PROCESSO DE INVENTÁRIO
LIBERALIDADES DO AUTOR DA HERANÇA
REDUÇÃO POR INOFICIOSIDADE
Sumário

I - As liberalidades do autor da herança podem ser: i) liberalidades em vida - doações; ii) liberalidades por morte - legados.
II - Apesar de as coisas doadas (liberalidade em vida) não integrarem o acervo hereditário, impõe-se, no processo de inventário, a haver herdeiros legitimários, sejam objeto de relacionação para efeito de cálculo das legítimas, com redução por inoficiosidade, a ser caso disso. Inoficiosidade é a ofensa da legítima dos herdeiros legitimários por via de liberalidades do autor da herança que excedam o âmbito da sua quota disponível.
III - E os legados (liberalidades por morte) têm, também, de ser relacionados, pois que a inoficiosidade os pode, também, atingir.

Texto Integral

Processo nº 4765/23.3T8VNG.P1

Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)


Tribunal de origem do recurso: Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - ...



Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto: Des. Ana Paula Amorim
2º Adjunto: Des. Manuel Fernandes

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (elaborado pela relatora - cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

AA, interessada nos autos de Inventário, para partilha da herança aberta por óbito de BB e de CC, requerido no Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia, em 26 de janeiro de 2016, por DD e em que é Cabeça de casal EE, apresentou-se a recorrer do segmento decisório que, decidindo as reclamações à relação de bens, absolveu a cabeça de casal de aditar as doações, pretendidas por si e pelo interessado António[1], solicitando a sua revogação formulando, para tanto, as seguintes

CONCLUSÕES:

(…)

Também o Requerente António recorreu da referida decisão, solicitando a sua revogação, apresentando, para tanto, as seguintes

CONCLUSÕES:

(…)

A cabeça de casal respondeu às alegações de recurso, pugnando pela total improcedência dos recursos apresentados, concluindo, no que concerne ao legado, impor-se que o mesmo seja relacionado pois:

(…)


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De seguida o Tribunal a quo, decidindo padecer a sentença de omissão de pronúncia no que concerne às doações - artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do C.P.C. -, sanou a nulidade e reformulou a decisão[2] que passou a ter a seguinte parte dispositiva:

“Pelo exposto, decide julgar-se procedente a reclamação apresentada e consequentemente:

A. A condenar a cabeça-de-casal a reformular a relação de bens, aditando os bens a partilhar conforme acordo e conforme decisão agora proferida”.


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A Cabeça de Casal, por não concordar com a decisão que, suprindo nulidade da sentença, determinou fossem aditadas à relação de bens as referidas doações, apresentou recurso pedindo seja dado provimento ao recurso e revogada parcialmente a sentença, face à violação dos artigos 615º nº 1, al. b), 1118º e 1119º, do CPC, formulando as seguintes

CONCLUSÕES

(…)


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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o objeto dos recursos.


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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto dos recursos, tendo presente que os mesmos são balizados pelas conclusões das alegações dos recorrentes, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal. ´

Assim, as questões a decidir são as seguintes:


1- Se a sentença padece de nulidade, por vício de falta de fundamentação;
2- Da obrigatoriedade de relacionar as liberalidades: os bens doados (liberalidades em vida) e os legados (liberalidades por morte);
3- Da fixação do valor do inventário.



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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. FACTOS PROVADOS

São os seguintes os factos que, com relevância para a presente decisão, o Tribunal de 1ª instância considerou provados (transcrição):

“… 11) A inventariada outorgou testamento no dia 26/04/2002, no estado de viúva, a declarar revogar qualquer outro testamento feito e a legar à sua filha EE, por conta da quota disponível, a quantia de 200.000,00€;

