra suficiente e adequada para afastar os referidos perigos, globalmente considerados, e proporcional à gravidade dos referidos crimes e à pena que previsivelmente venha a ser aplicada à arguida.

A medida de obrigação de permanência na habitação, ainda que com vigilância electrónica, não se revela adequada e suficiente, por não obstar aos perigos supra mencionados.

A arguida sempre poderá sair de casa e praticar factos idênticos, mesmo em local próximo à sua residência como já fez, o que não é de descurar face à sua situação clínica e à necessidade que tem de chamar a atenção, como disse.

Não olvidando que a medida de obrigação de permanência na habitação é uma medida detentiva da liberdade e que prossegue um fim concorrente com o da prisão preventiva, a verdade é que entre ambas existem diferenças significativas, em especial ao nível da sua eficácia. A mencionada obrigação de permanência na habitação, ainda que com vigilância electrónica, não é, só por si, impeditiva da arguida sair de casa.

Ineficaz se revela igualmente a permanência na habitação, sob vigilância electrónica, em relação ao perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas. Em casos com a gravidade da dos presentes autos, a comunidade espera uma resposta musculada por parte do aparelho judiciário, uma resposta assertiva dos tribunais, revelando-se insuficiente a permanência na habitação, sob vigilância electrónica.

Quando os perigos atingem patamares muito elevados, a medida de permanência na habitação, sob vigilância electrónica, revela-se insuficiente para os acautelar.

Se esta medida de permanência na habitação, sob vigilância electrónica, não garante as necessidades cautelares que o caso exige, muito menos as garantirá qualquer outra medida menos gravosa, não detentiva da liberdade.

Em suma, face à especial gravidade dos referidos ilícitos fortemente indiciados e aos concretos e enunciados perigos de perturbação grave da ordem e tranquilidades públicas e de continuação da actividade criminosa, mencionados no despacho recorrido, a medida de coacção de prisão preventiva é a única que se mostra adequada e proporcional aos ditos perigos e às exigências cautelares que o caso requer, assistindo, assim, razão ao tribunal a quo.

A prisão preventiva sub judice foi aplicada com respeito por todos os ditames legais e constitucionais, pelo que nenhuma censura merece o despacho recorrido.


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Tudo ponderado, improcedendo todas as questões suscitadas pela recorrente, deve ser negado provimento ao recurso.


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C – Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pela arguida … e, em consequência, decidem manter o despacho recorrido.


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Custas pela recorrente, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça devida – artigos 513º, nº 1, do Código de Processo Penal, 8º, nº 9, e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais, sem prejuízo do disposto na alínea j), do nº 1, do artigo 4º, igualmente do RCP.


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Notifique.

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Coimbra, 25 de Agosto de 2025.

(Elaborado pela relatora, revisto e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).

Rosa Pinto – Relatora

João Abrunhosa – 1º Adjunto

Mário Silva – 2º Adjunto