CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA
USO DO PRESENTE DO INDICATIVO NA AMEAÇA PROFERIDA
PERDÃO DE PENAS
IDADE DO ARGUIDO RELEVANTE PARA A APLICAÇÃO DO PERDÃO
Sumário

I - O crime de ameaça pressupõe que o mal ameaçado tem de configurar um ilícito típico de per se e que a execução não esteja iminente ou em curso, sendo indiferente que a expressão usada seja “agora”, “hoje”, amanhã ou para o ano.
II - Integra a prática do crime de ameaça agravada a arguida dizer para os ofendidos «vocês nunca vão ficar juntos, vocês são uns drogados, eu mato-vos», ainda que exibindo, simultaneamente, um objeto em tudo semelhante a uma navalha.
III - Apesar de a expressão ter sido proferida no presente do indicativo, não evidenciando a arguida qualquer acto demonstrativo da vontade de, no imediato, atentar contra a vida dos ofendidos, resulta que a intenção que presidiu à actuação foi causar a estes medo, receio, temor, inquietação pela sua vida e integridade física.
IV - As medidas de clemência estabelecidas pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, têm como destinatários apenas os jovens que já tenham 16 anos e que ainda não tenham completado 30 anos de idade.
V - A expressão usada pelo legislador no n.º 1 do artigo 2.º da Lei - “Entre” -, apenas pode significar entre duas datas, entre dois momentos delimitados temporalmente, não sendo lícito entender-se que o legislador pretendeu abarcar quem já completou os 30 anos.

Texto Integral

Relator: Cândida Martinho
Adjuntos: Maria José Guerra
Maria José Santos Matos

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra

I.Relatório

           

1.

Nos presentes autos com o número 82/23.7GBCLD, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Local Criminal das Caldas da Rainha - Juiz 2 - foi proferida sentença em 17/2/2025, na qual se decidiu, para além do mais:

- Condenar a Arguida …, pela prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203º n.º 1 do Código Penal, na pena de cinquenta dias de multa, à taxa diária de 8,50 €;

- Condenar a Arguida … pela prática de dois crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelos artigos 153º n.º 1 e 155º n.º 1 alínea a), por referência ao artigo 131º do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, por cada crime, à taxa diária de 8,50 €;

- Condenar a Arguida …, em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º do Código Penal, na pena única de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de 8,50 € (oito euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz um total de 2.550,00 € (dois mil quinhentos e cinquenta euros).

(…)”.

            2.

            Não se conformando com o decidido, veio a arguida interpor o presente recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

            “…

V. Os ofendidos, únicas testemunhas do Ministério Publico não descrevem a mesma situação com a coerência, detalhe e espontaneidade como referido na sentença de que agora se recorre.

VI. Com efeito, tais depoimentos não demonstraram que a arguida tenha cometido os factos que vem descritos na acusação.

VII. Quem se sente ameaçado pela arguida não se coloca na frente do carro conduzido pela mesma.

VIII. Os depoimentos dos ofendidos foram sim rancorosos, tendenciosos e inquinados por sentimentos de vingança

XIX. «a liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a verdade material -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e de controlo».

XXII. Em relação aos elementos objetivos, evidencia-se desde logo como característica essencial ao conceito de ameaça o mal futuro.

XXIII. E como elemento subjetivo exige-se o conhecimento de todos os elementos objetivos deste ilícito e a vontade de os realizar.

XXIV. “Mas, para que haja ameaça, é também necessário que esta se traduza na prática de um crime contra a liberdade pessoal, devendo a conduta típica do agente gerar insegurança, intranquilidade ou medo no visado, de modo a condicionar as suas decisões e movimentos dali em diante” – O que não aconteceu aos ofendidos!

XXV. Não houve o anúncio de um mal futuro, mas antes de um mal imediato, ou iminente, ou no decurso de tentativa de execução de outro crime.

XXVI. Com tal expressão há o anúncio de um mal presente, que começa e acaba ali: ou porque é executado de imediato, ou porque a arguida desiste de o executar, sem que o mal anunciado se projete na liberdade de decisão e de ação futura dos ofendidos.

