CRIME DE RECEPTAÇÃO
CONDUTA DO AUTOR DO FACTO REFERENCIAL
DECLARAÇÃO DE PERDA DE VANTAGENS DO CRIME
Sumário

I - O conteúdo do crime de receptação reside “na perpetuação de uma situação patrimonial antijurídica”, circunscrevendo-se a esfera de protecção da norma aos direitos patrimoniais.
II - O elemento comum às modalidades do crime de receptação, contempladas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 231.º do Código Penal, reside na origem da coisa que é objecto do crime de receptação, que que tem, necessariamente, de provir de facto ilícito típico contra o património, isto é, a conduta do autor do facto referencial tem que ter a virtualidade de preencher um tipo ilícito de um crime patrimonial, sendo irrelevante para o preenchimento do tipo legal a prova das concretas condições em que esse crime precedente foi levado a cabo, nomeadamente o seu autor, a identidade da vítima, o local e condições de obtenção da coisa.
III - A distinção da configuração entre os casos dos n.ºs 1 e 2 prende-se, exclusivamente, com os elementos típicos subjetivos, porque enquanto no primeiro se exige o conhecimento efectivo pelo agente de que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património (dolo específico), já na modalidade do n.º 2 basta que o agente admita que a coisa provém de facto ilícito típico contra o património (dolo eventual).
IV - A declaração de perda das vantagens do crime visa destituir o agente de todos os réditos que o mesmo tenha obtido, directa ou indirectamente, mediante a prática do delito, sendo um plus relativamente à pena aplicado ao delito, com o desiderato de dissuadir à prática de novos ilícitos, o que a assimila, por equiparação, às funções de prevenção especial e geral, típicas da pena.

Texto Integral

Acordam os Juízes, em Conferência, na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO

Nos presentes autos de Processo Comum Singular que seguem termos sob o nº 89/21.9JABRG no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu/Juízo Local Criminal de Viseu/Juiz 1, o Ministério Publico requereu o julgamento do arguido

AA, solteira, nascida a ../../1998, natural da Freguesia ..., do concelho ..., filha de BB e de CC e residente no Bairro ..., em ...;

Imputando-lhe a prática, em autoria material, com dolo directo e na forma consumada, de um crime de receptação, previsto e punido pelo artigo 231º, nº 1 do Código Penal.

A arguida apresentou contestação e juntou requerimento probatório.

Foi levado a efeito o julgamento, findo o qual veio a ser proferida sentença, na qual foi decidido:

            . Condenar a arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de receptação, previsto e punido pelo artigo 231º, nº 1 do Código Penal, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), o que perfaz 1.250,00€ (mil duzentos e cinquenta euros);

            . Declarar perdida a favor do Estado a vantagem patrimonial obtida pela arguida no valor global de 2.450,00€ (dois mil quatrocentos e cinquenta euros), condenando-se a arguida AA no pagamento ao Estado do valor correspondente a tal vantagem de 2.450,00€ (dois mil quatrocentos e cinquenta euros). 

            . Condenar a arguida no pagamento das custas criminais do processo, por força do artigo 513º, nº 1 e do artigo 514º do Código de Processo Penal, tendo sido fixada a taxa de justiça em 2UC, nos termos do disposto no artigo 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III em anexo, sem prejuízo do eventual benefício do apoio judiciário.

            Inconformada com tal decisão condenatória, a arguida AA veio interpor recurso, que se apresenta motivado e com as seguintes conclusões:

 

I. A recorrente não pode conformar-se com a decisão proferida pelo tribunal a quo a 03/02/2025, que, na sua convicção, enferma de diversos vícios, designadamente a prova produzida nos autos não sustenta a matéria provada, verificando-se um erro crasso na valoração da prova, e desse modo, conclui-se pelo não preenchimento dos elementos do tipo de ilícito em causa, sendo que, na dúvida, o tribunal a quo deveria ter decidido em beneficia da arguida. Não o fazendo, incorreu na violação do princípio in dubio pro reo.

II. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 231.º do CP., pratica um crime de receptação quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa ou animal que foi obtido por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse.

III. Resulta que, para preencher o tipo de ilícito em questão, o agente terá de saber que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património, não lhe bastando saber que a sua proveniência é criminosa – o dolo exige a efectiva ciência!

IV. O que no caso dos autos, a recorrente não tinha,

V. Nem se provou que tivesse, pese embora a convicção do tribunal a quo, formada unicamente no depoimento do ofendido, prova documental (manifestamente insuficientes neste ponto) e na sua livre convicção,

VI. Tendo então concluído, em erro, que “A descrita conduta, permite concluir que a arguida agiu com o conhecimento de que os valores transferidos para a conta bancária que titulava resultavam da prática de factos ilícitos, nomeadamente de crime de burla informática, estando comprometida com alguém, que não se logrou apurar, que se dedicava a tais práticas criminosas.”

Sucede que,

VII. Não existe prova nos autos que corrobore (est)a convicção do tribunal de que a arguida/recorrente tinha consciência de que os valores transferidos para a sua conta tinham origem ilícita, e mais, que resultavam da prática do crime de burla informática.

VIII. Nesse pressuposto, deveriam ter sido considerados não provados os factos:

IX. “6 - Em data não concretamente apurada, mas seguramente pouco antes do dia 13 de Janeiro de 2021, a arguida AA foi contactada por terceiros cuja identidade não se logrou apurar, tendo acordado com aqueles em disponibilizar a conta bancária de que é titular, e a que corresponde o IBAN  ...46, domiciliada junto da agência do Banco 1..., sita em ..., para receber transferências de quantias monetárias provenientes de contas bancárias pertencentes a terceiros e obtidas de forma ilegítima, através da aplicação MBWAY.” – Na medida em que não se provou absolutamente nada sobre o momento do eventual contacto da arguida com “terceiras” pessoas envolvidas, assim como não se provou que a arguida tenha “acordado” com aqueles a recepção de quaisquer quantias provenientes de terceiros e obtidas de forma ilegítima (menos ainda) através da aplicação MBWAY . Com efeito, o tribunal não sabe se, quando, onde, por que meio, por quem, foi a arguida contactada. Não sabe se a arguida acordou receber as quantias, se foi forçada a recebê-las ou se, simplesmente, percebeu que o dinheiro tinha caído na sua conta e apressou-se a levantá-lo.

X. 7 - Nessa ocasião, a arguida formulou o propósito de receber o dinheiro na sua conta bancária e, seguidamente, proceder ao respectivo levantamento imediato e entregar parte dos montantes levantados a indivíduo cuja identidade não foi concretamente apurada. – O tribunal não apurou se a arguida formulou o propósito de receber o dinheiro na sua conta, levantá-lo e entregar os montantes a um determinado indivíduo. Ou se, pelo contrário, a arguida não formulou propósito algum.

XI. 8 - Em contrapartida, e como forma de pagamento, a arguida receberia uma percentagem não concretamente apurada dos montantes transferidos, dos quais se apoderaria. – Pelas mesmas razões já aduzidas, não se produziu qualquer prova que sustente a convicção de que a arguida receberia um pagamento e que tal seria uma percentagem dos montantes transferidos. Talvez nem houvesse pagamento algum previsto. O tribunal não apurou, sequer, se a arguida ficou com qualquer quantia para si. Ou se, pelo contrário, entregou aquele dinheiro a alguém.

XII. 15 – A arguida bem sabia e não podia ignorar que a quantia de 2.450,00 € que foi creditada na sua conta bancária tinha origem ilegítima, sendo proveniente de facto ilícito típico contra o património, atentos os valores envolvidos, as transferências parcelares em que se concretizaram e o facto de não conhecer o ordenante das transferências. – Não é certo que a arguida “sabia e não podia ignorar” que o dinheiro tinha origem ilegítima, A arguida podia ter formulado várias explicações para aquela situação. Ademais, muito menos foi produzida prova de que arguida sabia ou podia sequer desconfiar que a quantia de €2.450,00 tinha origem em facto ilícito típico contra o património!!! O tribunal conclui este facto, mas não demonstra minimamente de que forma formulou a sua convicção. Dizer que a arguida sabia e não podia ignorar que aquela quantia era proveniente de facto ilícito típico contra o património, apenas com base nos valores envolvidos, nas transferências parcelares em que se concretizaram e no facto de não conhecer o ordenante das transferências, é deveras abstracto. Há inúmeras explicações para uma “transacção” do género. Não teria de ser, forçosamente, resultante de um crime contra o património!

XIII. 17 - E porquanto bem conhecia, sem poder ignorar, a sua proveniência de criminosa.

E 20 - A Arguida actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente. – Por tudo quanto foi dito, não pode o tribunal dar estes factos por provados, na sua íntegra, pois não têm reflexo na prova produzida, nem esta permite que o tribunal alcance esta conclusão por força de juízos de lógica e da experiência comum.

XIV. Se os referidos factos tivessem sido considerados não provados, como deveriam, o tribunal não teria factualidade provada suficiente à condenação da recorrente pelo crime p. e p. no nº 1 do art. 231º do CP, tendo que a absolver.

XV. Duma apreciação adequada da prova produzida nos autos, não resulta que a recorrente tivesse conhecimento de que a quantia monetária alegadamente recebida na sua conta tenha sido obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património.

XVI. No limite, a recorrente poderia ter suspeitado da origem da referida quantia, e aí, em abstracto, poderia recair no nº 2 do artigo 231º, do CP.

XVII. Nestes termos, estamos convencidos de que estamos perante um erro notório do tribunal a quo na apreciação da prova, sendo certo que, a ter sido realizada uma adequado apreciação da prova, o tribunal não teria matéria de facto suficiente à decisão que veio a ser tomada.

XVIII. Da factualidade provada verifica-se, salvo melhor e douta opinião, que os factos provados não são suficientes para condenar a recorrente pelo crime de recetação, nos termos do n.º 1 do art. 231º do C. Penal, o que significa que, como já referido, a Recorrente beneficia do princípio do in dúbio pro reo.

XIX. Na mesma senda, o princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 32º n.º 2 da C R Port., constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos (cfr. art.18º n.º 1 C R Port.) e surge articulado com o princípio da livre apreciação da prova produzida.

XX. Com efeito, a prova é apreciada livremente pelo julgador, segundo as regras da experiência e a sua livre convicção, pautada por juízos de lógica. Contudo, tal princípio (da livre apreciação da prova), consagrado no art. 127º do CPP, não liberta o julgador da prova que se produziu nos autos a qual terá de servir de base à decisão, pois, quod no nest in actis non est in mundo.

XXI. Os vícios de que padece a sentença recorrida consubstanciam, assim, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova – alíneas a) e c), do n.º 2, do art. 410º CPP.

XXII. Assim como, a falta de um elemento constitutivo do crime e porque não se fez, salvo melhor e douta opinião, a respetiva prova impõe a absolvição da arguida/recorrente, por força do previsto no n.º 1 do artigo 231º do CP.

Sem prescindir,

XXIII. No limite, a actuação da recorrente, com a simples representação da possibilidade da proveniência da quantia que recebeu na sua conta, conformando-se com ela, em abstracto, poderá cair no n.º 2 do art. 231º do CP.

Sem prescindir,

XXIV. Por fim, caso se conclua pela manutenção da sentença recorrida na parte em que condena a arguida pela prática do crime de receptação, por cautela de patrocínio, sempre diremos que a pena aplicada peca por excesso, atentas as condições de vida, formação académica e económico-financeiras da arguida, provadas nos autos – com efeito – “23 – A arguida encontra-se desempregada, recebendo de RSI a quantia mensal de cerca de 400,00€ por mês. Reside em casa de habitação social, com os seus dois filhos menores (de 4 e12 anos), encontrando-se o seu companheiro detido. A arguida paga a título de renda de casa a quantia de cerca de 20,00€ por mês, acrescida das despesas com água, luz e gás. A arguida estudou inicialmente até ao 6.º ano de escolaridade, tendo posteriormente realizado uma formação profissional que lhe deu equivalência ao 9.º ano.” – resulta assim que a pena de multa aplicada, de 250 dias à taxa de €5,00/dia, no total de €1.250,00, associada ao dever de pagamento ao Estado da quantia de €2.450,00, resulta excessiva, desadequada e desproporcional, por excessiva, face às exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir no caso em concreto,

XXV. Sendo certo que estas ficarão adequadamente acauteladas com uma pena menor, quer no número de dias, quer no seu quantitativo diário, designadamente, mais próximo do mínimo legal.

XXVI. Ademais, sempre deverá a recorrente ser absolvida do pagamento ao Estado da quantia de €2.450,00, na medida em que não resulta provado que a arguida tenha arrecadado essa quantia para si, apesar de a recepcionar na sua conta, uma vez que foi levantada na sua totalidade e é desconhecido o fim que lhe foi dado.

XXVII. Salvo sempre o devido respeito pelo Meritíssimo Juíz "a quo" e por opinião contrária, nos termos supra aludidos, a recorrente entende violadas, designadamente, as normas dos arts 1º, 13º, 14º, 15º, 16º 17º, 40º, 70º, 71º, 231.º n.ºs 1 e 2 do CP, 127º, 410, nº 2, al. a) e c) do CPP, arts 18º, nºs 1 e 3, e 32º nº 2 da CRPort, bem como, os princípios da legalidade, do in dúbio pro reo, da adequação e da proporcionalidade,

Nestes termos, requer-se que seja revogada a sentença posta em crise e substituída por outra que declare como não provados os factos consignados sob os números 6, 7, 8, 15, 17 e 20 da fundamentação de facto da Sentença, com as consequências de Lei, absolvendo-se a recorrente do crime de receptação, p. e p. pelo artigo 231º/1 C Penal, pelo qual foi condenada ou, sem prescindir, no limite, condene a arguida pelo crime de receptação p. e p. pelo artigo 231º/2; sem prescindir, caso não seja essa a posição subidamente perfilhada por V. Exas., sempre a pena de multa em que foi condenada a recorrente deve ser fixada nos mínimos legais, atento as suas condições socioeconómicas, dadas como provadas na sentença em crise, quer no que concerne à taxa diária quer no que diz respeito ao número de dias de multa, devendo sempre absolver-se a arguida/recorrente do pagamento ao Estado da quantia de €2.450,00.

