I - No artigo 401.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do C.P.P., a lei confere legitimidade ao assistente para recorrer das decisões contra ele proferidas se tiver interesse em agir.
II - Por força do artigo 74.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3, do C.P.P. é pressuposto da dispensa de pena facultativa a reparação do dano causado.
III - A aplicação da dispensa de pena, que visa as bagatelas penais, é um poder-dever que o tribunal deve aplicar sempre que se verifiquem os pressupostos formais e estiverem já realizados os fins das penas.
IV - A não reparação do dano causado confere ao assistente legitimidade para recorrer da dispensa de pena aplicada ao arguido, porque tem subjacente um interesse próprio para além da vertente punitiva e preventiva do direito penal, que compete ao Estado.
V - Não havendo danos decorrentes do comportamento do arguido não há danos a indemnizar, caso em que a inexistência de reparação não obsta à aplicação da dispensa de pena.
Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. No Processo Comum Singular Nº 98/22.0GEIDN, que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Idanha-a-Nova, do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, na sequência das acusações pública e particular contra os mesmos deduzidas, foram sujeitos a julgamento os arguidos AA, BB e CC.
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A) Absolver o arguido CC da prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, do Código Penal, que lhe era imputado em sede de acusação particular;
B) Absolver o arguido CC da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pessoa de AA, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, que lhe era imputado em sede de acusação pública;
C) Condenar o arguido CC pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, dispensando-o de pena, ao abrigo do disposto nos artigos 143.º, n.º 3, al. b) e 74.º, ambos do Código Penal;
D) Condenar a arguida AA pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz o montante global de 880,00 € (oitocentos e oitenta euros);
E) Condenar o arguido BB pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz o montante global de 880,00 € (oitocentos e oitenta euros);
F) Condenar os arguidos AA, BB e CC no pagamento das custas criminais, que se fixam em 3 UC´s a taxa de justiça individual, bem como no pagamento das demais custas e encargos do processo (cf. artigos 513.º, n.ºs 1, 2 e 3, e 514.º, n.º 1 e 2, e 523.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).
B) Sem custas cíveis, cf. artigo 4.º, n.º 1, al. n), do Regulamento das Custas Processuais.
B) Sem custas cíveis, cf. artigo 4.º, n.º 1, al. n), do Regulamento das Custas Processuais.
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i. …
ii. …
iii. …
iv. …
v. …
vi. ….
vii. Com o devido respeito e apesar de todo o apreço funcional que os recorrentes dedicam à douta Decisão, equivocou-se o Tribunal a quo ao considerar provados os factos descritos nos pontos 1, 2, 3, o segundo ponto 1, o segundo ponto 2, 5, 7, 8, 11, 15, 16, 17 e 18 da douta sentença.
viii. Na formação da sua convicção, o Tribunal a quo teve em consideração as declarações do recorrido e das testemunhas arroladas pelo Ministério Público, maxime, a testemunha DD.
ix. Considerou que as declarações do recorrido CC foram mais claras e coerentes “face às regras da experiência e da normalidade da vida”.
x. Entendeu que as declarações dos recorrentes se revelaram comprometidas face à prova testemunhal produzida em sede de audiência.
xi. Existem, por certo, uma série de incongruências/incoerências que o Tribunal a quo desconsiderou na hora da decisão, EXISTINDO UM NOTÓRIO ERRO DE JULGAMENTO e que importa aqui frisar, porquanto existem concretas provas que impunham decisão distinta no que concerne à matéria de facto dada como provada e não provada – artigo 412.º, n.º 3, alínea b) do CPP.
xii. Para formar a sua convicção quanto à matéria de facto provada, aqui posta em causa, o Tribunal a quo relevou as declarações de CC (demandante/arguido) e de DD.
xiii. Numa primeira fase, o recorrido relatou que, na sequência das pretensas agressões de que foi alvo, ficou “imobilizado”, no entanto, um pouco depois acaba por referir que se defendeu e que desferiu um “murro” no recorrente BB.
xiv. Depois refere que, enquanto a recorrente AA o segurava no chão, passaram uns caçadores que não pararam no local (contrariando a versão apresentada pelas testemunhas EE e FF, conforme se exporá infra), tendo chegado, entretanto, a testemunha DD.
xv. Ora, se os ditos caçadores passaram e não pararam no local, como é que o recorrido CC logrou concluir que se tratavam de caçadores e que eram três?
xvi. Também o arguido referiu que os caçadores nunca chegaram a voltar ao local, tendo ido “em seu auxilio”, apenas e só, a testemunha DD, no entanto, conforme se verá infra, todas as testemunhas, à exceção de GG, acabaram por estar no local e conversar com os recorrentes e recorrido.
xvii. Além disso, aquando das supostas injúrias de que foi alvo, o recorrido referiu que os recorrentes estavam a cerca de dois/três metros do veículo por aquele conduzido, sendo que o mesmo ia com o vidro do lugar do condutor aberto, num local com bastante poeira.
xviii. …
xix. Outrossim, quanto ao momento em que supostamente agrediu o recorrente BB com um “murro”, o recorrido CC mencionou que o desferiu quando saiu do carro, tendo dito, posteriormente, que só o fez para se defender, após ter sido atingido com o pau manuseado pelo recorrente.
xx. Igualmente, não faz jus às regras da experiência comum e do normal suceder, o facto do recorrido CC ter abandonado (“fugido” nas suas palavras) o local quando o próprio teria sido alegadamente agredido.
xxi. …
xxii. …
xxiii. …
xxiv. Aqui chegados, atentas as declarações prestadas pelo recorrido CC, que foram tudo menos claras e coerentes, não poderia o Tribunal a quo, dar como provados os factos vertidos nos respetivos pontos 1, 2, 3, o segundo ponto 1, o segundo ponto 2, 5, 7, 8, 11, 15, 16, 17 e 18 da douta sentença.
xxv. Outrossim, as declarações da testemunha DD foram tudo menos claras, sérias, objetivas e imparciais.
