I - Ainda que se esteja perante um modus operandi simples, com recurso a meios sem sofisticação, com encontros previamente combinados para a entrega do estupefaciente, via telemóvel ou Messenger, considerando que a actividade se desenrolou durante cerca de dois anos, o número de pessoas identificadas a quem o arguido vendia e a frequência com que o fazia, os locais de venda estrategicamente escolhidos, o modo como procurava os consumidores, a troca frequente de números de números de telemóvel, o volume de vendas concretizadas e as condições que decorriam, resulta não estarmos perante um crime de tráfico de menor gravidade, por tais circunstâncias agravarem a ilicitude da conduta.
II - O regime actual de perda de bens, decorrente da clássica e tradicional distinção entre a «perda dos instrumentos ou produtos» do crime e a «perda de vantagens» deste resultantes, assenta essencialmente em dois modelos: a perda dos instrumentos, produtos ou vantagens do crime e a perda alargada, cada deles com pressupostos de campos de aplicação distintos.
III - A perda de instrumentos, produtos e vantagens pressupõe a demonstração de que as mesmas foram obtidas, directa ou indirectamente, da prática de um facto ilícito típico, exigindo-se a prova, no processo, da existência de uma relação de conexão entre o facto ilícito criminal concreto e o correspondente proveito patrimonial obtido.
IV - Na perda alargada o regime probatório é menos exigente e baseia-se na diferença entre o património do arguido com base na presunção da ilicitude desconforme, estando aqui em causa não apenas as vantagens directamente resultantes da prática do crime, mas a existência de um património incongruente com os rendimentos lícitos, abrangendo a perda tudo aquilo que não é congruente com os rendimentos lícitos e que, por isso, se presume constituir vantagem de actividade criminosa
V - O regime da perda de instrumentos, produtos e vantagens que exige uma relação causal entre o facto típico ilícito e o bem concreto suscpetível de ser confiscado é regulado, no plano geral, pelos artigos 109.º a 112.º - A do Código Penal e 178.º a 186.º, 191.º a 194.º e 227.º e 228.º, do C.P.P., e no plano especial do crime de tráfico de estupefacientes pelos artigos 35.º a 39.º do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro e 1.º, alínea a), da Lei 50/2002, de 11 de Janeiro.
VI - No regime geral os instrumentos do crime são todos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos e produtos do crime são todos os objectos produzidos pela prática do crime, isto é, apenas e só aquilo que, inexistindo previamente, é “produzido” pela sua prática (artigo 109.º, n.º 1, e 110.º, n.º 1, do Código Penal).
VII - Aqui a perda dos instrumentos do facto ilícito justifica-se em razão das finalidades de prevenção da utilização dos mesmos na actividade criminosa.
VIII - Se tais instrumentos não puderem ser apropriados em espécie, a perda pode ser substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva.
IX - Os produtos do crime são todos os objectos que tiverem sido produzidos pela sua prática, isto é, apenas e só aquilo que, inexistindo previamente, é “produzido” pela prática do crime.
X - Já as vantagens do facto ilícito abrangem todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem (artigo 110.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal).
XI - Também aqui, o regime geral determina que se os produtos e as vantagens não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.
XII - No regime especial do crime de tráfico de estupefacientes, instrumentos do crime são todos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática do crime ou que por este tiverem sido produzidos (artigo 35.º, n.º 1, do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro).
XIII - Neste regime especial o perdimento de bens tem matrizes especificas e próprias, muito menos exigente nos seus pressupostos do que o previsto no Código Penal, de modo a combater qualquer rentabilidade da actividade de tráfico.
XIV - Aqui vantagens do crime são todas as coisas ou direitos relacionados com o facto típico e ilícito, se as recompensas, objectos, direitos ou vantagens tiverem sido transformados ou convertidos em outros bens, são estes perdidos a favor do Estado em substituição daqueles e se tiverem sido misturados com bens licitamente adquiridos, são estes perdidos a favor do Estado até ao valor estimado daqueles que foram misturados.
XV - No regime especial do crime de tráfico de estupefacientes as regras do perdimento de bens reguladas nos artigos 35.º a 37.º do D.L. nº 15/93, de 22 de Janeiro, são aplicáveis a todos os lucros e outros benefícios obtidos com aqueles bens.
XVI - As vantagens podem reportar-se a objectos corpóreos ou incorpóreos, podem traduzir-se num aumento do activo, na diminuição do passivo, na evitação de prejuízos ou nas poupanças de gastos, isto é, tudo aquilo que permita um enriquecimento patrimonial do agente.
XVII - Podem, ainda ser directas, se respeitarem às próprias coisas que o agente do crime imediatamente obtém, como, por exemplo, as quantias ou outros bens recebidos pelo agente em contrapartida da venda de estupefacientes, podem ser indirectas, as denominadas vantagens em cadeia do crime, que decorrem do investimento das vantagens directas, e podem ser sucedâneas das vantagens directas, se conseguidas através da troca ou transacção das vantagens directas, por exemplo, um automóvel comprado com o dinheiro do tráfico.
XVIII - Além disso, podem ser instantâneas, se ocorrerem no momento da prática do facto, continuadas, se aumentarem com o decorrer do tempo, ou diferidas para um evento posterior e podem repercutir-se, quer na esfera patrimonial do agente, quer na de um terceiro.
XIX - O confisco não se restringe apenas aos activos resultantes directa ou indirectamente da prática do crime ou ao sucedâneo, podendo, também, incidir sobre todo o património lícito do arguido, nomeadamente se a recompensa, os direitos, objectos ou vantagens relacionadas com o crime não puderem ser apropriados em espécie, caso em que a perda ou o confisco é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor, em conformidade com os artigos 109.º, n.º 3 do Código Penal e 36.º, n.º 4, do D.L. nº n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
XX - Na esteira do defendido na doutrina e na jurisprudência, tem-se vindo a entender que o cálculo do «respectivo valor» se deve reportar à data da aquisição, de acordo com uma perspectiva objetivo-individual (através da utilização de critérios objetivos, de natureza económica, face à realidade económica do agente) e que deve obedecer aos principio do “ganho líquido” (devendo deduzir-se às vantagens alcançadas os montantes despendidos para a sua obtenção), sob pena de o valor bruto implicar uma ficção de enriquecimento.
XXI - Nas situações em que a actividade subjacente à prática do crime é, intrinsecamente, ilícita, como é o caso do crime de tráfico de estupefacientes, não há qualquer tutela jurídica para as despesas, custos ou encargos ou benefícios tidos com a actividade, pois a ilicitude de qualquer uma das modalidades da acção objectiva típica e ilícita elencadas no artigo 21.º contamina os gastos com aquisição, transporte e logística que lhe são inerentes, ainda que provenientes do património licito do agente.
XXII - Se a perda do valor dos instrumentos do crime é admissível para os crimes em geral, também o deve ser para o regime especial do tráfico de estupefacientes, quer porque gizado em pressupostos de menor exigência do que o Código Penal, porque não contraria as regras estabelecidas nos artigos 35.º a 39.º do D.L. nº 15/93, de 22 de Janeiro, porque a razão de um regime especial é impedir qualquer ganho com a actividade de tráfico e porque assim o exigem os princípios orientadores que enformam este regime de perda de bens.
XXIII - As despesas, custos, gastos ou encargos na prossecução da actividade económica do tráfico de estupefacientes não integram a categoria de direitos ou interesses legalmente protegidos, garantidos e salvaguardados no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Recurso Nº 27/22.1GCMGL.C1
I - RELATÓRIO
1. Por Acórdão datado de 21 de Janeiro de 2025, deliberou o Colectivo do Juízo Central Criminal de Viseu (Juiz 2):
a) Condenar o arguido …, pela prática, como autor material e sob a forma consumada, como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º n.º 1 do Decreto-lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A e I-B anexa a tal diploma, na pena de 6 (seis) anos de prisão;
b) Condenar o arguido …, pela prática, como autor material e sob a forma consumada, como reincidente, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
c) Efectuado o cúmulo jurídico das penas referidas em a) e b) condenar o mencionado arguido, na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva;
d) Julgar procedente o pedido de declaração de perda de vantagens patrimoniais e, consequentemente, declarar perdidas a favor do Estado e condenar o arguido … no pagamento do montante de €26.250,00 (vinte e seis mil e duzentos e cinquenta euros).
e) Julgar procedente o pedido de declaração de perda de vantagens patrimoniais e, consequentemente, declarar perdidas a favor do Estado e condenar o arguido … no pagamento do montante de €26.250,00 (vinte e seis mil e duzentos e cinquenta euros);
f) Declarar perdido a favor do Estado todo o produto de estupefaciente apreendido nos autos e determinar a sua oportuna destruição (cf. artigos 35º n.º 2 e 62º n.º 6 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01);
g) Declarar igualmente perdidos a favor do estado os demais objectos apreendidos nos autos - telemóvel Samsung Galaxy A13, com os IMEI's ...74 e ...73 e o suporte SIM Card n.º ...28, com o Pin ...10 (cf. artigos 35º n.º 1 do Decreto-lei n.º 15/93, de 22/01 e 109º e 111º do Código Penal);
2. Inconformado com a condenação, dela recorre o arguido, …, concluindo:
«1) Vem a presente apelação interposta de toda a matéria da sentença recorrida, tendo por objecto a matéria de direito e a matéria de facto- para o que se impõe a reapreciação da prova gravada, que em diante se concretizará e cuja audição requer a V/Exa.
…
3) O douto Tribunal optou por não autonomizar cada facto provado, ou cada grupo de factos conexos provados, em face da correspectiva e preponderante prova.
4) Limita-se apenas a relatar e transcrever aquilo que é dito pelas testemunhas.
5) Não fazendo assim, como lhe é exigido, a necessária correspondência entre os factos dados como provados e os elementos de prova para tal determinantes.
6) Muitos dos factos dados como provados, na verdade, não têm qualquer fundamento sério, isento, certo. Muito pelo contrário, baseiam-se em depoimentos dúbios. Havendo assim, um claro erro na apreciação da prova.
…
8) O Tribunal a quo não se pronuncia sobre todos os factos alegados na contestação, determinando assim tal “ omissão de pronúncia” a nulidade da sentença nos termos do artigo 379º do código de processo civil.
…
10) O acórdão recorrido não analisa criticamente a produção de prova e deixa por esclarecer minuciosamente o alegado “esquema de tráfico de droga”.
…
12) Aquando das buscas à residência do arguido, não detinha este naquela, qualquer tipo de produto estupefaciente ou sequer elevadas quantias de dinheiro.
…
15) Isto tudo, porque supostamente, nunca nenhuma das testemunhas presenciou o arguido a comprar o produto que alegadamente lhes vendeu.
16) Mais ainda, o enriquecimento ilícito dado como provado, não encontra fundamento em nenhuma parte do acórdão. Vindo este de meros testemunhos indirectos, de “ outros consumidores disseram”, “ ouvi dizer”.
17) Testemunhos indirectos que não podem ser valorizados nos termos do artigo 129º do código penal.
18) O arguido, em momento algum fez do tráfico de estupefacientes a sua atividade diária, resultando isso mesmo das próprias declarações do arguido.
19) Por isso mesmo, o valor determinado a título de perda de vantagens económicas em nada reflecte a realidade dos factos.
20) Parece-nos exagerado que o dinheiro encontrado com o arguido no momento da sua detenção seja considerado resultado da venda de produto estupefaciente.
21) Isto porque, o natural, na maioria das pessoas, é trazer consigo dinheiro.
…
25) Verificou-se claramente a incapacidade acidental para testemunhar, prevista no artigo 495.º do Código de Processo Civil, uma vez que, no decurso do julgamento, as testemunhas, por se encontrarem em situação de toxicodependência vulnerável e, em alguns casos, em putativo tratamento, demonstraram não possuir capacidade para compreender o alcance das declarações que prestaram.
26) Por essa razão, as suas declarações não deveriam ter sido valoradas ou, no mínimo, deviam tê-lo sido apenas em certas partes e não noutras.
…
28) Concluiu-se assim, que houve um erro na apreciação da prova, que inevitavelmente prejudicou o arguido, levando à condenação nos termos já conhecidos.
…
31) A alegada prática da atividade de tráfico de droga foi praticada apenas na cidade ..., as supostas quantidades venidas a cada consumidor é adequado ao seu consumo individual, não se verificando na prática deste crime uma grande complexidade dos meios utlizados, tratando-se de venda direta e em pequena escala.
32) Havendo assim um excesso e uma desadequação da pena aplicada. Concluindo-se pela violação do princípio da adequação, proporcionalidade e proibição do excesso.
33) É assumido pelo arguido e corroborado pelas testemunhas que este é consumidor.
34) A toxicodependência do arguido influenciou a possível prática do crime, na medida em que compromete a capacidade daquele agir de acordo com a lei.
35) Só é punível quem atuar com culpa, quem tenha capacidade de entender a ilicitude e de determinar o seu comportamento de acordo com esse entendimento.
36) Neste caso, o mais certo é a capacidade do arguido estar consideravelmente diminuída no momento da prática do crime, em razão da toxicodependência.
37) Ora, o ato de o arguido ter praticado crime numa altura em que era toxicodependente, diminui a intensidade do dolo e tal pode ser considerado na atenuação da sua culpa.
…
44) Errando assim este douto Tribunal quando não circunscreveu a conduta do arguido ao artigo 25º do mencionado decreto-lei 15/93.
…
46) São declaradas perdidas a favor do estado as vantagens de facto do ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagens económicas, direta ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou outrem.
47) É pressuposto deste instituto a prática pelo agente e um facto ilícito típico.
48) Este é apenas destinado a anular o enriquecimento no património do agente do crime na justa medida do enriquecimento, nem mais nem menos.
49) O que não sucede no caso, determinando aqui um enriquecimento do qual não há evidências que efetivamente tenha existido.
…
54) Deve ser declarada inconstitucional a interpretação feita pelo tribunal a quo da norma prevista no art.36.º, n.º 4, do DL n.º 15/93 de que a vantagem a apurar é bruta e não líquida, por violação do princípio da proporcionalidade previsto no artigo 18º/2 CRP, com ofensa do principio da dignidade humana, do qual emana o principio da culpa em direito penal.
…».