         Notificado o Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 411º do Código do Processo, veio o mesmo pronunciar-se, no uso da faculdade a que alude o artigo 413º do mesmo diploma legal, no sentido da improcedência do recurso interposto apresentando as seguintes conclusões:

1. Versando o recurso da arguida sobre matéria de facto, está esta obrigada a especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida – art. 412º, nº3, al. b) do Código de Processo Penal e não cumpre com tal obrigação.

2. Limitando-se, no que a esta exigência concerne, a aduzir argumentos para não concordar em como o Tribunal a quo deu como provados esses factos 6, 7, 15, 17 e 20.

3. Nenhum elemento de prova é indicado pela arguida recorrente que coloquem em causa os factos dados como provados na sentença e que impugna.

4. Destarte, a matéria de facto fixada na sentença recorrida apenas poderá ser modificada se se concluir pela existência de algum dos vícios elencados no art. 410º, nº2, als. a), b) e c), do Código de Processo Penal.

5. Não se vê que o tribunal tenha decidido contra a prova produzida, ou seja, que tenha acolhido uma versão que esta não comporta ou que tenha violado qualquer regra da experiência comum.

6. Na verdade, a prova pode ser directa ou indirecta/indiciária.

7. A prova directa se refere directamente ao tema da prova, aprova indirecta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas, que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto aquele.

8. As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência. O juiz, valendo‑se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto.

9. No valor da credibilidade do percurso e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção e na medida desse valor está o rigor da presunção. A consequência tem de ser credível.

10. A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros.

11. Como não considerar, segundo elementares regras de experiência comum e à luz da normalidade expectável dos comportamentos humanos, que a arguida não soubesse de tudo o que anteriormente se tinha passado, ou, pelo menos, de semelhante realidade não tivesse o conhecimento geral?

12. O burlão que logrou enganar a vítima iria depois confiar o produto da sua “habilidade” a quem não confiasse plenamente, arriscando ficar sem o dinheiro e ainda ser denunciado?

13. Claro que a arguida de tudo sabia e a tudo se prestou, obviamente para também lucrar, pelo que os factos alcançados por prova directa, impõem a presunção sobre as demais constantes da acusação e sem qualquer tipo de hesitação ou modificação.

14. Ora, logo após receber o dinheiro na sua conta, nesse mesmo dia e no dia seguinte, e por forma a evitar uma reversão das transferências, a arguida procedeu a diversos levantamentos de numerário até deixar a sua conta, identificada em 12., praticamente sem saldo.

15. A sentença proferida pelo tribunal a quo não padece de erro notório na apreciação da prova.

16. Toda a “mise-en-scene” (traduzida em factos) que o tribunal deu como provada, e o que fez consignar como Motivação da decisão de facto e onde elencou a documentação bancária de onde se vê como a arguida esvaziou rapidamente a conta dos valores depositados no próprio dia e dia seguinte, não permitem outra conclusão que não declarar o dolo ou seja, o conhecimento que a arguida tinha da origem ilícita do dinheiro, fosse essa origem ilícita, qual fosse…

17. O que, se sabe que, só foi viável em virtude de ter sido utilizado uma conta bancária da titularidade da arguida recorrente na conduta delituosa levada a cabo por aquela mencionada pessoa.

18. Bem andou o tribunal a quo ao concluir que, a arguida bem sabia e não podia ignorar que a quantia de 2.450,00 € que foi creditada na sua conta bancária tinha origem ilegítima e que era proveniente de facto ilícito típico contra o património

19. Estão, assim, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de receptação, p. e p. pelo artigo 231.º n.º 1 do Código Penal.

20. A medida da pena de multa a aplicar nunca depende da situação económica do arguido, tal como alega a arguida.

21. Tendo sido aplicada a arguida o quantitativo diário no mínimo de 5€, nada mais se pode baixar.

22. Não é reduzida a ilicitude dos factos, antes pelo contrário, pois que a arguida recorrente, com a sua conduta causou prejuízo aos ofendidos no valor de 2.450€, valor esse já algo elevado, sem que até ao momento tenha a arguida ressarcido esse montante aos ofendidos.

23. De grau elevado é também a culpada arguida: agiu com dolo directo, modalidade mais intensa de dolo, o chamado dolo de intenção ou de primeiro grau.

24. O Tribunal a quo fez correcta aplicação do disposto no art.º 71º do Código Penal, sendo a medida da pena de multa aplicada justa e adequada, a qual deverá ser mantida.

25. Se os produtos ou vantagens não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A do Código Penal (vide artigo 110.º, n. º4, do Código Penal).

26. A perda de vantagens patrimoniais deverá ser sempre declarada como consequência da condenação pela prática de um crime (por prevenção geral).

27. O agente deverá voltar ao estado inicial antes de beneficiar da vantagem patrimonial demonstrada na acusação, e causada em consequência de um facto antijurídico.

28. Em virtude da conduta da arguida recorrente, foi depositada através de transferência bancária efetuada por terceiros da conta dos ofendidos na sua conta bancária a quantia global de 2.450€.

29. Sendo esse o valor a considerar como sendo a vantagem patrimonial obtida pela arguida com a sua conduta criminosa, isto independentemente do destino que veio dar à mesma.

30. Deve ser mantida a condenação da arguida no pagamento ao Estado do valor correspondente a tal vantagem, nos termos do disposto do artigo 110.º, n. º1, alínea b), e n. º 4, do Código Penal.

31. Deverá o presente recurso ser julgado não provido e improcedente, mantendo-se os termos da decisão recorrida.

           O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação de Coimbra emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

 

           Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código do Processo Penal.

           Procedeu-se a exame preliminar.

           Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir do recurso apresentado.

           Na sentença recorrida, com relevância para a decisão da matéria recursal, foi feito constar o seguinte:

II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURIDICA:

A) DOS FACTOS

Factos Provados

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

1 - A aplicação MBWAY é uma aplicação recente no mercado, sendo uma solução interbancária que permite ao seu titular fazer compras, transferências interbancárias imediatas e/ou levantamentos bancários sem estar na posse do seu cartão bancário.

2 - Bastando para a sua utilização a associação de um contacto telefónico a uma conta bancária numa caixa multibanco.

3 - Donde, os dados de adesão e registo no MB WAY são sempre o número de telemóvel e o pin MBWAY, pelo que se no processo de adesão e activação for associado um número de telemóvel pertença de outrem que não o titular da conta bancária, aquele fica com acesso irrestrito a esta e assume os poderes e as prerrogativas associadas ao titular.

4 - Após a activação da aplicação e na posse do PIN MB WAY, o seu detentor consegue não só efectuar pagamentos a terceiros e transferências bancárias como efectuar levamentos em terminais ATM sem ter na sua posse o seu cartão multibanco.

5 - No caso de transferência bancária, e após acesso à conta nos termos descritos, basta seleccionar o contacto da pessoa a quem se quer enviar o dinheiro, indicar o valor a transferir e validar a operação, após o que, de imediato, é processada a transferência do dinheiro para o contacto seleccionado.

6 - Em data não concretamente apurada, mas seguramente pouco antes do dia 13 de Janeiro de 2021, a arguida AA foi contactada por terceiros cuja identidade não se logrou apurar, tendo acordado com aqueles em disponibilizar a conta bancária de que é titular, e a que corresponde o IBAN  ...46, domiciliada junto da agência do Banco 1..., sita em ..., para receber transferências de quantias monetárias provenientes de contas bancárias pertencentes a terceiros e obtidas de forma ilegítima, através da aplicação MBWAY.

7 - Nessa ocasião, a arguida formulou o propósito de receber o dinheiro na sua conta bancária e, seguidamente, proceder ao respectivo levantamento imediato e entregar parte dos montantes levantados a indivíduo cuja identidade não foi concretamente apurada.

8 - Em contrapartida, e como forma de pagamento, a arguida receberia uma percentagem não concretamente apurada dos montantes transferidos, dos quais se apoderaria.

9 - Assim, no dia 13.01.2021, pouco antes das 19h46 uma pessoa do sexo feminino cuja identidade não se logrou apurar, fazendo uso do número de telemóvel ...77, correspondente a um cartão pré-pago sem dados de titularidade e sem carregamentos de saldo, contactou o ofendido DD e mostrou-se interessada em adquirir um artigo que este tinha anunciado para venda no site OLX, mais transmitindo que pretendia efectuar o pagamento do preço por transferência bancária através da aplicação MBWAY, com o que ofendido concordou, uma vez que já possuía a referida aplicação instalada no seu telemóvel e associada à sua conta bancária, pese embora não a utilizasse nem dominasse o seu modo de funcionamento.

10 - Após confirmar que o seu interlocutor não dominava o funcionamento daquela aplicação, tal pessoa não concretamente identificada, dizendo que pretendia efectuar de imediato aquele pagamento por aquela via, convenceu DD a fornecer-lhe as suas credenciais de acesso à aplicação mbway associada à conta bancária titulada solidariamente por si, DD e por EE, com o NIB  ...08, domiciliada no Banco 2..., convencendo-o que tal era necessário para, de imediato, ser transferido para a sua conta bancária, o preço acordado, quando na verdade, estava a fornecer-lhe todos os dados necessários para que pudesse aceder à sua conta bancária.

11 - Uma vez na posse daqueles dados, tal pessoa acedeu àquela conta bancária através da aplicação MBWAY, assim obtendo pleno controlo de movimentação sobre a mesma, e de imediato nela deu ordens de transferência e levantamento, tudo sem o conhecimento ou a autorização dos seus titulares.

12 - Mais concretamente, entre as 19h46 e as 19h53 daquele dia, tal pessoa:

- dirigiu-se a uma caixa automática localizada na agência da Banco 3..., sita na Praça ..., ..., em ... e efectuou dois levantamentos, no valor de 200 €/cada;

- emitiu 7 ordens de transferência bancária a débito sobre a conta dos ofendidos, nos valores de 750 €, 750 €, 750 €, 50 €, 50 €, 50 € e 50 €, no montante global de 2450,00 € (dois mil quatrocentos e cinquenta euros), que tiveram como destino a conta bancária com o IBAN  ...46, domiciliada junto da agência do Banco 4..., sita em ..., titulada exclusivamente pela arguida.

13 - Logo após receber o dinheiro na sua conta, nesse mesmo dia e no dia seguinte, e por forma a evitar uma reversão das transferências, a arguida procedeu a diversos levantamentos de numerário até deixar a sua conta, identificada em 12., praticamente sem saldo.

14 - Nomeadamente, no dia 14.01.2021, pelas 10h53, a arguida dirigiu-se à agência do Banco 4..., em ... e efectuou presencialmente, ao balcão, um levantamento em numerário, da quantia de 1.641,00 €, integralmente proveniente da conta dos ofendidos, levando tal quantia consigo e despendendo-a de forma não concretamente apurada.

15 - A arguida bem sabia e não podia ignorar que a quantia de 2.450,00 € que foi creditada na sua conta bancária tinha origem ilegítima, sendo proveniente de facto ilícito típico contra o património, atentos os valores envolvidos, as transferências parcelares em que se concretizaram e o facto de não conhecer o ordenante das transferências.

16 - Não se tendo assegurado previamente da sua proveniência legítima, nem procurando restituir o mesmo aos seus titulares porquanto a tanto não estava interessada.

17 - E porquanto bem conhecia, sem poder ignorar, a sua proveniência de criminosa.

18 - Tendo diligenciado pelo imediato levantamento da referida quantia assim que a mesma ficou disponível na sua conta bancária, a fim de evitar uma possível reversão das transferências.

19 - Tendo agido com o propósito concretizado de se apoderar da quantia de 2450,00€ que foi creditada na conta por si titulada, a qual utilizou em proveito próprio, através dos levantamentos bancários que efectuou no mesmo dia em que os montantes deram entrada na sua conta e no dia seguinte.

20 - A Arguida actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente.

21 - Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

Mais se provou:

22 – A arguida foi condenada:

- Por sentença proferida em 13.01.2020, transitada em julgado em 12.02.2020, pela prática em 12.01.2020, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 5,50€, o que perfez 440,00€; tal pena foi declarada extinta pelo cumprimento.

- Por acórdão proferido em 23.06.2021, transitada em julgado em 08.09.2021, pela prática em 11.04.2017, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 1 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a deveres; tal pena foi declarada extinta pelo cumprimento.

23 – A arguida encontra-se desempregada, recebendo de RSI a quantia mensal de cerca de 400,00€ por mês. Reside em casa de habitação social, com os seus dois filhos menores (de 4 e 12 anos), encontrando-se o seu companheiro detido. A arguida paga a título de renda de casa a quantia de cerca de 20,00€ por mês, acrescida das despesas com água, luz e gás. A arguida estudou inicialmente até ao 6.º ano de escolaridade, tendo posteriormente realizado uma formação profissional que lhe deu equivalência ao 9.º ano.

Factos Não Provados

Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer factos para além dos supra descritos.

Motivação

O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade dada como provada, na análise critica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, com apelo a juízos de lógica e de experiência comum.