Ora vejamos,
xxvi. Embora as declarações prestadas perante órgão de polícia criminal não possam ser utilizadas para a formação da convicção do Tribunal a quo, as mesmas servem, desde logo, para aferir da credibilidade da testemunha DD.
xxvii. …
xxviii. …
xxix. …
xxx. …
xxxi. …
xxxii. …
xxxiii. …
xxxiv. …
xxxv. …
xxxvi. …
xxxvii. …
xxxviii. …
xxxix. …
xl. …
xli. Perante a presente exposição, reitere-se que esteve mal o Tribunal a quo ao dar como provados os factos acima identificados, tendo por base as declarações do recorrido e o pouco isento depoimento da testemunha DD.
xlii. Ao contrário da testemunha DD que, pelas razões já aventadas, não apresentou um discurso coerente, objetivo e isento, as testemunhas EE e FF apresentaram um depoimento imparcial e objetivo.
xliii. Com efeito, estas testemunhas vieram, de forma patente, contrariar a versão apresentada pelo recorrido CC que referiu que as mesmas não estiveram no local, “passaram, mas não pararam”.
xliv. ….
xlv. …
xlvi. …
xlvii. …
xlviii. Destarte, atendendo a todos os elementos de prova aqui apresentados, esteve mal o Tribunal a quo a dar como provados os factos já acima expostos que serviram de base para a condenação dos recorrentes pela prática em co-autoria de um crime de ofensa à integridade física.
xlix. Por outro lado, com o devido respeito que o Tribunal a quo merece, equivocou-se, uma vez mais, ao não considerar provados os factos descritos nas alíneas A), B), C), E), F), G), H), I), J), K), L), M), N), O., P., Q., R., S., T., U., V., W. X., Y., Z.
l. No fundo, o Tribunal a quo considerou que os recorrentes não apresentaram um depoimento coerente, encontrando-se o mesmo comprometido atendendo à demais prova testemunhal apresentada.
li. Considerou que, apesar do discurso dos recorrentes ter sido, grosso modo, coincidentes, existiu uma incongruência, porquanto a recorrente AA colocou-se no veículo automóvel do recorrente BB, tendo este desmentido tal facto.
lii. Tais diferenças discursivas poderão, PELO CONTRÁRIO, servir como um elemento demonstrativo de que os recorrentes, apesar de marido e mulher, não delinearam os termos das suas declarações, adotando antes um discurso genuíno.
liii. Diga-se, igualmente, que olvidou o Tribunal a quo que as quezílias entre os recorrentes e o recorrido eram frequentes, existindo outros processos anteriores, o que poderia causar alguma confundibilidade quanto aos concretos eventos (não seria de se excluir a hipótese de a recorrente se colocar com o marido no carro acabar por interligar-se a outro ou outros episódios a envolver todos os intervenientes).
liv. Ademais, diga-se ainda, que as pequenas diferenças nos depoimentos dos recorrentes não se revelam mais substanciais do que as incongruências já detalhadas quanto às declarações do recorrido CC e a testemunha DD.
lv. …
lvi. …
lvii. …
lviii. …
lix. …
lx. …
lxi. …
lxii. …
lxiii. …
lxiv. …
lxv. …
lxvi. …
…
SEM PRESCINDIR,
lxvii. …
lxviii. Efetivamente, no caso dos autos, não existem elementos suficientes para chegarmos à conclusão de que os recorrentes praticaram os crimes pelos quais vieram a ser condenados.
lxix. E os que existem são notoriamente contraditórios, pelo que não se compreende a credibilidade conferida aos recorrido e testemunha DD para formular os quesitos dados como provados.
lxx. O Tribunal a quo teria que formar a sua convicção procurando aproximar-se ao máximo da busca da verdade material utilizando critérios objetivos e racionalmente motiváveis.
lxxi. …
lxxii. …
lxxiii. …
lxxiv. … impõe-se a absolvição do arguido por força do princípio in dubio pro reo. (negrito nosso) …
lxxv. …
lxxvi. …
lxxvii. …
lxxviii. …
lxxix. …
lxxx. …
lxxxi. …
lxxxii. …
lxxxiii. …
lxxxiv. É notório que, nos presentes autos, foi, quando muito, criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos que suportaram a condenação dos recorrentes (sobretudo pelas circunstâncias em que foram prestados os depoimentos do recorrido e testemunha DD), pelo que “a sua absolvição aparece como única atitude legítima a adotar” (ALEXANDRA VILELA, in “Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual penal”, Coimbra Editora, 2000, pág. 121).
lxxxv. …
lxxxvi. Reputando-se (hipoteticamente) como assente a matéria de facto dada como provada e não provada, o que não se concebe pelas razões supra expostas, estaria sempre mal o Tribunal a quo ao determinar a dispensa de pena do recorrido quanto à prática do crime de ofensa à integridade física na pessoa do recorrente BB.
lxxxvii. A dispensa de pena só tem lugar se no caso concreto se verificarem os seguintes requisitos: a) a ilicitude do facto e a culpa do agente serem diminutas; b) se o dano tiver sido reparado; e c) se à dispensa de pena não se opuserem razões de prevenção – artigo 74.º do Código Penal.
lxxxviii. Com efeito, pelos comportamentos do recorrido, o recorrente BB sofreu danos não patrimoniais que não foram, de todo, reparados.
lxxxix. …
xc. …
xci. …
xcii. …
xciii. …
…
Assim, no caso vertente, apesar dos recorrentes não obedecerem nas conclusões que apresentaram ao dever de síntese imposto pelo nº1 do art. 412º do CPP, tornando-se possível alcançar das mesmas as questões por eles suscitadas, dispensa-se o convite para a respetiva correção, depreendendo-se das mesmas as seguintes questões a decidir:
- A incorreta decisão proferida sobre a matéria de facto, por erro de julgamento e por violação do princípio da presunção de inocência do arguido e do princípio in dubio pro reo, e suas consequências;
- A inverificação dos pressupostos para a dispensa da pena relativamente ao crime de ofensa à integridade física por que foi condenado o arguido CC.
Com vista à apreciação das questões que se suscitam no presente recurso, vejamos, então, o que consta da decisão recorrida que, na parte relevante para a apreciação das mesmas, se passa a transcrever:
a) Dela consta a seguinte decisão quanto aos factos provados e não provados:
“ Referentes à acusação pública
1. No mesmo dia, em hora não concretamente apurada, mas após as 17 horas, num terreno próximo da ..., no ..., em ..., os três arguidos cruzaram-se.
2. Em seguida, a arguida AA muniu-se de uma pedra e desferiu uma pancada com a mesma na cara do arguido CC, atingindo-o no lado esquerdo da face.
3. Ato continuo o arguido BB desferiu uma pancada com um pau de madeira que trazia consigo, atingindo o arguido CC no nariz, o que o fez cair ao chão.
1. Os arguidos, BB e HH, enquanto o arguido CC estava no chão, desferiram um número não apurado de pontapés e murros em todo o corpo de CC.
2. Os arguidos BB e AA só cessaram o seu comportamento, quando ali passou um grupo de caçadores.
3. A arguida AA teve necessidade de receber tratamento médico, tendo padecido de dor e sofrimento, bem como lesões no membro superior direito, hematoma de cor avermelhada na face posterior do antebraço, hematoma de cor avermelhada na face posterior do antebraço, lesão no membro superior esquerdo, com hematoma de cor avermelhada na face posterior do antebraço.
