DIREITO CONTRAORDENACIONAL
ERRO DE INTERPRETAÇÃO DE NORMA LEGAL
ERRO CENSURÁVEL
Sumário

I - Ocorre erro de interpretação da norma do artigo 49.º, n.º 1, alínea b), do D.L. n.º 108/2018, de 3 de Dezembro, quando a arguida sabe que existe a obrigação legal de comunicação do inventário de fontes radioactivas seladas à autoridade competente, mas valora incorrectamente as circunstâncias em que tal comunicação tem que ocorrer pensando que, ao invés de ter que a fazer anualmente, apenas teria que proceder àquela comunicação se existisse alguma alteração ao inventário inicial.
II - Sendo a arguida uma empresa com a estrutura e dimensão de S.A., que, pelo menos desde 2007, lida com fontes radioactivas seladas (Gamadensímetros), cuja utilização comporta deveres impostos por inúmera legislação ambiental, é-lhe exigível que conheça a legislação que rege o sector em que desenvolve a sua atividade empresarial, existindo uma intensificação desta exigibilidade pelo facto de, no âmbito do seu objecto social, serem utilizadas aparelhos que são fontes radioactivas seladas que determinam um conjunto de mecanismos de gestão, controlo, notificação rápida e informação, para a protecção de membros do público aos riscos de exposição a radiações ionizantes, que demandam cabal e completo conhecimento das obrigações legais a que por tal facto estava adstrita.
III - Tal erro de interpretação é censurável.

Texto Integral

            Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

            I-Relatório

1. Por decisão administrativa da Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMOT), foi aplicada à arguida sociedade …, S.A. a coima no valor de € 24.000,00 (vinte e quatro mil euros) pela prática da contraordenação prevista e sancionável nos termos do art. 49º, nº1 e 184º, nº2, al. r) do Regime Jurídico da Proteção Radiológica, aprovado pelo Dec. Lei nº 108/2018, de 3.12. sancionável a título negligente, nos termos do art. 22º, nº4 da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais, aprovado pela Lei nº 50/2006, de 29.08, na redação aplicável emergente da aprovação do Dec. Lei 114/2015, de 28.08.


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            2. Notificada da decisão administrativa e não se conformando com a mesma, a arguida …, S. A. impugnou-a judicialmente, vindo tal impugnação a ser decidida, por despacho proferida a 5 de setembro de 2024, julgando-a procedente nos seguintes termos:

            “I. Declarar nula a decisão administrativa recorrida, nos termos do disposto nos artigos 379.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal e 58.º do Regime Geral das Contraordenações;

                II. Julgar procedente o presente recurso e, em consequência, revogar a Decisão recorrida e absolver a recorrente …, SA da prática da contraordenação que lhe foi imputada pela INSPECÇÃO-GERAL DA AGRICULTURA, DO MAR, DO AMBIENTE E DO ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO.”


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            3. Inconformado com tal decisão dela recorreu o Ministério Público para este Tribunal da Relação, vindo tal recurso a ser julgado procedente, por acórdão proferido em 20 de novembro de 2024, no qual se decidiu:

            “julgar procedente o douto recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, determinando-se o prosseguimento dos autos em primeira instância para apreciação do mérito do recurso de impugnação judicial deduzido pela arguida.”


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            4. Remetidos os autos à 1ª instância, veio a ser realizada audiência de julgamento e proferida decisão, por sentença de 20 de fevereiro de 2025, do dispositivo da qual ficou a constar:

                Nos termos e fundamento expostos decide-se julgar parcialmente procedente a impugnação judicial deduzida por …, S.A., alterando-se a decisão administrativa nos seguintes termos: sanciona-se a recorrente pela prática de uma contraordenação ambiental grave, p. e p.  art. 49.º, n.º1 al. b) e art. 184.º n.º 3 al. q) do RJPR na sua atual redação numa coima especialmente atenuada de €6.000,00 (seis mil euros)”.


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            5. Não se conformando com o decidido em tal sentença, veio, agora, a arguida …, S. A. recorrer da mesma, extraindo da motivação do recurso as seguintes conclusões (transcrição):

                “I – Na sentença ora recorrida, ficaram provados, entre outros, os seguintes factos:

                «9. A arguida tem atividade no sector das obras públicas e, para o que ao caso importa, no âmbito da conservação, terraplanagem, construção e pavimentação de estradas, utilizando esporadicamente, para melhor avaliar a qualidade demais condições de pavimentação, aparelhos conhecidos por Gamadensímetros que são fontes radioativas seladas, tendo dois dos mesmas;

                10. Tais Gamadensímetros estão licenciados desde o ano de 2007 tendo sido emitidas as últimas licenças em 15.11.2017 pela Direção Geral de Saúde, válidas por 5 anos;

                11. A arguida, ao longo de aproximadamente15 anos, possui e utilizaos referidos Gamadensímetros, devidamente licenciados e com registo no inventário nacional, DGS A2731 e DGS A2732,

                12. A arguida, na pessoa dos seus trabalhadores e representantes, estava convencida que apenas havia que enviar à APA o inventário das fontes radiativas seladas quando existissem alterações (por entender que o art. 184.º do diploma se aplicava a todas as als.do art. 49.º, n.º1 e tambémn.º3), sendo que a recorrentenão vendeu, não cedeu por qualquermodo, não transmitiu, não deslocou nem inutilizou qualquer das fontes;

                13. Em orientação genérica para titulares (DAN-01 publicada em 29.07.2020), quanto ao inventário de fontes radiativas seladas, a APA ao invés de dizer que o titular deve “enviar à entidade competente, até ao dia 31 de janeiro do ano subsequente” refere que “o titular deverá remeter à APA, até 31 de janeiro de cada ano” (ponto 3.14 da DAN.01)

                14. A arguida não tem antecedentes contraordenacionais averbados em registo da autoridade administrativa»

                II – Nos termos da ainda atual redação do art.º 49.º do Dec.-Lei n.º 108/2018 03.12 (RJPR),

                1 – O titular de práticas que envolvam fontes radioativas seladas deve:

                a) Manter atualizado um inventário de todas as fontes sob a sua responsabilidade, bem como da respetiva localização, transmissão e transferência, e disponibilizar essa informação para inspeção quando tal for solicitado pela autoridade competente;

                b) Enviar à autoridade competente, até ao dia 31 de janeiro do ano subsequente, cópia do inventário das fontes registadas nos termos da alínea anterior, acompanhado da cópia da apólice do seguro de responsabilidade civil, quando aplicável;

                III – Da letra do sobredito preceito é possível retirar que o envio de cópia do inventário está dependente da necessidade de atualização do mesmo, isto é, é o inventário que tem de estar atualizado, e não a cópia do mesmo independentemente de modificações – aquisições, transmissões ou transferências – no número e características das fontes radioativas de que se seja titular.

                IV – Tal decorre, nomeadamente, da utilização, na al. b), do termo subsequente, como também pela remissão expressa, na mesma alínea, nos termos da alínea anterior,

                V – assim veiculando a ideia de que a comunicação da atualização do inventário deverá ser feita até ao dia 31 de janeiro do ano seguinte àquele em que se verificou alguma alteração.

                VI – De acordo com o teor do art.º 9.º n.ºs 2 e 3 do Código Civil, o entendimento sobredito é o que tem arrimo na letra de lei, sem extravasar os limites por ela impostos.