12) Na escritura-pública, designada “Doações”, datada de 25/01/1979, figuram como primeiros outorgantes BB e mulher CC, assim como segunda e terceiro outorgantes AA e DD respetivamente, os primeiros a declararem que fazem as seguintes doações, com dispensa de colação:

i. À segunda outorgante, do prédio urbano constituído por um só pavimento, ocupando a superfície coberta de vinte e sete metros quadrados e logradouro com a área de vinte e quatro metros quadrados, sito no lugar ..., da mencionada freguesia ..., a confrontar de nascente com a Estrada ..., e do poente norte e sul com eles doadores, que é parte do prédio descrito na Conservatória sob o número ..., a folhas quarenta e três, verso do livro B-cento e vinte e dois, e está inscrito na matriz sob o artigo ...;

ii. Ao terceiro outorgante, do prédio urbano constituído por um só pavimento, ocupando a superfície coberta de e sete metros quadrados e logradouro com a área de vinte e quatro metros quadrados, sito no lugar ..., a confrontar de nascente com a Estrada ..., e do poente norte e sul com eles doadores, que é parte do prédio descrito na Conservatória sob o número ..., a folhas quarenta e três, verso do livro B-cento e vinte e dois, e está inscrito na matriz sob o artigo ....


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2. FACTOS NÃO PROVADOS

Considerou o Tribunal de 1ª instância que, com relevo para a decisão a proferir, resultam os seguintes factos não provados:

I. Os prédios identificados em 12) sejam algum dos prédios identificados na relação de bens[3].


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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


1. Da nulidade da decisão, por falta de fundamentação
Conclui a Cabeça de Casal, apelante, que a sentença reformulada é nula por falta de fundamentação de facto e de direito, sendo omissa quanto à admissibilidade jurídica da relacionação das doações de 1979, porquanto se limita a referir que, existindo escrituras públicas respeitantes a duas doações feitas aos interessados António e AA, há que relacionar essas doações com o exato conteúdo que consta das referidas escrituras de doação, ainda que a descrição dos imóveis doados nenhuma correspondência tenha com a realidade atual e não seja possível identificá-los, quer matricialmente, quer através do registo predial, quer mesmo através da identificação física do local onde tais imóveis se situam (rua, nº de porta, localidade…), não constando, assim, da fundamentação de direito, qualquer argumentação que justifique porque é que apesar da falta destes elementos essenciais de identificação dos imóveis doados, ainda assim essas doações devem ser incluídas na relação de bens, não sendo bastante para fundamentar tal decisão de relacionação destas doações dizer-se que as mesmas foram feitas por escritura pública.
O nº1, do art.º 615º, do Código de Processo Civil, abreviadamente CPC, diploma a que se reportam os preceitos que passamos a referir, que consagra as “Causas de nulidade da sentença”, estabelece que é nula a sentença quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão” (al. b) (negrito e sublinhado nosso).
As nulidades da sentença são, tipificados, vícios formais intrínsecos de tal peça processual, reportando-se à estrutura, à inteligibilidade e aos limites, sendo vícios do silogismo judiciário inerentes à sua formação e à harmonia formal entre as premissas e a conclusão, que não podem ser confundidas com erros de julgamento (error in judicando) de facto ou de direito[4].
E, como vícios intrínsecos daquela peça processual, as nulidades da sentença são apreciadas em função do texto da sentença e do discurso lógico que nela é desenvolvido, não podendo ser confundidas com erros de julgamento de facto nem com erros de aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento, estes, a sindicar noutro âmbito.
Os vícios da sentença são, portanto, aqueles que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer por essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”[5] ou condenar ultra petitum, tendo o julgador de limitar a condenação ao que, concretamente, vem peticionado, em obediência ao princípio do dispositivo.