4. O arguido BB teve necessidade de receber tratamento médico, tendo padecido de dor e sofrimento e, ainda, lesão no membro superior direito, escoriação linear na face dorsal do indicador direito.
5. Como consequência direta e necessária da atuação de BB e AA, CC teve necessidade de receber tratamento médico, tendo padecido de dor profunda e sofrimento e, ainda equimose de cor arroxeada na pálpebra inferior do olho direito, escoriações na hemiface esquerda e no dorso do nariz; equimose arroxeada na região lombar, membro inferior direito com quimose de cor arroxeada na nádega e coxa, duas feridas na face anterior da perna medindo, equimose de cor arroxeada na nádega e coxa esquerda.
6. O arguido CC, ao atuar da forma descrita, agiu no intuito concretizado de maltratar e molestar fisicamente BB, ofendendo-o no seu corpo e saúde.
7. Os arguidos BB e AA, ao atuarem da forma descrita em 2., 3. e 4., agiram com o intuito concretizado de maltratar e molestar fisicamente CC, ofendendo-o no seu corpo e saúde.
8. Em todas as situações descritas, agiram os arguidos livre, consciente e voluntariamente, bem sabendo que as condutas eram proibidas e punidas por lei, não se inibindo ainda assim de as realizar.
9. AA padeceu de dor e sofrimento durante o período de 8 dias até cura integral.
10. BB padeceu de dor e sofrimento durante o período de 8 dias até cura integral.
11. Em resultado das agressões infligidas pelos demandados das quais resultaram traumatismo facial, lombar e de ambas as coxas o demandante teve necessidade de receber tratamento hospitalar tendo sido conduzido ao Hospital Amato Lusitano de Castelo Branco (Unidade Local de Saúde de Castelo Branco, EPE).
12. Após entrada nas urgências daquele estabelecimento hospitalar foi sujeito a vários exames, designadamente fez RX à bacia, joelho e mão, TAC a orbitas e maxilofacial, tendo-lhe sido diagnosticado fraturas dos ossos próprios do nariz e da apófise frontal do maxilar superior direito, com pequena esquírola óssea de margens escleróticas que lhe reduz a amplitude do vestíbulo nasal direito.
13. Seguidamente foi orientado e observado em otorrinolaringologia (ORL), tendo sido medicado com analgésicos e seguidamente orientado para ortopedia, tendo recebido alta hospitalar.
14. No dia seguinte, 07.11.2022, voltou ao HAL para ser observado por otorrino observação que não foi possível por o ORL se encontrar no bloco, tendo voltado no dia seguinte.
15. Na sequência da conduta de AA e BB, o demandante sentiu tristeza e sofrimento.
16. Por força da atuação dos arguidos AA e BB, o demandante sentiu fortes dores e incómodo na região da cara, nariz, costas, braços, bacia e pernas, só consolidáveis nos trinta dias subsequentes às agressões e com recurso a fármacos analgésicos.
17. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 2., CC ainda se encontrava no interior do veículo automóvel em que se deslocava.
18. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 3., o arguido CC, na sequência do comportamento do arguido BB, desferiu um soco na face deste.
…
…
…
49. A arguida não regista condenações prévias.
50. O arguido não regista condenações prévias.
51. O arguido não regista condenações prévias.
Da discussão da causa resultaram não provados os seguintes factos:
Referentes à Acusação Pública
…
…
O. Por força da conduta de CC, AA tem, até hoje, justo receio de andar pela rua, pois crê que se for avistada pelo arguido, o mesmo a poderá agredir fisicamente.
P. AA sentiu-se ofendida e aterrorizada com o episódio ocorrido no dia 06/11/2022.
Q. A assistente foi sempre conhecida por ser alegre, extrovertida, confiante e livre.
R. O episódio de dia 06/11/2022 prejudicou, e ainda prejudica, a estabilidade social, o estado emocional, o orgulho, a confiança e a liberdade de circulação de AA.
S. As ocorrências de dias 04/11/2022 e 06/11/2022 fizeram com que AA ficasse deprimida, com stress constante, insónias, bastante entristecida, bem como ofendida na sua honra e dignidade feminina e como ser humano.
T. Os comportamentos de CC deixaram AA em alerta e com receio de encontrar o demandado e de morrer.
U. Por força da conduta de CC, BB tem, até hoje, justo receio de andar pela rua, pois crê que se for avistado pelo arguido, o mesmo o poderá agredir fisicamente.
V. BB sentiu-se ofendido e amedrontado com o episódio ocorrido no dia 06/11/2022.
W. O assistente foi sempre conhecido por ser alegre, extrovertido, confiante e livre.
X. O episódio de dia 06/11/2022 prejudicou e ainda prejudica a estabilidade social, o estado emocional, o orgulho, a confiança e a liberdade de circulação de BB.
Y. A ocorrência de dia 06/11/2022 fez com que BB ficasse deprimido, com stress constante, insónias, bastante entristecido, revoltado, bem como ofendido na sua honra e dignidade e como ser humano.
Z. Os comportamentos de CC deixaram BB em alerta e com receio de encontrar o demandado e de morrer.
AA. Dores que dificultaram o seu normal descanso noturno, pois em determinadas posições tinha dificuldade em respirar, e também dificuldade em mastigar quando se alimentava em resultado da apófise frontal do maxilar superior direito, e cujos incómodos e dores que teve de suportar sobretudo nos 15 dias subsequentes às agressões e que só parcial e temporariamente foram supríveis mediante a prescrição e toma de fármacos analgésicos.
BB. Devido aos hematomas que apresentava, sobretudo na sua face, constrangeu o demandante, por vergonha, a sair de casa durante sobretudo o dia, de forma a evitar que as pessoas se apercebessem do seu estado desfigurado em que se encontrava, resultante da contundência das agressões de que foi vítima.
CC. O que igualmente causou ao demandante vexame que se traduziram em enorme vergonha, ao ver-se envolvido num espetáculo degradante, alheio à sua vontade e para o qual não deu causa.
DD. Que lhe tem causado sérios constrangimentos, medo e trauma uma vez que ainda hoje evita qualquer contacto com os demandados, pois teme e receia voltar a ser agredido pelos demandados.
b. Dela consta a seguinte motivação quanto à decisão da matéria de facto:
“Em obediência ao disposto no artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, cumpre indicar as provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal e proceder ao seu exame crítico.
O Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica da prova produzida, em sede de audiência de discussão e julgamento, procedendo à sua apreciação segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador – cf. artigo 127.º, do Código de Processo Penal, excetuando o caso dos documentos autênticos e autenticados (uma vez que se consideram provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa: artigo 169.º do Código de Processo Penal), e da prova pericial (o juízo técnico, cientifico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador e sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência: artigo 163.º do Código do Processo Penal).