XXVIII. As expressões alegadamente proferidas pela arguida integram-se no contexto das divergências relacionadas com o final da relação entre a arguida e ofendido AA,

 XXIX. A Arguida havia mantido um relacionamento análogo aos dos cônjuges durante mais de dez anos.

XXXII. A arguida nasceu a ../../1991.

XXXIII. Os factos descritos na acusação alegadamente ocorreram no dia 18 de dezembro de 2022.

XXXIV. À data dos factos descritos na acusação a arguida ainda não tinha atingido os 31 anos de idade.

XXXV. Quem já completou 30 anos e até atingir os 31 anos, pode, ao abrigo do artigo 2º, nº 1, da Lei nº 38-A/2023 de 2/8, beneficiar da amnistia e do perdão aí concedidos.

XXXVI. Preceitua o artigo 3º, nº2, da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, que “são ainda perdoadas: a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão;

XXXVIII. Assim, a pena aplicada à arguida está abrangida pela Lei do perdão.

XXXIX. O tribunal a quo deveria ter julgado extinta, por perdão, a pena aplicada ao crime de furto simples.

…”.

            3.

            O Ministério Público na primeira instância veio responder ao recurso, …

4.

Neste Tribunal da Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto, na senda da posição assumida pela primeira instância, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, …

5.

Cumprido o artigo 417º, nº2, do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta ao parecer.

           

6.

Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.419º, nº3, al. c), do diploma citado.

II. Fundamentação


A) Delimitação do Objeto do Recurso

…, as questões a decidir prendem-se com o seguinte:

- errada apreciação da prova;

- não preenchimento dos elementos constitutivos do crime de ameaça agravada;

- da aplicação do perdão decorrente da Lei 38º-A/2023, de 2 de agosto, no que tange à pena de multa aplicada pelo crime de furto.


B) Com vista à apreciação das questões enunciadas, importa ter presente o seguinte teor da sentença recorrida.

“(…)

1. Factos provados

1) No dia 18/12/2022, cerca das 21h, a arguida dirigiu-se à residência dos queixosos …, e retirou da porta de entrada, a caixa do correio que ali se encontrava pendurada, no valor de € 25, e que pertencia aos queixosos, tendo colocado a mesma no interior do veículo no qual se fazia transportar, com intenção, concretizada, de dessa forma se apoderar da referida caixa de correio.

2) Após, a arguida entrou para o interior do referido veículo e, de imediato, começou a buzinar tendo em vista provocar a saída dos queixosos do interior da referida residência, onde os mesmos se encontravam.

3) Na sequência dos factos acima descritos os queixosos saíram à rua para perceber o que estava a acontecer.

4) Nessa ocasião, a arguida saiu do interior do referido veículo e exibiu aos queixosos um objeto, em tudo semelhante a uma navalha, com cerca de 10cm de lâmina e dirigindo-se àqueles disse-lhes: “vocês nunca vão ficar juntos, vocês são uns drogados, eu mato-vos”.

5) Ao atuar da forma supra descrita a arguida agiu com o intuito de fazer sua a caixa de correio acima referida, o que conseguiu, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e que atuava contra a vontade dos respetivos donos.

6) A arguida proferiu as expressões acima referidas com firmeza e seriedade e com intenção de fazer convencer os queixosos que de futuro viria a atentar contra a integridade física e a vida destes, bem sabendo que tal atuação era apta a perturbar o sossego e a tranquilidade destes e a causar-lhes medo, o que conseguiu.

7) A arguida agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era e é proibido por lei.

Mais se provou que:

***

III – Motivação da matéria de facto

O Tribunal ponderou toda a prova produzida analisada à luz das regras de experiência e de normalidade social.

A Arguida prestou declarações, manifestando uma atitude altiva, admitindo ter retirado a caixa de correio da casa dos ofendidos, mas justificando que tinha sido ela a comprá-la e que era para pagar uma dívida de 35,00 € que o ofendido AA tinha para consigo. No mais, nega ter proferido as expressões que lhe são imputadas.

Esclareceu o relacionamento amoroso que manteve por 10 anos com o ofendido e que não reagiu bem ao final da relação. Este reconhecimento feito, na sequência de uma pergunta da defesa, não permitiu, contudo, concluir pelo sentido crítico da Arguida ou pelo seu arrependimento, porquanto a mesma não só não admitiu a prática dos factos, como transmitiu ao Tribunal que, no seu entendimento era justificada a remoção da caixa de correio perante a dívida que o seu ex-namorado tinha para consigo. Ora o valor de tal dívida (35,00 €) e a forma de a saldar são bem demonstrativos da total falta de sentido crítico sobre o sucedido e da mesquinhez da conduta assumida.