                VII – Assim se explica por que se convenceu a arguida, de forma credível - como referido na motivação da sentença ora recorrida -, de que a comunicação ínsita naquela al. b), só existiria na decorrência da previsão da alínea anterior, ou seja, quando houvesse uma alteração às fontes registadas relativamente ao já reportado.

                VIII - Certamente porque o que se quis dizer não foi o que se disse, em 29.07.2020, foi publicado, pela APA, o documento DAN_O1 Orientações genéricas para titulares de práticas, do qual resulta, no seu ponto 3.14:

                99. O titular deverá remeter à APA, até 31 de janeiro de cada ano, uma cópia do inventário de fontes radioativas seladas, em cumprimento da obrigação constante do artigo 49º(1)(b). O inventário deverá ser enviado para radiacao@apambiente.pt.

                IX– Só com este esclarecimento – mais de um ano após aentradaem vigordo RJPR – éque se clarificou a intenção legislativa, com evidentes diferenças de redação.

                X – Não tendo tal orientação foros legislativos nem resultando modificado o texto do mencionado art.º 49.º das alterações do Dec.-Lei n.º 108/2018 já ocorridas, mantem-se a ambiguidade de tal preceito até hoje, adensando dúvidas legítimas.

                XI – Daí que, contrariamente ao entendido pela sentença recorrida, se devesse ter considerado não censurável o erro em que a arguida laborou, note-se, potenciado pela deficiente redação da lei. Vejamos:

                XII – No seu raciocínio jurídico, a sentença de que se recorre, partiu da premissa de que a arguida tem, na sua organização interna, um departamento jurídico e, por isso, um maior o dever de cuidado se impunha.

                XIII – É o que resulta do trecho da sentença que se transcreve:

                «No caso dos autos o erro tem-se como censurável (ainda que a título de negligência) já que a recorrente é uma empresa S.A., com dimensão e estrutura ao ponto de ter departamento jurídico. Lida, pelo seu objeto, com inúmera legislação ambiental e embora na sua análise ou interpretação possam ocorrer erros, tem acesso à possibilidade de esclarecer as dúvidas que possam existir (sabemos que a legislação carece de interpretação e importa que junto do seu departamento jurídico ou até telefonando para o IGAMAOT ou APA suscitasse).»

                XIV – Porém, não resulta dos factos provados que tal departamento exista no seio da arguida.

                XV – Também de tais factos não resulta que se tenha, ou não tenha, feito qualquer tentativa de contacto com a APA a fim de dilucidar possíveis dúvidas interpretativas por parte da arguida no que ao caso respeita.

                XVI – Nesta exacta medida, entende a arguida que a sentença recorrida padece de nulidade prevista no art.º 410.º, n.º 2, als. a) e b) do CPP.

                XVI – Em abono da não censurabilidade do erro em que a arguida terá laborado, dir-se-á ainda que, até julho de 2020 a APA não assumia qualquer orientação ou interpretação do disposto no artigo 49º do RJPR, nem que a interpretação de um eventual departamento jurídico da arguida fizesse interpretação diversa da lei, do que a que vem expressa neste recurso.

                XVII – Assim, neste contexto fáctico e legal, impunha-se concluir pela não censurabilidade do erro em que a arguida laborou ao não apresentar, até 31 de janeiro de 2020, o inventário das fontes radioativas licenciadas e já reportadas à entidade competente,

                XVIII – pois tal erro não denota qualquer falta de cuidado ou alheamento das disposições legais e regulamentares aplicáveis por parte da arguida – cfr. ponto 14. dos factos provados.

                XIX – …

                XX …

                XXI – …

                XXII– Demonstradoque está quealetra do art.º49.º,n.º 1, als. a)e b) do RJPR étudo menos clara– daí advindo anecessidade da APA vir esclarecê-la através daquelas Orientações genéricas,

                XXIII – dever-se-ia ter trilhado o caminho percorrido no acórdão da Relação de Évora, datado de 23.04.2024, relatado por Renato Barroso, do qual se extrai que:

                “Ora, a leitura da legislação retratada na sentença recorrida não é inequívoca, sendo admissível a interpretação no sentido de que a exigência de comunicação dos eventos apenas se aplica às situações em que ocorram falhas técnicas ou humanas, ou qualquer disfunção ou avaria dos equipamentos relacionados com a produção e com os sistemas de redução e controlo da actividade poluente da empresa, relativas, por isso, às emissões para a água, solo ou ar associadas à produção.

                Este entendimento, note-se – elemento que é particularmente importante e que não pode, de todo, ser desprezado – foi reforçado pelo depoimento da Sr.ª Inspetora da IGAMOT, Dr.ª B, que o corroborou por inteiro. Assim sendo, tendo ocorrido um incêndio praticamente limitado ao interior das instalações da empresa e outro, em equipamento de terceiro, seja compreensível que a recorrente, na pessoa da sua técnica, a Eng. V, não tenha pensado ou sequer equacionado que tais incidente se pudesse enquadrar na referida alínea D do Quadro 11 da sua LA, e, por isso, devessem ser comunicados à IGAMOT, porquanto, dos mesmos não teriam resultado a libertação de quaisquer substâncias resultantes da actividade produtiva da empresa.

                …

                Do acima exposto, parece razoável concluir, como demanda a recorrente, que a não comunicação dos incidentes à IGAMAOT não decorreu de qualquer deliberação de incumprir a LA ou a lei, mas apenas de uma diversa interpretação jurídica efectuada pelos seus quadros responsáveis a qual foi também aceite  pela própria  IGAMOT. …

                XXIV – Pelo exposto, a sentença recorrida fez incorreta apreciação das questões suscitadas em sede de impugnação judicial da decisão da IGAMAOT, padecendo das nulidades previstas no art.º 410.º, n.º 2, als. a) e b) CPP; violando, simultaneamente, os art.ºs 49.º, n.º 1 al. b) e 184.º, n.º 3, al. q) do RJPR e 9.º e 12.º LQCOA.

               

            Termos em que, deve o presente recurso proceder, revogando-se a D. Sentença recorrida e, consequentemente, absolvendo-se a arguida da contraordenação em que foi condenada.”


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            6. Admitido o recurso, a ele respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância, …

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            7. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer …

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            8. Não foi apresentada resposta ao parecer.

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            9. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência.

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            II- Fundamentação
A) Delimitação do objeto do recurso

            … apesar do reduzido esforço de síntese exigido pelo art. 412º, nº1 do CPP que as conclusões apresentadas pelo recorrente revelam, as questões a decidir são as seguinte:

            - Se a sentença recorrida padece dos vícios previstos nas alíneas a) e b) do nº2 do art. 410º do CPP;

            - Se a arguida incorreu em erro não censurável.