Importa, não obstante, referir que uma tal liberdade não significa um total alheamento da realidade fática trazida pelo «concreto pedaço de vida» que consubstanciam os autos, sendo antes um exercício racional e dedutivo do acervo probatório, inteligível, objetivável e motivável, que se destina, bem assim à afirmação do ordenamento jurídico, apenas alcançável mediante a sua apreensão pelos sujeitos e intervenientes processuais e, eventualmente, terceiros.
Relativamente às declarações prestadas pelos arguidos, importa sublinhar que as mesmas «constituem um meio de prova e/ou o exercício do seu direito de defesa, pelo que se reconhece às declarações do arguido, em qualquer das fases do processo, uma dupla natureza: de meio de prova e de meio de defesa»[1].
Termos em que, para a formação da sua convicção quanto à factualidade supra vertida, atendeu este Tribunal, para além das declarações prestadas pelos arguidos, aos seguintes elementos probatórios:
- Auto de notícia de fls. 3 e 4 do proc. n.º 98/22.0GEIDN;
- Auto de notícia de fls. 2 e 3 do proc. n.º 98/22.0GEIDN-A;
- Auto de notícia de fls. 3 e 4 do proc. n.º 104/22.0GEIDN;
- Certificados dos Registos Criminais.
- Relatório da perícia de avaliação do dano corporal, de fls. 21 e 24 do proc. n.º 98/22.0GEIDN;
- Relatório da perícia de avaliação do dano corporal, datado de 10/11/2022, no proc. n.º 98/22.0GEIDN-A, registado em 05/12/2022 com a ref.ª Citius 3075732, e relatórios de fls. 10 do mesmo apenso.
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- Da incorreta decisão proferida sobre a matéria de facto, por erro de julgamento e por violação do princípio da presunção de inocência do arguido e do princípio in dubio pro reo, e suas consequências
Ao dissentirem da sentença recorrida, com base na incorreta decisão da matéria de facto provada e não provada, almejam os recorrentes, arguidos/assistentes/demandantes/demandados nos presentes autos, AA e BB, a alteração da mesma visando, por um lado, a sua absolvição do crime de ofensa à integridade física, perpetrado na pessoa do ofendido/demandante CC, que, a cada um deles, vinha imputado na acusação e pela prática do qual foram ambos condenados, e, também do pedido de indemnização civil contra eles formulado, e, por outro lado, a condenação do mencionado CC, também ele arguido/demandado/demandante nos autos, pela prática dos imputados crimes de injúria e de ofensa à integridade física, perpetrados na pessoa da arguida AA, e também no pedido de indemnização civil formulados com base nos mesmos, dos quais veio a ser absolvido na sentença recorrida.
Nos termos do disposto no artigo 428.º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
A impugnação, por via de recurso, da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº 2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efetivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP.
Ao enveredar pela primeira hipótese, a sua discordância traduz-se na invocação de um vício da sentença recorrida e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; optando pela segunda hipótese, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar.
Dito de outra forma, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias:
- no âmbito restrito, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
- ou na impugnação ampla a que se reporta o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e que se pode extrair da prova produzida em audiência.
Ao impugnarem a matéria de facto (provada e não provada) decidida na sentença recorrida, os mencionados recorrentes socorrem-se para o efeito das provas examinadas em audiência, entendendo que houve erro de julgamento na análise das mesmas e invocando, expressamente, o respetivo suporte normativo (art. 412º, nº3 e 4 do CPP).
Ao enveredar, sem margem para dúvidas, por essa forma de impugnação da matéria de facto, impunha-se aos recorrentes o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos do artigo 412º, nº3 do C.P.P., o qual dispõe o seguinte:
«Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da decisão recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essa “provas” impõem decisão diversa da recorrida.
A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º).
Estabelece ainda o n.º 4 do artigo 412.º que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar as passagens (das gravações) ou os concretos segmentos de tais depoimentos em que se funda a impugnação e que no seu entender invertem a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).
Saliente-se que a remissão para os suportes técnicos não é a simples remissão para a totalidade das declarações prestadas, mas para os concretos e precisos locais da gravação, que suportam a tese do recorrente.
Assim, quando se trate de depoimentos testemunhais, de declarações dos arguidos, assistentes, partes civis, peritos, etc., o recorrente tem necessariamente de individualizar, no universo das que foram prestadas e que indica, quais as particulares e precisas passagens das mesmas, que ficaram gravadas, que se referem ao(s) facto(s) impugnado(s).
Exige-se que o recorrente refira o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
Como se refere no Ac. da Rel. de Coimbra, de 4.5.2016, proferido no processo 721/13.8TACLD.C1, disponível in www.dgsi.pt, “Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação das regras da experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória, mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção”.
Ao Tribunal da Relação, na sindicância do apuramento dos factos realizado em primeira instância, cabe, fundamentalmente, analisar o processo de formação da convicção do julgador e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado ou por não provado o que se deu por não provado.
E só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão – neste sentido, Acórdãos do STJ de 15/5/2009,10/3/2010,25/3/2010, in www.dgsi.pt./stj.
A especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação expressa do facto individualizado que consta da decisão recorrida e que o recorrente considera incorretamente julgado, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação.
Diz, a propósito, o Sr. Desembargador Sérgio Gonçalves Poças, «como o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas (…) apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo (…).
Assim, nesta especificação – as palavras valem – serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão» - in Revista Julgar, Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, n.º 10, Janeiro-Abril de 2010, págs. 31 e 32.
Assim, se o tribunal a quo deu como provado determinados pontos da matéria de facto (provada ou não provada), se o recorrente entende que tais factos foram incorretamente julgados (porque deveriam ter sido dados como não provados ou como provados) tem, no mínimo, de dizer clara e expressamente sob o título de “Pontos de facto incorretamente julgados” quais são esses pontos da matéria de facto.
…
Com efeito, como se vê da motivação exarada na sentença recorrida, o tribunal a quo não deixou de evidenciar, desde logo, as distintas versões sobre tal factualidade (provada e não provada) que resultaram das declarações prestadas na audiência de julgamento pelos arguidos …
E, ao fazer a análise crítica dessas diferentes versões apresentadas pelos três arguidos, não deixou de explicar porque lhes conferiu ou não credibilidade, …
Mas a verdade é que, a convicção alcançada pelo Tribunal recorrido em relação a toda essa factualidade, ao contrário do que propendem os recorrentes, não merece censura, porquanto, se mostra sustentada nos meios probatórios por aquele valorados e mencionados na motivação da decisão de facto, os quais, no seu conjunto, sedimentam, à luz do princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º do CPP, a convicção que o tribunal recorrido alcançou ao dar como provados e não provados os referidos factos que agora os recorrentes vieram impugnar, não assumindo os meios de prova convocados pelos recorrentes a virtualidade de impor decisão diversa.