Foram ouvidos os dois ofendidos – … – tendo ambos prestado depoimentos muito espontâneos, coerentes entre si, detalhados e perfeitamente contextualizados. Foi evidente da forma como se expressaram o estado de saturação em que se encontravam. Com efeito, as testemunhas são namorados, vivendo maritalmente, e relatam o início do seu relacionamento como um verdadeiro inferno devido aos comportamentos da Arguida.

***

IV – Do Direito

1. Enquadramento jurídico-penal

Do crime de furto simples

Resultou provado que a Arguida subtraiu a caixa de correio que se encontrava pendurada na porta de entrada da casa dos ofendidos e que lhes pertencia e colocou-a no interior do seu veículo.

Houve, assim, uma deslocação do poder de facto sobre o objeto dos queixosos para a ofendida, na medida em que o colocou no interior do seu veículo.

O facto de ter sido recuperado pelo ofendido não impede a consumação do crime que ocorreu anteriormente, com a subtração da coisa do sítio onde o seu dono a tinha deixado, para o carro da Arguida.

Quanto ao elemento subjetivo, resultou provado que era intenção da Arguida apropriar-se do objeto em causa nos autos, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia e que tal conduta era proibida e punida por lei.

Termos em que, não se verificando, in casu, quaisquer causas de exclusão da culpa, nem da ilicitude, praticou a Arguida um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203º n.º1 do C.P..

Dos crimes de ameaça agravada

*

Resulta da factualidade provada que a Arguida nas circunstâncias supra descritas disse …: “Vocês nunca vão ficar juntos, vocês são uns drogados, eu mato-vos”, enquanto lhes apontava uma espécie de navalha.

É inequívoco que a expressão proferida consiste numa ameaça com a prática de um crime contra a vida dos ofendidos, daí que tenha merecido a agravação prevista na alínea a) do n.º1 do artigo 155º.

Por outro lado, foi proferida à porta da casa dos ofendidos, à noite, depois de ter chamado a sua atenção, perturbando o seu sossego e apontando-lhes uma navalha, num contexto de final do relacionamento conturbado, pelo que a expressão foi adequada a criar medo nos ofendidos, o que efetivamente aconteceu.

A arguida agiu, assim, com dolo direto, devendo, por isso, ser condenada pela prática de dois crimes de ameaça agravados, nos termos do disposto nos artigos 153º e 155º n.º1 alínea a) do Código Penal.

(…)”.

            C)Apreciação do Recurso

            - Da errada apreciação da prova

Sem invocar qualquer disposição legal atinente à sindicância da matéria de facto, começa a recorrente por colocar em causa a forma como o tribunal recorrido valorou a prova, considerando indevidamente dados como provados os pontos 1 a 7 da factualidade (consubstanciadores dos crimes imputados).

Posto isto, assente que a recorrente não procedeu à impugnação ampla da matéria de facto, resta-nos apurar se a sentença enferma de algum dos vícios previstos no art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, os quais, embora não invocados, são do conhecimento oficioso.

A norma constante do n.º 2 do art. 410º do Código de Processo Penal refere-se a vícios da decisão, os quais terão de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, …

Em suma, sem necessidade de mais considerações, improcede a almejada impugnação da matéria de facto, a qual se mantém nos exatos termos fixados na sentença recorrida.

            - Não preenchimento dos elementos constitutivos do crime de ameaça agravada.

Como decorre da sentença objeto de recurso, o tribunal recorrido, após tecer algumas considerações jurídicas a respeito do tipo legal de crime em apreço, concluiu que a arguida incorreu na prática de dois crimes de ameaça agravada, previstos e punidos nos termos das disposições conjugadas dos artigos, 153º e 155º,nº1, al. a), este último com referência ao artigo 131, todos do C.Penal, cometidos na pessoa de cada um dos ofendidos.

Defende a recorrente, em suma, com vista a pôr em causa a conclusão a que o tribunal recorrido chegou a respeito da verificação do tipo de ilícito em apreço, que não houve o anúncio de um mal futuro, mas antes de um mal imediato, ou iminente e que a frase em causa não foi adequada a provocar nos ofendidos medo e inquietação  capazes de lesar a sua paz e liberdade de autodeterminação, antes se tendo integrado no contexto das divergências relacionadas com o final da relação entre a arguida e ofendido AA.