Desde logo, valorou-se o depoimento da testemunha DD, que é ofendido nos autos, e que prestou depoimento que se nos afigurou espontâneo, sincero e credível, tendo relatado ao Tribunal, de forma detalhada, a actividade que desenvolveu com vista à venda de um bem, no site do OLX, bem como o contacto telefónico que recebeu de uma pessoa (do sexo feminino) que se mostrou interessada em adquiri-lo de imediato, através de transferência MBWAY. Esclareceu que já tinha instalado a aplicação, mas que dominava o seu modo de funcionamento, tendo seguido as indicações da pessoa que o contactou, à qual forneceu uns códigos que a mesma lhe solicitou. Mais explicitou que, ainda se encontrava ao telefone, quando, após suspeita, verificou que já tinham sido efectuados levantamentos e transferências da sua conta, no valor global de 2.850,00€.

O depoimento da referida testemunha foi conjugado com a prova documental junta aos autos, concretamente:

-o print do anúncio de fls. 25 a 27, referente ao bem que o ofendido havia colocado à venda;

- o extracto de movimentos de fls. 28-29, do qual se extrai os movimentos (transferências e levantamentos) efectuados, na referida data, da conta do ofendido; 

- a informação da MEO de fls. 34, da qual resulta que o número de telemóvel do qual foi efectuada a chamada para o ofendido está associado a um cartão pré-pago sem dados identificativos;

- as informações do Banco 2... de fls. 66, 104 a 129, das quais resulta a identificação da conta bancária titulada pelo ofendido e da conta bancária para a qual foram efectuadas as transferências, com recurso à aplicação MBWAY, bem como a data e hora em que foram efectuados os levantamentos e transferências.

- as informações do Banco 4... de fls. 93 a 97, da qual resulta que a arguida era a titular da conta bancária para a qual foram efectuadas as transferências e se extrai os levantamentos efectuados desta conta no próprio dia e no dia seguinte, até deixar a mesma praticamente sem saldo.

- os prints de fls. 136 a 143, referentes à identificação da arguida.

Ora, um cidadão médio colocado na posição da arguida teria diligenciado por se inteirar da proveniência/origem das 7 transferências bancárias para a conta bancária que titulasse, procurando, nomeadamente junto da sua instituição bancária, informações sobre a proveniência/origem dos montantes, não só como forma de evitar que a sua conta bancária pudesse estar a ser utilizada como simples “depósito” de dinheiro oriundo de potenciais condutas ilícitas/criminais, como também para se eximir a qualquer tipo responsabilidade que pudesse surgir em consequência da recepção de tais montantes. Com efeito, estando o fenómeno das burlas com recurso ao MB WAY disseminado, é lógico e racional que qualquer cidadão ao ser confrontado com transferências para a sua conta bancária provenientes do uso de MB WAY, sem qualquer razão aparente ou conhecida para tais transferências, diligenciasse no sentido de se inteirar da origem de tais transferências e de se informar e ser informado sobre a forma como proceder junto da sua instituição bancária.

No entanto, a arguida agiu de forma completamente distinta e oposta.

Com efeito, perante 7 transferências, no valor global de 2.450,00€, todas pelo serviço MBWAY associado ao número de telemóvel do ofendido, a partir da conta bancária deste, para a conta que a arguida titulava em exclusividade, no próprio dia em que recepcionou na sua conta bancária as aludidas transferências (13.01.2021) procedeu ao levantamento da quantia de 400,00€, correspondente ao montante máximo permitido na rede multibanco, e, no dia imediatamente seguinte (14.01.2021), levantou novamente através da rede multibanco a quantia de 400,00€, tendo ainda levantado ao balcão a quantia de 1.641,00€, deixando a sua conta com um saldo de 0,98€.

A descrita conduta, permite concluir que a arguida agiu com o conhecimento de que os valores transferidos para a conta bancária que titulava resultavam da prática de factos ilícitos, nomeadamente de crime de burla informática, estando comprometida com alguém, que não se logrou apurar, que se dedicava a tais práticas criminosas.

Cumpre, ainda, salientar que resultando da prova documental supra analisada a implicação da arguida nos factos, a mesma, presente na audiência de discussão e julgamento, nada explicou, tendo exercido o seu direito ao silêncio, recusando prestar declarações.

Como nos refere Manuel Soares, “os efeitos desfavoráveis da opção do arguido não prestar declarações sobre o objecto do processo não são consequência da atribuição positiva de um qualquer conteúdo probatório ao silêncio, mas sim uma consequência inerente à atitude processual livremente escolhida pelo arguido; a falta de contradição das provas apresentadas para demonstrar a culpa pode produzir efeitos na formação da convicção do tribunal, uma vez que, em geral, uma prova não contraditada é mais credível e persuasiva. (…) por fim, se o arguido deixa de revelar ao tribunal informações eventualmente relevantes que só ele conhece, também aí o silêncio poderá contribuir para a não demonstração de factos favoráveis” (in Proibição de desfavorecimento do arguido em consequência do silêncio em julgamento — a questão controversa das ilações probatórias desfavoráveis, Julgar nº 32, 2017).

Os factos relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo concernente à conduta da arguida foram considerados assentes a partir do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas - já que o dolo é uma realidade que não é apreensível directamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.

Além disso, nada pôs em causa a natural capacidade da arguida, enquanto pessoa humana, para avaliar a ilicitude dos seus actos e se determinar de acordo com essa avaliação, sendo ostensiva a ilicitude penal da sua conduta.

A situação pessoal e socioeconómica da arguida resultou das suas próprias afirmações e porque, neste particular, não se vislumbraram motivos para descrer daquilo que afirmou e nenhum outro meio de prova pôs em causa essas afirmações.

Quanto aos antecedentes criminais da arguida, o Tribunal valorou o seu Certificado de Registo Criminal da arguida (junto com a referência n.º 6998781).

B) DO DIREITO

A arguida vem acusada da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de receptação, previsto e punido pelo artigo 231.º, n.º 1 do Código Penal.

Dispõe o artigo 231º, nº 1 do Código Penal que “Quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa ou animal que foi obtido por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias”.

Estamos, no tipo legal em causa, perante o designado crime de receptação, onde se procura proteger, enquanto bem jurídico, o património, concebido num sentido económico-jurídico, reconduzindo-se tal noção a todo o conjunto de direitos, "posições jurídicas" e expectativas com valor económico, detidas por uma pessoa e compatíveis com a ordem jurídica.

Trata-se de um crime comum, pois o seu sujeito activo pode ser qualquer pessoa (“quem”). Contudo, não pode ser agente deste crime o autor (material, mediato ou co-autor) do facto referencial, ou seja, do “facto ilícito típico contra o património”, pois é certo que a coisa tem de ser “obtida por outrem”.

Já o seu sujeito passivo é a pessoa que foi privada da coisa, ou seja, o alvo do “facto ilícito típico contra o património”, englobando este conceito não apenas os delitos contra o património em geral, mas também os crimes contra a propriedade e os crimes contra os direitos patrimoniais, quando por via deles o agente obtenha uma coisa. Necessário é que se prove que a coisa receptada foi obtida por intermédio de uma conduta que preenche o tipo-de-ilícito de um crime patrimonial, não sendo exigível que se apurem as concretas condições em que tal facto ilícito foi praticado.

O objecto da acção há-de ser uma coisa, obtida pelo autor do facto referencial através desse facto, o que significa que apenas importa que a coisa tenha sido deslocada para a disponibilidade fáctica do agente do facto referencial por causa desse facto.

Por fim, cumpre afirmar que este tipo de ilícito se pode recortar, a nível subjetivo, quer como doloso, exigindo-se um dolo específico, traduzido na intenção de obtenção, para si ou para outra pessoa, de vantagem patrimonial (nº 1 do artigo 231º), quer como negligente, negligência essa traduzida na omissão de prévia certificação do agente da legítima proveniência da coisa que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pela grandeza do preço proposto, faça razoavelmente suspeitar da sua proveniência ilícita (nº 2, do artigo 231º).

No caso em apreço, demonstrou-se que, em data não concretamente apurada, mas seguramente pouco antes do dia 13 de Janeiro de 2021, a arguida foi contactada por terceiros cuja identidade não se logrou apurar, tendo acordado com aqueles em disponibilizar a conta bancária de que é titular, para receber transferências de quantias monetárias provenientes de contas bancárias pertencentes a terceiros e obtidas de forma ilegítima, através da aplicação MBWAY.

Mais resultou da factualidade provada que, nas aludidas circunstâncias temporais, pessoa cuja identidade não se logrou apurar, fez uso dos dados que o ofendido DD lhe forneceu, tendo acedido à conta deste e efectuado, através do serviço MBWAY associado ao seu número de telemóvel, designadamente, 7 transferências no valor global de 2.450,00€, para conta bancária titulada exclusivamente pela arguida, o que se reconduz ao preenchimento dos elementos objectivos do crime de receptação de que se mostra acusada a arguida.

Provou-se, ainda, que a arguida bem sabia e não podia ignorar que a quantia de 2.450,00€, que foi creditada na sua conta bancária, tinha origem ilegítima, sendo proveniente de facto ilícito típico contra o património, tendo agido forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de se apoderar de tal quantia, a qual utilizou em proveito próprio, através dos levantamentos bancários que efectuou no mesmo dia em que os montantes deram entrada na sua conta e no dia seguinte, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

Estão, assim, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime em análise pelo que, não ocorrendo qualquer circunstância que exclua a ilicitude ou a culpa, dúvidas não subsistem de que a arguida cometeu o crime de receptação pelo qual se mostra acusada, impondo-se, por conseguinte, a sua condenação.

Da Escolha da Pena

O crime de receptação praticado pela arguida é punido em abstracto com uma pena de prisão de 1 mês a 5 anos ou com pena de multa de 10 a 600 dias – artigos 41º, nº 1, 47º, nº 1 e 231º, nº 1 do Código Penal.

Admitindo a punição a aplicação, em alternativa, de duas penas principais, cumpre proceder à determinação da espécie de pena que concretamente irá ser aplicada à arguida.

A este propósito estabelece o artigo 70.º do Código Penal que, quando o crime seja punido, em alternativa com pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal deve optar pela não privativa quando for de concluir que esta assegura de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.

As finalidades da punição estão previstas no n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal e são exclusivamente preventivas, de prevenção geral positiva (protecção de bens jurídicos) e de prevenção especial positiva (reintegração do agente na sociedade).

No caso em apreço, as exigências de prevenção geral são ponderosas, por se tratar de um ilícito cada vez mais frequente, o qual se repercute de forma bastante negativa no combate à criminalidade patrimonial, pois permite a disseminação de bens/objectos/quantias oriundos da prática de crimes contra o património, os quais nas mais das vezes não seriam praticados se não houvessem receptadores.

No que concerne às necessidades de prevenção especial, as exigências de prevenção especial são médias uma vez que a arguida regista duas condenações por crimes de diferente natureza, a primeira por um crime de condução sem carta e a segunda por crime de tráfico de estupefacientes.

Ora, não se ignorando a condenação pela prática de um crime especialmente censurável e particularmente gravoso, ainda que de diferente natureza do dos presentes autos, tendo em conta que tal condenação é posterior à prática dos factos em discussão nestes autos, entende o Tribunal que a aplicação de uma pena de multa é ainda suficiente para acautelar as necessidades de prevenção que se fazem sentido no contexto do caso sub juditio.

Determinação da Medida Concreta da Pena

De acordo com o artigo 71.º n.º 1 do Código Penal “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. A função desempenhada por cada um destes critérios é definida de acordo com a chamada “teoria da moldura de prevenção”.

Deste modo, a prevenção geral fornece a moldura que oscila entre o ponto óptimo de defesa dos bens jurídicos e o ponto abaixo do qual não comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a sua função de tutela do ordenamento jurídico (Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Lições para os alunos da disciplina de Direito Penal III da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora 2007-2008, p. 25).

Por sua vez, a culpa fornece, nos termos do artigo 40.º n.º 2, o limite máximo da pena. Dentro dessa moldura e, com o limite da culpa, cabe à prevenção especial a determinação da medida concreta.

Em face do artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal, teremos que atender a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor do agente ou contra ele.

Conforme já adiantámos, são ponderosas as exigências de prevenção geral (trata-se de criminalidade que fomenta a prática de factos ilícitos contra o património), e médias as exigências de prevenção especial (considerando a condenação anterior e posterior, ainda que por crimes de diversa natureza).

O grau de ilicitude é ponderoso considerando que a quantia em causa é já elevada.

Contra a arguida depõe o facto de ter agido com dolo directo, modalidade mais intensa de dolo, o chamado dolo de intenção ou de primeiro grau.

Por outro lado, embora se encontre inserida familiarmente, a mesma não se encontra integrada profissionalmente.

Em face do exposto, considera-se suficiente e proporcional a aplicação à arguida de uma pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa.

                                                                                       *

Quanto ao quantitativo diário, o mesmo é fixado em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, entre 5,00€ e 500,00€, nos termos do artigo 47.º, n.º 2 do Código Penal.

Deverá ter-se em conta, como adverte Figueiredo Dias, que a pena de multa terá que ser vista como uma verdadeira pena devendo representar para o delinquente um sofrimento análogo ao da prisão correspondente, embora dentro de condições mais humanas (in Reforma do Código Penal. Trabalhos Preparatórios, vol. III, pág. 86).

No caso em apreço, considerando o apurado quanto à situação económica da arguida, mormente que a mesma não aufere rendimentos para além do rendimento social de inserção, entende-se ajustado fixar o quantitativo diário no limite mínimo, ou seja, em 5,00€.

                                                                                       *

Da perda de vantagens:

O Ministério Público requereu ainda, em sede de acusação, que se determine a perda de vantagens, nos termos do artigo 110.º, n.º 1, al. b) e 4 do Código Penal, condenando-se a arguida a pagar ao Estado a quantia de 2.450,00€, acrescida de juros de mora até integral pagamento.

Dispõe o artigo 110.º, n. º1, alínea b), do Código Penal que, sob a epigrafe “perda de produtos e vantagens”, que são declarados perdidos a favor do Estado as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.