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            B) Decisão Recorrida

            Com vista ao conhecimento das questões objeto do presente recurso importa ter presente o teor da decisão recorrida que, na parte relevante para apreciação da mesma, se passa a transcrever:

III. Fundamentação

Fundamentação de facto

Com relevo para o que importa decidir, resultou provado que:


1. No dia 23.06.2020 a Inspeção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, através do ofício com a referência S/0635/RAD/20 enviou à “…, S.A.”, uma notificação para no prazo de 10 dias, fazer prova do cumprimento da obrigação do envio à autoridade competente - Agência Portuguesa do Ambiente, IP – da cópia de inventário das fontes radioativas seladas que detém, acompanhado da cópia da apólice de seguro de responsabilidade civil. quando aplicável, e fotografias das fontes, dos seus contentores, das embalagens de transportes, dispositivos e equipamentos, consoante os casos, nos termos do n.º 1 do art. 49.º do Decreto-Lei n.º 108/2018 de 03.12, com as alterações introduzidas pela Retificação n.º 4/2019, de 31 de janeiro;
2. A empresa “…, S.A.”, rececionou a notificação em 26.06.2020;
3. A empresa “…, S.A.”, respondeu à notificação em 06.07.2020, dentro do prazo concedido para o efeito, dando assim cumprimento à notificação, através de carta, documento com o registo na IMAGAOT com a referência E/07158/CGI/20;
4. De acordo cm a informação prestada pela empresa, esta é detentora das fontes radioativas seladas indicadas na seguinte tabela:

Tipo de equipamento
Marca/Modelo Serial number
Fontes seladas (atividade)
Data

da atividade

n.º registo no inventário nacional
n.º de licença
Data de emissão
Gamadensímetro
Troxler/3450/

632

Cs-137 (0,30GBq);

Am-241:Be (1,48 GBq)

-
DGS n.º

A2731

2326/17
15.11.2017
Gamadensímetro
Troxler/3440/

20187

Cs-137 (o,30GBq);

Am-241:Be 1,48GB-q)

-
DGS n.º

A2732

2327/17
15.11.2017


5. Apesar da informação disponibilizada pela empresa a comprovar que esta detém efetivamente fontes radioativas seladas, não foi feita qualquer prova de que tivesse sido enviado à APA até à data de 31 de janeiro de 2020, os elementos anteriormente meniados, ou seja, cópia do inventário das fontes radioativas seladas que detém, acompanhado da cópia da apólice do seguro de responsabilidade civil, quando aplicável e fotografias das fontes, dos seus contentores, das embalagens de transporte, dispositivos ou equipamentos consoante os casos;
6. Deste modo, a empresa …, S.A.”, com sede …, titular das fontes radioativas seladas acima mencionadas não cumpriu a obrigação de envio do inventário anual;
7. A arguida exerce atividade regulada por lei, pelo que tinha obrigação de conhecer e cumprir com o ali prescrito para o exercício da mesma, in casu (à data) o Decreto-Lei nº108/2018 de 03.12;
8. Não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, não resultando dos autos elementos que retirem ilicitude ou censurabilidade à sua conduta.
 (Da impugnação, no que releva para a decisão a proferir):
9. A arguida tem atividade no sector das obras públicas e, para o que ao caso importa, no âmbito da conservação, terraplanagem, construção e pavimentação de estradas, utilizando esporadicamente, para melhor avaliar a qualidade e demais condições de pavimentação, aparelhos conhecidos por Gamadensímetros que são fontes radioativas seladas, tendo dois dos mesms;
10.  Tais Gamadensímetros estão licenciados desde o ano de 2007 tendo sido emitidas as últimas licenças em 15.11.2017 pela Direção Geral de Saúde, válidas por 5 anos;
11.  A arguida, ao longo de aproximadamente 15 anos, possui e utiliza os referidos Gamadensímetros, devidamnete licenciados e com registo no inventário nacional, DGS A2731 e DGS A2732,
12.  A arguida, na pessoa dos seus trabalhadores e representantes, estava convencida que apenas havia que enviar à APA o inventário das fontes radiativas seladas quando existissem alterações (por entender que o art. 184.º do diploma se aplicava a todas as als. do art. 49.º, n.º1 e também n.º3), sendo que a recorrente não vendeu, não cedeu por qualquer modo, não transferiu, não deslocou nem inutilizou qualquer das fontes;
13.  Em orientação genérica para titulares (DAN-01 publicada em 29.07.2020), quanto ao inventário de fontes radiotivas seladas, a APA ao invés de dizer que o titular deve “enviar à autoridade competente, até ao dia 31 de janeiro do ano subsequente” refere que “O titular deverá remeterer à APA, até 31 de janeiro de cada ano” (ponto 3.14 da DAN.01)

Mais se provou que:

14. A arguida não tem antecedentes contraordenacionais averbados em registo da autoridade administrativa;


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Inexistem factos não provados com relevo para a decisão a proferir.

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Quanto ao demais alegado e não dado como provado ou não provado tal deve-se a se tratar de juízos de valor, matéria de Direito ou a factos que não relevam para a questão a decidir à luz de qualquer solução plausível de Direito.

Motivação

Fundamentação de Direito

Vinha imputada à recorrente uma contraordenação ambiental grave, p. e s. nos termos do art. 49.º, n.º1 e 184.º, n.º3 então al. r) e agora al. q) do Dec.-Lei n.º 108/2018 de 03.12, na sua atual redação, sancionável por negligência nos termos do art. 22.º, n.º3 al. b) da LQCOA

O Decreto-Lei 108/2018, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva 2013/59/Euratom veio estabelecer o regime jurídico da proteção radiológica.

 Por seu turno o Dec.-Lei n.º 81/2022 de 06.12 (aplicado nos autos em sede de decisão administrativa porque tido como mais favorável – art. 4.º, n.º2 da LQCOA) veio alterar o regime jurídico da proteção radiológica, tendo resultado deste último que a contraordenação imputada à arguida passou de muito grave a grave e de uma coima mínima in casu de €24.000,00 para €12.000,00.

Importa ainda ressaltar que, nos termos do art. 49.º do mesmo diploma de que ora se cuidou em 3., no que respeita aos deveres dos titulares de fontes radioativas seladas, prevê-se que: “1- O titular de práticas que envolvam fontes radioativas seladas deve: a) Manter atualizado um inventário de todas as fontes sob a sua responsabilidade, bem como da respetiva localização, transmissão e transferência, e disponibilizar essa informação para inspeção quando tal for solicitado pela autoridade competente; b) Enviar à autoridade competente, até ao dia 31 de janeiro do ano subsequente, cópia do inventário das fontes registadas nos termos da alínea anterior, acompanhado da cópia da apólice do seguro de responsabilidade civil, quando aplicável;

Ora, dos factos provados, resulta que numa fiscalização feita a 23.06.2020 se constatou que a recorrente não havia enviado à APA o inventário das fontes radioativas seladas (que tinha) e documentos referidos naquela al. b) (que também tinha) até 31.01.2020 (factos provados n.ºs 1 a 6).

Provou-se ainda que a arguida exerce atividade regulada por lei, pelo que tinha obrigação de conhecer e cumprir com o ali prescrito para o exercício da mesma, in casu (à data) o Decreto-Lei nº108/2018 de 03.12 e que não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, não resultando dos autos elementos que retirem ilicitude ou censurabilidade à sua conduta, pelo que atuou com negligência. – factos provados n.ºs 7 e 8.

Assim, estamos perante a contraordenação agora considerada grave nos termos do art. 184.º, n.º3 al. q) do diploma em causa nos termos atuais e mais favoráveis à arguida (sendo que não existe a atipicidade da conduta a que a recorrente alude. O art. 49.º, n.º1 estabelece uma obrigação de o inventário das ditas fontes deve estar atualizado e, conduta e dever diferentes são o de enviar todos os anos o inventário à APA e não apenas por referência ao n.º 1 quando há atualizações).