3. A Digna Procuradora, em primeira instância, respondeu à Motivação de Recurso …
4. O Digno Procurador-Geral Adjunto, nesta Relação, no parecer que antecede, também, a improcedência do recurso.
5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, nada obsta ao conhecimento de mérito do Recurso.
II. QUESTÕES A DECIDIR
…
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recorrente as questões a decidir são a de saber: (i) se a sentença é nula por falta de fundamentação e omissão de pronúncia; (ii) se a matéria de facto deve ser alterada; (iii) se a conduta do arguido preenche o crime de que vem condenado; (iv) se o artigo 36.º do Decreto Lei n.º 15/93 é inconstitucional.
A incapacidade acidental das testemunhas referenciada nas Conclusões n.ºs 25 a 28 não encontra eco na Motivação de recurso, razão pela qual será objecto de conhecimento do presente recurso.
III– FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O Acórdão recorrido julgou a matéria de facto, como a seguir se transcreve:
«2.1. Matéria de facto provada
Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. Desde data não concretamente apurada do ano de 2020, mas que se sabe ter sido após 22/04/2020 (data em que foi colocado em liberdade condicional), e até 1 de Junho de 2022 (data da detenção), o arguido …, também conhecido por “AA”, movido pela facilidade com que podia obter proveitos económicos, decidiu dedicar-se à comercialização de produtos estupefacientes, designadamente heroína e cocaína, através da venda dessas substâncias estupefacientes a terceiros, mediante a cobrança de um preço superior ao despendido por ele com a sua compra;
2. Passando assim a proceder, de forma diária, reiterada e sucessiva, à aquisição, venda e cedência dos referidos produtos estupefacientes, o que fazia designadamente nas localidades de …;
3. Em execução desse propósito, o arguido adquiria o produto estupefaciente na zona do Porto, em locais não concretamente apurados e a indivíduos cuja identidade não se logrou apurar, vendendo-o posteriormente mediante contrapartidas monetárias a consumidores que o contactavam ou procuravam para esse efeito;
4. Os consumidores que pretendiam adquirir produto estupefaciente ao arguido, contactavam-no directamente nos locais onde sabiam que o podiam encontrar ou, então, através de contacto telefónico ou do Messenger da rede social Facebook, combinando o tipo e a quantidade do produto estupefaciente pretendido, a hora e o local de entrega, após o que se deslocava para os locais previamente combinados, nomeadamente, na residência do arguido sita nas proximidades do Centro Comercial …, nas proximidades do ginásio …, no parque de estacionamento das superfícies comerciais …, junto ao multibanco da localidade de …, junto ao hotel da …, nas bombas de combustível de …, e ainda no Bairro …, aí sendo vendido o produto estupefaciente (cocaína e heroína) aos consumidores que recebiam as doses por si pretendidas das mãos do arguido em troca da respectiva contrapartida monetária;
5. No referido período temporal, o arguido fez da actividade ilícita em causa, compra e venda de substâncias estupefacientes, a sua actividade diária, fornecendo e vendendo aquelas substâncias, nomeadamente, heroína e cocaína;
6. Em data não concretamente apurada do ano de 2021, o arguido conheceu a testemunha … tendo, nessa ocasião, cedido ao mesmo, gratuitamente, uma pedra de cocaína para consumo deste;
7. Desde essa altura e, pelo menos até Junho de 2022, o arguido vendeu heroína e cocaína ao …, para consumo deste, em média uma ou duas vezes por semana e um ou dois pacotes de heroína de cada vez, pagando € 10,00 (dez euros) por cada pacote, sendo que quando não tinha heroína, o … adquiria ao arguido uma ou duas pedras de cocaína, pagando € 20,00 (vinte euros) por cada pedra, o que aconteceu designadamente nos dias 10 de Março de 2022 e 30 de Maio de 2022;
8. No período compreendido entre Fevereiro e 1 de Junho de 2022, o arguido vendeu heroína e cocaína a …, para consumo deste, e em média dois ou três pacotes de heroína e duas ou três pedras de cocaína de cada vez, pagando € 10,00 (dez euros) por cada pacote de heroína € 15,00 (quinze euros) por cada pedra de cocaína, o que aconteceu designadamente nos dias 19, 20, 21, 22 e 27 de Abril de 2022 e 4, 6, 7, 8, 9, 10 e 18 de Maio de 2022;
9. A primeira venda ocorreu no Bairro da …, onde … se deslocou na companhia de um amigo;
10. Nas outras ocasiões, sempre que … pretendia adquirir heroína e cocaína ao arguido, enviava-lhe uma mensagem através do Messenger da rede social Facebook, combinando a quantidade de heroína e cocaína que pretendia, o local e a hora de entrega, após o que se deslocava para os locais combinados entre ambos, nomeadamente, junto ao hotel … ou nas bombas de combustível de …r, onde recebia das mãos do arguido as doses de heroína e cocaína pretendidas em troca da respectiva contrapartida monetária;
11. Em datas não concretamente apuradas dos anos de 2020 e 2021, … adquiriu ao arguido, por intermédio de outros consumidores de produtos estupefacientes, cocaína para seu consumo, pagando € 15,00 (quinze euros) ou € 20,00 (vinte euros) por cada pedra;
12. Entre data não concretamente apurada do ano de 2020 e, pelo menos até 1 de Junho de 2022, o arguido vendeu cocaína a …, para consumo deste, em média duas ou três vezes por semana e duas pedras de cocaína de cada vez, pagando, pagando € 20,00 (vinte euros) por cada pedra, chegando ainda a vender-lhe heroína, pagando € 10,00 (dez euros) por cada pacote, o que aconteceu designadamente nos dias 1, 2, 3, 4, 6, 8 e 29 de Março de 2022, 30 e 31 de Maio de 2022 e 1 de Junho de 2022;
13. Durante o período de tempo em que o arguido residiu em Nelas, e sempre que … pretendia adquirir heroína e cocaína ao arguido, deslocava-se diretamente à residência deste, situada nas proximidades do Centro Comercial
Central e aí recebia das mãos do arguido as doses de cocaína e heroína pretendidas em troca da respectiva contrapartida monetária;
14. Após o arguido ter deixado de residir em Nelas, sempre que … pretendia adquirir os referidos produtos estupefacientes ao arguido, enviava-lhe uma mensagem através do Messenger da rede social Facebook, combinando a quantidade de heroína ou cocaína que pretendia, a hora e o local de entrega, após o que se deslocava para o local combinado entre ambos, normalmente nas proximidades do ginásio, sito na Rua …, onde recebia das mãos do arguido as doses de cocaína e heroína pretendidas em troca da respectiva contrapartida monetária;
15. Desde data não concretamente apurada do ano de 2020 e até finais de Maio de 2022, o arguido vendeu cocaína e heroína a …, para consumo desta, em média três a quatro vezes por semana e duas pedras de cocaína de cada vez, pagando € 20,00 (vinte euros) por cada pedra, chegando ainda a vender-lhe pacotes de heroína, pagando € 10,00 (dez euros) por cada pacote, o que aconteceu designadamente nos dias 13, 15, 24, 30 e 31 de Maio de 2022;
16. No referido período temporal, enquanto o arguido residiu em Nelas, sempre que … pretendia adquirir heroína e cocaína ao arguido, deslocava-se diretamente à residência deste, situada nas proximidades do Centro Comercial … e aí recebia das mãos do arguido as doses de cocaína e heroína pretendidas em troca da respetiva contrapartida monetária;
17. Após o arguido ter deixado de residir em …, sempre que … pretendia adquirir heroína e cocaína ao arguido, enviava-lhe uma mensagem através do Messenger da rede social Facebook, combinando a quantidade que pretendia, a hora e o local de entrega, após o que se deslocava para o local combinado entre ambos, normalmente nas proximidades do ginásio, sito na Rua …, onde recebia das mãos do arguido as doses de cocaína e heroína pretendidas em troca da respectiva contrapartida monetária;
18. No período compreendido entre Janeiro e finais de Maio de 2022, e durante cerca de dois meses, o arguido vendeu heroína a …, para consumo desta, em média duas a três vezes por semana e dois pacotes de heroína de cada vez, pagando € 10,00 (dez euros por cada pacote, o que aconteceu designadamente nos dias 11, 12, 13, 14, 15, 18, 20, 27, 29, 30 e 31 de Março de 2022 e 01, 02, 14 e 28 de Abril de 2022;
19. Sempre que … pretendia adquirir heroína ao arguido, enviava-lhe uma mensagem através do Messenger da rede social Facebook, a quantidade de heroína que pretendia, a hora e o local de entrega, após o que se deslocava para o local combinado entre ambos, onde recebia das mãos do arguido as doses de cocaína e heroína pretendidas em troca da respectiva contrapartida monetária;
20. No período compreendido entre Janeiro e finais de Maio de 2022, e pelos menos em cinco ou seis ocasiões, o arguido vendeu cocaína a …, para consumo deste, e duas pedras de cocaína de cada vez, pagando € 20,00 (vente euros) por cada pedra, o que aconteceu designadamente nos dias 3, 6, 7, 9 e 10 de Maio de 2022;
21. Sempre que … pretendia adquirir cocaína ao arguido, enviava-lhe uma mensagem através do Messenger da rede social Facebook, a quantidade de cocaína que pretendia, a hora e o local de entrega, após o que se deslocava para o local combinado entre ambos, normalmente perto do túnel, na Quinta …, onde recebia das mãos do arguido as doses de cocaína pretendidas em troca da respectiva contrapartida monetária;
22. No período compreendido entre finais de 2021 e Maio de 2022, o arguido vendeu cocaína a …, para consumo deste, em média duas a três vezes por semana e cinco pedras de cocaína de cada vez, pagando € 20,00 (vinte euros) por cada pedra, o que aconteceu designadamente nos dias 1 e 2 de Maio de 2022.
23. Inicialmente, sempre que o arguido se deslocava a Nelas contactava o …e combinavam a quantidade de cocaína que este pretendia, a hora e o local de entrega, após o que se deslocavam para o local combinado entre ambos, normalmente em …, junto ao multibanco ou no parque de estacionamento do …, onde … recebia das mãos do arguido as doses de cocaína e heroína pretendidas em troca da respectiva contrapartida monetária;
24. A dada altura, os contactos entre ambos passaram a ser efectuados através do Messenger da rede social Facebook;
25. No período compreendido entre Fevereiro e finais de Maio de 2022, o arguido vendeu cocaína a …, para consumo desta, em média três a quatro vezes por semana e duas pedras de cocaína de cada vez, pagando € 10,00 (dez euros) ou € 15,00 (quinze euros) por cada pedra, o que aconteceu designadamente nos dias 25, 26, 27, 28 e 30 de Maio de 2022 e 1 de Junho de 2022.
26. Inicialmente, sempre que … pretendia adquirir cocaína ao arguido contactava-o telefonicamente, através de mensagens de voz, passando depois os contactos a ser efectuados através do Messenger da rede social Facebook, combinando a quantidade de cocaína que pretendia, a hora e o local de entrega;
27. Por vezes, o arguido deslocava-se …, à residência da … e aí entregava-lhe o produto estupefaciente que a mesma pretendia, recebendo em troca a respectiva contrapartida monetária, ou então deixava o produto estupefaciente na caixa do correio da residência daquela;
28. Noutras ocasiões, o arguido e a …deslocavam -se para o local combinado entre ambos, normalmente nas traseiras do hotel da ..., onde esta recebia das mãos do arguido as doses de cocaína pretendidas em troca da respetiva contrapartida monetária;
29. No período compreendido entre Janeiro e Maio de 2022, o arguido vendeu heroína a …, para consumo deste, em média duas vezes por semana e um ou dois pacotes de heroína de cada vez, pagando € 10,00 (dez euros) por cada pacote, o que aconteceu designadamente nos dias 30 de Maio de 2022 e 1 de Junho de 2022;
30. Sempre que … pretendia adquirir heroína ao arguido, enviava-lhe uma mensagem através do Messenger da rede social Facebook, combinando a quantidade de heroína que pretendia, a hora e o local de entrega, após o que se deslocava para o local combinado entre ambos, sempre na zona de Nelas, onde recebia das mãos do arguido as doses de heroína pretendidas em troca da respectiva contrapartida monetária;
31. No período compreendido entre Janeiro e Maio de 2022, o arguido vendeu heroína a …, para consumo deste, em média uma a duas vezes por semana e dois pacotes de heroína de cada vez, pagando € 10,00 (dez euros) por cada pacote, o que aconteceu designadamente nos dias 24, 25, 26, 27, 28 e 30 de Maio de 2022 e 1 de Junho de 2022;
32. Sempre que … pretendia adquirir heroína ao arguido, enviava-lhe uma mensagem através do Messenger da rede social Facebook, combinando a quantidade de heroína que pretendia, a hora e o local de entrega, após o que se deslocava para o local combinado entre ambos, onde recebia das mãos do arguido as doses de heroína pretendidas em troca da respectiva contrapartida monetária;
33. No período compreendido entre Janeiro e Maio de 2022, o arguido vendeu heroína a …, para consumo deste, em média duas a três vezes por mês e entre dois a quatro pacotes de heroína de cada vez, pagando € 10,00 (dez euros) por cada pacote, o que aconteceu designadamente nos dias 11, 21, 28, 30 e 31 de Maio de 2022 e 01 de Junho de 2022;
34. No dia 1 de Junho de 2022, … vendeu um veículo automóvel ao arguido pelo preço de € 120,00 (cento e vinte euros), tendo-lhe este pago parte do preço em pacotes de heroína (quatro pacotes) e os restantes € 80,00 (oitenta euros) em numerário;
35. Sempre que … pretendia adquirir heroína ao arguido, enviava-lhe uma mensagem através do Messenger da rede social Facebook, combinando a quantidade de heroína que pretendia, a hora e o local de entrega, após o que se deslocava para o local combinado entre ambos, normalmente nas proximidades da sua residência, numa linha por cima da linha de comboio, onde recebia das mãos do arguido as doses de heroína pretendidas em troca da respectiva contrapartida monetária;
36. Entre finais do ano de 2021 e finais de Maio de 2022, e durante cerca de meio ano, o arguido vendeu heroína a …, para consumo deste, pelo menos por 12 vezes e em média entre dois a cinco pacotes de cada vez, pagando €10,00 (dez euros) por cada pacote, o que aconteceu designadamente nos dias 21, 23, 24, 25, 27, 30 e 31 de Maio de 2022;
37. Na grande maioria das vezes era o próprio arguido quem contactava BB, o que ocorria sempre que se deslocava a Nelas, combinando a quantidade de heroína que o mesmo pretendia, a hora e o local de entrega;
38. De seguida, BB deslocava-se para o local combinado com o arguido, onde recebia das mãos do arguido as doses de heroína pretendidas em troca da respetiva contrapartida monetária;
39. No dia 1 de Junho de 2022, cerca das 16h00, na E.N. ...31, junta à “Rotunda …, foi fiscalizada a viatura automóvel de marca …, a qual era conduzida pelo arguido, seguindo ainda na viatura, no lugar do pendura, …, companheira daquele;
40. O arguido conduzia o referido veículo sem que, para o efeito, estivesse habilitado com carta de condução ou qualquer outro documento que lhe permitisse conduzir aquele veículo na via pública;
41. No decurso da acção de fiscalização foi efectuada uma busca ao interior do referido veículo, tendo sido apreendidos na posse do arguido os seguintes objectos:
…
42. O arguido actuou sempre da forma descrita motivado pelo lucro fácil que tal actividade ilícita lhe proporcionava;
43. O produto estupefaciente apreendido na posse do arguido destinava-se a ser pelo mesmo vendido a terceiros consumidores que o procurassem para esse efeito;
44. As quantias monetárias encontradas e apreendidas ao arguido eram exclusivamente provenientes das contrapartidas monetárias entregues por consumidores nas transacções de produtos estupefacientes a que havia procedido;
45. O telemóvel e cartão telefónico apreendidos ao arguido serviam para contactar e ser contactado pelos consumidores/compradores de tais produtos;
46. O arguido … tinha perfeita consciência das características e naturezas dos produtos estupefacientes que transaccionava, sendo conhecedor de todas as responsabilidades que advêm do tráfico de estupefaciente, e que ao vender/fornecer drogas a outros indivíduos estava a contribuir para a degradação da sociedade em geral;
47. Agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, com a intenção concretizada de proceder à venda de substâncias estupefacientes, nomeadamente heroína e cocaína a diversas pessoas que lhe solicitassem a troco de dinheiro, conhecendo a natureza e as características dos produtos estupefacientes que adquiria, possuía, transportava e vendia a terceiros, bem sabendo que não estava autorizados a detê-los, cedê-los, transporta-los, vendê-los ou por qualquer outro título proporcioná-los a terceiros, procurando dessa forma, e para além do mais, obter vantagens económicas para si;
48. O arguido tinha ainda perfeito conhecimento da obrigatoriedade legal de possuir um documento válido que o habilitasse a conduzir o veículo referido em 39. na via pública e sabia que não era titular de qualquer um e mesmo assim quis conduzi-lo;