Se os produtos ou vantagens referidos não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A do Código Penal (vide artigo 110.º, n. º4, do Código Penal).

A perda de vantagens traduz-se numa providencia sancionatória que visa a prevenção da prática de futuros crimes, tendo o legislador pretendido, com a mesma, anunciar ao potencial delinquente e à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um crime.

Reconhece-se, assim, que o agente deverá voltar ao estado inicial antes de beneficiar da vantagem patrimonial demonstrada na acusação, e causada em consequência de um facto antijurídico.

Importa também referir que o facto de não ter sido deduzido pedido de indemnização civil, ou de poderem existir, em abstracto, outras formas de obtenção/cobrança das quantias em causa, não afasta a possibilidade de ser declarada a perda de vantagens, estando verificados, neste caso, os respectivos pressupostos legais.

Assim, o Estado deverá proceder ao confisco das vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico, independentemente da dedução de pedido de indemnização cível, sendo isso mesmo que se deixou claro no recente A.U.J. nº 5/2024, de 11 de Abril, de 2024, em que o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência no seguinte sentido: “Nos termos do disposto no artigo 111.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, e no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 30/2017, de 30/05, as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo quando já integram a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto.” (disponível em www.dgsi.pt).

No caso em apreço, tendo-se apurado que a arguida obteve com a sua actividade criminosa uma vantagem patrimonial de 2.450,00€ (correspondente à quantia que foi depositada na sua conta bancária) deverá ser declarada perdida a favor do Estado a vantagem patrimonial obtida pela arguida com as transferências efectuadas por terceiro da conta do ofendido, na quantia global de 2.450,00€, condenando-se a arguida no pagamento ao Estado do valor correspondente a tal vantagem, nos termos do disposto do artigo 110.º, n.º1, alínea b), e n. º4, do Código Penal.

(…)

                                                                       *

DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Fazendo presente a norma do artigo 412º, nº 1 do Código do Processo Penal o objecto da lide recursal é fixado na motivação, onde são ancorados os seus fundamentos específicos e delimitado pelas conclusões, como síntese da respectiva fundamentação, sem prejuízo das questões que ao Tribunal ad quem incumba conhecer oficiosamente (como sejam os vícios enunciados no nº 2 do artigo 410º do Código do Processo Penal, as nulidades da sentença gizadas no artigo 379º, nº 1 e 2 do Código do Processo Penal e as nulidades que não devam ser consideradas sanadas face aos consignado nas disposições conjugadas dos artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1 do Código do Processo Penal)[1] [2]

Descendo ao caso dos autos, analisadas que sejam as conclusões apresentadas pela recorrente AA, as questões que se apresentam a decidir são, pois, as seguintes:

. Impugnação da sentença, por erro de julgamento na apreciação da prova, requerendo a reapreciação da matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3 e 4 do Código do Processo Penal;

. Impugnação da sentença, por vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, alínea a) e c) do Código do Processo Penal;

. Impugnação da sentença, por erro de direito, na interpretação e aplicação do artigo 231º do Código Penal;

. Impugnação da sentença, por erro de direito, por inobservância dos princípios da presunção de inocência e “in dubio pro reo”.

. Impugnação da sentença, por erro de direito, na interpretação e aplicação dos artigos 40º, 47º e 71º do Código Penal;

. Impugnação da sentença, por erro de direito, na interpretação e aplicação do artigo 110º do Código Penal.

                                                                       *

            DECISÃO

Considerando o que é disposto no artigo 428º do Código de Processo Penal aos Tribunais da Relação estão conferidos poderes de cognição de facto e de direito.

A recorrente AA inicia a sua lide recusal invocando a existência de erro de julgamento da matéria de facto.

Alega, em síntese conclusiva, que o Tribunal recorrido se precipitou na apreciação que fez da prova produzida, tendo ido mais além do que aquilo que poderia agindo com cautela e moderação nos juízos de lógica construídos.

Não sem afirmar que, mesmo no campo dos juízos de lógica e experiência comum, o tribunal não pode convencer-se de factos que não tenham qualquer suporte na prova produzida.

Conheçamos

Como sabemos o recurso é “o meio processual destinado a sujeitar a decisão a um novo juízo de apreciação, agora por parte de um tribunal hierarquicamente superior, imposto pela necessidade de garantir a principal via de reapreciação das decisões em processo penal, ante o auto-esgotamento do poder jurisdicional, em cada instância; é o principal caminho legal para corrigir os erros cometidos na decisão judicial.”[3]

Direito este que constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal e em que se afirma o princípio do direito a um duplo grau de jurisdição.

No que atende ao direito ao recurso relativo à decisão da matéria de facto, a lei processual adjectiva vem admitir duas possíveis abordagens – a chamada revista alargada à matéria de facto, que se trata de uma impugnação restrita da matéria de facto enquadrada à luz dos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º do Código do Processo Penal e a impugnação ampla da matéria de facto prevista no artigo 412º, nº 3 da lei adjectiva penal que vem obrigar ao cumprimento preciso dos ónus prescritos naquele mesmo dispositivo.

Na primeira daquelas modalidades, o sujeito terá que lançar mão dos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º da lei adjectiva penal, sendo condição para tal impugnação da matéria de facto que aluda à existência de erro notório na apreciação da prova, aquele que “consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.”[4]

         Face a esta sua natureza o Tribunal de recurso está limitado a conhecer dos eventuais vícios que promanam da decisão recorrida e, não sendo possível saná-los, importa-lhe ordenar o reenvio dos autos para um novo julgamento, com vista ao desiderato prevenido no artigo 426º do Código do Processo Penal, qual seja o de correcção.

         Importa, todavia, ter presente que os aludidos vícios, de que cura o falado artigo 410º, nº 2 da lei processual penal, são, ainda, de conhecimento oficioso, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito, conforme ficou determinada por Jurisprudência Fixada (Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/95 de 19/10).

         Tais vícios da decisão “são defeitos estruturais da própria decisão penal, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum.”[5]

         É, por isso mesmo, que não compete ao Tribunal de recurso conhecer da matéria de facto, procedendo à sua reapreciação, consignando-se o seu oficio na detecção, eventual, dos falados vícios da sentença, evidenciados no seu corpo, sendo certo que, nos termos da lei adjectiva, lhe imporá saná-los, se tal for possível, ou não o sendo, determinar a remessa dos autos para novo julgamento.

        

         Na segunda das modalidades estamos perante um efectivo recurso da matéria de facto, a levar a preceito de acordo e segundo a previsão do artigo 412º, nºs 3, 4 e 6 do Código do Processo Penal.

         Enquanto que na primeira modalidade estamos perante um recurso de direito, que se concretiza mediante a invocação de um vicio da decisão final (sentença ou acórdão), já nesta o recorrente tem que lançar mão ao manancial probatório examinado em audiência de julgamento, que tem que especificar, de molde a cumprir o ónus que lhe é imposto no nº 3 do artigo 412º do falado diploma processual penal.

        

         São, por isso, valorosas as palavras de ensinamento de Sérgio Gonçalves Poças[6] quando, após dar nota, do corpo legal do artigo 412º da lei adjectiva penal salienta que “Resulta assim claro da norma que na motivação, de forma clara e concisa, mas completa, o recorrente deve expor as razões do seu inconformismo — os fundamentos de facto e de direito por que entende que tribunal decidiu mal.

         A necessidade de o recorrente ser e claro e completo nos fundamentos do recurso, assume-se como de algo essencial ao conhecimento deste — como adiante melhor se verá.

         De facto, só o recorrente sabe do que discorda e por que razão discorda. Ora se assim é e é, de forma clara e completa, está onerado a dizer a discordância, e das suas razões, de facto e de direito.

         Na verdade, se o recurso pretende remediar o mal feito, desde logo, o recorrente está onerado a identificar devidamente o mal da decisão e as razões por que é mal.

         Sejamos claros: o Tribunal de recurso só pode apreciar a razão do recorrente se este for claro nas razões da sua razão.

         Nada se decide no reino do mistério. (…)”

         Como já se disse havendo lugar a uma apreciação alargada, que não se fica pela decisão recorrida, antes se alargando à análise do conteúdo de toda a prova dos autos, sempre dentro dos limites especificados pelo recorrente face ao ónus que lhe é imposto pelos nº 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal que, naturalmente não tendo como desiderato um novo julgamento visa, contudo, que o Tribunal “ad quem” aprecie.

         Vale tudo por dizer, assim, que apenas o escrupuloso cumprimento deste ónus permite ao Tribunal de recurso firmar a decisão a que alude o nº 6 da citada norma que, de outro modo, fica comprometida.

         Como ficou decidido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 03/2012, publicado no Diário da Republica, I Série, nº 77, a 18 de Março de 2012, «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

        

         Nos termos já resenhados por este Tribunal da Relação de Coimbra “Na impugnação da matéria de facto, com base em erro de julgamento, nos termos do art. 412.º, n.º 3, al. a) e b), do CPP, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. II - Não basta impugnar a matéria de facto com base em erro de julgamento de uma forma genérica e apontar o sentido que deve ser dado como provado. III - Para além da indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este tem ainda que expressar o respectivo exame crítico das mesmas, isto é o processo lógico e racional que foi seguido na apreciação das provas e depois a justificação pela qual o tribunal optou por determinada solução de direito. IV - Não basta fixar os factos, dando-os como provados ou não provados, mas é preciso explicar e dizer o porquê de tal opção, relativamente a cada um deles. (…).

         Solução esta que o legislador impõe uma vez que, como bem salienta o Professor Germano Marques da Silva “o poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância”.

         Como se aduziu a ora recorrente AA inicia a sua lide recursal pretendendo colocar em crise a factualidade dada como provada sob os pontos 6, 7, 8, 15, 17 e 20, querendo, assim, trazer à liça o erro de julgamento da matéria de facto, nos termos a que dá corpo o artigo 417º da lei adjectiva penal.

Sempre que lança mão de tal mecanismo de impugnação da matéria de facto incumbe ao recorrente especificar, como já se explicitou:

- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

- As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

- As provas que devem ser renovadas.

Ademais terá de cumprir, também, o adiantado no nº 4 do artigo 412º do citado diploma, qual seja de que quando as provas tenham sido gravadas, fazer a menção das especificações aludidas nas alíneas a) e b) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na acta, conforme estabelecido no artigo 364º, nº 2 do citado diploma, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.

É que tal forma de impugnação que acarreta uma “intervenção cirúrgica” do Tribunal da Relação[7], intervenção que visa indagar se houve erro de julgamento nos concretos pontos de facto, e “não constitui uma impugnação sem fronteiras da matéria de facto na 2ª instância”.

Analisada a lide recursal é imposto concluir que a ora recorrente AA não cumpriu pontual e escrupulosamente as exigências que a lei lhe impõe.

Vejamos.

A recorrente cumpriu a primeira das elencadas exigências, aludindo aos pontos da matéria de facto que, segundo entende, julga erroneamente julgados provados, concretamente os pontos 6, 7, 8, 15, 17 e 20.

Todavia não curou de indicar os concretos meios de prova (com a respectiva especificação para a acta onde se acham consignados os adiantados meios de provas e com a concreta indicação das passagens em que estriba a sua impugnação) que, em seu juízo, impunham um diverso julgamento.

Outrossim não tratou, também, de apontar os concretos erros de julgamento, explicitando o motivo pelo qual as apontadas provas impõem uma diversa decisão da alcançada, isto é, não tratou de indicar, a cada passo factual, a justificação do facto alternativo que propõe como acertado.

Ressuma, antes, em toda a lide recursal, atinente à matéria de facto, que a ora recorrente se insurge é contra a valoração lavrada pelo Tribunal recorrido relativamente aos meios probatórios produzidos e aludidos na motivação da decisão de facto, reconduzindo, pois, toda a sua impugnação de facto à violação do princípio da liberdade da apreciação probatória, a que alude o artigo 127º da lei adjectiva penal, e dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, corporizados garantias vertidas no artigo 32º da Constituição da Republica Portuguesa.

Paulo Pinto de Albuquerque[8] numa síntese assertiva adianta que “o recorrente deve explicitar por que razão essa prova «impõe» decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei nº 48/2007 de 29.8, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado.”

Tal como o sinaliza o mais Alto Tribunal[9] “Podemos, portanto, concluir que as exigências se apresentam agora com uma configuração alternativa quanto a um dos requisitos e ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais:

a) - A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);

b) - A indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);

c) - Se a acta contiver essa referência, a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal);

d) – Ou, alternativamente, se a acta não contiver essa referência, a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados).

Cumpridos estes ónus de carácter processual estará garantido o amplo recurso em matéria de facto? Sim, mas com uma precisão. O legislador não exige, apenas, que o recorrente indique as provas que permitam uma diversa apreciação da matéria de facto. O legislador exige que o recorrente indique as provas que impõem uma diversa apreciação da matéria de facto.

A razão é clara: o recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. É que houve um julgamento em 1ª instância. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico.

         Vale tudo por dizer, assim, que ao invés, assim, do que lhe estava imposto de acordo com os ditames do artigo 412º, nº 3, 4 e 6 do Código do Processo Penal, o recorrente não deu cabal cumprimento ao ónus da especificação.   

         Nestes termos, e considerando a finalidade a que se dirige o nº 6 do versado artigo 412º do Código do Processo Penal, este Tribunal está impossibilitado de reexaminar os meios probatórios que fossem necessários, idóneos e uteis para alcançar tal desiderato.

        

         Volvendo à lide recursiva apresentada pela recorrente AA damos conta que pugna que a decisão recorrida enferma dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova, nos termos prevenidos no artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c) do Código do Processo Penal.

         Alude, para esse efeito, que a matéria de facto provada é insuficiente à condenação da arguida na prática do crime de receptação, na medida em que fica exigido que o agente tenha conhecimento de que a, no caso, a quantia monetária tenha sido obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, o que não resulta provado, contrariamente à convicção formada pelo Tribunal a quo.