De todo o modo face ao provado em 9 ss (especialmente 9 e 12) importa ainda tecer algumas considerações sobre o erro da arguida.

É sabido que a ação contraordenacional, para ser sancionada, além de ser típica e ilícita há-se ser culposa pelo que há que estabelecer um nexo de imputação subjetiva da Acão ao agente a título de dolo ou, quando a lei assim preveja, a título de negligência.

A matéria do erro, em sede contraordenacional, vem regulada nos arts. 8.º, n.º2 e 3 e 9.º do RGCO sendo que, por estarmos perante contraordenação ambiental está igualmente regulada, em especial no art. 12.º da Lei Quadro das Contraordenações ambientais (LQCOA) que “1 - Age sem culpa quem atua sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável. 2 - Se o erro lhe for censurável, a coima pode ser especialmente atenuada” Ora, tal artigo sobrepõe-se ao previsto no art. 9.º do RGCO que tem a mesma exata redação. Já o previsto no art. 8.º do RGCO não tem lugar paralelo na Lei quadro das contraordenações ambientais mas não deixa de ser aplicável subsidiariamente (art. 2.º, n.º1 da LQCOA)

Assim, em matéria de erro, dispõe ainda o art. 8.º, n.ºs 2 e 3 do RGCO que “2-O erro sobre os elementos do tipo, sobre a proibição, ou sobre um estado de coisas que, a existir, afastaria a ilicitude do facto ou a culpa do agente, exclui o dolo. 3- Fica ressalvada a punibilidade da negligência em termos gerais”.

Para efeitos legais, erro é a ignorância ou má representação de uma realidade.

Ainda assim, vale a pena um olhar de relance sobre o regime do erro no RGCO, detendo-nos um pouco mais apenas no erro sobre as proibições já que é aí, como facilmente se antevê, que as diferenças serão mais avultadas.

Uma primeira modalidade que se pode extrair do disposto no art. 8.º, n.º2, 1ª parte do RGCO é o erro sobre os elementos do tipo. O art. 8.º, n.ºs 2 e 3 do RGCO tem grandes afinidades com o disposto no art. 16.º do CP.

No que se refere a esta modalidade de erro, da mera leitura de tais normas, constatamos a seguinte diferença: onde no art. 8.º do RGCO se refere “erro sobre os elementos do tipo”, no art. 16.º do CP refere-se “erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime”. Trata-se de uma mera diferença de redação, e não de uma efetiva diferença de regime já que os elementos do tipo podem consabidamente ser de facto ou de direito ou, noutra terminologia, descritivos ou normativos.

Com efeito, o agente deverá conhecer todas as circunstâncias de facto que pertencem ao tipo legal de contraordenação para que a sua conduta se possa reputar de dolosa. Daí que, na súmula empreendida por Simas Santos e Lopes de Sousa, “está excluído o dolo quando o erro recai sobre: elementos que já existem no momento em que o agente inicia a sua conduta, elementos produzidos pela sua conduta, o processo causal quando elemento constitutivo da contraordenação, os elementos jurídicos utilizados pela lei, os elementos modificativos agravantes em relação às contraordenações qualificadas”[1]. Restará ainda assim a possibilidade de o agente ser sancionado por negligência nos termos gerais (art. 8.º, n.º 3 do RGCO), sendo que, tal punibilidade abstrata da negligência é assaz frequente nos regimes especiais contraordenacionais.

Prevê-se ainda o erro sobre um estado de coisas que, a existir, afastaria a ilicitude do facto ou a culpa do agente (art. 8.º n.º2, in fine do RGCO). Pense-se nos erros sobre os pressupostos de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa (v.g. um consentimento que, afinal, não existia).

Como havíamos dito, o legislador considera erro não apenas uma errada representação da realidade mas ainda a ausência de representação dessa realidade, o que nos leva ao erro sobre a ilicitude previsto no art. 9.º do RGCO (sendo que o art. 9.º do RGCO é bastante similar ao que dispõe o art. 17.º do Código Penal).

Entre o erro sobre os elementos do tipo (art. 8.º, n.º 2 do RGCO) e o erro sobre a ilicitude (art. 9.º do RGCO) há, contudo, zonas cinzentas, pelo que iremos analisar desde já o erro do art. 9.º para depois voltarmos ao art. 8.º com um olhar mais focado no erro sobre as proibições que aqui assume especial relevância. A título exemplificativo das dificuldades de delimitação prática, veja-se o caso do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.03.2011, Proc. n.º 800/10.3TBVLG.P1 em que se sumaria que I - Se, no desconhecimento de que o terreno estava classificado como área de Reserva Ecológica Nacional, o agente, autorizado pelo proprietário daquele, que também desconhece tal classificação, lança nele um camião de terra, não age em erro sobre a ilicitude, age em erro sobre as circunstâncias de facto. II - Sendo aquele desconhecimento imputável a uma falta de informação a uma falta de informação ou de esclarecimento, conforma o mesmo, quando censurável, o específico tipo de censura da negligência.”

 De todo o modo, podemos dizer que enquanto no erro sobre os elementos do tipo falta ao agente o conhecimento dos elementos de facto ou Direito que eram indispensáveis para que norteasse a sua conduta licitamente, já no erro sobre a ilicitude o agente tem o conhecimento dos elementos do tipo mas não valora tais elementos no sentido de apreender a ilicitude da conduta. Assim, o primeiro é um erro de conhecimento e o segundo um erro de valoração.

Ora, o caso dos autos redunda num erro de valoração: a recorrente sabe que existe a obrigação legal de comunicação de inventário de fontes radioativas seladas mas valora incorretamente as circunstâncias em que tal comunicação tem que ocorrer, pensando que apenas o teria que fazer se existisse alguma alteração ao inventário inicial quando na verdade o tinha que fazer anualmente..

Assim, estamos perante o erro previsto no art. 9.º do RGCO coincidente com o art. 12.º da LQCOA.

A questão seguinte é inevitável: será tal erro censurável?

Figueiredo Dias enuncia os critérios de apreciação de tal censurabilidade dizendo que se se lograr provar que a falta de consciência da ilicitude resulta de modo imediato e direto de uma qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante do agente, aquela dever-se-á considerar censurável. Já se tal não resultar provado, continuar-se-á a entender essa falta de consciência da ilicitude como censurável exceto se se verificar que apesar da falta concreta, o agente ainda detém uma reta consciência ético-jurídica baseada numa atitude de fidelidade ou correspondência a exigências ou pontos de vista de valor juridicamente relevantes[2]. Na senda de tais ensinamentos, Refere o Ac. da Relação de Coimbra de 19.10.1983, CJ, ano VIII, 4, p. 83 que “Há censurabilidade do erro sobre a ilicitude quando o agente não atuou com o cuidado de uma pessoa portadora duma reta consciência ético-jurídica teria, informando-se e esclarecendo-se convenientemente sobre a proibição legal”[3].

Operando um tal juízo de censurabilidade e concluindo-se pela mesma, o agente é sancionado com coima especialmente atenuada nos termos do art. 18.º, n.º 3 do RGCO. Ao invés, concluindo-se pela inexistência de censurabilidade, então sim, estamos perante uma causa de exclusão da culpa do agente (art. 12.º, nº2 da LQCOA e art. 9.º, n.º2 do RGCO).