Vejamos.

O crime de ameaça consiste em ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade ou autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a causar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação – n.º 1 do artigo 153º do Código Penal (tipo simples) – sendo  o agente punido com pena de prisão até dois anos ou multa até 240 dias,  se a ameaça for com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a 3 anos.

O conceito de ameaça pressupõe um mal que constitua crime (crime contra a vida, a integridade física, ou a liberdade pessoal, entre outras hipóteses), seja futuro e, além disso, que a ocorrência desse “mal futuro” “dependa (ou apareça como dependente (…) da vontade do agente” – Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pp. 343.

Trata-se de um crime de perigo concreto, o que significa que a ameaça tem de ser adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, não constituindo, no entanto, um crime de resultado e de dano, na medida em que não é necessário que o destinatário fique efetivamente com medo ou inquietação, ou afitado a sua liberdade de determinação.

O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação é um critério objetivo, do homem médio (pessoa adulta e normal), tendo em conta, porém, as características individuais do ameaçado.

Assim, a ameaça é adequada sempre que, de acordo com as regras da experiência comum, seja suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente).

Como refere Taipa de Carvalho, in obra citada, «O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo - individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado»

                   São assim pressupostos objetivos do crime de ameaça:

                   - Que o agente ameace outra pessoa – o que pressupõe que chegue ao conhecimento do destinatário - com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor;

                   - Que a ameaça seja adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. Não é necessário que o destinatário tenha efetivamente ficado com medo ou inquieto ou inibido na sua liberdade de determinação. Basta que as palavras ou sinais feitos tivessem essa potencialidade (Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 3ª ed. actualizada, pág.602º).  

                   No que tange ao elemento subjetivo, o mesmo pode ser preenchido por qualquer modalidade de dolo.

                   Porém, para além do conhecimento e vontade de praticar o facto, terá de abranger a adequação da ameaça a provocar no ameaçado medo ou inquietação e, pressupõe, que o agente tenha vontade de que a ameaça chegue ao conhecimento do ameaçado (Acs. da Relação de Lisboa de 25/2/2015, proferido no processo 1193/12.0GAMAI.P1 e de 18/9/2018, proferido no processo 1453/15.8S5LSB).

                   Na senda do que vimos referindo e face à matéria de facto dada como provada, cremos que bem andou o tribunal recorrido ao concluir nos termos em que o fez.

                   Desde logo, não assiste razão à recorrente quando defende que não houve um anúncio de um mal futuro, mas antes de um mal imediato ou iminente.

                   Com efeito, inexistindo qualquer dúvida que o  mal ameaçado tem de configurar um ilícito típico de per se, já no que se atem ao segmento do tipo atinente ao mal futuro, tal corresponde a tudo o que não seja execução iminente ou em curso, sendo indiferente que a expressão usada seja “agora”, “hoje”, amanhã ou para o ano, i.e., futuro é todo o tempo compreendido naquele em que é proferida a expressão que anuncia o mal que o seu autor diz que será causado, não acompanhada, esta, de atos correspondentes à sua simultânea ou absolutamente imediata concretização (vd. Acórdãos do TRP de 6.11.2013, proc. n.º 192/11.3GCVPA.P1, de 9.10.2013, proc. n.º 300/10.1GACNF.P1 e do TRC de 13.11.2013, proc. n.º 268/11.7TATNV.C1, in www.dgsi.pt ).

A respeito do “mal futuro”, escreveu-se no Ac. desta Relação de Coimbra, de 29/1/2020, proferido no proc.81/18.OPBFIG, na senda do que já havia sido defendido no Ac. desta mesma Relação de 17/5/2018, o seguinte:

«Quando o tipo legal se refere a ameaça não exige expressa ou implicitamente que o mal anunciado seja expresso numa forma verbal futura. E tendo presente o outro elemento típico de adequação do mal anunciado a causar medo ou inquietação, tanto uma forma verbal presente, como uma forma verbal futura é adequada a causar medo. Tanto causa medo ao visado dizer-se vou-te matar ou irei matar-te e nem as expressões proferidas indicam a realização de uma acção imediata, podendo também significar acção a realizar num futuro próximo.