         Refere, outrossim, que o Tribunal ao se confrontar com a dúvida, sempre deveria ter decidido a favor da arguida, absolvendo-a, pelo que incorreu em violação do princípio do in dubio pro reo.

         Ultima, pois, alegando a existência de erro notório do tribunal a quo na apreciação da prova, sendo certo que, a ter sido realizada uma adequado apreciação da prova, o tribunal não teria matéria de facto suficiente à decisão que veio a ser tomada.

        

         Conheçamos.

         À luz do disposto no mencionado artigo 410º do Código de Processo Penal, sob a epigrafe de “Fundamentos do recurso”, fica estabelecido que:

1. Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.

2. Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vicio resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.

3. O recurso pode ter ainda como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.  

Como já frisámos importa a este Tribunal de recurso que proceda a uma indagação lógica junto das circunstâncias concretas da decisão em recurso – isto é junto da matéria de facto dada como provada e como não provada, na sua fundamentação como na decisão final – e, estribado que seja nas regras da experiencia comum, se necessário for descortinar da existência do enumerado vício, nos termos elencados, ou um qualquer outro que se venha a resenhar nesse seu processo exegético.

            Ocorre o vício da “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” sempre que “a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão (…), se apresente como insuficiente para a decisão a proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito.”[10].

Havendo de salientar-se que a fórmula legal não refere ou especifica um qualquer tipo de decisão, razão por que “ser insuficiente para a decisão” se tem de entender aplicável a uma decisão condenatória ou absolutória.

            António Pereira Madeira[11] é de absoluta clareza ao explicitar que “a afirmação do vício ora em causa, importa, sim, sempre, uma adequada perspectiva do objecto do processo, cujos confins ou limites são fixados pela acusação e (ou) pronúncia quando exista, complementadas pela pertinente defesa. A partir daí, impõe-se o confronto de tal objecto processual com os factos que o tribunal de julgamento em concreto indagou, independentemente de o resultado da indagação ter tido ou não êxito, isto é, independentemente de os factos indagados terem sido dados como provados ou não provados. Importa, sim, sobretudo, que todos esses factos pertinentes ao objecto do processo tenham sido averiguados em julgamento e obtida a necessária resposta, seja positiva ou negativa. Se se constatar que o tribunal averiguou exaustivamente toda a matéria postulada pela acusação/defesa pertinente – afinal o objecto do processo – ainda que toda ela tenha porventura obtido a resposta de “não provado”, então – e só então – o vício da insuficiência está afastado (…)”.

           

Já quanto a erro notório na apreciação da prova, o terceiro dos vícios elencados na lei, há-de ter-se como “o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.”[12]

            Afirma o Supremo Tribunal de Justiça[13] que (...) “o erro-vício previsto na al. c) do nº 2 do art. 410º do CPP não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; este, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro vicio se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação. (…)”

            Mas António Pereira Madeira[14] vai mais longe na interpretação desta alínea c) ao considerar que “esta interpretação do preceito pecaria por demasiado restritiva do seu alcance e deixaria a descoberto muitas situações de matéria de facto viciada por erro notório de apreciação da prova”, continuando por pugnar que “seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista, ou mesmo para o tribunal, ainda assim, o vicio não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa” para, terminando, concluir que “assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para duvida, comprovar que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada”.

Face a todo o enunciado quanto aos vícios a que alude o artigo 410º do Código do Processo Penal e elaborada a análise critica da sentença recorrida importa, desde já, adiantar que o Tribunal recorrido nela vez constar todos os factos coligidos no despacho acusatório, os levados pela defesa tal qual como aqueles que foram o resultado da discussão em audiência de julgamento, assim contemplando todos os factos que compõem a “constelação” do objecto do processo e que importaram à sentença que proferiu, sentença esta que em si mesma escrutinada, e sob análise das regras da experiência comum e do normal decorrer dos acontecimentos, não se vê manchado por qualquer dos vícios elencados no nº 2 do artigo 410º, nº 1 do Código do Processo Penal.

É que analisada a materialidade fáctica que foi submetida a julgamento, assim alvo de investigação – e importa aqui aludir que no processo penal português não existe qualquer ónus de prova e, nessa medida, não estamos perante um processo de partes mas sim de sujeitos – não se descortina que nenhuma dessa matéria tenha sido deixada de conhecer, como ainda que o sedimento dos factos dados como provados e não provados sejam insuficientes para fundamentar a decisão atingida bem como não se verifica qualquer incompatibilidade, seja ela qual seja, entre os factos dados como provados entre si e os factos dados como não provados, bem como entre qualquer destes com a fundamentação carreada e a decisão que foi proferida, decisão esta da qual não prespassa qualquer falha ostensiva na análise e critica da prova, nem que tenha sido vertida com base em qualquer juízo ilógico, irracional, arbitrário ou tendencioso.

Concretamente

Verificada a sentença recorrida somos de concluir, pois, que com mérito fez assentar no segmento dos factos provados e não provados o seguinte:

1 - A aplicação MBWAY é uma aplicação recente no mercado, sendo uma solução interbancária que permite ao seu titular fazer compras, transferências interbancárias imediatas e/ou levantamentos bancários sem estar na posse do seu cartão bancário.

2 - Bastando para a sua utilização a associação de um contacto telefónico a uma conta bancária numa caixa multibanco.

3 - Donde, os dados de adesão e registo no MB WAY são sempre o número de telemóvel e o pin MBWAY, pelo que se no processo de adesão e activação for associado um número de telemóvel pertença de outrem que não o titular da conta bancária, aquele fica com acesso irrestrito a esta e assume os poderes e as prerrogativas associadas ao titular.

4 - Após a activação da aplicação e na posse do PIN MB WAY, o seu detentor consegue não só efectuar pagamentos a terceiros e transferências bancárias como efectuar levamentos em terminais ATM sem ter na sua posse o seu cartão multibanco.

5 - No caso de transferência bancária, e após acesso à conta nos termos descritos, basta seleccionar o contacto da pessoa a quem se quer enviar o dinheiro, indicar o valor a transferir e validar a operação, após o que, de imediato, é processada a transferência do dinheiro para o contacto seleccionado.

6 - Em data não concretamente apurada, mas seguramente pouco antes do dia 13 de Janeiro de 2021, a arguida AA foi contactada por terceiros cuja identidade não se logrou apurar, tendo acordado com aqueles em disponibilizar a conta bancária de que é titular, e a que corresponde o IBAN  ...46, domiciliada junto da agência do Banco 1..., sita em ..., para receber transferências de quantias monetárias provenientes de contas bancárias pertencentes a terceiros e obtidas de forma ilegítima, através da aplicação MBWAY.

7 - Nessa ocasião, a arguida formulou o propósito de receber o dinheiro na sua conta bancária e, seguidamente, proceder ao respectivo levantamento imediato e entregar parte dos montantes levantados a indivíduo cuja identidade não foi concretamente apurada.

8 - Em contrapartida, e como forma de pagamento, a arguida receberia uma percentagem não concretamente apurada dos montantes transferidos, dos quais se apoderaria.

9 - Assim, no dia 13.01.2021, pouco antes das 19h46 uma pessoa do sexo feminino cuja identidade não se logrou apurar, fazendo uso do número de telemóvel ...77, correspondente a um cartão pré-pago sem dados de titularidade e sem carregamentos de saldo, contactou o ofendido DD e mostrou-se interessada em adquirir um artigo que este tinha anunciado para venda no site OLX, mais transmitindo que pretendia efectuar o pagamento do preço por transferência bancária através da aplicação MBWAY, com o que ofendido concordou, uma vez que já possuía a referida aplicação instalada no seu telemóvel e associada à sua conta bancária, pese embora não a utilizasse nem dominasse o seu modo de funcionamento.

10 - Após confirmar que o seu interlocutor não dominava o funcionamento daquela aplicação, tal pessoa não concretamente identificada, dizendo que pretendia efectuar de imediato aquele pagamento por aquela via, convenceu DD a fornecer-lhe as suas credenciais de acesso à aplicação mbway associada à conta bancária titulada solidariamente por si, DD e por EE, com o NIB  ...08, domiciliada no Banco 2..., convencendo-o que tal era necessário para, de imediato, ser transferido para a sua conta bancária, o preço acordado, quando na verdade, estava a fornecer-lhe todos os dados necessários para que pudesse aceder à sua conta bancária.

11 - Uma vez na posse daqueles dados, tal pessoa acedeu àquela conta bancária através da aplicação MBWAY, assim obtendo pleno controlo de movimentação sobre a mesma, e de imediato nela deu ordens de transferência e levantamento, tudo sem o conhecimento ou a autorização dos seus titulares.

12 - Mais concretamente, entre as 19h46 e as 19h53 daquele dia, tal pessoa:

- dirigiu-se a uma caixa automática localizada na agência da Banco 3..., sita na Praça ..., ..., em ... e efectuou dois levantamentos, no valor de 200 €/cada;

- emitiu 7 ordens de transferência bancária a débito sobre a conta dos ofendidos, nos valores de 750 €, 750 €, 750 €, 50 €, 50 €, 50 € e 50 €, no montante global de 2450,00 € (dois mil quatrocentos e cinquenta euros), que tiveram como destino a conta bancária com o IBAN  ...46, domiciliada junto da agência do Banco 4..., sita em ..., titulada exclusivamente pela arguida.

13 - Logo após receber o dinheiro na sua conta, nesse mesmo dia e no dia seguinte, e por forma a evitar uma reversão das transferências, a arguida procedeu a diversos levantamentos de numerário até deixar a sua conta, identificada em 12., praticamente sem saldo.

14 - Nomeadamente, no dia 14.01.2021, pelas 10h53, a arguida dirigiu-se à agência do Banco 4..., em ... e efectuou presencialmente, ao balcão, um levantamento em numerário, da quantia de 1.641,00 €, integralmente proveniente da conta dos ofendidos, levando tal quantia consigo e despendendo-a de forma não concretamente apurada.

15 - A arguida bem sabia e não podia ignorar que a quantia de 2.450,00 € que foi creditada na sua conta bancária tinha origem ilegítima, sendo proveniente de facto ilícito típico contra o património, atentos os valores envolvidos, as transferências parcelares em que se concretizaram e o facto de não conhecer o ordenante das transferências.

16 - Não se tendo assegurado previamente da sua proveniência legítima, nem procurando restituir o mesmo aos seus titulares porquanto a tanto não estava interessada.

17 - E porquanto bem conhecia, sem poder ignorar, a sua proveniência de criminosa.

18 - Tendo diligenciado pelo imediato levantamento da referida quantia assim que a mesma ficou disponível na sua conta bancária, a fim de evitar uma possível reversão das transferências.

19 - Tendo agido com o propósito concretizado de se apoderar da quantia de 2450,00€ que foi creditada na conta por si titulada, a qual utilizou em proveito próprio, através dos levantamentos bancários que efectuou no mesmo dia em que os montantes deram entrada na sua conta e no dia seguinte.

20 - A Arguida actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente.

21 - Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

Mais se provou:

22 – A arguida foi condenada:

- Por sentença proferida em 13.01.2020, transitada em julgado em 12.02.2020, pela prática em 12.01.2020, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 5,50€, o que perfez 440,00€; tal pena foi declarada extinta pelo cumprimento.

- Por acórdão proferido em 23.06.2021, transitada em julgado em 08.09.2021, pela prática em 11.04.2017, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 1 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a deveres; tal pena foi declarada extinta pelo cumprimento.

23 – A arguida encontra-se desempregada, recebendo de RSI a quantia mensal de cerca de 400,00€ por mês. Reside em casa de habitação social, com os seus dois filhos menores (de 4 e 12 anos), encontrando-se o seu companheiro detido. A arguida paga a titulo de renda de casa a quantia de cerca de 20,00€ por mês, acrescida das despesas com água, luz e gás. A arguida estudou inicialmente até ao 6.º ano de escolaridade, tendo posteriormente realizado uma formação profissional que lhe deu equivalência ao 9.º ano.

Factos Não Provados

Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer factos para além dos supra descritos.

Para fundamentar esta sua decisão, quanto ao referido espólio probatório, o Tribunal recorrido fez a especificação de cada um dos meios de prova em que se estribou para formar a sua convicção, aludindo circunstanciadamente à matéria factual para que o mesmo foi essencial – quanto à prova testemunhal e analisando com pormenor o manancial de documentos juntos aos autos.

Além disso não deixou de firmar a correlação entre tais meios de prova, que analisou conjunta e criticamente, deixando claro e perceptível o raciocínio lógico que presidiu à decisão sobre a matéria de facto, raciocínio esse compreensível para todos quanto se destinava tal decisão, capaz, por isso, de se impor ao seu directo destinatário, tanto quanto a toda a comunidade.

Cumpriu, assim, os princípios da legalidade e da livre apreciação probatória, em estrito cumprimento dos ditames constitucionais e legais, sempre norteando a sua conduta pela escorreita observância dos direitos e garantias consagrados à arguida, ora recorrente.

Deixou patente o resoluto cumprimento do princípio da livre apreciação da prova, nos termos firmados no artigo 127º da lei adjectiva penal.

É que, por força do estatuído naquela norma «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

Assim, sob a regência de tal princípio, verifica-se a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo quando é a própria lei a determiná-lo) e, por outra banda, o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.

Fê-lo cumprindo, com zelo e aprumo, a lição do Professor Germano Marques da Silva[15] quando alude a que «a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão».

Senão vejamos o conteúdo da motivação que reza assim:

“O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade dada como provada, na análise critica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, com apelo a juízos de lógica e de experiência comum.