49. Mais sabia ainda serem todas as suas descritas condutas proibidas e punidas por lei.
Da reincidência do arguido
50. Do teor do certificado de registo criminal do arguido CC, junto aos autos, verifica-se que este já foi condenado, para além do mais:
- …por sentença proferida em 20.12.2013, transitada em julgado em 22.10.2014, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal praticado no dia 08.08.2013, na pena única ano e 2 meses de prisão; de 1
- …por sentença proferida em 08.10.2015, transitada em julgado em 10.11.2015, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes e um crime de condição sem habilitação legal, praticados em 23.01.2014, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão;
- … por sentença proferida em 21.10.2015, transitada em julgado em 20.11.2015, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado no dia 04.05.2011, na pena de 8 meses de prisão;
- … por sentença proferida em 13.01.2017, transitada em julgado em 13.02.2017, pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, um crime de condição perigosa de veículo rodoviário e um crime de condução sem habilitação legal, praticados no dia 06.05.2013, na pena única de 2 anos de prisão;
- … por sentença proferida em 01.10.2018, transitada em julgado em 01.11.2019, pela prática de um crime de roubo a residência, praticado em 21.11.2013, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão;
51. Da informação prestada pela DGRSP e junta aos autos a fls. 146, resulta que o arguido esteve detido:
- Entre 14.02.2014 e 25.03.2014 à ordem do Proc. n.º 771/12.... …, sob a medida de coacção de prisão preventiva;
- Entre 25.03.2014 e 25.03.2015, …, em execução de pena de 12 meses de prisão;
- Entre 25.03.2015 e 25.10.2015 … em execução de pena de 1 ano e 2 meses de prisão;
- Entre 25.10.2015 e 24.04.2016 … em execução da pena de 9 meses de prisão;
- Entre 24.04.2016 e 24.10.2016 …em execução da pena de 8 meses de prisão;
- Entre 24.10.2016 e 26.09.2017 …em execução da pena de 10 meses e 33 dias de prisão;
- Entre 26.09.2017 e 15.12.2017 … em execução da pena de 80 dias de prisão;
- Entre 15.12.2017 e 28.02.2018 … em execução da pena de 4 anos e 6 meses de prisão;
- Entre 28.02.2018 e 24.09.2018 …em execução da pena única de 1 ano e 6 meses de prisão;
- Entre 24.09.2018 e 23.06.2019, …em execução da pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
- Entre 22.06.2019 e 22.04.2020 … em execução da pena de 5 anos e 11 meses de prisão.
52. Entre a prática pelo arguido dos crimes supra enunciados, pelos quais foi condenado nos indicados processos, e a prática dos que estão em causa nos presentes autos, descontando o período de tempo durante o qual esteve detido, mediaram menos de cinco anos;
53. Resulta ainda manifesto, atentos os antecedentes criminais do arguido e o facto de este, não obstante as anteriores condenações, ter voltado a cometer factos qualificados pela lei penal como crime, nomeadamente os que estão em causa nos presentes autos, que este revela uma acentuada propensão para a actividade delituosa.
54. Assim, verifica-se que as condenações sofridas pelo arguido não foram suficientes para o afastar da criminalidade e conseguir a sua recuperação social, dado que este se mostrou totalmente insensível à advertência ínsita nessas condenações, revelando que as penas de prisão anteriormente aplicadas não produziram os seus efeitos preventivos de ressocialização, de reintegração na comunidade e como forma de prevenção da prática de novos crimes, continuando o arguido a revelar uma acentuada propensão para a prática de crimes;
55. Tal acentuada propensão para o crime, revelado pelas anteriores condenações e pelos factos em causa nestes autos, fundamentam um justo receio de que o arguido volte a praticar factos da mesma espécie;
Das vantagens do crime obtidas pelo arguido
56. De todas as aquisições desses produtos estupefacientes que os acima identificados consumidores efectuaram, foi possível determinar do simples cálculo aritmético que o arguido … obteve das vendas concretamente identificadas um proveito ou vantagem patrimonial que se descrimina da seguinte forma:
57. … - Entre Janeiro e Junho de 2022, o arguido vendeu-lhe heroína e cocaína, em média uma ou duas vezes por semana e um ou dois pacotes de heroína de cada vez, a € 10,00 (dez euros) cada pacote de heroína, sendo que quando não tinha heroína vendeu-lhe cocaína, uma ou duas pedras de cada vez, a € 20,00 (vinte euros) cada pedra de cocaína - pelo menos 20 vezes x € 10,00 + 1 vez x € 20,00 + 1 vez x € 20,00 + 1 vezes x € 40,00 = € 280,00;
58. … - Entre Fevereiro e 1 de Junho de 2022, vendeu-lhe heroína e cocaína, por inúmeras vezes, em média dois ou três pacotes de heroína e duas ou três pedras de cocaína de cada vez, a € 10,00 (dez euros) cada pacote de heroína e € 15,00 (quinze euros) cada pedra de cocaína, o que aconteceu designadamente nos dias 19, 20, 21, 22 e 27 de abril de 2022 e 4, 6, 7, 8, 9, 10 e 18 de Maio de 2022 - pelo menos 11 vezes x € 20,00 + 1 vez x € 30,00 + 11 vezes x € 30,00 + 1 vez x € 45,00 = € 595,00;
59. … - Em datas não concretamente apuradas de 2020 vendeu-lhe cocaína, a €15,00 (quinze euros) ou € 20,00 (vinte euros) cada pedra - pelo menos 2 vezes x € 15,00 + 2 vezes € 20,00 (ano de 2019) + 4 vezes x € 15,00 + 2 vezes x € 20,00 (ano de 2020) = € 170,00;
60. … - Entre data não concretamente apurada do ano de 2020, e pelo menos até 01 de Junho de 2022, vendeu-lhe cocaína, em média duas ou três vezes por semana e duas pedras de cocaína de cada vez, pagando, pagando € 20,00 (vinte euros) por cada pedra, chegando ainda a vender-lhe heroína, pagando € 10,00 (dez euros) por cada pacote, o que aconteceu designadamente nos dias 1, 2, 3, 4, 6, 8 e 29 de Março de 2022, 30 e 31 de Maio de 2022 e 1 de Junho de 2022 - pelo menos 2 vezes x € 40,00 + 3 vezes x € 40,00 + 1 vez x € 10,00 (ano de 2020) + 100 vezes x € 40,00 + 4 vezes x € 40,00 + 1 vez x € 10,00 (ano de 2021) + 39 vezes x € 40,00 + 4 vezes x € 40,00 + 5 vezes x € 40,00 + 1 vez x € 10,00 (2022) = € 6.310,00.
61. … - Entre data não concretamente apurada do ano de 2020 e até finais de Maio de 2022, vendeu-lhe cocaína e heroína, em média três a quatro vezes por semana e duas pedras de cocaína de cada vez, pagando € 20,00 (vinte euros) por cada pedra, chegando ainda a vender-lhe pacotes de heroína, a € 10,00 (dez euros) cada pacote, o que aconteceu designadamente nos dias 13, 15, 24, 30 e 31 de Maio de 2022 - pelo menos 3vezes x € 40,00 + 4 vezes x € 40,00 + 1 vez x 10,00 (2020) + 155 vezes x € 40,00 + 4 vezes x € 40,00 + 1 vez x € 10,00 (2021) + 62 vezes x € 40,00 + 4 vezes x € 40,00 + 1 vez x € 10,00 (ano de 2022) = € 9.310,00;
62. … - Entre Janeiro e finais de Maio de 2022, e durante cerca de dois meses, vendeu-lhe heroína, em média duas a três vezes por semana e dois pacotes de heroína de cada vez, a €10,00 (dez euros) cada pacote, o que aconteceu designadamente nos dias 11, 12, 13, 14, 15, 18, 20, 27, 29, 30 e 31 de Março de 2022 e 01, 02, 14 e 28 de Abril de 2022 - pelo menos 17 vezes x € 20,00 = €340,00;
63. … - Entre janeiro e finais de Maio de 2022, e pelos menos em cinco ou seis ocasiões, vendeu-lhe cocaína, duas pedras de cada vez, a € 20,00 (vinte euros) cada pedra, o que aconteceu designadamente nos dias 3, 6, 7, 9 e 10 de Maio de 2022 - pelo menos 5 vezes x € 20,00 = €100,00;
64. … -No período compreendido entre finais de 2021 e Maio de 2022, vendeu-lhe cocaína, em média duas a três vezes por semana e cinco pedras de cocaína de cada vez, a €20,00 (vinte euros) cada pedra, o que aconteceu designadamente nos dias 1 e 2 de Maio de 2022 - pelo menos 46 vezes x € 100,00 = €4.600,00;
65. … - No período compreendido entre Fevereiro e finais de Maio de 2022, vendeu-lhe cocaína, em média três a quatro vezes por semana e duas pedras de cocaína de cada vez, a € 10,00 (dez euros) ou € 15,00 (quinze euros) cada pedra, o que aconteceu designadamente nos dias 25, 26, 27, 28 e 30 de Maio de 2022 e 01 de Junho de 2022 - pelo menos 51 vezes x € 20,00 + € 1 vez x € 30,00 = €1.050,00;
66. … - No período compreendido entre Janeiro e Maio de 2022, vendeu-lhe heroína, em média duas vezes por semana e um ou dois pacotes de heroína de cada vez, a € 10,00 (dez euros) cada pacote, o que aconteceu designadamente nos dias 30 de Maio de 2022 e 01 de Junho de 2022 - pelo menos 41 vezes x € 10,00 + 1 vez x € 20,00 = € 430,00;
67. … - No período compreendido entre Janeiro e Maio de 2022, vendeu-lhe heroína, em média uma a duas vezes por semana e dois pacotes de heroína de cada vez, a € 10,00 (dez euros) cada pacote, o que aconteceu designadamente nos dias 24, 25, 26, 27, 28 e 30 de Maio de 2022 e 01 de Junho de 2022 - pelo menos 22 vezes x € 20,00 = € 440,00;
68. … - No período compreendido entre janeiro e maio de 2022, vendeu-lhe heroína, em média duas a três vezes por mês e entre dois a quatro pacotes de heroína de cada vez, a € 10,00 (dez euros) cada pacote, o que aconteceu designadamente nos dias 11, 21, 28, 30 e 31 de Maio de 2022 e 01 de Junho de 2022, sendo que no dia 01 de Junho de 2022 DD vendeu ao arguido um veículo automóvel pelo preço de €120,00 (cento e vinte euros), tendo-lhe este pago parte do preço em pacotes de heroína (quatro pacotes) - pelo menos 11 vezes x € 20,00 + 1 vezes x € 40,00 + € 40,00 = €280,00;
69. … - Entre finais do ano de 2021 e finais de Maio de 2022, e durante cerca de meio ano, vendeu-lhe heroína pelo menos por 12 vezes e em média entre dois a cinco pacotes de cada vez, a € 10,00 (dez euros) cada pacote, o que aconteceu designadamente nos dias 21, 23, 24, 25, 27, 30 e 31 de Maio de 2022 - pelo menos 11 vezes x € 20,00 + 1 vezes x € 50,00 = €270,00;
70. Os referidos montantes correspondem à vantagem patrimonial que o arguido CC… obteve com a prática do crime, na medida em que traduzem o incremento patrimonial directo que o mesmo obteve com o desenvolvimento da sua conduta criminosa;
71. Atendendo a que o arguido deu ao referido montante destino não concretamente apurado, não foi possível garantir a sua apropriação em espécie.