Havendo que considerar, a este propósito, como aspeto relevante na apreciação da impugnação da matéria de facto, a que vem estando atenta a jurisprudência, que a apreciação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso, se destina, apenas, a remediar erros pontuais de procedimento ou de julgamento, pois, tal como se salienta no Ac. do STJ de 15.12.2005, (Proc. 05P2951), igualmente disponível in www.dgsi.pt, “O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”.
Donde, como bem se sintetiza, no Ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra de 30.04.2008, proferido no proc. nº 105/06.4GCPMS.C, disponível in www.dgsi.pt., “O recurso da matéria de facto não pressupõe portanto, uma reapreciação pelo tribunal superior dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida – o tribunal de recurso não efectua um novo julgamento nem forma uma nova convicção –, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal recorrido relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados, com base na avaliação das provas que considera determinarem uma diversa decisão” (cfr. Ac. do STJ de 19/12/2007, processo nº07P4203, em http://www.dgsi.pt).
Por isso, como neste aresto se adianta, no que concerne à valoração da prova testemunhal e da prova por declarações, existe uma enorme diferença entre a apreciação e valoração feita na 1ª instância e a que pode ser efetuada pelo Tribunal de recurso, com base na transcrição dos depoimentos ou mesmo, na audição das respetivas gravações.
É que a impressão produzida no julgador pela prova testemunhal e por declarações, que se fundamenta no conhecimento das reações humanas e análise psicológica que traçam o perfil de cada testemunha ou declarante, só alcança a sua plenitude através da imediação ou seja, do contacto próximo entre o tribunal e as testemunhas e outros intervenientes processuais.
Daí que, quando o julgador atribui ou não, credibilidade a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, porque a opção tomada se funda na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador fundada naquela prova, quando for feita a demonstração de que aquela opção viola as regras da experiência comum. De outra forma, seriam violados os princípios da imediação e da oralidade.
Neste sentido, aliás, se pronunciou já o Tribunal Constitucional, ao aceitar que o verdadeiro julgamento da causa é o realizado na 1ª instância, onde regem os princípios da imediação e da oralidade, onde são produzidas todas as provas e o tribunal contacta diretamente com os intervenientes processuais (Ac. nº 59/2006, de 18/01/2006, proc. nº 199/2005, disponível in www.tribunalconstitucional.pt).
No caso em vertente, a convicção alcançada pelo Tribunal recorrido não merece censura, porquanto, se mostra sustentada nos meios probatórios por aquele valorados e mencionados na motivação da decisão de facto, os quais, no seu conjunto, sedimentam, à luz do princípio da livre apreciação da prova, tal convicção quanto à prova dos referidos factos que agora o recorrente veio impugnar.
Sendo de realçar que quanto aos meios de prova que vêm convocados em sede de impugnação os recorrentes não invocam propriamente qualquer erro de julgamento, no sentido de deles não evolar o conteúdo probatório que deles extraiu o tribunal recorrido, apontando-lhe apenas contradições e discrepâncias, as quais o tribunal recorrido não só não escamoteou como valorou e concatenou com os demais elementos probatórios, procedendo à respetiva análise crítica por forma que não nos merece reparo, porque alicerçada nas regras da experiência comum.
Quanto à livre convicção do juiz, nessa apreciação da prova, ela não pode deixar de ser “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais, mas em todo o caso, também ela (deve ser) uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.” - cfr. Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205.
Na livre apreciação da prova o juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Observa, a este respeito, o Prof. Germano Marques da Silva, que «Num primeiro aspeto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem essencialmente da imediação, mas hão de basear-se na correção do raciocínio, que há de fundar-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.». Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, Verbo, 5.ª edição, pág.186.
O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355.º do Código de Processo Penal. É aí, na audiência de julgamento, que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na receção direta de prova e se assegura o princípio do contraditório, garantido constitucionalmente no art. 32.º, n.º5.
Reportando-se aos princípios da oralidade e imediação diz o Prof. Figueiredo Dias, que «Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efetivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...). Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais corretamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.». Obra citada, páginas 233 a 234.
Na verdade, a convicção do Tribunal é formada da conjugação dialética de dados objetivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
Se o Tribunal a quo, que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade da prova, explicou racionalmente a opção tomada, e o Tribunal da Relação entender que da reapreciação da prova resulta o acerto dessa opção sobre a matéria de facto impugnada, nos termos do art.127.º do C.P.P., por não impor decisão diversa, deve manter a decisão recorrida.
Ora, na motivação da decisão de facto que fez constar na fundamentação da sentença recorrida, o Tribunal a quo elencou as razões da valoração que efetuou, identificando a prova que relevou na formação da sua convicção a respeito da factualidade que considerou demonstrada e não demonstrada que os recorrentes vêm pôr em causa, indicando os aspetos da mesma que, conjugadamente, o levaram a concluir no sentido de a considerar provada e não provada, para além de ter assinalado de forma lógica e racional os fundamentos que, no seu entendimento, justificam a credibilidade que reconheceu e a força probatória que conferiu a esses elementos de prova, beneficiando, como já referido, da oralidade e da imediação que o julgamento em primeira instância lhe permitiu.
Também quanto à convicção que o tribunal recorrido logrou alcançar a respeito da factualidade integrante do elemento subjetivo de crime de ofensa à integridade física imputado nos autos aos arguidos ora recorrentes - que considerou provada – e que integra também a matéria que se mostra impugnada, revela-se pertinente tecer as seguintes considerações sobre a prova dos factos de natureza psicológica ou subjetiva.
O dolo, legalmente definido no art. 14º do C. Penal, consiste no conhecimento – elemento intelectual – e vontade – elemento volitivo – do agente em realizar o facto, com consciência da sua censurabilidade – consciência da ilicitude.
O elemento intelectual implica a previsão ou representação pelo agente das circunstâncias do facto, portanto, o conhecimento dos elementos constitutivos do tipo objetivo, sejam descritivos sejam normativos.
O elemento volitivo consiste na vontade do agente de realização do facto depois de ter previsto ou representado os elementos constitutivos do tipo objetivo – assim revelando a sua personalidade contrária ao direito, para uns, ou uma atitude contrária ou indiferente perante a proibição legal revelada no facto [elemento emocional do dolo], para outros.
O dolo, enquanto facto subjetivo, enquanto facto da vida interior do agente, não pode ser apreendido ou percecionado diretamente por terceiros pelo que a sua demonstração, tem que ser feita por inferência, através da conjugação da prova dos factos objetivos, em particular, dos que integram o tipo objetivo do crime, pelo que relativamente à prova dos factos subjetivos esta é alcançável por recurso a presunções naturais e às regras da experiência comum.