Analisando decisões concretas refere que os Tribunais, ao conhecerem de tal questão, usaram três tipos de critérios: um primeiro relativo a uma ideia de exigibilidade do conhecimento de obrigações legais que se intensifica pelo nível de profissionalismo de alguns agentes, um segundo critério que passa pela falta de diligência na obtenção de informação, v.g. agentes com acesso fácil a consultores jurídicos, e, por fim um terceiro critério que passa por uma apreciação ética da indiferença do arguido perante os valores protegidos pela norma, assim estando ausente uma reta consciência ético-jurídica.

O referido Autor, aceitando o acerto das decisões quanto ao uso dos dois primeiros critérios, rejeita porém o último em coerência com a ideia que defende de que as contraordenações não está em causa uma “culpa ética” mas uma mera imputação do facto à responsabilidade do seu autor. Permitimo-nos, contudo, discordar, pelo menos em parte das situações. É que, e como já referimos, a nosso ver nem todas as contraordenações são axiologicamente irrelevantes, e, nas que defendem inclusivamente bens jurídico-penais, não será de afastar uma análise à luz da culpa de um ponto de vista de valoração da ética vigente em cada momento histórico e social.

No caso dos autos o erro tem-se como censurável (ainda que a título de negligência) já que a recorrente é uma empresa S.A., com dimensão e estrutura ao ponto de ter departamento jurídico. Lida, pelo seu objeto, com inúmera legislação ambiental e embora na sua análise ou interpretação possam ocorrer erros, tem acesso à possibilidade de esclarecer as dúvidas que possam existir (sabemos que a legislação carece de interpretação e importa que junto do seu departamento jurídico ou até telefonando para o IGAMAOT ou APA suscitasse).

Assim, deve a recorrente ser sancionada, mas, com coima especialmente atenuada (art. 12.º, n.º2 da LQCOA).

Estão pois reunidos os elementos objetivos e subjetivos (negligência) do tipo contraordenacional em causa sendo que o facto de se provar que arguida, quando alertada quanto à falta de envio do inventário supra referido, o enviou quer à IGAMAOT quer à APA é matéria que não afasta a ilicitude nem a culpa e apenas deve ser considerada na parte relativa à sanção.

Delimitado o ilícito contraordenacional a sancionar, vejamos agora a matéria recursiva relativa à sanção.

Vimos já que, como consequência do supra referido a coima do ilícito contraordenacional supra referido deve ser especialmente atenuada (erro censurável nos termos do art. 9.º RGCO e 12.º LQCOA), estando legalmente prevista pela prática de uma contraordenação ambiental grave, p. e s. nos termos do art. 49.º, n.º1 e 184.º, n.º3 al. q) do Dec.-Lei n.º 108/2018 de 03.12, na sua atual redação sancionável por negligência nos termos do art. 22.º, n.º3 al. b) da LQCOA uma coima de 12 a 72 mil euros.

Nos termos do art. 23.º-B da LQCOA Sempre que houver lugar à atenuação especial da coima, os limites mínimos e máximos da coima são reduzidos a metade.

Somos por isso reconduzidos, num segundo momento, a nova moldura de coima especialmente atenuada passa a coima de 6 a 36 mil euros.

Na fixação concreta de cada uma das coimas devemos por isso atender aos critérios a que alude o art. 20.º da LQCOA, que estabelece que “1- A determinação da coima e das sanções acessórias faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa do agente, da sua situação económica e dos benefícios obtidos com a prática do facto. 2 - Na determinação da sanção aplicável são ainda tomadas em conta a conduta anterior e posterior do agente e as exigências de prevenção. 3 - São ainda atendíveis a coação, a falsificação, as falsas declarações, simulação ou outro meio fraudulento utilizado pelo agente, bem como a existência de atos de ocultação ou dissimulação tendentes a dificultar a descoberta da infração”

Assim, já em sede de decisão administrativa se havia fixado a coima no seu então limite mínimo pelo que, agora em sede de moldura de coima atenuada, e de acordo com os critérios supra aludidos não vemos que seja de realizar diferente juízo (respeitador dos critérios previstos no art. 20.º) pelo que se aplica uma coima de 6 (seis) mil euros à recorrente.

Assim, o recurso procede na parte relativa à verificação de erro censurável, com atenuação especial da coima, agora se fixando a mesma em 6.000,00€ (seis mil euros).

IV. Decisão:

Nos termos e fundamento expostos decide-se julgar parcialmente procedente a impugnação judicial deduzida por …, S.A., alterando-se a decisão administrativa nos seguintes termos: sanciona-se a recorrente pela prática de uma contraordenação ambiental grave, p. e p.  art. 49.º, n.º1 al. b) e art. 184.º n.º 3 al. q) do RJPR na sua atual redação numa coima especialmente atenuada de €6.000,00 (seis mil euros)”.


*

            C) Apreciação do recurso

            - Da existência dos vícios previstos nas alíneas a) e b) do nº2 do art. 410º do CPP

            Insurge-se a recorrente …, S.A. contra a sentença recorrida invocando que esta padece “das nulidades previstas no art.º 410.º, n.º 2, als. a) e b) CPP”.

            Sustenta tal argumentação recursiva, que resume nas Conclusões XII- a XVI- no entendimento de que na sentença recorrida se concluiu pela censurabilidade do erro em que a mesma laborou com base num raciocínio jurídico feito a partir de factos que não defluem da factualidade que resultou provada, citando, para tanto, o seguinte trecho da mesma:

                «No caso dos autos o erro tem-se como censurável (ainda que a título de negligência) já que a recorrente é uma empresa S.A., com dimensão e estrutura ao ponto de ter departamento jurídico. Lida, pelo seu objeto, com inúmera legislação ambiental e embora na sua análise ou interpretação possam ocorrer erros, tem acesso à possibilidade de esclarecer as dúvidas que possam existir (sabemos que a legislação carece de interpretação e importa que junto do seu departamento jurídico ou até telefonando para o IGAMAOT ou APA suscitasse).»

            Concretizando, a tal propósito, que não resulta dos factos provados que exista no seio da arguida um departamento jurídico e nem também que a mesma tenha, ou não tenha, feito qualquer tentativa de contacto com a APA a fim de dilucidar possíveis dúvidas interpretativas por parte da arguida no que ao caso respeita.

            A primeira nota que importará adiantar é que os normativos legais em que a recorrente ancora o defeito que assaca à sentença recorrida – ou seja, as alíneas a) e b) do nº2 do art. 410º do CPP – dizem respeito a vícios da decisão e não a nulidades da decisão, uma vez que o elenco das nulidades da sentença consta do art. 379, nº1, alíneas a) a c) do CPP.

            Admitindo ter havido por parte da recorrente confusão entre o regime jurídico das nulidades da sentença e dos vícios da sentença, encetaremos abordagem de tal questão na perspetiva dos vícios da sentença, até porque, a argumentação esgrimida pela mesma a esse propósito não se mostra abrangida pela densificação normativa que comportam as nulidades da sentença, previstas no normativo legal (art. 379, nº1, alíneas a) a c) do CPP).

            Isto dito.

            Estatui o artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal que, «[m]esmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.»