Dados relevantes do processo de socialização
Condições pessoais e sociais
…
Repercussões da situação jurídico-penal
…
Antecedentes criminais
…
2.2. Matéria de facto não provada
Para além dos factos meramente conclusivos ou que contenha matéria de direito, nada mais se provou com relevância para a decisão da causa, não se provando, nomeadamente, que:
Do despacho de acusação:
…
Da contestação:
4. O arguido é viciado em heroína e consumia 6 a 7 pacotes por dia;
5. Até ao momento da sua detenção o arguido passou a tomar uma vida perto da indigência, resultado do vício da droga;
6. As relações afectivas com familiares foram-se degradando, com repetidos pedidos de quantias monetárias para pagamento ou de despesas ou para alimentação;
7. O arguido despendia todas as quantias monetárias que conseguia obter junto da sua família na compra de produtos estupefacientes para o seu consumo;
8. O arguido adquiria e detinha por vezes produto estupefaciente para seu exclusivo consumo.
2.3. Motivação da matéria de facto
A convicção do tribunal no que respeita à factualidade assente formou-se com base na apreciação global e crítica da prova produzida, quer a prova documental junta aos autos, quer a prova testemunhal produzida em sede de julgamento, em conjugação com as regras de experiência comum.
Tomou em consideração o tribunal para apuramento da materialidade factual, desde logo, as declarações do próprio arguido, o qual, em audiência de julgamento, confessou parte dos factos constantes da acusação, desde logo a condução do veículo sem habilitação legal, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas ali descritas e que usava o carro para vender roupas de porta em porta.
…
Não obstante a negação por parte do arguido dos factos descritos na acusação relativamente à venda de produtos estupefacientes, os mesmos foram confirmados e atestados pelos depoimentos isentos e credíveis das testemunhas que a seguir se discriminarão, depoimentos que o tribunal sopesou e valorou.
Assim, foram valorados os depoimentos, prestados em sede de audiência de julgamento, das seguintes testemunhas:
…
Para além dos elencados depoimentos, prestados em audiência de julgamento, valorou o tribunal os depoimentos prestados em sede de inquérito pelas testemunhas que a seguir se identificam, validamente lidos em audiência de julgamento, esgotadas que se mostraram as diligências com vista a assegurar a sua comparência nessa sede:
…
IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO
1. Nulidade da sentença
O Recorrente aponta à sentença recorrido o vício da nulidade da sentença por falta de fundamentação e omissão de pronúncia.
Será assim?
A forma e requisitos de uma sentença penal, cuja inobservância é cominada com a nulidade, vem regulada no artigo 379º, do Código Processo Penal, que, no seu nº 1, que estatui:
«É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3, do artigo 374º;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos da acusação ou na pronúncia se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º,
c)Quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»
Por seu turno, dispõe o artigo 374º, nº, 2, do Código de Processo Penal, que, ao relatório da sentença (artigo 374º, nº 1) «segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para forma a convicção do tribunal»,
A fundamentação da sentença consiste na enumeração dos factos provados e não provados, com indicação do exame crítico das provas, mas também, na exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, e, em caso de condenação, na menção dos fundamentos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada.
A omissão dos elementos da fundamentação constitui a nulidade por falta de fundamentação a que alude a alínea a), do nº 1, do art. 379º, do Código Processo Penal diferencia-se da omissão de pronúncia sobre uma questão que o tribunal deve conhecer prevista na al. c), do nº 1, daquele mesmo preceito.
Na ausência de fundamentação, o tribunal profere uma decisão sem que a justifique com indicação dos elementos referidos na alínea a), do nº 1 do citado artigo 379º, do Código de Processo Penal, na omissão de pronúncia, o tribunal não profere qualquer decisão, não se pronuncia, sobre uma questão que devesse apreciar.
Percorrendo a sentença recorrida, facilmente se constata que se encontra devidamente fundamentada, nos termos enunciados pelo nº 2, do artigo 374º, do Código de Processo Penal.
Enumera os factos provados e não provados e descreve todo o raciocínio lógico de formação da convicção do julgador.
Em relação à actividade de tráfico, o Tribunal recorrido ponderou as declarações orais prestadas pelo arguido, às quais não atribuiu credibilidade, porque contrariadas por todas as testemunhas e mensagens que cada uma trocou com o arguido - constantes do Apenso I – tendo aquelas esclarecido que estavam relacionadas com a compra e venda de droga e não peças de vestuário, já que nenhuma delas tinha qualquer outra ligação ao arguido que justificasse tais contactos.
Mais considerou o Tribunal a quo, que os objectos apreendidos ao arguido, corroboram o exercício da actividade de tráfico. As quantias em dinheiro de 205,00€, «que confessadamente pertenciam [ao arguido], constituem, sem margem para dúvidas, à luz das regras da experiência, o resultado da venda de produto estupefaciente, sendo certo que o arguido não exercia qualquer actividade remunerada conhecida e as notas de baixo valor são demonstrativas disso mesmo, isto é, que resultaram da venda das doses de produto estupefacientes.
No que em especial se refere à quantidade e a qualidade de estupefaciente apreendido nos autos, que também confessadamente lhe pertenciam, sopesaram na convicção do tribunal o relatório pericial de fls. 292-293, com base no qual é possível aferir as características dos produtos estupefacientes apreendidos, designadamente, os respetivos pesos líquidos (correspondentes à diferença entre os pesos brutos e respetivas taras), grau de pureza e número de doses diárias, de acordo com a Portaria 94/96.».
Assim:
…
Estas são as razões pelas quais o Tribunal recorrido não acreditou na versão do arguido, mas na versão trazida pelas testemunhas, sendo claro o pensamento do julgador no modo como formou a sua convicção, conhecendo-se, também, as razões que o levaram a dar como provada toda a actividade de tráfico narrada nos factos provados.
A sentença cumpre, assim, todos os requisitos previstos no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, não enfermando da nulidade enunciada no artigo 379º, nº 1, al. a), do mesmo diploma.
*
Já quanto a omissão de pronúncia a que alude o artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, alega o recorrente que o tribunal não se pronunciou sobre os factos alegados na contestação, sendo estes essenciais para a decisão.
Sem necessidade de indagação da questão de saber se a alegação de factos essenciais à decisão integra o vicio nulidade da sentença por omissão de pronúncia ou o vicio da insuficiência para a matéria de facto, previstos, respectivamente, nos artigos 379.º, n.º 1, alínea c) e 410.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, é notória a falta de razão do recorrente.
Com efeito, o tribunal recorrido pronuncia-se sobre os factos mencionados pelo recorrente, ao julgar não provado o consumo do recorrente nos termos por este defendido, quer no ponto de facto n.º 4 - o arguido é viciado em heroína e consumia 6 a 7 pacotes por dia –, quer no ponto de facto 7 – o arguido despendia todas as quantias monetárias que conseguia obter junto da sua família na compra de produtos estupefacientes para o seu consumo -, quer, ainda, no ponto de facto n.º 8 - o arguido adquiria e detinha por vezes produto estupefaciente para seu exclusivo consumo.
De igual modo se pronuncia o Acórdão sindicado acerca do relatório social e das condições sócio económicas do recorrente, nos factos provados n.ºs 72 a 84, e nos factos não provados n.ºs 5 e 6.
Quanto à alegada omissão de pronúncia sobre as buscas domiciliárias realizadas à residência do recorrente trata-se, de certo, de um lapso do recorrente, já nenhuma foi efectuada no âmbito deste processo.
Vale dizer que o tribunal recorrido se pronunciou sobre todas as questões que estava obrigado a conhecer, não assistindo, qualquer razão ao recorrente.
2. Modificação da decisão de facto
2.1. Antes de mais, importa reter que a modificação de facto pelo Tribunal da Relação só é admissível, quando os meios de prova indicados pelo Impugnante imponham decisão diversa da recorrida.
Postula o artigo 431º do Código de Processo Penal que a decisão do tribunal de 1ªinstância sobre matéria de facto pode ser alterada, se a prova tiver sido impugnada nos termos do artigo 412º nº 3 do mesmo diploma.
Recai, assim, sobre o Recorrente, não só o ónus de identificar o erro apontado á decisão recorrida, como ainda o ónus de especificar o conteúdo dos meios de prova tido por não valorado ou valorado erradamente pela decisão posta em crise, capaz de, numa apreciação conforme aos critérios legais em vigor, impor a revogação e/ou a substituição da decisão recorrida em conformidade com a pretensão formulada.
Ou seja, o Recorrente tem, além de identificar o erro apontado, rebater a fundamentação da sentença que levou a esse erro, propondo uma motivação probatória capaz de, num critério minimamente persuasivo, impor a decisão alternativa que pretende.
No caso presente, não especifica o recorrente os factos que, em concreto considera incorrectamente julgados, nem os meios de prova, que para cada um, exigem uma decisão diversa, o que bastaria para rejeitar toda a impugnação de facto.
Porém, do que é possível depreender dos argumentos recursivos, consegue perceber-se ser intenção do recorrente a modificação dos factos provados sob o n.º 1, bem como dos factos não provados n.ºs 4, 7 e 8, razão pela qual dela se conhecerá.
Quanto aos demais 2, 5, 7 a 9, 11, 12, 14 a 16, 18, 20, 22, 27, 29, 31, 33, 34, 36, 43, 44, 46 e 47, rejeita-se a impugnação de facto.
2.2. Facto provado n.º 1
…
Dispõe o artigo 128.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, que a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e constituam objecto de prova.
A testemunha não pode ser inquirida sobre factos que não sejam objecto da prova, só podendo ser inquirida sobre os factos de que possua conhecimento directo, salvas as limitações decorrentes do artigo 129.º do Código de Processo Penal[1].
A prova testemunhal é um depoimento pessoal e isolado (artigos 138.º, e 348º do Código de Processo Penal), devendo a testemunha apresentar a razão de ciência para a sua declaração. Depoimentos sem razão de ciência não merecem crédito e não há que levá-los em conta[2]
A fonte do conhecimento dos factos da testemunha pode ser directo ou indirecto. O conhecimento directo dos factos surge da percepção imediata e não intermediada, através dos seus próprios sentidos e o conhecimento indirecto dos factos resulta do que se apercebeu de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos[3] .
Diz-se que tem conhecimento directo dos factos da ocorrência em apreço quando o mesmo resulta da percepção pessoal da testemunha, - doravante designada por testemunha fonte -, isto é colhido através dos seus sentidos; e diz-se que tem conhecimento indirecto ou de ouvir dizer quando o mesmo se formou por intermediação da percepção de outrem e transmitido através de uma representação oral, escrita ou mecânica[4].
Quando a testemunha presta depoimento sobre factos que presenciou e percebeu directa, imediata e pessoalmente, estamos diante de um depoimento directo (artigo 128.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Quando a testemunha reproduz factos que ouviu dizer a determinadas pessoas, presta um depoimento indirecto. Este não incide sobre os factos, objecto da prova, mas sobre o depoimento de um terceiro que os contou à testemunha inquirida[5] podendo, simplificadamente, dizer-se que o depoimento indirecto não versa factos objecto do processo, mas antes, um depoimento ouvido a terceiro, que versa tais factos[6].
A prova testemunhal caracteriza-se pela sua imediação com o acontecimento que se presenciou visual e auditivamente, não admirando as reservas suscitadas pelo depoimento indirecto em que está ausente a relação de imediação entre a testemunha e o objecto por ele percebido[7].
Para estes casos, estatui o artigo 129.º, n.º 1, do Código de Processo Penal:
Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.
O depoimento indirecto supõe, assim, a identificação da testemunha fonte, o que não sucedeu no caso concreto.
O tribunal recorrido para além de não enumerar nos factos provados o preço concreto que o recorrente pagou pela cocaína e heroína vendida nas condições descritas na factualidade provada n.º 6 a 38, não formou a sua convicção em qualquer depoimento indirecto.
Note-se, que nem o próprio recorrente identifica a testemunha que terá declarado ter ouvido dizer a determinada pessoa que o arguido adquiria o produto estupefaciente a um preço X ou Y.
A prova de que o arguido se dedicava à actividade de tráfico de estupefacientes com intenção de obter lucros, nos termos sinteticamente enunciados no facto provado n.º 1, resulta do exame critico da prova produzida, isto é, da análise conjugada dos depoimentos prestados pelas testemunhas com a prova documental, em especial as mensagens constantes do Apenso I, «as quais ilustram bem o volume de vendas levadas a cabo pelo arguido, sendo que todas as testemunhas referiram que tais mensagens estavam relacionadas com a compra e venda de droga, já que nenhuma delas tinha qualquer outra ligação ao arguido».
Assim sendo, não se pode concluir, como conclui o recorrente, que o tribunal recorrido valou indevidamente «testemunhos indirectos», para considerar a actividade de tráfico do arguido, improcedendo, assim, as Conclusões n.ºs 16 e 17.
*
Questão diferente é a de saber se o facto de as testemunhas inquiridas nunca terem presenciado os actos de aquisição da heroína e cocaína vendida pelo recorrente impedem se julgue provada a actividade de tráfico descrita no facto provado n.º 1, nos termos preconizados no recurso, o que, nos conduz, à questão da admissibilidade da prova indirecta e os limites do principio da presunção de inocência.
Como conciliar a presunção da inocência do arguido com a prova indirecta, aparentemente inconciliáveis entre si?
O principio da presunção da inocência surge pela primeira vez na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789 - por oposição a um processo de natureza inquisitória, em que, diante de provas formais, cabia ao acusado muitas vezes provar a sua inocência – e é hoje indiscutível no direito internacional e interno, nomeadamente, no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o já citado artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
E, porque se trata de um direito fundamental e de aplicação directa, só pode ser restringido por exigência e salvaguarda de outro direito fundamental (artigo 18.º, da Constituição da República Portuguesa).
Importa, ainda, ter presente, o principio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127º, do Código de Processo Penal, segundo o qual, excepcionados os casos de prova vinculativa, o julgador aprecia a prova segundo a sua própria convicção, formada à luz das regras da experiência comum.
A livre convicção é o principio regra, a base e transversal a toda a valoração da prova. Só assim não será quando a lei dispuser de forma diferente.