E se é verdade que a doutrina e a jurisprudência referem que o mal anunciado tem de ser futuro (porque ameaçar significa anunciar um mal que não se quer concretizar no momento do anúncio) essa referência apenas é feita para afastar as situações de ocorrência de um mal iminente ou imediato que se quer efectivamente causar, porque o crime de ameaça não supõe sequer que o agente queira, ainda que no futuro, causar o mal anunciado. Nas palavras de Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 343 "isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, nesse caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal."

Assim, a confusão que poderá estabelecer-se a esse propósito diz respeito a outra realidade, a distinção que há que fazer entre o crime correspondente ao mal anunciado e o crime de ameaça e haverá situações em que a distinção é difícil. Assim, cometerá crime de homicídio na forma consumada ou tentada quem diz eu mato-te e dispara de imediato uma arma, já cometerá o crime de ameaça quem o mesmo diz e apenas exibe uma arma.

Ou seja, o que distingue a ameaça do cometimento de um crime, tomando como exemplo o crime de ofensa à integridade física, e o cometimento deste crime são as próprias circunstâncias da acção que revelam a intenção que lhe preside.

E também no caso em análise são as circunstâncias da acção de mera verbalização de uma hipotética vontade de matar, não acompanhada de qualquer acto demonstrativo da vontade de concretizar de imediato esse mal, que indicam a intenção que presidiu ao agente, qual seja a de causar medo, não a iminência de matar, sendo certo que essa actuação é idónea a causar medo e, efectivamente causou-o, como vem provado.

 (…).

O critério de aferição do conceito de futuro no âmbito do crime de ameaça tem sido frequentemente discutido na doutrina, como na jurisprudência, sendo hoje pacificamente assumido que o mal futuro cominado na ameaça integradora do tipo de crime a que nos reportamos não se situa necessariamente num futuro longínquo ou mais ou menos distante. É futuro todo o mal que não se inicia com a ameaça ou imediatamente a seguir a ela, independentemente do tempo verbal utilizado. Assim, se A… dirigindo-se a B… afirma com foros de seriedade quando te apanhar sozinho dou-te um murro, reporta-se a um futuro que poderá ser mais ou menos próximo, dependente da verificação de uma circunstância possível e plausível, cometendo por essa forma um crime de ameaça.

Diversamente, se A… dirigindo-se a B… afirma ainda levas um murro e de imediato desfere um murro que atinge B, não pratica qualquer crime de ameaça, mas sim um crime de ofensa à integridade física, uma vez que por força da quase simultaneidade entre o mal ameaçado e o mal causado, aquele é exaurido por este, não intercorrendo um período que permita a assimilação da ameaça e sofrimento interno com a possibilidade da sua execução. A vítima não chega a ter tempo para assimilar o sentimento de insegurança ou medo e sofrer de modo relevante com esse sentimento, por força da imediata consumação do mal ameaçado.

Contudo, nem toda a ameaça com um mal futuro é susceptível de constituir crime de ameaça. Assim, se A…, emigrante na Holanda e transitoriamente em Portugal, dirigindo-se a B…, que nem sequer costuma viajar para fora do país, no auge de uma discussão, lhe diz se te apanho na Holanda dou-te uma sova, não há crime de ameaça porque o mal ameaçado é de tal modo longínquo e improvável que não tem aptidão para causar aquele mínimo de inquietação que justificaria a tutela penal da tranquilidade e paz interior do ameaçado”.

       Ora, não deflui da factualidade apurada que quando a arguida dirigiu aos ofendidos a expressão em causa, ainda que exibindo, simultaneamente, um objeto em tudo semelhante a uma navalha, tenha iniciado qualquer ato de execução com vista a atingir a vida ou a integridade física daqueles, ou se encontrasse na iminência de o realizar, sendo que o facto da expressão usada ter sido proferida no presente, não deixa de ter uma projeção no futuro.

       Nada tendo feito a arguida para além de exibir o tal objeto e pronunciar a expressão em causa, esta só podia, logicamente, reportar-se ao futuro, ainda que próximo.

       Ou seja, proferida tal expressão pela arguida, sem que da sua parte se tenha evidenciado qualquer ato demonstrativo da vontade de, no imediato,  atentar contra a vida dos ofendidos, tal mais não é do que indicativo que a intenção que lhe presidiu foi causar a estes medo, receio, temor, inquietação pela sua vida e integridade física, não a iminência de os matar ou ofender corporalmente.