Os elencados vícios constituem defeitos estruturais e intrínsecos da decisão, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte patenteada pelo respetivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando, por isso, excluída a possibilidade de consideração de outros elementos extrínsecos ou exógenos, ainda que constem do processo, emergentes de prova constituída ou advinda do próprio julgamento[4].

No âmbito da análise dos vícios decisórios, o tribunal de recurso não aprecia a matéria de facto – no sentido da reapreciação da prova –, limitando a sua atuação, num exercício de exegese hermenêutica, à deteção dos vícios que a decisão recorrida evidencia e, não sendo possível saná-los, determina a remessa do processo para novo julgamento, em consonância com o preceituado no artigo 426º do Código de Processo Penal.

A matéria de facto que padeça dos sobreditos vícios está «(…) ostensivamente divorciada da realidade das coisas, quer por ser insuficiente, quer por ser contraditória, quer por erroneamente apreciada»[5], razão pela qual, ainda que não sejam invocados, são de conhecimento oficioso – cfr. acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95[6].

Debrucemo-nos mais detalhadamente sobre os concretos vícios invocados pela recorrente.

Começando pela insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, esta verifica-se quando a factualidade dada como provada na decisão se revela insuficiente para fundamentar a solução de direito alcançada e quando o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, deixou de investigar toda a matéria de facto que, sendo relevante para a decisão final, podia e devia ter investigado.

O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada emerge, assim, quando ocorre a omissão de pronúncia pelo tribunal, ou quando este não indagou, sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa, tendo em perspetiva as várias soluções jurídicas que se perfilem.

Nas palavras do Prof. Germano Marques da Silva[7], «é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada».

Este vício reporta-se, assim, exclusivamente à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, sendo, pois, problemáticas distintas, que não podem ser confundidas.

Indispensável é, pois, que do texto da sentença resulte patente que a matéria de facto se apresenta como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar incontornável lacuna no apuramento da facticidade necessária para uma decisão de direito justa.

            Convém, porém, ter em mente que, como decorrência da natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional, a descrição factual exigível será a indispensável a identificar o agente, caracterizar as circunstâncias de tempo e lugar, a modalidade de ação e a forma de culpa com que atuou e a integrar causas de justificação, se as houver.

            Já quanto ao vício decisório da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto na alínea b) do mesmo normativo legal, nela contemplam-se dois vícios distintos:

            - A contradição insanável da fundamentação; e

            - A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

             No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível” – vide, neste sentido, - Ac. do STJ de 18-02-1998, nº convencional JSTJ00034535.

            Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.

            Volvendo ao caso dos autos, patenteia-se na motivação do recurso e nas conclusões daquela extraídas, que a recorrente, ao concretizar as razões em que sedimenta os defeitos que assaca à sentença recorrida, elege um segmento do texto desta, entendendo que do mesmo se extrai um raciocínio jurídico feito a partir de factos que não defluem da factualidade que resultou provada, aduzindo, ainda que, que não resulta dos factos provados que exista no seio da arguida um departamento jurídico e nem também que a mesma tenha, ou não tenha, feito qualquer tentativa de contacto com a APA a fim de dilucidar possíveis dúvidas interpretativas por parte da arguida no que ao caso respeita.

            Face a tal argumentação, sendo esta, como é, a única que suporta os defeitos assacados à sentença recorrida, a primeira observação que cumpre fazer é a de que a recorrente não distingue quais as razões que, com base nela, evidenciam a existência de um e de outro dos apontados defeitos.

            Feita esta nota, vejamos, então, mais de perto se as razões que pela mesma vêm invocadas integram ou não a verificação de cada um dos aludidos vícios decisórios previstos nas alíneas a) e b) do nº2 do art. 410º do CPP.

            Começando pelo vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, a motivação para tanto a ter em conta é, como já se disse, a de que na sentença recorrida se decidiu pelo erro censurável da recorrente no cometimento, por negligência, da contraordenação que lhe vem imputada a partir de factos que não defluem da factualidade que resultou provada, porque, não resulta dos factos provados que exista no seio da arguida um departamento jurídico e nem também que a mesma tenha, ou não tenha, feito qualquer tentativa de contacto com a APA a fim de dilucidar possíveis dúvidas interpretativas por parte da arguida no que ao caso respeita. 

      Indispensável é, como se viu, que a sentença contenha a descrição factual essencial para o preenchimento do tipo objetivo e subjetivo da contraordenação nela imputada – in casu, o tipo objetivo traduz-se na inobservância da obrigação de enviar à autoridade competente, até ao dia 31 de janeiro do ano subsequente, cópia do inventário das fontes registadas nos termos da alínea anterior, acompanhado da cópia da apólice do seguro de responsabilidade civil, quando aplicável, exigida pelo disposto no art. 49º, nº1, al. b) do Dec. Lei n.º 108/2018 de 03.12; do ponto de vista subjetivo, a atuação pode revestir a forma dolosa ou negligente, decorrendo o sancionamento por negligência do disposto no art. 22.º, n.º3 al. b) da LQCOA.

      Do elenco factual provado constante da sentença recorrida constam todos os factos que preenchem os elementos constitutivos – objetivo e subjetivo – da contraordenação imputada à recorrente e pela qual naquela se decidiu a sua condenação.

      Com efeito, quanto aos que integram o elemento objetivo da imputada contraordenação, o seu preenchimento subsume-se da factualidade provada vertida nos pontos 1. a 6., e quanto aos que integram o elemento subjetivo, o respetivo preenchimento subsume-se da factualidade provada vertida nos pontos 7. e 8.

Cumprindo, ainda, dizer, que em relação ao preenchimento do elemento subjetivo, na modalidade de negligência que assim vinha imputada à arguida na decisão administrativa e que veio a resultar provada, nem sequer se poderá equacionar a questão da sua insuficiente descrição, porquanto, a problemática que se poderia concitar em relação à nulidade da decisão administrativa com base na mesma, foi já decidida no recurso previamente interposto pelo Ministério Público, sobre o qual veio este Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 20 de novembro de 2024, a decidir no sentido da mesma não se verificar, decisão essa que, quanto a tal questão, é vinculativa, havendo, por isso, que salvaguardar os efeitos do caso julgado formado quanto à mesma.

Sendo a factualidade dada como provada na sentença recorrida, que se deixou referida, suficiente para o preenchimento dos elementos objetivo e subjetivo da contraordenação imputada à arguida, resulta, por isso, ser a mesma suficiente para se concluir, como se fez na sentença recorrida, pela imputação à arguida e ora recorrente da assacada contraordenação, cometida a título negligente.

Na verdade, como a esse propósito resulta da sentença recorrida ” dos factos provados, resulta que numa fiscalização feita a 23.06.2020 se constatou que a recorrente não havia enviado à APA o inventário das fontes radioativas seladas (que tinha) e documentos referidos naquela al. b) (que também tinha) até 31.01.2020 (factos provados n.ºs 1 a 6).

Provou-se ainda que a arguida exerce atividade regulada por lei, pelo que tinha obrigação de conhecer e cumprir com o ali prescrito para o exercício da mesma, in casu (à data) o Decreto-Lei nº108/2018 de 03.12 e que não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, não resultando dos autos elementos que retirem ilicitude ou censurabilidade à sua conduta, pelo que atuou com negligência. – factos provados n.ºs 7 e 8.