Livre convicção, mas não convicção livre.
«A liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva[8]».
«O artigo 127º do Código Processo Penal estabelece três tipos de critérios para avaliação da prova, com características e naturezas completamente diferentes: uma avaliação da prova inteiramente objectiva quando a lei assim o determinar; outra também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, eminentemente subjectiva, que resulte da livre convicção do julgador. [9]»
Por sua vez, o princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência [artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa], impõe ao julgador que, em caso de dúvida acerca dos factos probandos, resolva essa dúvida em benefício do arguido relativamente ao ponto ou pontos duvidosos, podendo mesmo conduzir à sua absolvição[10].
A dúvida - no liquet - não permite ao juiz que omita decisão.
Como salienta Figueiredo Dias[11], um non liquet na questão da prova tem que ser sempre valorado a favor do arguido, sendo que «com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo».
Se, produzida a prova, subsiste no espirito do julgador um estado de incerteza, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou conjunto de factos, torna-se imperioso decidir a favor do arguido. Ao contrário, se a convicção do julgador foi alcançada com segurança e certeza, para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à aplicação do princípio.
Todavia a dúvida razoável não corresponde a qualquer dúvida possível ou hipotética, só a dúvida séria se sobrepõe à intima convicção, devendo, por isso, esta ser fundamentada, coerente, lógica e razoável.
Assim, «a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; enquanto o princípio in dubio pro reo impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. Constituindo, pois, como que a face e o verso da realidade: a livre convicção cessa perante a dúvida razoável e a dúvida não pode aceitar-se quando não for razoável.
Ora, a certeza judicial não se exime do vício da humana imperfeição, que sempre pode ser suponível o contrário do que admitimos como verdadeiro. Sempre, enfim, a imaginação fecunda do céptico, lançando-se nos caminhos do possível, inventará cem motivos de dúvida. Com efeito em qualquer caso pode imaginar-se tal combinação extraordinária de circunstâncias que venha a destruir a certeza adquirida. Mas apesar desta combinação possível, não deixará de ficar satisfeito o entendimento quando motivos suficientes estabelecem a certeza, quando todas as hipóteses razoáveis tenham desaparecido e sido rechaçadas depois de um maduro exame. A certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica.
O julgamento da matéria de facto não é apenas um esforço de razoabilidade (…), mas ainda um acto de humildade do juiz, na medida em que, por um lado tem que decidir – apenas – com base nas provas resultantes da discussão da causa em audiência (artigo 355.º do CPP) (…) e por outro tem que se mover sempre dentro dos critérios legais de apreciação da prova, procurando, através do julgamento, superar a presunção de inocência do arguido ou, depois de esgotado todo o manancial probatório, vendo-se confrontado com mais do que uma solução probatória razoável, assumir aquela que favorece o arguido.
Sem que possa – sob pena, em última instância, de denegação de justiça – assumir o papel do céptico que em nada acredita nem, tão-pouco, “inventar” dúvidas abstractas que não resultem da apreciação crítica minuciosa e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos em conformidade com os critérios legais[12] -
Não é, pois, uma e qualquer dúvida que impede a imnpossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, mas um dúvida razoável que se distingue da dúvida meramente possível, hipotética.
Neste aspecto, relevam, não apenas os meios de prova directos, mas também, os prodecimentos lógicos da prova inidrecta, isto é, as presunções.
Efectivamente, o sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto conhecido para um facto desconhecido; relevando as presunções judiciais (cf. artigos 349.º e 351º, do Código Civil), assentes no simples raciocínio de quem julga[13] tendo por base as máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana[14].
Com efeito, as presunções naturais, são, afinal, o produto das regras de experiência. O Juiz, a partir de um certo facto e das regras da experiência da vida, conclui que esse facto evidencia a existência de outro facto.
O julgamento sobre os factos, devendo ser um julgamento para além de toda a dúvida razoável, não pode, no limite, aspirar à dimensão absoluta da certeza da demonstração acabada das coisas próprias das leis da natureza ou da certificação cientificamente cunhada.
De volta ao caso, diante dos factos conhecidos - os provados sob os números n.ºs 6 a 42 - e das condições de venda relatadas pelas testemunhas nenhuma dúvida subsiste sobre o modo como o recorrente desenvolvia a actividade de tráfico.
Assim:
A qualidade do estupefaciente (heroína e cocaína) e a quantidade (no valor global de 26 455,00€) vendida pelo arguido, durante cerca de dois anos a diversos consumidores, nas condições em que o foram evidencia indubitavelmente, uma actividade de compra e venda de estupefacientes organizada e lucrativa.
Com efeito, os rendimentos auferidos pelo recorrente – 440€ e 90€ mensais, respectivamente, de RSI e abono de família – são manifestamente insuficientes para adquirir as quantidades de heroína e cocaína transacionada pelo recorrente.
A possibilidade de o arguido adquirir o estupefaciente a um preço superior ao que, normalmente, vendia, não é nem razoável, nem lógica.
É inconcebível, à luz das regras da normalidade da vida e do acontecer, que o arguido vendesse estupefacientes a um preço inferior ao seu custo, até porque era o arguido, quem procurava os consumidores, lhes dava os contactos (estava sempre a trocar de números de telemóvel) e definia os locais da entrega.
Assim o declararam, as testemunhas:
…
As hipóteses aventadas no recurso no sentido de ser o arguido a comprar o estupefaciente às testemunhas e/ou de vender o produto com prejuízo, para além de traduzirem formulações genéricas e abstractas, sem qualquer suporte objectivo que as sustentem, mostram-se, no contexto dos factos conhecidos, ilógicas e inverosímeis
A possibilidade de terem sido as testemunhas a venderem a heroína e a cocaína ao recorrente é afastada pelas regras do normal acontecer. A história de vida dos consumidores que necessitam da droga para suprir a toxicodependência revelada nas mensagens trocadas com o arguido, não se coaduna com a actividade de tráfico desenvolvida pelo recorrente.
Igualmente ilógica e inverosímil é a possibilidade de o arguido vender a quantidade de heroína e cocaína, com prejuízo.
Tanto significa que as dúvidas suscitadas pelo recorrente não se mostram nem lógicas, nem razoáveis, não havendo, por isso, que convocar, o principio in dubio pro reo.
Bem andou, pois, o tribunal recorrido em considerar provado o facto n.º 1.
2.3. Factos não provados n.º 4, 7 e 8.
Em causa está a seguinte matéria:
O arguido é viciado em heroína e consumia 6 a 7 pacotes por dia (facto n.º 4);
O arguido despendia todas as quantias monetárias que conseguia obter junto da sua família na compra de produtos estupefacientes para o seu consumo (facto n.º 7);
O arguido adquiria e detinha por vezes produto estupefaciente para seu exclusivo consumo (facto provado n.º 8).
Para o Recorrente, o tribunal recorrido errou ao não julgar provados estes factos, porquanto valorou erradamente os testemunhos prestados por … e …, bem como suas condições pessoais e familiares relatadas em audiência e no relatório social.
Desde logo, porque as testemunhas, … e … nada esclareceram acerca dos consumos do arguido. A primeira refere que, uma ou duas vezes, o arguido lhe cedeu cocaína em contrapartida do trabalho de mecânico que lhe prestou enquanto a segunda não consegue identificar mais do que uma ou duas de consumos conjuntos.
Depois, porque o relatório social, transcreve as palavras do recorrente ouvidas pela técnica que o elaborou, reflectindo as declarações por aquele prestadas em audiência, não tidas por credíveis, pelo Tribunal recorrido, porque em contradição com a demais prova.
Em terceiro lugar, porque o arguido entregou à testemunha, …, 4 pacotes de heroína (no valor de 40€) e 80,00€ em dinheiro, para pagamento do valor de um carro que este lhe tinha vendido por 120,00€ e não para adquirir estupefaciente para seu consumo.
Vale dizer que os meios de prova indicados pelo arguido não impõem decisão diferente da recorrida, mantendo-se, como não provados, os factos n.ºs 4, 7 e 8.
2.4. Do que precede, se conclui que na decisão sobre a matéria de facto o Tribunal recorrido observou todas as regras de direito probatório, nomeadamente, no que respeita à apreciação da prova directa e indirecta e aos limites do principio in dubio pro reo.
Nenhuma norma ou principio de direito constitucional foi violado, improcedendo, assim, as conclusões n.º 2, 12 a 24, 28 e 29.
3. Qualificação jurídico-penal dos factos provados
Para o recorrente a actividade de tráfico desenvolvida pelo recorrente integra a previsão do artigo 25.º, do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e não a do artigo 21.º, do mesmo diploma.
Sem razão, porém.
Nos termos do artigo 21º do DL 15/93 de 22 de Janeiro;
«Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos».
O crime de tráfico de estupefacientes é um crime de perigo abstracto (e não de perigo concreto ou de dano), uma vez que se antecipa a tutela penal à efectiva lesão do bem jurídico em causa, que, pese embora, os múltiplos valores e bens que visa proteger, tem sido reconduzido à saúde pública e bem-estar.
Com a punição dos primeiros actos de execução do agente, pune-se, desde logo, a perigosidade da acção típica, não sendo necessário para a sua consumação, a ocorrência do dano (dano-violação), como é característica dos crimes de resultado, nem sequer a existência de perigo (perigo– violação), como é característica dos crimes de perigo concreto, em que o perigo elemento do tipo legal.
A acção típica objectiva deste ilícito agrupa um conjunto de actos descritos em alternativa, bastando cada um deles para realização do crime. A prática de um qualquer acto dos enunciados - cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente– sem autorização e fora dos casos previstos no artigo 40.º, é suficiente para perfectibilizar o tipo legal objectivo.
O crime em causa, quando o estupefaciente não se destine na sua totalidade a consumo pessoal do agente, não contém nos seus elementos essenciais e típicos o fim, o destino e/ou a utilização que lhe pretenda dar (vender, ceder, obter lucro ou outras vantagens).
A mera detenção ilícita e, ainda que com intenção de a ceder gratuitamente, se não destinada a consumo exclusivo do detentor, preenche o tipo objectivo do crime de tráfico[15].
E isto, porque, como tem vindo a ser entendido pela jurisprudência, estamos em face de um "crime exaurido" ou "crime de empreendimento" ou "crime excutido", caraterizado como um ilícito penal que fica perfeito com o cometimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo.
Ou como se escreveu no Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Abril de 1998[16];
«O crime exaurido é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de os mesmos corres ponderem a uma execução completa; ou seja, «aquele em que o resultado típico se obtém logo pela realização inicial da conduta ilícita.».
O resultado típico alcança-se logo «com aquilo que surge, por regra, como realização inicial do iter criminis, tendo em conta um processo normal de actuação, envolvendo droga que se não destine exclusivamente a consumo.[17] ».
Para preenchimento do tipo, basta, assim, o primeiro acto de execução, não se exigindo a realização da acção delineada e planeada pelo agente.
«A construção e a estrutura dos crimes ditos de tráfico de estupefacientes, como crimes de perigo, de protecção (total) recuadas a momentos anteriores a qualquer manifestação de consequências danosas, e com a descrição típica alargada, pressupõe, porém, a graduação em escalas diversas dos diferentes padrões de ilicitude em que se manifeste a intensidade (a potencialidade) do perigo (um perigo que é abstracto-concreto) para os bens jurídicos protegidos.
De contrário, o tipo fundamental, com os índices de intensidade da ilicitude avaliados pela moldura abstracta das penas previstas, poderia fazer corresponder a um grau de ilicitude menor uma pena relativamente grave, com risco de afectação de uma ideia fundamental de proporcionalidade que imperiosamente deve existir na definição dos crimes e das correspondentes penas.
Por isso, a fragmentação por escala dos crimes de tráfico (mais fragmentação de ilicitude do que da factualidade típica, que permanece no essencial), responde às diferentes realidades, do ponto de vista das condutas do agente, que necessariamente preexistem à compressão do legislador[18]».
O crime de tráfico de menor gravidade previsto no artigo 25.º, do Decreto Lei n.º 15/93, pressupõe que a ilicitude do facto - aferida, nomeadamente, pelos meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das substâncias - se mostre consideravelmente diminuída.
Como há muito se vem afirmando na jurisprudência, «(…) o advérbio “consideravelmente”, da cláusula geral, não está lá por acaso. No seu significado etimológico, prevalece a ideia de digno de consideração, notável, grande, importante ou avultado.[19]».
«A essência da distinção entre os tipos fundamental (art. 21º) e privilegiado (art. 25º) reverte ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), aferida em função de um conjunto de itens de natureza objectiva que se revelem em concreto, e que devem ser globalmente valorados por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei (…).
As referências objectivas contidas no tipo para aferir da menor gravidade situam-se nos meios, na modalidade ou circunstâncias da acção e na qualidade e quantidade das plantas.
De facto, a tipificação do artigo 25.º … parece ter o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza (de elevada gravidade, considerando a grande relevância dos valores postos em perigo com a sua prática e frequência desta), encontre a medida justa da punição para casos que, embora de gravidade significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativa da tipificação do art. 21º e encontram resposta adequada dentro das molduras penais previstas no preceito em causa.
Ao indagar do preenchimento do tipo legal do art. 25º haverá que proceder a uma valorização global do facto, sopesando todas e cada uma das circunstâncias aí referidas, para além de todas as demais susceptíveis de interferir na graduação da gravidade do facto, designadamente as que traduzem uma menor perigosidade da acção e/ou desvalor do resultado, em que a ofensa ou o perigo de ofensa aos bens jurídicos protegidos se mostre significativamente atenuado.
Trata-se de um facto típico cujo elemento distintivo do crime tipo reside, apenas, na diminuição da ilicitude, redução que o legislador impõe seja considerável, indicando factores aferidores de menorização da ilicitude, a título meramente exemplificativo, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção e a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações.[20]»
A intensidade da ilicitude e diminuição considerável há-de, pois, de uma valoração global dos factos, considerando o conjunto de circunstâncias em que se desenrola a actividade, como sejam, o tempo, a qualidade e quantidade dos produtos, o modo de execução, o grau de intensidade da propagação medido pelo número de destinatários da actividade[21].
No caso vertente, a factualidade provada não permite inferir pela diminuição acentuada da ilicitude.