A prova dos factos de natureza subjetiva, mais do que quaisquer outros, não havendo confissão do agente, é alcançada através das chamadas presunções judiciais, tendo em vista os atos materiais praticados e a avaliação da vontade que neles teve que ser aplicada pelo agente, em função das regras do elementar senso comum.
Dada a natureza subjetiva, a menos que sejam confessados pelo agente, a única forma de prová-los será através das regras da experiência comum, a partir da objetividade da ação desencadeada, no pressuposto de que o ser humano, atuando em liberdade e em estado consciente, quando pratica determinado facto, fá-lo porque quer, assumindo as consequências que dele previsivelmente resultam.
No caso em vertente, lançando mão das presunções judiciais assentes nas regras da experiência comum, a partir da objetividade da ação desencadeada, é possível inferir a prova da factualidade atinente ao elemento subjetivo do crime de ofensa à integridade física imputado aos arguidos BB e AA, como, aliás, não deixou de o salientar o tribunal recorrido na motivação da decisão da matéria de facto que aquele diz respeito e que considerou provada.
Em suma, o raciocínio analítico da 1ª instância feito com base nos elementos probatórios que para o efeito valorou, como já se adiantou, não nos merece reparo – quanto à factualidade que considerou provada e não provada que agora em sede recursiva vem impugnada - bem pelo contrário, mostra-se suportada plenamente pelos elementos probatórios para o efeito foram valorados, de forma segura, devidamente fundamentada, estando explicada de forma lógica e racional, não se vislumbrando também que tenha sido violada uma qualquer regra da experiência comum, tendo sido estritamente observado o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do C.P.P.
De notar, ainda, que não se patenteia a existência de nenhum dos vícios decisórios previstos no nº2 do art. 410º do CPP – cujo conhecimento, apesar de não virem invocados, é de conhecimento oficioso.
A tal propósito, diremos que quanto à matéria provada que vem impugnada pelos recorrentes, nada resulta da fundamentação constante da decisão recorrida a respeito de qualquer dúvida que tenha pairado na convicção do julgador da primeira instância a propósito da mesma que justifique equacionar-se ter sido postergada pelo tribunal recorrido a aplicação de tais princípios constitucionalmente consagrados.
Com efeito, o princípio in dubio pro reo, enquanto corolário do principio da inocência do arguido, estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
Trata-se de uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
Ou seja, se produzida a prova subsiste no espírito do julgador um estado de incerteza, objetiva, razoável e intransponível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, impõe-se proferir uma decisão favorável ao arguido.
A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados.
Nesta fase do recurso, a demonstração da sua violação passa pela respetiva notoriedade, aferida pelo texto da decisão, isto é, em termos idênticos aos que vigoram para os vícios da sentença/acórdão, ou seja, têm que resultar da fundamentação destes, de forma clara, que o juiz, pese embora tenha permanecido na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado, ou que, tendo permanecido na dúvida sobre um facto desfavorável ao arguido o considerou provado.
Porém, a dúvida relevante para este efeito, não é a dúvida que qualquer recorrente entenda que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas antes e apenas a dúvida que o julgador não logrou ultrapassar e fez constar da sentença ou do acórdão ou que por estes é evidenciada, o que, bastas vezes, os recorrentes olvidam e /ou confundem, como, manifestamente, acontece no presente caso.
Como resulta, entre outros, do acórdão do S.T.J. de 2 de maio de 1996, in C.J., ASTJ, ano IV, 1º, pág. 177, o Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito do princípio in dubio pro reo se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo - e não os sujeitos processuais ou algum deles - chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido.
Refere Roxin, in “Derecho Processal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111, “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.
Assim, se na fundamentação aduzida na decisão o Tribunal não invoca qualquer dúvida insanável, ou, ao invés, se a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, com indicação clara e coerente das razões que fundaram a convicção do tribunal, inexiste lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo.
No caso vertente, os recorrentes propendem para a existência da dúvida que deveria ter pairado no espírito do julgador da 1ª instância apenas e só em função e como decorrência da sua apreciação da prova.
Para os recorrentes, de acordo com a sua própria apreciação/valoração, a prova produzida nos autos não permite concluir no sentido decidido quanto à sua atuação pela forma que foi considerada provada, por entender que a prova carreada para os mesmos se mostra insuficiente para esse efeito, e que, sobre isso, se deveria inculcar dúvida razoável valorada positivamente a seu favor, em conformidade com o princípio in dubio pro reo consagrado no art. 32º, nº2, 1ª parte da CRP.
Porém, em parte alguma da sentença recorrida resulta que, relativamente à factualidade dada como provada atinente à narrativa da atuação dos arguidos e ora recorrentes nela descrita que por eles vem impugnada, o tribunal recorrido se tenha defrontado com dúvidas que resolveu contra os recorrentes ou demonstrou qualquer dúvida na formação da convicção e, ademais, se impunha que a devesse ter tido.
A opção do tribunal recorrido relativamente à factualidade provada atinente à atuação dos arguidos recorrentes que pelos mesmos vem posta causa no presente recurso, mostra-se segura, devidamente fundamentada, estando explicada de forma lógica e racional, não se vislumbrando também, como já referido, que tenha sido violada uma qualquer regra da experiência comum, tendo sido estritamente observado o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do CPP.
Concluindo-se, assim, pela improcedência do segmento recursivo relativo à incorreta decisão sobre a matéria de facto e à violação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do in dubio pro reo, assim soçobrando a pretensão recursiva dos recorrentes de verem alterado o que foi decidido quanto à responsabilidade criminal e à responsabilidade civil dos mesmos e também do arguido/demandado CC.
Não colocando os recorrentes em causa a assertividade do enquadramento jurídico-penal ponderado na decisão recorrida - mas apenas o acervo factual que lhe está subjacente, que impugnam e que, como ficou já decidido, se mantém inalterado – o qual também nós entendemos não merecer qualquer censura, pretendem, porém, aqueles que não se verificam os pressupostos para a dispensa da pena que foi decidida pelo tribunal recorrido relativamente ao crime de ofensa à integridade física em que foi visado BB e pelo qual foi condenado o arguido CC.
A esse propósito decidiu-se na sentença recorrida o seguinte:
“Revertendo ao caso concreto, apreciemos, em primeiro lugar a conduta do arguido CC.
No atinente a este arguido, tendo em conta a factualidade dada como provada e como não provada, e sem necessidade de adicionais considerações, verifica-se que, em concreto, não resultou provada a factualidade que permita subsumir na conduta do arguido CC a prática do crime que lhe é imputado na pessoa de AA.