       Também não assiste qualquer razão à recorrente quando sustenta que a expressão em causa dirigida aos ofendidos não era adequada a causar-lhes medo e inquietação, bastando, para tanto, atentar no circunstancialismo em que ocorreu a atuação da arguida e na personalidade desta evidenciada nos factos.

       Aliás, decorre da factualidade que tal atuação causou efetivamente medo aos ofendidos.

       Em suma, sem necessidade de outras considerações, os factos provados permitem, sem qualquer margem para dúvidas, considerar preenchido o tipo de crime de ameaça agravada, tanto quanto aos seus elementos objetivos, como subjetivos do tipo, nada havendo de censurar, pelas razões expostas, à decisão recorrida, quanto à qualificação jurídica dos mesmos neste particular.

- Da aplicação do perdão decorrente da Lei 38º-A/2023, de 2 de agosto, no que tange à pena aplicada pelo crime de furto.

Por fim, defende a recorrente que o tribunal recorrido deveria ter declarado perdoada a pena de 50 dias de multa aplicada ao crime de furto pelo qual foi condenada, porquanto tal ilícito não está abrangido pelo regime de exceção ao benefício do perdão previsto no artigo 7º da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto.

            Como decorre da sentença recorrida a arguida foi condenada pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal e dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º n.º 1 e 155º n.º 1 alínea a), por referência ao artigo 131º do Código Penal, na pena única de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de 8,50 € (oito euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz um total de 2.550,00 € (dois mil quinhentos e cinquenta euros).

Os factos foram praticados em 18.12.2022, sendo que a arguida nasceu em ../../1991.

Como daqui decorre, à data dos factos, a arguida já tinha completado os 30 anos de idade, estando a 2 dias de completar 31 anos de idade.

E assim sendo, como é, temos para nós que estava fora do âmbito subjetivo da referida Lei.
Dispõe o artigo 2.º da mencionada Lei, que:

1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”.

Como deflui da redação do citado preceito, o legislador não diz: “à data da prática dos factos tenham entre 16 anos e 30 anos de idade, inclusive, isto é, até perfazerem os 31 anos de idade”; ou que “à data da prática dos factos tenham entre 16 anos e 31 anos de idade, exclusive”, ou que “à data da prática dos factos tenham (de 16 anos) até 30 anos de idade”.

A expressão usada pelo legislador “Entre” apenas pode significar entre duas datas, entre dois momentos delimitados temporalmente, não sendo lícito entender-se que o legislador não se expressou como devia e que pretendia abarcar até aos 30 anos de idade.

Ademais, não podemos olvidar que as normas que estabelecem perdões, constituindo normas excecionais, devem ser interpretadas declarativamente, nos exatos termos em que estão redigidas – fazendo-se coincidir o elemento literal com o pensamento legislativo – não comportando uma interpretação extensiva ou restritiva e, muito menos qualquer aplicação analógica.

Sufragamos, assim, sem hesitações, o entendimento de que as medidas de clemência estabelecidas pela Lei 38-A/2023, de 2 de agosto têm como destinatários apenas os jovens que já tenham 16 anos e que ainda não tenham completado 30 anos de idade.

Ou seja, atingidos os 30 anos de idade, está afastada a possibilidade de aplicação do perdão concedido pela referida Lei.

Tal entendimento corresponde, aliás, no nosso entender, aquele que esteve na origem da citada Lei n.º 38-A/2023, de 2.8, como se intui do seguinte segmento da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª, in DR II série A n.º 245, 2023.06.19, no qual pode ler-se o seguinte:

«Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ»

No sentido exposto, perfilhando da argumentação aí aduzida, trazemos à liça, entre outros, o Acórdão de 10/4/2024, deste Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no âmbito do proc. 1644/15.1PBVIS, em que foi relatora a 2ª Adjunta nestes autos.

Tudo considerado, atenta a idade da arguida à data dos factos, não reúne a mesma, em face da letra da lei, as condições para poder beneficiar do perdão por ela concedido, pelo que bem andou a Mma Juiz ao não lançar mão de tal diploma.

III. Dispositivo

           

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 4ªsecção penal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pela arguida confirmando-se a sentença recorrida.


Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

(Texto elaborado pela relatora e revisto pelas signatárias – art.94º, nº 2, do C.P.P.)

                                      Coimbra, 10 de setembro de 2025