Na verdade, o arguido, uma vez colocado em liberdade condicional, logo iniciou a actividade diária de tráfico de heroína e cocaína, prosseguindo-a, durante cerca de dois anos, de forma diária, reiterada e sucessiva, para o que usava, não apenas o meio de contacto telefónico e pessoal, mas também as redes sociais como o Messenger.
Assim, e como se refere no acórdão recorrido, no Acórdão recorrido, ainda que relativamente aos meios utilizados pelo arguido na actividade de tráfico, se esteja perante um modus operandi simples, com recurso a meios sem sofisticação, com encontros previamente combinados, via telemóvel ou Messenger, para a entrega do estupefaciente, a verdade é que a sua actividade se desenrolou durante cerca de dois anos, com alguma intensidade, considerado o número de pessoas identificadas a quem vendia e a frequência com que o fazia.
A carteira de clientes angariada pelo recorrente durante cerca de dois anos, a área geográfica abrangida (…), mas em locais estrategicamente escolhidos (proximidades do Centro Comercial de …, proximidade do Ginásio …, parque de estacionamento do …; Quinta do …, junto ao multibanco da localidade de …; junto ao Hotel …, nas bombas de combustível de … e no Bairro …), o modo como o arguido procurava os consumidores, a troca frequente de números de números de telemóvel, o volume de vendas concretizadas e as condições que decorriam, revelam já um modelo de negócio e de comercialização que agrava a ilicitude da imagem, global do facto, afastando, assim, a previsão do crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 25.º, do Decreto Lei n.º 15/93.
Assim sendo, nenhuma censura merece a condenação da arguida pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido no artigo 21.º n.º 1, do diploma citado.
4. Atenuação especial da culpa
Prossegue o recorrente, invocando a atenuação especial da culpa, com fundamento no facto de ser consumidor e toxicodependente, circunstância que compromete «gravemente a sua capacidade de agir de acordo com a lei. Pois, o arguido, nos momentos de “fraqueza”, pode, sem grande consciência, ter cometido o crime de tráfico de substâncias estupefaciente, apenas e só com a finalidade de sustentar o seu vício, não como lhe é imputado de obter para si qualquer rendimento ilegítimo e indevido.».
O conhecimento desta pretensão supunha a procedência da modificação dos factos não provados e impugnados, isto é, de que o arguido era toxicodependente (viciado em heroína), destinando-se as vendas a suprir a dependência das drogas.
Porém, tal não sucedeu.
Não ficou demonstrado, primeiro que o arguido fosse toxicodependente, segundo, que destinasse às vendas a obter estupefacientes para seu uso pessoal e terceiro, que a capacidade de decisão para a prática do crime estivesse comprometida por efeito dos consumos de heroína.
Além do que, não podemos olvidar que a atenuação especial da pena inscrita no artigo 72.º, do Código de Processo Penal, depende da existência de circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
A atenuação especial pressupõe, assim, a verificação de uma acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção, «sendo certo que tal só se deve ter por verificado quando a imagem global do facto, resultante das circunstâncias atenuantes, se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo[22].».
Por isso, a atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar. Trata-se de uma válvula de segurança, só aplicável a situações que, pela sua excepcionalidade, não se enquadram nos limites da moldura penal aplicável ao respectivo crime, ou seja, a situações em que se mostra quebrada a relação entre o facto cometido e a pena para o mesmo estabelecida, consabido que entre o crime e a pena há (deve haver) uma equivalência.
Não é este o caso.
Não existem quaisquer circunstâncias que diminuam acentuadamente a culpa ou as exigências de prevenção.
Com efeito, mesmo que se reconheça que os consumos de heroína e/ou cocaína são susceptíveis de poderem limitar e condicionar a capacidade de determinação e decisão do agente e, por isso, atenuantes da culpa, certo é que, no caso em apreço, tal circunstância não ficou demonstrada.
Ao que acrescem as elevadas exigências de prevenção especial que o caso requer.
O arguido já foi condenado por vários crimes, entre os quais, o tráfico de estupefacientes e de condução de veiculo sem habilitação legal, em consequência do que já esteve preso, o que agrava a sua culpa e impõe a formulação de um juízo de prognose negativo relativamente ao seu comportamento futuro.
Nestes termos, não se verificam, em concreto, os pressupostos para a atenuação especial da pena.
Nenhuma censura merece, pois, o Tribunal recorrido, por não ter atenuado especialmente a pena recorrente.
5. Medida da pena
O arguido foi condenando pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 25º, alínea a), do decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C anexa a tal diploma, como reincidente, na pena de seis anos de prisão, com fundamento no seguinte:
«De acordo com o disposto no artigo 70º do Código Penal se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal deve dar preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Tais finalidades são, como se determina no artigo 40º, nº1, do mesmo diploma, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Na determinação da medida da pena há também que atentar no que dispõe o artigo 71º n.º 1 do Código Penal que dispõe que “…dentro dos limites definidos na lei, é feita em função do agente e das exigências de prevenção.”
Por outro lado, há ainda que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, designadamente, as referidas no artigo 71º n.º 2 do Código Penal.
Como refere Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As consequências jurídicas do Crime, 1993, pág. 280 e 281, "Culpa e prevenção são assim os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena…. Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição no caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime - ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente - limite de forma inultrapassável das exigências de prevenção..."
(…)
No caso dos autos, as exigências de prevenção geral são elevadas, consideradas as consequências para a sociedade de condutas como a ora em apreço no que toca ao crime de tráfico, afectando principalmente as camadas populacionais mais jovens, com prejuízo para o desenvolvimento físico e psíquico da pessoa humana.
São também elevadas as exigências de prevenção geral e sobretudo especial no que concerne ao crime de condução sem habilitação legal, atentas a vezes que o arguido já foi condenado pela prática deste crime, sendo certo que usava essa condução para a prática de outra actividade ilícita.
Pelo que se nos afigura que, atenta a gravidade dos factos praticados pelo arguido, analisados na sua globalidade, é de aplicar a pena privativa de liberdade, por se considerar que só esta é suficiente e adequada aos interesses a que alude o citado art.70º do Código Penal e se mostra capaz de realizar de forma adequada as finalidades da punição.
Em qualquer dos casos, considerando o modo e circunstâncias como actuou, o dolo do arguido foi directo e intenso.
Relativamente às exigências de prevenção especial há que ponderar a existência de antecedentes criminais (maioritariamente pela prática de crimes de natureza idêntica da dos autos no que concerne à condução sem habilitação legal e uma condenação anterior pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes -, mas também de natureza diferente, mormente crimes contra o património), tendo praticado os factos num período em que se encontrava e liberdade condicional.
Relativamente ao grau de ilicitude, importa salientar o número de pessoas visadas, o período temporal pelo qual se prolongou a actividade de tráfico do arguido, durante cerca de 2 anos (sendo certo que apenas foi interrompido pela sua detenção), a sua circunscrição espacial, a quantidade e a qualidade do produto transaccionado, em cada acto e no global os valores em causa, tudo apontando para uma actividade de dimensão media e pequena.
A culpa do arguido, é ponderosa, como reflexo dos factos praticados - com o dolo mais intenso.
O arguido tem pautado a sua vida com um comportamento desviante e contrário à lei, tendo sido insensível a todas as advertências de que foi alvo nos diversos contactos que teve com o sistema judicial e não aproveitou as inúmeras oportunidades que lhe foram sendo dadas.
Não tem hábitos de trabalho, exercendo esporadicamente actividade laboral, mas sempre com carácter irregular.
(…)
A seu favor, temos apenas que beneficia de apoio familiar.».
Por outro lado,
«Resulta ainda manifesto, atentos os antecedentes criminais do arguido e o facto de este, não obstante as anteriores condenações, ter voltado a cometer factos qualificados pela lei penal como crime, que este revela uma acentuada propensão para a actividade delituosa.
Assim, verifica-se que as condenações sofridas pelo arguido não foram suficientes para o afastar da criminalidade e conseguir a sua recuperação social, dado que este se mostrou totalmente insensível à advertência ínsita nessas condenações, revelando que as penas de prisão anteriormente aplicadas não produziram os seus efeitos preventivos de ressocialização, de reintegração na comunidade e como forma de prevenção da prática de novos crimes, continuando o arguido a revelar uma acentuada propensão para a prática de crimes contra o património.
Tal acentuada propensão para o crime, revelado pelas anteriores condenações e pelos factos em causa nestes autos, fundamentam um justo receio de que o arguido volte a praticar factos da mesma espécie.
Na verdade, quando se encontrou em liberdade condicional, o arguido reincidiu na prática de crime (da mesma natureza pelos quais já havia sofrido condenações e de natureza diversa) apenas conhecendo esta forma de vida, já que pauta toda a sua actividade à dedicação exclusiva à prática de crimes, e mesmo nos crimes de tráfico já reincidiu também na sua prática.
Esta conduta delituosa prolonga-se já há vários anos e não constituiu obstáculo, para a conduta do arguido ou a continuação do arguido desta conduta.
O facto é que, foi condenado em várias penas, primeiro não detentivas que constam também do CRC, mas depois várias penas detentivas, e nada disso o deteve. Aliás, logo que se viu em liberdade condicional o arguido volta, decorridos pouco tempo a praticar novos factos, não se coibido de praticar crimes mesmo quando se encontra em liberdade condicional concedida no dia 22 de Abril de 2020.
Assim, constata-se que estas condenações e respectivas penas não foram suficientes para afastar da criminalidade, conseguir a sua recuperação social dado que este se mostra insensível à advertência ínsita da mesma, revelando que as penas de prisão anteriormente aplicadas não produziram os seus efeitos preventivos de socialização de reintegração na comunidade como forma de prevenção da prática de novos crimes.
Estão, pois, verificados os pressupostos da reincidência previstos no art.75º, nº1 e 2, do C. Penal.
Os crimes cometidos pelo arguido, porque praticado na forma dolosa e concretamente merecedor de prisão efectiva superior a 6 meses, passam a ser puníveis com a agravação especial da reincidência (artigo 76º n.º 1), subindo para mais um terço os limites mínimos das respectivas molduras penais.
Nestes termos, a moldura penal aplicável ao arguido pela prática do crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º n.º 1 do Decreto-lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, com referência às Tabela I-A e I-B anexas a tal diploma, será de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses a 12 (doze) anos e a moldura penal aplicável ao arguido pela prática do crime de condução sem habilitação legal previsto e punido pelo artigo 3º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, será de 1 (um) mês e 10 (dez) dias a 2 (dois) anos.
Assim, considerados os factores determinantes para a fixação da medida concreta da pena relativamente ao mencionado arguido e acima referidos, com a agravação por força da reincidência entende-se ser ajustado:
- Na pena de 6 (seis) anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º n.º 1 do Decreto-lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, com referência às Tabela I-A e I-B anexas a tal diploma;
- Na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.
A moldura penal do concurso no que concerne ao arguido passará a ser de 7 anos e 6 (seis) anos meses de prisão (no seu limite máximo) e de 6 (seis) anos de prisão (no seu limite mínimo).
Estabelecida a moldura penal do concurso, deve determinar-se a pena conjunta do concurso, dentro dos limites daquela. Tal pena será encontrada em função das exigências de culpa e de prevenção, tendo o legislador fornecido, para além dos critérios gerais estabelecidos no artigo 71º do C.P., um critério especial: “Na determinação concreta da pena serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
No que diz respeito aos factos, importa ter em consideração a pluralidade dos mesmos, o seu tipo, as suas consequências e os bens jurídicos violados.
No que diz respeito à personalidade do arguido, remetemo-nos para as considerações já realizadas.
Tudo ponderando, o arguido … será condenado, como reincidente, na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.».
Daqui resulta que o julgador ponderou todas as circunstâncias relevantes na determinação da medida concreta da pena, que militam a seu favor e contra si, nomeadamente as condições pessoais, familiares e profissionais, com total observância dos critérios legais e princípios que a que deve obedecer.
Deste modo, a pena de seis anos de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, entre uma moldura penal de 5 anos e quatro meses de prisão, por força da reincidência, mostra-se adequada e proporcional às finalidades da punição, nada havendo que censurar ao Tribunal recorrido.
6. Perda de vantagens
A este propósito, defende o recorrente que o valor do enriquecimento calculado pelo tribunal se funda em meras suposições.
Todavia, o contrário resulta dos factos provados n.ºs 57 a 70, 74, 83 e 84, não impugnados pelo arguido e dos factos provados n.ºs 1 a 49.
O valor encontrado como sendo o valor obtido com a actividade de tráfico decorre do cálculo aritmético dos actos de venda de cocaína e heroína efectivamente concretizados, suportados em realidades objectivas e não em quaisquer especulações ou suposições.
Carece, assim, de razão o alegado nas Conclusões n.ºs 49.º a 53.º.
Suscita a questão de saber de saber, se as vantagens a que refere o artigo 36.º, do Decreto Lei n.º 15/93, corresponde à diferença entre o preço de venda e o preço de custo do produto (vantagens liquidas) ou ao montante auferido com as vendas (vantagens brutas).
Esta questão não é nova, e sobre ela já tomámos posição, designadamente, no Acórdão de 11 de Dezembro de 2024, no âmbito do Processo n.º 2237/22.2T9LRA.C1, tendo, aí, decidido:
“O regime actual de perda de bens – o confisco - [23] (decorrente da clássica e tradicional distinção entre a «perda dos instrumentos ou produtos» do crime e a «perda de vantagens» deste resultantes), assenta essencialmente em dois modelos: (i) a perda dos instrumentos, produtos ou vantagens do crime e (ii) a perda alargada[24], cada deles com pressupostos de campos de aplicação distintos.
A perda de instrumentos, produtos e vantagens pressupõe, indubitavelmente, a demonstração de que as mesmas foram obtidas, directa ou indirectamente da prática de um facto ilícito típico. Ou seja, exige-se a prova, no processo, da existência de uma relação de conexão entre o facto ilícito criminal concreto e o correspondente proveito patrimonial obtido.