Face ao expendido, determina-se que o arguido seja absolvido da prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
No demais, resultou provado que, nas circunstâncias espaciotemporais descritas em 3. do julgamento de facto supra, o arguido CC, na sequência do comportamento do arguido BB, desferiu um soco na face deste, provocando sangramento e partindo-lhe os óculos. Mais ficou demonstrado que o arguido CC, ao atuar da forma descrita, agiu no intuito concretizado de maltratar e molestar fisicamente BB, ofendendo-o no seu corpo e saúde, e que, em todas as situações descritas, agiram os arguidos livre, consciente e voluntariamente, bem sabendo que as condutas eram proibidas e punidas por lei, não se inibindo ainda assim de as realizar.
Estão, portanto, presentes os acima referidos elementos típicos do crime de ofensa à integridade física, pelo que nenhuma dúvida subsiste em afirmar-se que o arguido CC efetivamente cometeu tal ilícito na pessoa de BB.
Todavia, também se apurou que o arguido atuou na sequência da atuação de BB que o atacava com um pau.
Ora, a este respeito rege o artigo 143.º, n.º 3, al. b), do Código Penal, do seguinte modo: «O tribunal pode dispensar de pena quando: […] b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor».
Acresce que, no caso dos autos estão devidamente verificados os pressupostos previstos no artigo 74.º, do Código Penal, pois que foi diminuta a ilicitude do facto e a culpa do agente, não existem danos por banda do arguido BB a serem reparados (considerando-se compensada a reparação do mal sofrido por força da reciprocidade das agressões, que, para mais, não implicaram qualquer afetação da capacidade geral ou de trabalho do arguido BB tendo-se revelado as lesões sofridas pelo arguido CC de maior gravidade quando comparadas às sofridas por BB) e, bem assim, à dispensa de pena não se opõem razões de prevenção, nem geral e muito menos especial, pois que o arguido não tem qualquer antecedente criminal, inexistindo, ainda, notícia de qualquer novo desentendimento entre os envolvidos.
Face ao exposto, considera-se que, in casu, é de dispensar a aplicação de pena ao arguido CC.”
A argumentação dos recorrentes atinente a tal segmento recursivo, espraiada nas conclusões lxxxvii. a xciv., é a seguinte:
- Reputando-se (hipoteticamente) como assente a matéria de facto dada como provada e não provada, o que não se concebe pelas razões supra expostas, estaria sempre mal o Tribunal a quo ao determinar a dispensa de pena do recorrido quanto à prática do crime de ofensa à integridade física na pessoa do recorrente BB.
- A dispensa de pena só tem lugar se no caso concreto se verificarem os seguintes requisitos: a) a ilicitude do facto e a culpa do agente serem diminutas; b) se o dano tiver sido reparado; e c) se à dispensa de pena não se opuserem razões de prevenção – artigo 74.º do Código Penal.
- Com efeito, pelos comportamentos do recorrido, o recorrente BB sofreu danos não patrimoniais que não foram, de todo, reparados.
- É certo que as agressões de que foi alvo não afetaram a sua capacidade geral, no entanto, limitaram-na.
- Ademais, a conduta do recorrido deixou o recorrente entristecido, revoltado, sentindo-se ofendido na sua dignidade e com receio de frequentar determinados locais públicos.
- Pois bem, efetivamente, tais danos não foram reparados pelo recorrido o que faz cair, desde logo, um dos requisitos/pressupostos da dispensa de pena, previsto no artigo 74.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
- Igualmente, as exigências de prevenção especial positiva não são diminutas, pois, apesar de o recorrido não ter averbado nenhum crime no seu registo criminal, o mesmo não está totalmente integrado na sociedade (basta analisar o teor do relatório social para determinação da sanção), padecendo de problemas aditivos e de dificuldades nos relacionamentos sociais – conforme doc. n.º 2 que se junta.
- O que demonstra, outrossim, que as exigências de prevenção se opõem à dispensa da pena – artigo 74.º, n.º 1, alínea c) do Código de Penal. Destarte, à cautela, diga-se, por fim, que caso a matéria de facto provada correspondesse à constante da douta sentença (o que não se aceita), estaria, ainda assim, mal o Tribunal a quo ao dispensar o recorrido da pena associada ao crime de ofensa à integridade física simples, face ao não preenchimento dos respetivos pressupostos, violando o disposto nos artigos 74.º e 40.º do Código Penal.
Antes de enveredarmos pela apreciação do segmento recursivo que, vindo deduzido por ambos recorrentes, deverá ser entendida como pretensão que apenas diz respeito ao recorrente BB, convirá que abordemos, a título de questão prévia, a questão que se prende com a legitimidade deste, como assistente que se mostra constituído nos autos, para pôr em causa a dispensa da pena decidida na sentença recorrida relativamente ao arguido CC referente ao crime de ofensa à integridade física perpetrado na pessoa daquele.
Face ao disposto no artº 401º nº1 b) do CPP a lei confere legitimidade ao assistente para recorrer das decisões contra ele proferidas, mas logo no nº 2 do mesmo preceito estabelece que « Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir ».
Já o Assento do STJ 8/99 de 30.10.97 –AR 1ª séria – de 10.08.99, que firmou jurisprudência no sentido de que « o assistente não tem legitimidade para recorrer desacompanhado do MP, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir ».
Coloca-se, assim, a questão do interesse em agir em relação ao assistente BB quanto à aplicação da dispensa de pena ao co-arguido CC, porquanto da referida norma e jurisprudência fixada resulta que o assistente, desacompanhado do Ministério Publico, como é o caso, tem legitimidade para recorrer também da espécie da pena, desde que tenha um interesse concreto e próprio em agir, e não um mero desejo de vindicta privada.
Há, porém, que ter em conta que o ac. de Fixação de Jurisprudência, do STJ nº2/2020, fixou jurisprudência no sentido de que “O assistente, ainda que desacompanhado do Ministério Público, pode recorrer para que a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado fique condicionada ao pagamento, dentro de certo prazo, da indemnização que lhe foi arbitrada.”
Ora, no caso da dispensa de pena facultativa por força do disposto no nº3 do artº 74º do CP, e alínea b) do nº1 do mesmo preceito, é pressuposto da aplicação deste instituto a reparação do dano causado; nessa medida, é de considerar que ao se opor à aplicação do instituto da dispensa de pena, o assistente BB tem subjacente um interesse próprio para além da vertente punitiva e preventiva do direito penal, a qual compete ao Estado.
E, assim sendo, resta concluir que, in casu o mesmo tem interesse em agir, e, por força disso, a lei confere-lhe a possibilidade de recorrer do segmento da sentença recorrida referente à aplicação da dispensa da pena que nela foi decidida em relação à atuação contra si perpetrada pelo co-arguido CC.
Isto dito.