Desde logo, valorou-se o depoimento da testemunha DD, que é ofendido nos autos, e que prestou depoimento que se nos afigurou espontâneo, sincero e credível, tendo relatado ao Tribunal, de forma detalhada, a actividade que desenvolveu com vista à venda de um bem, no site do OLX, bem como o contacto telefónico que recebeu de uma pessoa (do sexo feminino) que se mostrou interessada em adquiri-lo de imediato, através de transferência MBWAY. Esclareceu que já tinha instalado a aplicação, mas que dominava o seu modo de funcionamento, tendo seguido as indicações da pessoa que o contactou, à qual forneceu uns códigos que a mesma lhe solicitou. Mais explicitou que, ainda se encontrava ao telefone, quando, após suspeita, verificou que já tinham sido efectuados levantamentos e transferências da sua conta, no valor global de 2.850,00€.

O depoimento da referida testemunha foi conjugado com a prova documental junta aos autos, concretamente:

-o print do anúncio de fls. 25 a 27, referente ao bem que o ofendido havia colocado à venda;

- o extracto de movimentos de fls. 28-29, do qual se extrai os movimentos (transferências e levantamentos) efectuados, na referida data, da conta do ofendido; 

- a informação da MEO de fls. 34, da qual resulta que o número de telemóvel do qual foi efectuada a chamada para o ofendido está associado a um cartão pré-pago sem dados identificativos;

- as informações do Banco 2... de fls. 66, 104 a 129, das quais resulta a identificação da conta bancária titulada pelo ofendido e da conta bancária para a qual foram efectuadas as transferências, com recurso à aplicação MBWAY, bem como a data e hora em que foram efectuados os levantamentos e transferências.

- as informações do Banco 4... de fls. 93 a 97, da qual resulta que a arguida era a titular da conta bancária para a qual foram efectuadas as transferências e se extrai os levantamentos efectuados desta conta no próprio dia e no dia seguinte, até deixar a mesma praticamente sem saldo.

- os prints de fls. 136 a 143, referentes à identificação da arguida.

Ora, um cidadão médio colocado na posição da arguida teria diligenciado por se inteirar da proveniência/origem das 7 transferências bancárias para a conta bancária que titulasse, procurando, nomeadamente junto da sua instituição bancária, informações sobre a proveniência/origem dos montantes, não só como forma de evitar que a sua conta bancária pudesse estar a ser utilizada como simples “depósito” de dinheiro oriundo de potenciais condutas ilícitas/criminais, como também para se eximir a qualquer tipo responsabilidade que pudesse surgir em consequência da recepção de tais montantes. Com efeito, estando o fenómeno das burlas com recurso ao MB WAY disseminado, é lógico e racional que qualquer cidadão ao ser confrontado com transferências para a sua conta bancária provenientes do uso de MB WAY, sem qualquer razão aparente ou conhecida para tais transferências, diligenciasse no sentido de se inteirar da origem de tais transferências e de se informar e ser informado sobre a forma como proceder junto da sua instituição bancária.

No entanto, a arguida agiu de forma completamente distinta e oposta.

Com efeito, perante 7 transferências, no valor global de 2.450,00€, todas pelo serviço MBWAY associado ao número de telemóvel do ofendido, a partir da conta bancária deste, para a conta que a arguida titulava em exclusividade, no próprio dia em que recepcionou na sua conta bancária as aludidas transferências (13.01.2021) procedeu ao levantamento da quantia de 400,00€, correspondente ao montante máximo permitido na rede multibanco, e, no dia imediatamente seguinte (14.01.2021), levantou novamente através da rede multibanco a quantia de 400,00€, tendo ainda levantado ao balcão a quantia de 1.641,00€, deixando a sua conta com um saldo de 0,98€.

A descrita conduta, permite concluir que a arguida agiu com o conhecimento de que os valores transferidos para a conta bancária que titulava resultavam da prática de factos ilícitos, nomeadamente de crime de burla informática, estando comprometida com alguém, que não se logrou apurar, que se dedicava a tais práticas criminosas.

Cumpre, ainda, salientar que resultando da prova documental supra analisada a implicação da arguida nos factos, a mesma, presente na audiência de discussão e julgamento, nada explicou, tendo exercido o seu direito ao silêncio, recusando prestar declarações.

Como nos refere Manuel Soares, “os efeitos desfavoráveis da opção do arguido não prestar declarações sobre o objecto do processo não são consequência da atribuição positiva de um qualquer conteúdo probatório ao silêncio, mas sim uma consequência inerente à atitude processual livremente escolhida pelo arguido; a falta de contradição das provas apresentadas para demonstrar a culpa pode produzir efeitos na formação da convicção do tribunal, uma vez que, em geral, uma prova não contraditada é mais credível e persuasiva. (…) por fim, se o arguido deixa de revelar ao tribunal informações eventualmente relevantes que só ele conhece, também aí o silêncio poderá contribuir para a não demonstração de factos favoráveis” (in Proibição de desfavorecimento do arguido em consequência do silêncio em julgamento — a questão controversa das ilações probatórias desfavoráveis, Julgar nº 32, 2017).

Os factos relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo concernente à conduta da arguida foram considerados assentes a partir do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas - já que o dolo é uma realidade que não é apreensível directamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.

Além disso, nada pôs em causa a natural capacidade da arguida, enquanto pessoa humana, para avaliar a ilicitude dos seus actos e se determinar de acordo com essa avaliação, sendo ostensiva a ilicitude penal da sua conduta.

A situação pessoal e socioeconómica da arguida resultou das suas próprias afirmações e porque, neste particular, não se vislumbraram motivos para descrer daquilo que afirmou e nenhum outro meio de prova pôs em causa essas afirmações.

Quanto aos antecedentes criminais da arguida, o Tribunal valorou o seu Certificado de Registo Criminal da arguida (junto com a referência n.º 6998781).”

         Como deflui da alegação a ora recorrente AA, arguida nos autos, vem aludir à existência dos elencados vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova, a que dão acolhimento as alíneas a) c) do nº 2 do artigo 410º da lei adjectiva penal por entender que uma meticulosa análise à prova produzida em sede de audiência de julgamento não permite concluir que mesma tivesse levado a preceito a factualidade que veio a ser considerada provada sob os pontos 6, 7, 8, 15, 17 e 20.

         Como se adiantou o primeiro dos aludidos vícios ocorre quando os factos provados na sentença são insuficientes para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão da causa.

         Trata-se de uma válvula de segurança do sistema que deve ser utilizada nas situações em que não seja possível tomar uma decisão sobre a questão de direito, por se alicerçar em matéria de facto manifestamente insuficiente, carecendo de indagação adicional.”[16]

        

         Ora é inquestionável que no espólio factual dado como provado na sentença recorrida ficou a constar que a arguida, ora recorrente, disponibilizou a conta bancária de que é titular com o IBAN  ...46, domiciliada junto da agência do Banco 1..., sita em ..., para receber transferências de quantias monetárias provenientes de contas bancárias pertencentes a terceiros e obtidas de forma ilegítima, através da aplicação MBWAY, na sequência do contacto de terceiras pessoas cuja identidade não se logrou apurar.

         Ademais ficou demonstrado que como contrapartida e forma de pagamento, a ora recorrente receberia uma percentagem não concretamente apurada dos montantes transferidos, dos quais se apoderaria.

         Outrossim ficou assente que no dia 13 de Janeiro de 2021, quando seriam cerca das 19h46, uma pessoa do sexo feminino cuja identidade não foi apurada, fazendo uso do número de telemóvel ...77, correspondente a um cartão pré-pago sem dados de titularidade e sem carregamentos de saldo, contactou o ofendido DD e mostrou-se interessada em adquirir um artigo que este tinha anunciado para venda no site OLX, mais transmitindo que pretendia efectuar o pagamento do preço por transferência bancária através da aplicação MBWAY, nisso obtendo a concordância do ofendido, já que o mesmo tinha instalada no seu telemóvel e associada à sua conta bancária, pese embora não a utilizasse nem dominasse o seu modo de funcionamento.

         Assente naquele segmento factual ficou, ainda, que tal pessoa não identificada após confirmar que o ofendido não dominava o funcionamento daquela aplicação lhe deu conta que pretendia efectuar, de imediato, o pagamento do bem mediante o uso de tal aplicação, logrando convencer o seu interlocutor a fornecer-lhe as suas credenciais de acesso à aplicação mbway associada à conta bancária por aquele titulada solidariamente com EE, com o NIB  ...08, domiciliada no Banco 2..., posto que o conseguiu convencer que tal era necessário para que, de imediato, fosse transferido para aquela conta bancária o preço acordado.

         Demonstrado ficou, também, que na posse daqueles dados, a pessoa cuja identidade não foi identificada acedeu à identificada conta bancária através da aplicação MBWAY, assim obtendo pleno controlo de movimentação sobre a mesma, e de imediato nela deu ordens de transferência e levantamento, tudo sem o conhecimento ou a autorização dos seus titulares:

         Concretamente, entre as 19h46 e as 19h53 daquele dia, tal pessoa dirigiu-se a uma caixa automática localizada na agência da Banco 3..., sita na Praça ..., ..., em ... e efectuou dois levantamentos, no valor de 200 €/cada; emitiu 7 ordens de transferência bancária a débito sobre a conta dos ofendidos, nos valores de 750 €, 750 €, 750 €, 50 €, 50 €, 50 € e 50 €, no montante global de 2450,00 € (dois mil quatrocentos e cinquenta euros), que tiveram como destino a conta bancária com o IBAN  ...46, domiciliada junto da agência do Banco 4..., sita em ..., conta esta titulada exclusivamente pela arguida.

         Outrossim ficou provado que, logo após receber o dinheiro na sua conta, nesse mesmo dia e no dia seguinte, de forma a evitar uma reversão das transferências, a arguida procedeu a diversos levantamentos de numerário até deixar aquela conta praticamente sem saldo.

         Consta, igualmente, assente que a arguida bem sabia e não podia ignorar que a quantia de 2.450,00 € que foi creditada na sua conta bancária tinha origem ilegítima, sendo proveniente de facto ilícito típico contra o património, atentos os valores envolvidos, as transferências parcelares em que se concretizaram e o facto de não conhecer o ordenante das transferências.

         Ademais agiu com o propósito concretizado de se apoderar da quantia de 2450,00€ que foi creditada na conta por si titulada, a qual utilizou em proveito próprio, através dos levantamentos bancários que efectuou no mesmo dia em que os montantes deram entrada na sua conta e no dia seguinte, actuando sempre de forma livre, voluntária e consciente e sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

         É meridiano, assim, que tal factualidade logra o preenchimento do tipo legal de crime de receptação, previsto e punido no artigo 231º do Código Penal, como melhor explicitaremos aquando do conhecimento da impugnação da matéria de direito.

        

         No que tange ao segundo dos invocados vícios, o do erro notório na apreciação da prova, salientam Simas Santos e Leal Henriques[17] há “erro notório quando se retira de um facto provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida. (…)”

         Isto é, quando o segmento probatório deflui de um processo de formação da convicção que se mostra explicado na sentença e que obedece às regras de lógica, de ciência e de experiência comum, sendo obediente aos princípios adjectivos e das regras legais de tarifação da prova, não é possível vislumbrar e, assim, declarar, aquele erro notório na sentença.

         Isso mesmo é o que sucede, como evidência, nos presentes autos.

         O Tribunal recorrido, ao invés do impetrado, revela devidamente os fundamentos em que alicerçou a sua convicção.

         Atendeu ao depoimento do ofendido que, de modo circunstanciado, espontâneo e sério, relatou ao Tribunal, de modo detalhado, as circunstâncias de tempo, lugar e modo como ocorreram os factos por si vivenciados.

         Ademais é de notar que as suas declarações foram convalidadas com o espólio documental junto aos autos, mormente a documentação bancária.

        

         Foi dado, desse modo, cabal cumprimento aos princípios da legalidade e da livre apreciação probatória, em estrita correlação com os ditames constitucionais e legais, sempre norteando a sua conduta pela escorreita observância dos direitos e garantias consagrados ao arguido, ora recorrente.

                  

         Impõe, por tal, concluir que a decisão recorrida não padece de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2 do Código do Processo Penal, entre eles do prevenido na alínea c) daquele normativo.

        

         Vale tudo por dizer que nenhuma critica é de assacar ao Tribunal recorrido, na medida em que não se detecta qualquer vicio na decisão por ele proferida.

Ademais dúvidas nenhumas nos acodem quanto ao rigoroso cumprimento do aludido princípio da livre apreciação da prova, ao invés do impetrado.

            É que o Tribunal recorrido lavrou uma fundamentação que cumpre as exigências legais.

            Não achamos uma motivação pessoal, nem caprichosa ou mesmo eivada de qualquer preconceito.

            Não alcançámos a aquisição probatória por intermedio da violação de lei ou derrogação de direitos ou garantias.

            Não encontrámos um julgador anémico ou desinteressado do cumprimento das suas funções.

            Bem pelo contrário, quer na polícia de audiência, quanto na fundamentação da decisão de facto e de direito, o Tribunal mostrou-se conhecedor das normas, de empreender e fazer cumprir o respectivo conteúdo.

            Outrossim modelou a aquisição da prova com escrupuloso respeito pelos princípios e regras normas legais, nomeadamente as vertidas nos artigos 128º e 163º do Código do Processo Penal.

            Lavrou com clareza e rigor, como já adiantámos, a fundamentação da decisão de facto, em estrito respeito pelo poder-dever de livre apreciação da prova.

Pois, como estabelece o artigo 127º do Código do Processo Penal, sob a epigrafe “Livre apreciação da prova”, que:

            Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

            Ressalta, pois, deste normativo legal que, em sede de processo penal, rege o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova e, por outra banda, que o tribunal

aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.

Livre exame e valoração estes que, como pugna o Professor Germano Marques da Silva[18] «(…) não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão».