Já na perda alargada, o regime probatório é menos exigente «baseado na diferença entre o património do arguido com base na presunção da ilicitude desconforme. O que está em causa já não são apenas as vantagens directamente resultantes da prática do crime, mas a existência de um património incongruente com os rendimentos lícitos e que o arguido não consegue, de qualquer forma licita, justificar. A perda não se restringe aos proceeds comprovadamente resultantes do crime (…) mas a tudo aquilo que não é congruente com os seus rendimentos lícitos e que, por isso, se presume «constituir vantagem de actividade criminosa[25]».
Para o caso, releva a perda de instrumentos, produtos e vantagens, a que exige uma relação causal (um vinculo) entre o facto típico e ilícito e o bem concreto suscpetível de ser confiscado[26].
No plano geral, este regime é regulado, do lado material ou substantivo, nos artigos 109.º a 112.º - A do Código Penal e, do lado adjectivo ou processual, nos artigos 178.º a 186.º, 191.º a 194.º e 227.º e 228.º, do Código de Processo Penal.
No plano especial tem particular interesse para a decisão o regime de perda dos objectos, coisas ou direitos relacionados com a infracção enunciado nos artigos 35.º a 39.º, do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e a perda alargada consagrado na Lei 50/2002, de 11 de janeiro [artigo 1.º, alínea a)].
Mas o que se deve entender por instrumentos, produtos e vantagens do crime[27]?
No regime geral:
Os instrumentos do crime são todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos [artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal].
A perda dos instrumentos do facto ilícito justifica-se em razão das finalidades de prevenção da utilização dos mesmos na actividade criminosa.
Se tais instrumentos não puderem ser apropriados em espécie, a perda pode ser substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva[28] [artigo 109.º, n.º 3, do Código Penal].
Os produtos do crime são todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática, isto é, apenas e só, aquilo que inexistindo previamente, é “produzido” pela sua prática do crime[29]. [artigo 110.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal].
Já as vantagens do facto ilícito abrangem todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem [artigo 110.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal].
Também aqui, à semelhança do que foi fixado para a perda de instrumentos, estabelece o n.º 4, do artigo 110.º, do Código Penal, que, se os produtos e as vantagens não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor.
No regime especial do crime de tráfico de estupefacientes, instrumentos do crime são todos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática do crime ou que por este tiverem sido produzidos [artigo 35.º, n.º 1, do Decreto Lei n.º 15/93].
O perdimento de bens regulado no Decreto lei 15/93 tem matrizes especificas e próprias, muito menos exigente nos seus pressupostos do que o previsto no Código Penal, de modo a combater qualquer rentabilidade da actividade de tráfico[30].
Tal resulta claramente da alteração legislativa operada pela Lei n.º 45/96, de 03 de setembro, eliminou-se do n.º 1 do artigo 35.º[31], o pressuposto da perigosidade dos objectos, passando a exigir-se apenas que « (1) os objetos tenham servido ou estivessem destinados a servir (2) para a prática de uma infração prevista neste diploma ou (3) que por esta infração tenham sido produzidos», registando-se, assim, “um afastamento do regime geral do C.P., criando-se um regime próprio (…), colocando-se a tónica, numa relação instrumental e causal, ainda que hipotética, entre os crimes aqui tipificados e os bens[32]».
Vantagens do crime são todas as coisas, ou direitos relacionados com o facto típico e ilícito.
Nos termos do artigo 36.º do Decreto Lei n.º 15/93:
1 - Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de uma infracção prevista no presente diploma, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado.
2 - São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos de terceiro de boa fé, os objectos, direitos e vantagens que, através da infracção, tiverem sido directamente adquiridos pelos agentes, para si ou para outrem.
3 - O disposto nos números anteriores aplica-se aos direitos, objectos ou vantagens obtidos mediante transacção ou troca com os direitos, objectos ou vantagens directamente conseguidos por meio da infracção.
4 - Se a recompensa, os direitos, objectos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.
5 - Estão compreendidos neste artigo, nomeadamente, os móveis, imóveis, aeronaves, barcos, veículos, depósitos bancários ou de valores ou quaisquer outros bens de fortuna.
Se as recompensas, objectos, direitos ou vantagens tiverem sido transformados ou convertidos em outros bens, são estes perdidos a favor do Estado em substituição daqueles. [artigo 37.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 15/93].
E, se as recompensas, objectos, direitos ou vantagens tiverem sido misturados com bens licitamente adquiridos, são estes perdidos a favor do Estado até ao valor estimado daqueles que foram misturados. [artigo 37.º, n.º 2, do Decreto-Lei nº 15/93].
De acordo com o disposto no artigo 38.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, as regras do perdimento de bens acabado de enunciar (referidos nos artigos 35.º a 37.º do diploma em análise) são aplicáveis a todos os lucros e outros benefícios obtidos com aqueles bens.
Na actividade de tráfico de estupefacientes, constituem vantagens do facto ilícito: (i) toda a recompensa dada ou prometida aos agentes da infracção; (ii) os objectos, direitos e vantagens que, através da infracção, tiverem sido directamente adquiridos pelos agentes, para si ou para outrem; (iii) os direitos, objectos ou vantagens obtidos mediante transacção ou troca com os direitos, objectos ou vantagens directamente conseguidos por meio da infracção; (iv) os móveis, imóveis, aeronaves, barcos, veículos, depósitos bancários ou de valores ou quaisquer outros bens de fortuna; (v) os lucros, ou outros benefícios obtidos com a recompensa, objectos, direitos e vantagens; (vi) o valor estimado das recompensas, objectos, direitos ou vantagens que tiverem sido misturados com bens licitamente adquiridos, (vi) o valor das recompensas, objectos ou vantagens quando não for possível a sua apreensão material.
As vantagens podem reportar-se, por um lado, a objetos corpóreos ou incorpóreos e, por outro lado, podem traduzir-se num aumento do ativo, na diminuição do passivo, na evitação de prejuízos ou nas poupanças de gastos – isto é, tudo aquilo que permita um enriquecimento patrimonial do agente.
Podem, ainda ser (i) directas, se respeitam às próprias coisas que o agente do crime imediatamente obtém, como por exemplo, as quantias ou outros bens recebidos pelo agente em contrapartida da venda de estupefacientes; (ii) indirectas (as denominadas pela doutrina vantagens em cadeia do crime), as que decorrem do investimento das vantagens directas e (iv) as sucedâneas das vantagens directas, as conseguidas através da troca ou transacção das vantagens directas, as que substituem estas últimas (v.g, um automóvel comprado com o dinheiro do tráfico).
Além disso, podem ser instantâneas (ocorrendo no momento da prática do facto), continuadas (aumentando com o decorrer do tempo) ou até diferidas para um evento posterior e podem repercutir-se, quer na esfera patrimonial do agente, quer de um terceiro - importante é determinar o montante global[33].
Sublinhe-se, que o confisco não se restringe apenas aos activos resultantes directa ou indirectamente da prática do crime ou ao sucedâneo, podendo, também, incidir sobre todo o património lícito do arguido, nomeadamente, se a recompensa, os direitos, objectos ou vantagens relacionadas com o crime não puderem ser apropriados em espécie.
Neste caso, a perda ou o confisco é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.» [artigo 109.º, n.º 3 do Código Penal e 35.º, n.º 4, do Decreto Lei n.º 15/93].
«O confisco do valor tornou-se pedra angular de qualquer sistema eficiente de perda[34]. Com efeito, a recuperação da concreta vantagem do crime pode ser na prática impossível (o arguido gastou-a ou escondeu-a ou transferiu-a para terceiro de boa fé), ou então, ser tecnicamente inviável (…). Em ambos os casos, seja de impossibilidade superveniente, seja por impossibilidade genética, embora não se possa recuperar o próprio bem, pode ser confiscado o valor equivalente. A perda não pode ficar refém da natureza da vantagem e muito menos da conduta do próprio arguido. (…)
Quando por uma qualquer daquelas duas razões, for impossível recuperar os activos relacionados com o crime resta a possibilidade suplementar de atingir os activos daquele. Também o património lícito do arguido pode in extremis ser total ou parcialmente declarado perdido. Sempre que seja inviável confiscar os próprios proceeds of crime a lei permite que, em sua substituição seja confiscado o valor correspondente. Uma coisa equivale à outra, ficando em ambos os casos, o arguido na situação patrimonial que tinha antes da prática do crime, assim se demonstrando que aquele não compensa (…)[35].»
Não indicando o legislador critério para aferir o valor, mas apenas o «respectivo valor», a designação perda de vantagens, sendo um conceito difuso e com alguma indeterminação jurídica, suscita, desde logo, o debate centrado em dois princípios - o de vantagens brutas e o de vantagens liquidas – questão desenvolvida e discutida amplamente nos Estados Unidos, Alemanha e Itália.
A questão coloca-se acerca do critério que preside à determinação do valor concreto da vantagem a ser confiscado, quer em relação ao momento temporal (se a data de aquisição, de condenação ou outra), quer quanto ao valor a considerar (em função do valor do mercado ou do valor do património do agente), quer ainda quanto ao valor final a que se deve atender (valor liquido ou bruto).
Na esteira do defendido na doutrina[36] e na jurisprudência, tem-se vindo a entender que o cálculo do montante se deve reportar à data da aquisição, de acordo com uma perspectiva objetivo-individual (através da utilização de critérios objetivos, de natureza económica, face à realidade económica do agente) e que deve obedecer aos principio do “ganho líquido” (devendo deduzir-se às vantagens alcançadas os montantes despendidos para a sua obtenção), sob pena de o valor bruto implicar uma ficção de enriquecimento – essencial é efetuar a diferença entre aquilo que o condenado tem e aquilo que teria sem a prática do facto.
Centrando-nos no valor final – o que para aqui releva – diremos que o princípio de ganho “liquido” não é absoluto. Com efeito, nas situações em que a actividade subjacente à prática do crime é, intrinsecamente ilícita, como é o caso do crime de tráfico de estupefacientes, não há qualquer tutela jurídica para as componentes licitas (despesas, custos ou encargos ou benefícios) com a actividade.
Com efeito, as plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas Tabela I a III, do Decreto-Lei 15/93, são, pela própria natureza, perigosas para a saúde, para a vida, para segurança das pessoas e bens a vida e para sociedade, que a utilização das mesmas (desde o cultivo ao consumidor final) é delimitada em duas vertentes: uma positiva traduzida fixação de um condicionalismo legal apertado para ser permitida; e uma negativa, traduzida na censura penal das situações em que não é permitida legalmente.
Por isso, quem cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos de consumo, previstos no artigo 40.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, as plantas, substâncias ou preparações referidas, comete o crime de tráfico e outras actividades ilícitas previsto e punido pelo artigo 21.º, do mesmo diploma.
Tratam-se, de plantas, substâncias e preparações incluídas nas tabelas I a IV, anexas ao Decreto-Lei 15/93, instrumentos que serviram para a prática do crime de tráfico, que são sempre declaradas perdidas a favor do Estado, ainda que nenhuma pessoa seja punida pelo facto [artigo 35.º, n.º 2 e 3, do mesmo diploma].
Por conseguinte, as quantias licitas gastas com a compra e venda daqueles estupefacientes, porque foram utilizadas para a prática do crime, “serviram para a prática da infracção”, são instrumentos do crime, destituídos de qualquer tutela jurídica adquirindo, podendo, por isso, ser declarados perdidos a favor do Estado, nos termos do artigo 35.º, n.º 1, do Código Penal.
Neste quadro, parece-nos incontornável que a ilicitude de qualquer uma das modalidades da acção objectiva típica e ilícita elencadas no artigo 21.º do Decreto Lei n.º 15/23, contamina os gastos com aquisição, transporte e logística que lhe são inerentes (instrumentos do crime), ainda que provenientes do património licito do agente.
Neste sentido, decidiu o legislador de 2007, ao consagrar no artigo 109.º, n.º 3, do Código Penal, a possibilidade de a perda dos instrumentos poder ser substituída pelo respectivo valor, quando não puderem ser apropriados em espécie.
Se a perda do respectivo valor dos instrumentos do crime é admissível para os crimes em geral, também o deve ser para o regime especial do tráfico de estupefacientes, gizado, como se disse em pressupostos de menor exigência do que o Código Penal, e pela própria razão de ser de um regime especial, impedir qualquer ganho com a actividade de tráfico[37].
Apesar do Decreto-Lei n.º 15/93 ser omisso quanto à possibilidade de declaração da perda do valor dos instrumentos do crime de compra e venda de estupefacientes, ainda assim lhe é aplicável, quer porque não contraria as regras dos artigos 35.º a 39.º, quer ainda, porque assim o exigem os princípios orientadores que enformam este regime de perda de bens.
Não faria qualquer sentido, declarar perdido a favor do Estado o automóvel, a balança e o telemóvel utilizados para a prática da infracção e deixar incólume as quantias despendidas directa e necessariamente com aquisição, transporte e despesas de logística dos estupefacientes transaccionados pelos agentes.
Punir a actividade de compra e venda de estupefacientes, por um lado e, permitir, por outro, a manutenção do preço recebido com a venda do mesmo, com fundamento na tutela do direito de propriedade das quantias licitas investidas e gastas no negócio de compra e venda de estupefacientes – os instrumentos do crime - é, com o devido respeito pela opinião contrária, uma contradição nos seus precisos termos. A compra do produto estupefaciente para vender mediante um preço, não legitima, nem pode legitimar a protecção do direito de propriedade das quantias despendidas com a actividade ilícita, no sentido de serem deduzidas no preço final.
As vantagens resultantes de um crime de tráfico de estupefacientes, com a abrangência de acções objectivas ilícitas que envolve só podem incidir sobre a totalidade dos valores recebidos com a venda daqueles produtos.
Assegurar que o crime não compensa - privando, «aqueles que se dedicam ao tráfico de estupefacientes do produto das suas actividades criminosas, suprimindo, deste modo, o seu móbil ou incentivo principal e evitando, do mesmo passo, que a utilização de fortunas ilicitamente acumuladas permita a organizações criminosas transnacionais invadir, contaminar e corromper as estruturas do estado, as actividades comerciais e financeiras legitimas e a sociedade a todos os seus níveis.[38]» - é, num Estado de Direito, um principio fundamental que importa garantir, a par de outros direitos fundamentais, nomeadamente o direito de propriedade.