A dispensa de pena prevista nos nº e 3 do artº 143º do CP tem carácter facultativo, e como tal a sua aplicação está sujeita à verificação dos pressupostos previstos no artº 74º do CP, conforme resulta do nº3 deste último preceito.
A verificação dos requisitos do artº 74º nº1 do CP é cumulativa, pelo que, para ser aplicada a dispensa da pena que nele se prevê, tem de estar verificada, não só a diminuta ilicitude do facto e diminuição da culpa do agente, prevista na al. b) do mesmo, mas também, que o dano tenha sido reparado e que à dispensa de pena não se oponham razões de prevenção, tal como se prevê nas als. a) a c) do mesmo.
A dispensa de pena é um instituto destinado a resolver bagatelas penais, em que se verificam todos os pressupostos da punibilidade mas em que não se justifique a aplicação de qualquer sanção penal, por tal não ser exigido pelos fins das penas.
Estamos perante um poder-dever, um poder vinculado que o tribunal deverá aplicar sempre que se verifiquem os pressupostos formais e estiverem já realizados os fins das penas.
O instituto da dispensa da pena dever ser assim dirigido à realização da justiça, ou seja, à proteção dos bens jurídicos que foram violados e à reintegração do agente na sociedade – que mais não são do as finalidades das penas, cfr. artigo 40º/1 C Penal.
Como decorre da fundamentação da sentença, depois de nela ter sido decidido que o co-arguido CC, preencheu com a sua conduta os elementos objetivos e subjetivos do crime de ofensa à integridade física, p. e p. pleo art. 143º, nº1 do C. Penal, na pessoa do assistente BB, nela veio, também, a ser considerado verificado o requisito do nº 3 do artº 143º, al. b) do CP, que dispõe que o tribunal pode ainda dispensar de pena se o agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor, com fundamento de que se apurou que o arguido CC “atuou na sequência da atuação de BB que o atacava com um pau”.
Mais se aduzindo quanto à verificação dos pressupostos previstos no art. 74º do C.P. que “ estão devidamente verificados os pressupostos previstos no artigo 74.º, do Código Penal, pois que foi diminuta a ilicitude do facto e a culpa do agente, não existem danos por banda do arguido BB a serem reparados (considerando-se compensada a reparação do mal sofrido por força da reciprocidade das agressões, que, para mais, não implicaram qualquer afetação da capacidade geral ou de trabalho do arguido BB tendo-se revelado as lesões sofridas pelo arguido CC de maior gravidade quando comparadas às sofridas por BB) e, bem assim, à dispensa de pena não se opõem razões de prevenção, nem geral e muito menos especial, pois que o arguido não tem qualquer antecedente criminal, inexistindo, ainda, notícia de qualquer novo desentendimento entre os envolvidos.”
A respeito da verificação dos pressupostos previstos no art. 74º do C. Penal, designadamente no que concerne ao pressuposto da reparação do dano, prevista na al. b) do art. 74º do C. Penal, adianta-se na sentença recorrida que “não existem danos por banda do arguido BB a serem reparados”.
Tais pressupostos mostram-se verificados, tendo em conta o que deflui da factualidade decidida na sentença recorrida – e que permanece inalterada – pois que da mesma, apesar, de resultar provado [pontos 6. e 18 do elenco fatual provado] que “ o arguido CC, ao atuar da forma descrita, agiu no intuito concretizado de maltratar e molestar fisicamente BB, ofendendo no seu corpo e saúde”, e que “Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 3. o arguido CC, na sequência do comportamento do arguido BB, desferiu um soco na face deste”, o certo é que, também, resultou não provado [alínea G) do elenco factual não provado] que “nas circunstâncias descritas em 6. e 7. as dores e sofrimento de que padeceram os arguidos BB e AA, tenham sido uma consequência da atuação do arguido CC”, tendo sido com base na referida factualidade provada e não provada que veio a ser decidido o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente/demandante BB contra o arguido/demandado CC, fundamentando-se a sua total improcedência na “inexistência de lesões sofridas por BB como consequência da atuação do arguido CC”, e de ser “ostensiva a inverificação de todos os pressupostos acima elencados, previstos no artigo 483.º, do Código Civil”.
O que vem de dizer-se faz cair por terra a argumentação esgrimida em sede recursiva tendente à demostração de que se não verifica o pressuposto previsto na al. b) do art. 74º do C. Penal, porque, efetivamente, da factualidade apurada não decorre que em consequência dos comportamentos do arguido CC tenha o assistente/demandante BB sofrido danos que não foram reparados, designadamente de natureza não patrimonial.
Nada havendo, por isso, a censurar à sentença recorrida quando nela se decidiu a verificação do aludido pressuposto para a dispensa da pena decidida relativamente ao arguido CC, nem, também, quanto ao nela decidido relativamente aos demais pressupostos previstos nas alíneas a) e c) do mesmo art. 74º, nº1 do C. Penal, pelas razões que na mesma se aduzem, atinentes à diminuta ilicitude do facto e da culpa do agente e à circunstância de à dispensa da pena não se oporem razões de prevenção, nem geral e muito menos especial, com fundamento, em relação a estas últimas, de que o arguido CC não tem qualquer antecedente criminal, inexistindo, ainda, notícia de qualquer novo desentendimento entre os envolvidos.
Com efeito, a argumentação esgrimida em sede de recurso – ancorada no que decorre do relatório social junto aos autos referente ao arguido CC - não tem a virtualidade de infirmar a verificação dos pressupostos previstos na citadas als. a) e c) do nº1 do art. 74º do CP, porque nele não deixou o tribunal recorrido de se estribar para dar como provada a factualidade que se mostra vertida nos pontos 38. a 48. do elenco factual provada – como resulta da motivação plasmada a esse respeito na sentença recorrida – e tal factualidade – única que para o efeito poderá e deverá ser ponderada - não põe em causa a verificação dos aludidos pressupostos, como, e bem, foi decidido na sentença recorrida.
Face ao que, também neste segmento recursivo improcede o presente recurso.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra em:
1. Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelos arguidos BB e AA, e, em consequência, confirma-se, na íntegra, a sentença recorrida.
2. Condena-se os recorrentes nas custas relativas ao recurso, fixando-se a taxa de justiça individual em 4 UC (arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).
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Coimbra, 10 de setembro de 2025
(Maria José Guerra - relatora)
(Helena Lamas -1ª adjunta)
(Maria Fátima Sanches Calvo – 2º adjunta)
[1] Cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal II, 4.ª Edição, Verbo, Lisboa, 2008, p. 197.
Na Jurisprudência, ver, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15 de outubro de 2008, processo n.º 400/06.2GCAVR.C1, Relator Jorge Gonçalves, acessível em www.dgsi.pt.