Ou como de outro modo adianta o Professor Figueiredo Dias[19] “não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável ou incontrolável – e, portanto, arbitraria – da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem na verdade esta discricionariedade (como já dissemos tem toda a discricionariedade jurídica) os seus limites que não podem licitamente ser ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material”, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutivel a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo”.

           

José António Mouraz Lopes[20] explicita-o, de forma contundente, ao afirmar que “A dimensão extraprocessual enquanto finalidade da fundamentação da sentença concretiza uma função de controlo externo das decisões colocando-se por isso mesmo e como se verá, no mesmo patamar da sua dimensão endoprocessual a qual concretiza o seu controlo interno. Essa dimensão corporiza a legitimação da própria decisão. Simultaneamente é a própria legitimação do órgão que a profere que está em causa e que, por via da decisão, é reafirmada.”

            É, acrescentamos nós, o princípio conformador do procedimento penal que traduz a independência do poder judicial e lhe exige, no seu devir prático, a concretização do Estado de Direito Democrático, face à sua definição constitucional    ancorada no artigo 2º da nossa Lei Fundamental.

            Destarte, atentos os argumentos de facto e de direito ditados, terá que improceder a firmada alegação recursal.   

        

         Seguidamente a arguida AA vem aduzir impugnação à decisão recorrida, por entender que não se logra o preenchimento dos requisitos do tipo legal de receptação a que alude o artigo 231º do Código Penal.

Estabelece o citado normativo que “Quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa que foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer titulo, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou outra pessoa, a sua posse, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias”.

 

Ressalta do tipo penal que o conteúdo do ilícito reside “na perpetuação de uma situação patrimonial antijurídica”, sendo que a esfera de protecção da norma se circunscreve aos direitos patrimoniais, como bem explicita a sua inserção sistemática na ordenação penal, visto que se acha incluída no capitulo dos crimes contra o património.

Esta noção foi introduzida na jurisprudência portuguesa através da doutrina firmada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Junho de 1985[21], ao aprofundar que a lesão de que foi alvo a vítima do facto anterior – tido como facto referencial – se vê diminuída com a possibilidade de restaurar a relação dela com a coisa.[22]

O carácter vil do receptador foi bem salientado nas palavras de Eduardo Correia na discussão perante a Comissão Revisora do Código Penal, e mediante a proposta de Jorge Figueiredo Dias de abaixamento na moldura penal, aquele Mestre lembrou que são os receptadores os grandes fautores dos crimes contra o património e que muitos crimes de furto, por exemplo não seriam possíveis se não houvesse receptadores; sendo certo ainda que, em muitas situações de facto, se apresentam, mesmo, como os impulsionadores de muitos crimes contra o património dado se apresentarem como verdadeiros “canais abertos de escoamento” de mercadorias obtidas ilegalmente, contemporaneamente, uma forma de obter chorudas quantias em dinheiro.

        

         Como sabemos tal ilícito encontra-se previsto nos nºs 1 e 2 daquele normativo, comportando duas diversas modalidades.

         Enquanto o nº 1 se reporta a quem “com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa ou animal que foi obtido por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse”.

         Na segunda modalidade, a prevista no nº 2, está estipulado o comportamento de quem “sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência, adquirir ou receber, a qualquer título, coisa ou animal que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património”.

        

         Como se destaca da exegese deste normativo, o elemento comum àquelas duas modalidades trata-se da origem da coisa que é objeto do crime de receptação, posto que terá, necessariamente, de provir de facto ilícito típico contra o património, isto é, a conduta do autor do facto referencial tem que ter a virtualidade de preencher um tipo ilícito de um crime patrimonial.

         Irrelevante é já para o preenchimento do tipo legal de receptação a prova das concretas condições em que esse crime precedente foi levado a preceito, nomeadamente o seu autor, a identidade da vítima, o local e condições de obtenção da coisa, pois tal fica desmerecido nesta configuração típica.

         A distinção da configuração entre os casos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 231º da lei penal substantiva prende-se, exclusivamente, com os elementos típicos subjetivos, posto que, enquanto no primeiro se exige o conhecimento efectivo pelo agente de que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património (dolo específico), já na segunda das modalidades, a do nº 2, basta que o agente admita que a coisa provém de facto ilícito típico contra o património (dolo eventual).

         Revertendo ao caso dos autos duvidas não ressaltam quanto ao preenchimento do tipo legal de receptação dolosa, previsto e punido no nº 1 do artigo 231º do Código Penal.

         É certo a arguida, ora recorrente, disponibilizou a conta bancária de que é única titular com vista a ser destinatária de um fluxo de transferências bancárias, na sequência de um contacto estabelecido por pessoas não identificadas e mediante uma contrapartida financeira cujo valor não veio a ser concretamente apurado.

         Conta bancária esta que foi destinatária de sete ordens de transferência, no montante global de 2.450,00.

         Pois que, na sequência de se mostrar interessado em firmar uma aquisição, um individuo do sexo feminino cuja identidade após o contacto telefónico com o ofendido DD logrou convencer o seu interlocutor a fornecer-lhe as suas credenciais de acesso à aplicação mbway associada à conta bancária por aquele titulada solidariamente com EE, com o NIB  ...08, domiciliada no Banco 2..., posto que o conseguiu convencer que tal era necessário para que, de imediato, fosse transferido para aquela conta bancária o preço acordado.

         Na posse daqueles dados, a pessoa cuja identidade não foi identificada acedeu à identificada conta bancária através da aplicação MBWAY, assim obtendo pleno controlo de movimentação sobre a mesma, e de imediato nela deu ordens de transferência e levantamento, tudo sem o conhecimento ou a autorização dos seus titulares:

         Concretamente, entre as 19h46 e as 19h53 daquele dia, tal pessoa dirigiu-se a uma caixa automática localizada na agência da Banco 3..., sita na Praça ..., ..., em ... e efectuou dois levantamentos, no valor de 200 €/cada; emitiu 7 ordens de transferência bancária a débito sobre a conta dos ofendidos, nos valores de 750 €, 750 €, 750 €, 50 €, 50 €, 50 € e 50 €, no montante global de 2450,00 €, valores estes que, como salientado, tiveram como destino a conta bancária com o IBAN  ...46, domiciliada junto da agência do Banco 4..., sita em ..., conta esta titulada exclusivamente pela arguida.

         A arguida, ora recorrente, após receber o dinheiro na sua conta, nesse mesmo dia e no dia seguinte, de forma a evitar uma reversão das transferências, a arguida procedeu a diversos levantamentos de numerário até deixar aquela conta praticamente sem saldo.

         A arguida bem sabia e não podia ignorar que a quantia de 2.450,00 € que foi creditada na sua conta bancária tinha origem ilegítima, sendo proveniente de facto ilícito típico contra o património, atentos os valores envolvidos, as transferências parcelares em que se concretizaram e o facto de não conhecer o ordenante das transferências e agiu com o propósito concretizado de se apoderar da quantia de 2450,00€ que foi creditada na conta por si titulada, a qual utilizou em proveito próprio, através dos levantamentos bancários que efectuou no mesmo dia em que os montantes deram entrada na sua conta e no dia seguinte, actuando sempre de forma livre, voluntária e consciente e sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

         Verifica-se, assim, o preenchimento dos requisitos objectivos e subjectivos do tipo legal de receptação dolosa, a que dá corpo o nº 1 do aludido normativo legal.

         Vale tudo por dizer, assim, que nenhuma critica merece a decisão recorrida, também nesta matéria.

         Prespassa, também, da lide recursiva da ora recorrente AA alude a que o Tribunal recorrido obliterou, na leitura de toda a prova produzida, os princípios da presunção da inocência e in dubio pro reo, em desrespeito pela norma do artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

         Conheçamos

Estabelece o artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, sob a epigrafe “Garantias de Processo Criminal”, que:

1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.

3. O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.

4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.

5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

6. A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento.

7. O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei.

8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.

9. Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.

10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.

Precisamente uma das garantias do processo criminal estabelecidas na aludida norma é a fixada no nº 2, qual seja que “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (…)”

É Cesare Beccaria, quem na sua obra “Dos Delitos e Das Penas”[23], insurgindo-se contra o vigente processo inquisitório, pugna pela vigência deste princípio ao afirmar que “A um homem não se pode chamar culpado antes da sentença do juiz, nem a sociedade pode negar-lhe a sua protecção pública, senão quando se decidir que violou os pactos com os quais se outorgou. Qual é, pois, o direito, se não o da força que dá potestas ao juiz para impor uma pena a um cidadão enquanto há dúvidas se é réu ou inocente? Não é novo este dilema: ou o crime é certo ou incerto. Se certo, não convém que se lhe aplique outra pena diferente daquelas que se encontram previstas na lei, e é inútil a tortura porque inútil a confissão do réu; se é incerto, não se deve atormentar um inocente, pois ele é, segundo a lei, um homem cujos delitos não estão provados.”[24]

Sendo um princípio enformador de todo o ordenamento processual penal, conforme decorre, quer da falada norma do artigo 32º da nossa Constituição, como da tratadista internacional a que o Estado Português se nos vinculou, múltiplas são as dimensões que comporta.

Primacialmente havemos de atermo-nos, para a decisão dos autos, a um duplo significado:

. por um lado, enquanto regra de tratamento a dispensar ao arguido ao longo do processo;

. por outro lado, enquanto regra de juízo.

Se na primeira daquelas acepções aquele princípio vem determinar que, qualquer que seja o manancial de indícios existente da prática de um crime, o arguido importa que seja tratado como inocente, até que seja declarada a sua condenação definitiva.

Pois que, nesta dimensão, o principio da presunção de inocência é imanente ao principio da liberdade e dignidade da pessoa humana, pressupostos em que assentam o Estado Português como Estado de Direito Democrático, e que clamam, entre outras que, se no decorrer do processo se verificar a necessidade da aplicação de uma medida de coacção, a mesma não pode usurpar a função de uma sanção ou qualquer antecipação da pena.

Na segunda das firmadas acepções aquele princípio é uma regra de juízo, adequada à estrutura acusatória do processo, como o refere Alexandra Vilela[25], na medida em que o arguido não tem de provar a sua inocência, competindo à acusação carrear a prova que consubstancia a culpa, ao juiz proceder à busca da verdade material e, em caso de dúvida, ser decretada a absolvição do arguido.
Nas palavras de Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira[26] «este princípio (o do in dubio pro reo) considera-se também associado ao princípio nulla poena sine culpa, pois o princípio da culpa é violado se, não estando o juiz convencido sobre a existência dos pressupostos de facto, ele pronuncia uma sentença de condenação. Os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena».

Isso mesmo foi já afirmado pelo mais Alto Tribunal[27] quando decidiu que “a violação do principio do in dubio pro reo, que dizendo respeito à matéria de facto é um principio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicado pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410º, nº 2 do CPP, e só se verifica quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de duvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dividas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção. Inexistindo dúvida razoável na formação do juízo factual que conduziu á condenação do arguido, fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência, nomeadamente quando tal juízo factual não teve por fundamento uma imposição de inversão de prova, ou ónus de prova a cargo do arguido, mas resultou do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, com impõe o art. 355º, nº 1 do CPP, subordinadas ao princípio do contraditório, conforme art. 32º, nº 1 da CRP (…)

Volvendo ao caso dos autos, e como já decorre da análise exaustiva que elaborámos acerca da decisão recorrida, é cristalino que a mesma ressuma de uma analise critica e ponderada dos meios probatórios, sempre com respeito pelos princípios da legalidade, do contraditório e da livre apreciação probatória, meios probatórios que fundadamente foram escrutinados para a formação da sua convicção, que ditou qual a factualidade dada como provada e aquela que não resultou provada bem como a medida da pena e a sua natureza.

Outrossim não ressalta do respectivo teor qualquer assomo de dúvida, mais pequena que seja, em qualquer espírito avisado.

Nestes termos não há lugar à aplicação do princípio da presunção de inocência nem do princípio do in dubio pro reo, por ausência de fundamento legal.

Outrossim, adianta a ora recorrente AA na sua lide recursal que o Tribunal recorrido incorreu em erro na determinação da medida da pena principal, violando o disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal, na medida em que desatendeu à condição económico-financeira da arguida como às exigências de prevenção.

Conheçamos

Discorre da lei substantiva, concretamente do disposto no artigo 40º, quais as finalidades que presidem à aplicação das penas.

Ali se acha estatuído, sob a epigrafe “Finalidades das penas e das medidas de segurança”, que:

1 - A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

2 - Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

3 - A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente.

Daqui se conclui que o fundamento legitimador da pena é a prevenção – geral e especial – sendo a culpa a desempenhar o papel de pressuposto e limite mínimo da pena a aplicar, por maiores que sejam as exigências de prevenção.

Considerando que o fim do direito penal é o da protecção dos bens jurídico-penais, as penas são os meios indispensáveis à realização desse fim de tutela dos bens jurídicos – razão por que a reinserção social do delinquente não é senão um dos meios de realizar o fim do direito penal, qual seja o de protecção dos bens jurídicos.

No concreto afinamento da pena a aplicar terá o aplicador de nortear-se, antes de mais, pelo ditame constitucional vertido no artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, que institui o princípio da máxima restrição possível da pena sem olvidar que a legitimidade ético-jurídica da pena está na necessidade de prevenção de futuros crimes.

Prevenção, que se dirige ao próprio infractor condenado – a prevenção especial e que é de sentido duplo: já que visa a sua ressocialização (prevenção especial positiva) e a sua dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa).

Prevenção, que visa todos os membros da comunidade – a prevenção geral e que tem, igualmente, uma dupla vertente: assim como meio de interpelação da sociedade e de cada um dos seus membros para a relevância social e individual do respectivo bem tutelado penalmente (prevenção geral positiva) tendo, ainda, a dimensão ou objectivo de pacificação social ou restabelecimento/revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal estatal dos bens jurídicos fundamentais à vida colectiva e individual tanto como a dissuasão geral de todos os membros da comunidade ao cumprimento das normas (prevenção geral negativa).