Tal resulta, quer dos instrumentos internacionais[39] e europeus[40], quer nacionais que regulam esta matéria, cujo pilar assenta no reconhecimento de que «o tráfico ilícito é fonte de rendimentos e fortunas consideráveis que permitem às organizações criminosas internacionais invadir, contaminar e corromper as estruturas do estado, as actividades comerciais e financeiras legitimas e a sociedade a todos os seus níveis», sendo, por isso necessário privar as pessoas que se dedicam ao tráfico ilícito dos produtos das suas actividades e (…) eliminar assim o principal incentivo para tal actividade.[41] ».
Não podemos esquecer que o confisco das vantagens do crime encontra fundamento no «propósito de prevenção da criminalidade em globo, ligada à ideia – antiga, mas nem por isso menos prezável – de que «o ‘crime’ não compensa». Ideia que se deseja reafirmar tanto sobre o concreto agente do ilícito-típico (prevenção especial individual), como nos seus reflexos sobre a sociedade no seu todo (prevenção geral), mas sem que neste último aspecto deixe de caber o reflexo do reforço da vigência da norma (prevenção geral positiva ou de integração)[42] ».
«No entanto, além destas finalidades preventivas, a este regime também está subjacente uma necessidade de restauração da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito vigente.
Um Estado de Direito não pode deixar de preocupar-se em reconstituir a situação patrimonial que existia antes de alguém através de condutas ilícitas ter adquirido vantagens patrimoniais indevidas, mesmo que estas não correspondam a um dano de alguém em concreto[43]».
Alinhamos, assim, pela posição defendida no Acórdão desta Relação de 20 de março de 2019[44], acolhidos, também, no Acórdão desta mesma Relação de 26 de abril de 2023[45] no sentido de que, «para efeitos do disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 36.º do DL 15/93, o perdimento a favor do Estado deve incidir na vantagem bruta obtida pelo agente, ancorada no Estudo do Professor Isidro Blanco Cordero[46], semelhante à seguida pelo Tribunal de Casacion Italiano, segundo o qual é necessário fazer uma distinção no apuramento do valor das vantagens: a) si el negocio del que se obtienen las ganancias es ilegal per se (por ejemplo, el tráfico de drogas), el decomiso pude recaer sobre la totalidade del valor de lo obtenido, b) Si, en cambio, solo se prohíbe penalmente la classe y forma en la que se consiguió el negocio jurídico, lo obtenido del delito en el sentido del § 73 párrafo 1 frase 1 del Código Penal son las ganancias especiales obtenídas de él (por lo tanto, las ganancias netas).».
Deste modo, com todo o respeito que nos merece a posição contrária, consideramos que, quando se prove que o agente recebeu determinado preço pela venda de estupefacientes, como é o nosso, o valor da vantagem “preço” não é aferido de acordo com o princípio do “ganho liquido”, isto é, descontadas as despesas. O valor da vantagem “preço” corresponde ao valor total do preço recebido (vantagens brutas, sem dedução de despesas), devendo este ser declarado perdido a favor do Estado.”
No caso vertente, resulta da factualidade provada, que o arguido vendeu a pessoas concretamente identificadas produtos estupefacientes, tendo destas recebido, por cada dose entregue, o respectivo preço,
Seja qual for o custo dos produtos e os encargos havidos com o negócio subjacente às vendas realizadas actividade de tráfico, nenhuma dúvida existe que o arguido integrou no seu património os ganhos obtidos com as vendas de heroína e cocaína, que, por decorrerem de uma actividade ilícita, são, por natureza, ilícitos. Tais ganhos correspondem directa e necessariamente aos montantes recebidos da actividade criminosa.
Enquanto o crime de tráfico de estupefacientes mantiver a dimensão e a amplitude previstas na Lei 15/93, cremos ser impossível conceber uma única hipótese de despesas ocasionadas com o negócio do tráfico susceptíveis de licitamente serem deduzidas no preço final. A própria natureza do crime afasta essa possibilidade.
Demonstrado que o arguido vendeu droga em contrapartida de quantias monetárias, não conseguimos vislumbrar que tipo de despesas (licitas) poderiam ser consideradas quer para o desenvolvimento da actividade de tráfico, quer para cada transacção realizada e devidamente contabilizada.
Logo, parece-nos evidente que, neste caso, os objectos, direitos e vantagens a que se refere ao artigo 36.º, do decreto lei n.º 15/93, são todas aqueles que tiverem sido directamente adquiridos pelo agente, para si ou para outrem, isto é, todas as quantias recebidas pela venda de produtos estupefacientes, independentemente dos custos existentes com a prática do crime.
Na determinação das vantagens ilícitas decorrentes da prática do delito, não há lugar ao cálculo dos lucros, do resultado liquido ou saldo final organizado numa espécie de conta-corrente de deve e haver do negócio da droga.
O valor correspondente às despesas com a prática do crime não assume qualquer relevância na quantificação das vantagens obtidas, precisamente porque são um instrumento da actividade criminosa, sem qualquer tutela jurídica, nomeadamente constitucional.
O que quer dizer que as despesas, custos, gastos ou encargos na prossecução da actividade económica do tráfico de estupefacientes não integram a categoria de direitos ou interesses legalmente protegidos, garantidos e salvaguardados no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Bem andou, assim, o tribunal recorrido, em quantificar as vantagens obtidas pelo recorrente com a prática do crime de tráfico de estupefacientes sem descontar qualquer gasto, custo ou encargos.
Esta interpretação não viola qualquer principio constitucional, mormente, o da proporcionalidade ou proibição do excesso inscrito no artigo 18.º, n. º2, da Constituição da República Portuguesa.
V. DECISÃO
Por tudo o que ficou dito, acordam os Juízes, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar não provido o recurso interposto por ….
Custas pelo arguido, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCS.
Coimbra, 10 de setembro de 2025
Alcina da Costa Ribeiro
Sara Reis Marques
Maria da Conceição Miranda
[1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, p. 221.
[2] Cavaleiro Ferreira, Curso de Direito Penal, II, p.338.
[3]Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, p. 158.
[4]Carlos Adérito Teixeira, Depoimento Indirecto e Arguido: Admissibilidade e Livre Valoração versus Proibição de Prova, Revista do CEJ, n.º 2, 1.º Semestre de 2005, p. 139.
[5] Cf. entre outros, Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, em anotação ao artigo 129.º.
[6] Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 158 e ss..
[7] Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, em anotação ao artigo 129.º, p.486.
[8] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol II, p. 131.
[9] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/01/ 2011, Processo nº 3105/00-5ª, SASTJ, nº 47,88.
[10] Simas Santos e Leal Henriques, Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, p.s. 50 e 51.
[11] Direito Processual Penal, I vol. 213.
[12] Belmiro Andrade, e-book, Da prova indirecta ou por indícios: 4. A valoração da prova no âmbito da criminalidade económico-financeira, págs. 85 e 86.
[13] Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, p. 333 e segs.
[14]João de Matos Antunes Varela e Fernando Andrade Pires de Lima, em Código Civil Anotado, volume I, p. 310.
[15]Cf. por todos, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Julho de 1990 BMJ, 399. -219; de 13 de Março de 1991, BMJ, 405 -201 e de 25 de Maio de 1994, BMJ, 437. -220.
[16] Acórdão dos Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Abril de 1996, em Colectânea de Jurisprudência dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (CJASTJ, 1998, Ano IV, Tomo 2, p.s 170 e ss)
[17] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-04-2009, Proc. n.º 3375/08 - 5.ª Secção, Sumários Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, em www.stj-pt
[18] Acórdão da Relação de Coimbra de 7 de Março de 2012.
[19] Cf. por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Julho de 1996, CJ-ASTJ, 1996, Tomo II, p. 206.
[20] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Outubro de 2008, proferido no âmbito do processo nº 08P2961.
[21] Acórdão desta Relação de 7 de Março de 2012.
[22] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Dezembro de 2005, disponível em www.pgdlisboa.pt
[23] Sobre a imprecisão e delimitação do conceito, cf., entre outros, Jorge Godinho, Brandos Costumes? O confisco penal com base na inversão do ónus da prova (Lei 5/2002), de 11 de Janeiro, artigos 1º e 7º a 12º; José M. Damião da Cunha, Perda de bens a favor do Estado; Alberto Rodrigues Duarte Nunes, A inversão do ónus da prova no tocante ao Confisco: Das vantagens provenientes da prática de crimes como instrumento de combate à criminalidade organizada; Pedro Caeiro, Sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas com o crime no confronto com outros meios de prevenção da criminalidade rediticia (em especial, os procedimentos de confisco in rem e a criminalização do enriquecimento ilícito) e João Conde Correia, Da proibição do confisco à perda alargada, INCM. Quanto a nós utilizaremos indistintamente as designações “Perda de bens ou de vantagens” e “Confisco” por representarem o mesmo conteúdo material.
[24] cf. Lei 5/2002, de 11 de janeiro, estabelece as medidas de combate à criminalidade organizada.
[25] João Conde Correia, Anotação ao Acórdão da Relação de Lisboa de 8 de outubro de 2014, in Julgar on-line
[26] Hélio Rodrigues, Gabinete de Recuperação de Activos, o que é, para que serve e como actua” Revista do CEJ, 2013, p. 71.
[27] Com a entrada em vigor da Lei 30/2007, de 30 de maio, perdeu relevância a discussão dogmática à luz da redacção anterior dos artigos 109.º a 111.º anteriores, posto que a redacção do artigo 110.º, sujeitou as categorias da perda de produtos e de vantagens ao mesmo regime.
[28] Com os limites previstos no artigo 112.º-A: 1 – Quando for determinada a substituição da perda em espécie pelo pagamento ao Estado do correspondente valor, aplicam-se os prazos de prescrição previstos para a pena ou para a medida de segurança concretamente aplicada. 2 - Nos casos em que não tenha havido lugar a aplicação de pena ou de medida de segurança, aplicam-se os prazos de prescrição previstos para o procedimento criminal.
[29] Conde Correia, Apreensão ou arresto preventivo dos proventos do crime? Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n.º 25 (2015), p. 511.
[30] No sentido de que o regime especial previsto no Decreto lei n.º 15/93 afasta o regime geral do Código Penal, cf. entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de setembro de 2000, CJ, VIII, T.III, p.177).
[31] Nos termos do artigo 35.º, na redacção anterior estatuía: «São declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infração prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública, ou ofereçam sérios riscos de serem utilizados para o cometimento de novos ilícitos típicos.».
[32]Fernando Gama Lobo, in droga, Legislação, Notas, Doutrina, Jurisprudência, Quid Juris, pág. 131.
[33]João Conde Correia, Da proibição do confisco à perda alargada, p. 80 e seguintes.
[34] Cf. a nível internacional: (i) o artigo 5.º, n.º 1, alínea a) da Convenção das nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias psicotrópicas, dispõe: que as partes adoptem medidas que se mostrem necessárias para permitir a perda: (a) de produtos provenientes de infracções estabelecidas de acordo com o n.º 1, do n.º 3, ou (b) de bens cujo valor corresponda ao valor desses produtos; (ii) o artigo 2.º da Decisão Quadro 2005/212/JAI do Conselho de 24 de fevereiro de 2005, «cada estado membro tomará as medidas necessárias que habilitem a declarar perdidos, no todo ou em parte, os instrumentos e produtos de infracções penais com pena privativa de liberdade por período superior a um ano , ou bens de valor equivalente a esses produtos e (iii) o artigo 1.º da Directiva 2014/42UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 3 de abril de 2014 (sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime da união europeia), a impor a possibilidade de substituir a perda dos instrumentos ou produtos por outros bens de valor correspondente.
[35] João Conde Correia, Apreensão ou arresto preventivo dos proventos do crime? Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n.º 25 (2015), p. 522/523.
[36] Neste sentido, vide Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal…, p. 461 e João Conde Correia, Da proibição do…, p. 89 e ss.
[37] No sentido de que o regime especial previsto no Decreto lei n.º 15/93 afasta o regime geral do Código Penal, cf. entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de setembro de 2000, CJ, VIII, T.III, p.177).
[38] Preâmbulo ao Decreto lei 15/93.
[39] Cf. a este propósito, das Nações Unidas, a Convenção Contra a Criminalidade Organizada Transnacional de 2000, aprovada pela Resolução da Assembleia da Republica n.º 32/2004, de 2 de abril, ratificada pelo decreto do Presidente da República n.º 19/2004, de 2 de abril e a Convenção Contra a Corrupção, aprovada pela Resolução da Assembleia da Republica n.º 32/2004, de 21 de setembro, ratificada pelo decreto do Presidente da República n.º 92/2007, de 21 de setembro. Na Europa, v.g, a Convenção Relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos produtos do Crime, de 1990, aprovada pela Resolução da Assembleia da Republica n.º 70/1997, de 13 dezembro, ratificada pelo decreto do Presidente da República n.º 73/1997, de 13 de dezembro,
[40] Sobre o Congelamento e a perda de instrumentos e produtos do crime da União Europeia, cf. a Directiva 2014/42/EU, do parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, sobre o Congelamento e a perda de instrumentos e produtos do crime da União Europeia, transposta para ordem nacional pela Lei n.º 30/2017 de 30 de maio e o Regulamento (UE)2018/1805 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de novembro de 2018 relativo ao reconhecimento mútuo das decisões de apreensão e perda de bens. Na doutrina, cf. Pedro Caeiro, O confisco numa perspectiva de politica criminal europeia, em Maria Raquel Desterro Ferreira/Elina Lopes Cardoso/João Conde Correia (coordenadores, O Novo regime de Recuperação de Activos á luz da Directiva 2014/14/42/UE e a Lei que a transpôs, INCM, 2018, p.333 e seguintes.
[41]Convenção contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988 Aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 29/91, de 6 de setembro, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 4/91, de 6 de setembro, que esteve na base do regime jurídico aplicável ao tráfico de estupefacientes.
[42] Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, pág. 632.
[43] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 392/2015, de 12 de agosto.
[44] Processo n.º 13/17.3GAFND.C1.
[45] Processo nº 5/21.8GCCBR.C1.
[46] Sobre EL DECOMISO DE LAS GANACIAS DE LA CORRUPCIÓN, in Revista Eletrônica de Direito Penal AIDP-GB, Ano 1, Vol. N.º 1, junho de 2013, pág. 134,