Assim, estamos perante a contraordenação agora considerada grave nos termos do art. 184.º, n.º3 al. q) do diploma em causa nos termos atuais e mais favoráveis à arguida (sendo que não existe a atipicidade da conduta a que a recorrente alude. O art. 49.º, n.º1 estabelece uma obrigação de o inventário das ditas fontes deve estar atualizado e, conduta e dever diferentes são o de enviar todos os anos o inventário à APA e não apenas por referência ao n.º 1 quando há atualizações).
Outrossim, não deixou o tribunal recorrido de debruçar-se sobre a pertinente factualidade atinente à falta de consciência da ilicitude por erro não censurável, levando em conta o que a esse propósito vinha alegado pela recorrente em sede impugnação da decisão administrativa.
Factualidade essa que se mostra decidida na sentença recorrida, nos pontos 9. a 13. da seguinte forma:
9. A arguida tem atividade no sector das obras públicas e, para o que ao caso importa, no âmbito da conservação, terraplanagem, construção e pavimentação de estradas, utilizando esporadicamente, para melhor avaliar a qualidade e demais condições de pavimentação, aparelhos conhecidos por Gamadensímetros que são fontes radioativas seladas, tendo dois dos mesms;
10. Tais Gamadensímetros estão licenciados desde o ano de 2007 tendo sido emitidas as últimas licenças em 15.11.2017 pela Direção Geral de Saúde, válidas por 5 anos;
11. A arguida, ao longo de aproximadamente 15 anos, possui e utiliza os referidos Gamadensímetros, devidamnete licenciados e com registo no inventário nacional, DGS A2731 e DGS A2732,
12. A arguida, na pessoa dos seus trabalhadores e representantes, estava convencida que apenas havia que enviar à APA o inventário das fontes radiativas seladas quando existissem alterações (por entender que o art. 184.º do diploma se aplicava a todas as als. do art. 49.º, n.º1 e também n.º3), sendo que a recorrente não vendeu, não cedeu por qualquer modo, não transferiu, não deslocou nem inutilizou qualquer das fontes;
13. Em orientação genérica para titulares (DAN-01 publicada em 29.07.2020), quanto ao inventário de fontes radiotivas seladas, a APA ao invés de dizer que o titular deve “enviar à autoridade competente, até ao dia 31 de janeiro do ano subsequente” refere que “O titular deverá remeterer à APA, até 31 de janeiro de cada ano” (ponto 3.14 da DAN.01)”.
E, depois de proceder, com inegável desenvolvimento, sobre a problemtática do erro em materia contraordenacional, entendeu que “o caso dos autos redunda num erro de valoração: a recorrente sabe que existe a obrigação legal de comunicação de inventário de fontes radioativas seladas mas valora incorretamente as circunstâncias em que tal comunicação tem que ocorrer, pensando que apenas o teria que fazer se existisse alguma alteração ao inventário inicial quando na verdade o tinha que fazer anualmente.”, terminando por concluir que No caso dos autos o erro tem-se como censurável (ainda que a título de negligência) já que a recorrente é uma empresa S.A., com dimensão e estrutura ao ponto de ter departamento jurídico. Lida, pelo seu objeto, com inúmera legislação ambiental e embora na sua análise ou interpretação possam ocorrer erros, tem acesso à possibilidade de esclarecer as dúvidas que possam existir (sabemos que a legislação carece de interpretação e importa que junto do seu departamento jurídico ou até telefonando para o IGAMAOT ou APA suscitasse).”

            É, concretamente, neste último segmento da sentença recorrida que a ora recorrente sustenta os defeitos que assaca à sentença recorrida, por entender que nele são levados em conta factos que não constam como provados, designadamente, se no seio da arguida existia um departamento jurídico e se a recorrente fez ou não qualquer tentativa de contacto com a APA a fim de dilucidar possíveis dúvidas interpretativas por parte da mesma a propósito da legislação que contempla a obrigação legal de comunicação de inventário de fontes radioativas seladas que sobre a mesma impendia.

                A verdade é que, não constando embora do elenco dos factos provados qualquer materialidade respeitante à existência no seio da arguida de um departamento jurídico e a qualquer tentativa por parte da mesma de contacto com a APA a fim de dilucidar possíveis dúvidas interpretativas por parte da mesma a propósito da legislação que contempla a referia obrigação legal que sobre a mesma impendia, sobre os quais, adianta-se, a recorrente nada alegou em sede de impugnação judicial da decisão administrativa – quer no sentido afirmativo, quer no sentido negativo da mesma  - tal factualidade não se mostrava necessária para aferir da censurabilidade do erro em que a arguida e ora recorrente laborou - ao saber que existe a obrigação legal de comunicação de inventário de fontes radioativas seladas mas pensando que apenas o teria que fazer se existisse alguma alteração ao inventário inicial quando na verdade o tinha que fazer anualmente - porque as premissas com base nas quais o tribunal recorrido concluiu que o erro da recorrente é censurável inferem-se da factualidade provada, por desta ser possível extrair que a recorrente é uma empresa S.A., com dimensão e estrutura ao ponto de ter departamento jurídico, lida, pelo seu objeto, com inúmera legislação ambiental e embora na sua análise ou interpretação possam ocorrer erros, tem acesso à possibilidade de esclarecer as dúvidas que possam existir, como dela, efetivamente o tribunal a quo extraiu.

                Não deixa de ser incompreensível que a ora recorrente venha, como parece, pretender valer-se em sede recursiva de factualidade que a mesma não alegou para lograr demonstrar que agiu com erro não censurável, imputando ao tribunal o dever de investigação das razões que a levaram à interpretação que fez da legislação que prevê a obrigação legal de comunicação de inventário de fontes radioativas seladas à APA, quando, como lhe incumbia, devia ter alegado e demonstrado essas razões para lograr provar que diligenciou, como podia e devia, para cumprir a obrigação legal que sobre ela impendia.

            Tudo para dizer que, que a sentença recorrida não padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

            Da mesma forma havendo que decidir quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, porquanto, do texto da decisão recorrida não se vislumbra a existência de situações em que a fundamentação desenvolvida pelo tribunal da 1ª instância evidencie premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis, nem situações em que os factos provados ou não provados colidam com a fundamentação da decisão, adiantando-se, ainda, que, quer do trecho da decisão recorrida trazido para o efeito à colação pelo recorrente, quer da desta, na sua íntegra, nenhuma de tais situações se verifica.

            Termos em que soçobra este segmento recursivo.