Conforme tem sido ditado pela jurisprudência constitucional [28] e, ainda, pela doutrina dominante, o visado princípio desdobra-se em três subprincípios:

. O da conformidade ou adequação, no sentido de que as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem ser as apropriadas para a prossecução dos fins a elas subjacentes, importando que as mesmas salvaguardem os demais direitos ou bens constitucionalmente protegidos, razão pela qual Jorge Miranda[29] acentua que adequação «significa que a providência se mostra adequada ao objectivo almejado, se destina ao fim contemplado pela norma, e não outro; significa, pois, correspondência de meios a fins»;

. O da exigibilidade ou necessidade, no sentido de que tais medidas restritivas são exigência imperativa para que se alcancem os desideratos firmados, por serem os meios de menor restrição para atingir os fins visados[30]  – desdobrando a doutrina tal requisito em quatro vertentes: o da exigibilidade material (o meio deve ser o menos restritivo possível), a espacial (face à necessidade de limitar o âmbito de intervenção) a temporal (que determina a restrição temporal da medida) e a pessoal (no sentido de que a mesma deve limitar a sua aplicabilidade aos sujeitos cujos interesses devem ser sacrificados) [31];

. O da proporcionalidade em sentido estrito, no sentido de estar vedada a adopção de medidas excessivas e desproporcionadas face ao desiderato prosseguido, que Jorge Miranda [32] formula como sendo o da “justa medida[33] tal como já o havia mencionado Joaquim Gomes Canotilho, afirmando aquele primeiro autor em relação ao subprincípio em análise que o mesmo implica, para além daquele sentido da ”justa medida” «que o órgão competente proceda a uma correcta avaliação da providência em termos quantitativos (e não só qualitativos); que – nem mais, nem menos».

O princípio da proporcionalidade, segundo qualquer dos constitucionalistas nomeados, é perspectivado no sentido do seu fundamento, compreensão e até reforço, relativamente ao princípio da igualdade, que tem assento no artigo 13º da Lei Fundamental[34], salientando Jorge Miranda que o primeiro sentido do principio da igualdade é o negativo pois «consiste na vedação de privilégios e discriminações» mas «também de proteger pessoas contra discriminações», sem deixar de dar conta do sentido positivo do mesmo princípio, o de, para além do mais, exigir o «tratamento em moldes de proporcionalidade das situações relativamente iguais ou desiguais e que, consoante os casos, se converte para o legislador ora em mera faculdade ora em mera obrigação». 

Referindo-se, agora, aos campos de aplicabilidade deste princípio, Joaquim Gomes Canotilho[35] entende que o mais importante campo de aplicação «é o da restrição dos direitos, liberdades e garantias por actos dos poderes públicos» designadamente «a conflitos de bens jurídicos de qualquer espécie», por exemplo o binómio culpa/pena, fazendo nota de que o controlo judicial baseado neste princípio se limita «a examinar se a regulamentação legislativa é manifestamente inadequada» ao passo que ao legislador vem reconhecer uma «liberdade de conformação» que radica «na ponderação dos bens quando edita uma nova regulação.»[36]

Acolhendo-se, a este propósito, as palavras de Manuel Cavaleiro Ferreira[37] quando afirma que “O mal do crime (…) enquanto atinge os fundamentos da convivência social, é causa da responsabilidade social e é reparado por uma sanção penal proporcional à culpa do delinquente” sem deixar de acentuar na sua afirmação que “a justiça distributiva, à qual se liga a justiça penal, realiza-se geometricamente (aequalitas proportionis); não supõe, como a justiça comutativa, uma justiça aritmética».

Por isso este Mestre conclui que tal é «indispensável à realização da justiça penal, como justiça distributiva, a consideração da pessoa».

Para efeito de concretização da pena a aplicar, na sequência da escolha imposta pelo artigo 70º do regime penal substantivo, vem estatuído no artigo 71º do Código Penal, sob a epígrafe “Determinação da medida da pena”, que:

1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.

Volvendo ao caso dos autos, e dando como integralmente reproduzida a materialidade fáctica dada como provada, importa, também, ter presente quais as circunstâncias que o Tribunal recorrido elencou para a ponderação da dosimetria da pena.

Considerou, pois, aquele Tribunal que:

“Conforme já adiantámos, são ponderosas as exigências de prevenção geral (trata-se de criminalidade que fomenta a prática de factos ilícitos contra o património), e médias as exigências de prevenção especial (considerando a condenação anterior e posterior, ainda que por crimes de diversa natureza).

O grau de ilicitude é ponderoso considerando que a quantia em causa é já elevada.

Contra a arguida depõe o facto de ter agido com dolo directo, modalidade mais intensa de dolo, o chamado dolo de intenção ou de primeiro grau.

Por outro lado, embora se encontre inserida familiarmente, a mesma não se encontra integrada profissionalmente.”

 

Como bem alvitrou o Tribunal recorrido afiguram-se muito exigentes as necessidades de prevenção geral, em face do crescente número de ofensas registadas.

Medianas são necessidades de prevenção especial, na medida em que a arguida conta já com condenação anterior.

Por outro lado, como ficou assinalado, a arguida agiu com dolo directo, a ilicitude da conduta é grave, sendo as consequências graves em face do valor económico da lesão sofrida.

Há que atender, ainda, à boa inserção pessoal da arguida tanto quanto às condições pessoais e de vida, nomeadamente que se encontra desempregada, é beneficiaria de RSI no valor de 400,00/mês e tem a seu cargo exclusivamente dois filhos menores, de 4 e 12 anos bem como o pagamento das despesas com habitação e encargos inerentes.

 

O Tribunal recorrido, tendo optado justificadamente, pela aplicação da ena de multa, nos termos consignados no artigo 70º da lei penal, veio a aplicar a pena de 250 dias de multa à taxa diária de 5,00.

A moldura penal abstracta se situa, como vimos entre os 10 e os 600 dias de multa, sendo, assim, de concluir que a pena aplicada fica aquém do limite médio, pena esta capaz de cumprir as finalidades de prevenção, geral e especial, sem beliscar a inultrapassável culpa do agente.

Como se salientou a arguida agiu com dolo directo, a ilicitude é grave e as consequências da conduta são-no, igualmente.

Outrossim são muito acentuadas as necessidades de prevenção geral, dada a frequência com que se vem assinalando a denuncia e condenação pela prática deste tipo de ilícitos; quanto às necessidades de prevenção especial não são de desmerecer, posto que a arguido conta já com antecedentes criminais.

Vale tudo por dizer, assim, que o Tribunal recorrido cumpriu com rigor os princípios a que dá corpo o artigo 40º do Código Penal, com cabal interpretação de todo o circunstancialismo prevenido na norma do artigo 71º do mesmo diploma legal.

Ademais fez, também, cumprir os princípios corporizados no artigo 47º da lei penal, posto que aplicou a taxa diária mínima, considerando, assim, a condição económica e financeira da arguida, ora recorrente.

No final da sua lide recursiva a ora recorrente AA alinha a sua discordância pela condenação no pagamento ao Estado da quantia de 2.450,00 €, à luz do disposto no artigo 110º, nº 1, alínea b) do Código Penal.

Estabelece aquele normativo legal, sob a epigrafe “Perda de produtos e vantagens”, que:

1 - São declarados perdidos a favor do Estado:

a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e

b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.

2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.

3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.

4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.

5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.

6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.

A declaração de perda das vantagens do crime visa destituir o agente do facto de todos os réditos que o mesmo tenha obtido, directa ou indirectamente, mediante a prática do delito.

Deve ser entendida como um plus relativamente à pena aplicado ao delito, assim ter-se-á de elencar-se, ainda, no âmbito sancionatório, pois, para além de visar repor a situação anterior à prática do crime, tem o desiderato de dissuadir à prática de novos ilícitos – quer o agente do crime como a comunidade em geral – o que a assimila, por equiparação, às funções de prevenção especial e geral, típicas da pena.

Há, outrossim, uma conexão intrínseca desta declaração de perdimento com o ilícito penal e a sua prática, uma vez que a primeira tem como pressuposto e condição a verificação da segunda, isto é, como conditio sine qua non da declaração de perdimento das vantagens importa a prévia cristalização de prova tendente à declaração de culpabilidade do agente pela prática do ilícito penal.

Isto sem embargo de, em comum e como pressuposto de qualquer das declarações de perda, se exigir a enunciação probatória de todos os factos que preencham os requisitos típicos do crime, bem como os que sejam o pressuposto formal da aplicação de tal medida e que importa, aliás, estejam vertidos na acusação para que se cumpra na íntegra dois princípios conformadores do processo penal português, o acusatório e o contraditório[38][39], sem que olvidados possam ser, também, os princípios da legalidade dos actos e o da investigação.

Todo este entendimento é cabalmente explicitado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 5/2024 de 11 de Abril, que fixou jurisprudência no sentido de que “Nos termos do disposto no artigo 111.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, e no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 30/2017, de 30/05, as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo quando já integram a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto.”

            Considerado que seja, pois, o espólio probatório assente é de concluir pelo preenchimento dos pressupostos da perda de vantagens, posto que em virtude da conduta perpetrada pela arguida, ora recorrente, a sua respectiva conta bancaria foi creditada, através de transferências bancarias, na quantia de 2.450,00, valor da vantagem que a mesma logrou obter face ao comportamento criminoso que decidiu empreender.

           

            Consequentemente impõe-se ditar a improcedência da lide recursal apresentada pela arguida AA.

                                                           *

DISPOSITIVO

Por todo o exposto, e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em:

- Julgar improcedente o recurso interposto pela arguida AA, e, em consequência, mantêm integralmente a decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrente que se fixam em 4 UC (quatro unidades de conta), sem prejuízo do gozo de eventual benefício de apoio judiciário.

O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela sua relatora, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal.


 Coimbra, 10 de Setembro de 2025

Maria José dos Santos de Matos

 Helena Lamas

Rosa Pinto


                                                                                  


[1] Vejam-se, a propósito, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 19/10/1995, publicado no D.R. I-A Série de 28/12/1995 e o do mesmo Tribunal de 03/02/1999, publicado no BMJ, 484, 271.
[2] Recursos em Processo Penal, Simas Santos e Leal-Henriques, Rei dos Livros, 7ª edição, 71 a 82.
[3] Manuel Simas Santos, Intervenção em Sessão subordinada ao tema: «Do processo penal interno ao processo penal internacional: alguns aspectos críticos», integrada no Simpósio de Direito Processual Penal, organizada pela Escola de Direito da Universidade do Minho, Publicado em Que futuro para o direito processual penal? simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português/coordenação Mário Ferreira Monte [et al.], Coimbra Editora, 2009.
[4] Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, prolatado no Processo nº 26/16.2GESRT.C1 e publicado em www.dgsi.pt
[5] Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra prolatado no Processo nº 1/14.1GBMDA.C1 com data de 18/05/2016, publicado em www.dgsi.pt.
[6] Revista Julgar, nº 10, 2010, página 20 e seguintes.
[7] Sérgio Gonçalves Poças, “Processo Penal/Quando o recurso incide sobre a matéria de facto”, Julgar 10, 2010, 21 e seguintes.
[8] Comentário do Código do Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição, UCP, página 1122.
[9] Acórdão do STJ proferido no Processo nº 522/18.7PBELV.E1 com data de 21/04/2021, disponível em www.dgsi.pt
[10] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, Tomo III, 325.
[11] Código do Processo Penal Comentado, António da Silva Henriques Gaspar e outros, Almedina, 2016, 1274.
[12] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, Verbo, 326.
[13] Acórdão proferido no processo nº 87/14.9YFLSB/3ª Secção de 20/11/2004, disponível na dgsi.pt.
[14] Código de Processo Penal Comentado, António da Silva Henriques Gaspar e outros, Almedina, 2016, 1275.
[15] Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 111.
[16] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24/10/2013, proferido no Processo nº 53/12.9GACUB.S1, e de 13/11/2013 prolatado no Processo nº 33/05.0JBLSB.C1.S2, disponíveis em www.dgsi.pt
[17] Código do Processo Penal Anotado, Volume II, página 140.
[18] Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 111.
[19] Direito Processual Penal, Vol. I., 1974, Coimbra, pág. 202.
[20] A fundamentação da Sentença no Sistema Penal Português, Legitimar, Diferenciar, Simplificar, Almedina, página 63.
[21] Acórdão publicado no B.M.J. 348, página 296
[22] Neste sentido vide José António Barreiros, “Crimes contra o Património”, 1996, página 236 e seguintes.
[23] Fundação Calouste Gulbenkian, 5ª edição, Lisboa
[24] Alexandra Vilela, Considerações acerca da Presunção de Inocência em Direito Processual Penal, Coimbra Editora, Reimpressão, 2005, página 31 e seguintes.
[25] Idem, página 59 e seguintes.
[26] Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição, Vol. I, 519.
[27] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 12/09/2013, publicado em www.itij.pt.
[28] Acórdãos do TC nº 634/1993, 643/2006, 187/2001 e 375/2008
[29] Manual de Direito Constitucional, IV, 207
[30] Idem, 207
[31] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 264 e 265
[32] Manual de Direito Constitucional, IV, 207
[33] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 265
[34] Idem, 1216 e Manual de Direito Constitucional, 238 e 239
[35] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 266
[36] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 266
[37] Lições de Direito Penal, Parte Geral, II, 45 a 51
[38] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 336/2006 de 18/05/2006, disponível em www.tc.pt
[39] Acórdão do STJ, prolatado no Processo nº 611/02 de 02/05/2002, disponível em www.dgsi.pt