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            - Da não censurabilidade do erro
   Discorda a recorrente contra a decisão recorrida por nesta se ter decidido ser censurável o erro em que laborou.
O cerne de tal questão prende-se com a circunstância, dada como provada, de a recorrente, sabendo que existe a obrigação legal de comunicação de inventário de fontes radioativas seladas, ter valorado incorretamente as circunstâncias em que tal comunicação tem de ocorrer, pensando que apenas o teria que fazer se existisse alguma alteração ao inventário inicial quando, na verdade, o tinha que fazer anualmente, independentemente de qualquer alteração ao mesmo.
   Revisitado o que já deixámos dito, discorreu-se na sentença recorrida sobre a problemática do erro em matéria contraordenacional, com exuberante acutilância e desenvolvimento que, pela sua assertividade, dispensa acrescidas considerações, tendo-se por acertada a conclusão a que nela se chegou de que, no caso em vertente, se está perante um erro de valoração, porque a recorrente sabe que existe a obrigação legal de comunicação de inventário de fontes radioativas seladas mas valora incorretamente as circunstâncias em que tal comunicação tem que ocorrer, pensando que apenas o teria que fazer se existisse alguma alteração ao inventário inicial quando na verdade o tinha que fazer anualmente.
   Não pondo a recorrente em causa essa conclusão, insurge-se a mesma contra a sentença recorrida apenas por nela terminar por decidir-se que tal erro é censurável, porque, no seu entender o mesmo deveria ter sido considerado erro não censurável, e, por isso, deveria ser absolvida da contraordenação que lhe vem imputada.
Não lhe assiste, porém, razão.
É que, para tanto, não basta refugiar-se em que pensou que o envio da cópia do inventário à entidade competente só teria de ser feito se existisse alguma alteração ao inventário inicial, por ser essa a sua interpretação da lei, quando, na verdade, sobre si impendia a obrigação legal de fazer esse envio anualmente, independentemente de ter ocorrido alguma alteração ao mesmo, porque outra não pode ser, sem margem para dúvidas, a interpretação que se impõe fazer da disposição legal contida no citado art. 49º, nº1, al. b) do Dec. Lei n.º 108/2018 de 03.12, até porque, só com essa comunicação anual o titular das fontes radioativas seladas poderá permitir à entidade competente (APA) a informação de que, como é sua obrigação legal - decorrente do disposto na al. a) do mesmo preceito legal - mantém atualizado o inventário das mesmas.

            Como é consabido, o direito contraordenacional revela condutas mais ou menos axiologicamente relevantes (ou irrelevantes porquanto axiologicamente neutras) e que será, em muitos casos, a proibição a acrescentar-lhe o desvalor ético-social (v.g. o Prof. Fig. Dias, in “Direito Penal, Parte Geral - I”, 2004, 7º Cap. § 9, pag. 150), razão que leva alguns a encarar com normalidade a possibilidade de falta de consciência da ilicitude neste ramo de direito.

            No caso em vertente, não revelam os factos que a conduta seja axiologicamente relevante, não só pela natureza do evidenciado, mas também pela falta de factos que revelem qualquer valoração negativa evidente. Ou seja, é a proibição que torna a conduta axiologicamente relevante.

            Como se salienta no ac. do TRP, Tribunal da Relação do Porto, de 23.03.2011, disponível in www.dgsi.pt,  “os Tribunais têm usado critérios de exigibilidade, quanto ao conhecimento das obrigações legais, adaptados ao estatuto profissional dos agentes e à sua experiência na área. Pode mesmo falar-se, em alguns casos, de uma exigibilidade intensificada pelo nível de profissionalismo dos agentes envolvidos.
A par deste critério, é também usado o critério da falta de diligência na obtenção da informação, isto é, o agente podia ter-se informado melhor (junto das fontes ao seu alcance) antes de decidir praticar o facto e não o fez.
Finalmente, surgem ainda critérios de natureza ética, isto é, em que se invoca a indiferença do arguido perante os valores protegidos pelas normas a que está adstrito e, noutro caso, a ausência de uma recta consciência ético jurídica que, a existir, poderia afastar o juízo de censurabilidade sobre o erro em causa. Em suma, para decidir da censurabilidade da falta de consciência da ilicitude do agente no âmbito do Direito de mera ordenação social deve partir-se de critérios de exigibilidade adequados ao circuito económico e profissional onde se insere o agente; num segundo nível, pode identificar-se uma exigibilidade intensificada pelas circunstâncias do caso (por exemplo, facilidade de conhecimento das normas vigentes ou de acesso a informação relevante) ou pela qualidade do agente (por exemplo, em função do tempo de exercício da profissão ou do nível profissional assumido pelo agente); finalmente, pode recorrer-se a critérios de censura "ético-profissional". Adicionalmente, podem ser ainda utilizadas considerações preventivas sobre a finalidade das sanções, formuladas a par dos critérios atrás descritos, ou a atitude de indiferença do agente relativamente aos valores tutelados pelas normas contraordenacionais, a que o agente deve respeito em função de um certo estatuto profissional que pressupõe o conhecimento e o acatamento das regras legais vigentes.”

                Sendo, como é, a recorrente uma empresa, com a estrutura e dimensão de S.A., que lida, desde pelo 2007, com fontes radioativas seladas (Gamadensímetros), cuja utilização comporta deveres impostos por inúmera legislação ambiental, é lhe exigível que conheça a legislação que rege o sector em que desenvolve  a sua atividade empresarial, devendo, para tanto, acautelar-se junto de um gabinete jurídico ou de outra fontes de informação que lhe permitam o cabal esclarecimento sobre a interpretação da mesma por forma a cumprir as obrigações legais dela decorrentes.

            Neste concreto quadro, face ao sector empresarial onde se insere a arguida e ora recorrente, não só é especialmente exigível o conhecimento das normas vigentes, como existe uma intensificação desta exigibilidade pelo facto de no âmbito do seu objeto social serem utilizadas aparelhos que são fontes radioativas seladas que determinam um conjunto de mecanismos de gestão, controlo, notificação rápida e informação, para a proteção de membros do público aos riscos de exposição a radiações ionizantes, que demandam um cabal e completo conhecimento das obrigações legais a que por tal facto estava adstrita, que não se compadecem com o erro invocado pela mesma,  até porque, como resulta da motivação da matéria de facto, a recorrente tinha ao seu serviço um engenheira geóloga, …, com a incumbência de fazer as comunicações das fontes radioativas seladas, a qual, quando inquirida na audiência de julgamento, referiu ter tido dúvidas sobre a obrigatoriedade de comunicação do inventário das fontes radioativas seladas à APA nos casos em que em que não houvesse alteração das mesmas e que, apesar dessas dúvidas, não as tentou dissipar junto do departamento jurídico da empresa recorrente nem junto da APA.

            Razões pelas quais, a nosso ver, não pode o erro de interpretação da norma em causa invocado pela recorrente ser considerado não censurável, como, e bem, se decidiu na sentença recorrida.

            Improcedendo, por isso, também neste segmento a pretensão recursiva.


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            Termos em que se nega provimento total ao recurso.

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            III- Decisão

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Seção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra, em:

1. Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo …, S.A., e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

2.  Condenar a recorrente nas custas do recurso, fixando a taxa de justiça em 2 UCs (Tabela III anexa ao RCP ).


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Coimbra, 10 de setembro de 2025

            (Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP )

(Maria José Guerra – relatora)

(Rosa Pinto – 1ª adjunta)

 (Helena Lamas– 2ª adjunta)


[1] Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra-ordenações – Anotações, p.123.
[2] Jorge de Figueiredo Dias, O Problema da Consciência da Ilicitude, 5ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, pp. 362 e 363.
[3] citado em Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra-ordenações – Anotações, p.127 e por António Beça Pereira, Regime Geral, p. 42.
[4] Neste sentido, cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 15.ª edição, página 822; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2.ª edição, Editorial Verbo, página 339; e Leal-Henriques e Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, Rei dos Livros, página 77.
[5] Cfr. Conselheiro Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, págs. 1356.
[6] Publicado no DR, I-A, de 28 de dezembro de 1995
[7] In “Curso de Processo Penal”, Vol. III, págs. 339/340