Analisemos o invocado vício.
O dever de fundamentação das decisões judiciais é uma decorrência da lei fundamental (v. art. 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, abreviadamente CRP) e da lei ordinária, que se apresenta a densificá-lo (cfr. arts. 154º, n.º 1 e 615º, n.º 1, al. b)), e impõe ao juiz o dever de especificar os fundamentos de facto e de direito em que alicerça a sua decisão[6]. Tem por fim o convencimento da bondade da decisão, pois que destinando-se a decisão judicial a resolver um conflito de interesses (v. nº1, do art. 3º), esse conflito só logrará efetiva resolução com restauração da paz social se o juiz “passar de convencido a convincente”, o que apenas se conseguirá se aquele, através da fundamentação, convencer “da correção da sua decisão”[7]. É, também, requisito de salvaguarda dos direitos de ação e de defesa das partes, assegurando-lhes o conhecimento das razões do decaimento das suas pretensões com vista a, designadamente, permitir-lhes aferir da vantagem da utilização de meios para sindicar e impugnar essas decisões. E é, ainda, requisito necessário ao controle das decisões pelos tribunais superiores, pois que as instâncias superiores carecem de conhecer os concretos fundamentos de facto e de direito em que o tribunal inferior que proferiu a decisão se baseou para poderem ajuizar do bem ou mal fundado da decisão[8]. Por isso, é que em termos de matéria de facto, se impõe ao juiz a obrigação de, na sentença, discriminar os factos que considera provados e não provados, devendo, de forma clara e especificada, analisar criticamente as provas e expor os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção em relação a cada facto (art. 607º, n.ºs 3, 4 e 5), explicitando desse modo, não só a respetiva decisão como, também, os motivos que a determinaram. E em sede de fundamentação da matéria de direito, a lei faz impender sobre o juiz iguais obrigações, impondo-lhe o ónus de, na decisão, identificar as normas e os institutos jurídicos de que se socorreu e a interpretação que deles fez em sede de subsunção jurídica ao caso concreto (n.º 3 daquele art. 607º).
Assim, “ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (art. 607-3). Há nulidade (no sentido de invalidade, usado pela lei) quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão (ac. do STJ de 17.10.90, Roberto Valente, AJ, 12, p. 20…[9].

Estatuindo o artigo 154.º, do CPC, no seu n.º 1 “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas” o n.º 2 acrescenta que “A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.

Assim, “é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito … previsões que a jurisprudência tem vindo a interpretar de forma uniforme, de modo a incluir apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão (STJ 2-6-16,781/11)”.

Deste modo, importa distinguir entre erros de atividade ou de construção da sentença, geradores de nulidade a que se reporta aquele art. 615º, n.º 1, dos erros de julgamento, que apenas afetam o valor doutrinal da decisão, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada, atacáveis em via de recurso e não determinativos daquela invalidade.

A deficiente fundamentação, em que apenas se verifica uma insuficiente ou errada análise das provas produzidas ou uma indevida enunciação e interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto, não constitui omissão de fundamentação, determinativa de nulidade da sentença, mas mero erro de julgamento, atacável e sindicável em via de recurso.

E nos casos em que o vício da deficiente fundamentação se coloque ao nível da decisão sobre a matéria de facto, esse vício tem de ser solucionado mediante as regras próprias enunciadas nos n.ºs 1 e 2 do art. 662º.
No caso, a decisão fundamentada se mostra, de facto e de direito, contendo os factos provados e os não provados e a fundamentação de direito, o que pode ser aferido por uma leitura da decisão em causa, não padecendo a mesma do vício a que alude a referida al. b), do art. 615º, que apenas a absoluta falta de fundamentação se reporta, não a fundamentação escassa ou errónea, esta a apreciar em sede de erro de julgamento, o que se efetuará de seguida.
Com efeito, no que concerne ao vício apontado pela cabeça de casal, cumpre referir que, além de exarar a fundamentação de facto - cfr. facto provado nº12 – refere-se, expressamente, a fundamentar a decisão proferida “… existe prova documental bastante de os inventariados terem declarado doar aos interessados AA e António os prédios identificados em 12) dos factos provados – que mais não se trata do que uma transcrição textual” (da escritura pública), “… a sucessão por óbito de uma pessoa é o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais da pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam – artigos 2024.º e 2025.º do C.C.” … “àquele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado, sendo que “a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita” (artigo 342.º, n.os 1 e 2 do C.C.), “… a cabeça-de-casal não põe em causa,…, a escritura-pública, mas alega que desconhece que bens são esses. Ora, isso é uma questão distinta que não interfere na decisão que se profere. Assim, deve constar da presente decisão cada uma das doações – facto provado em 12) – e deve também cada uma dessas doações constar da relação de bens. Naturalmente, não como activo (imóveis) a partilhar, mas como bens doados em vida ou doações em vida. … as doações devem constar da relação de bens e que não há imóveis a retirar do activo. Qualquer litígio sobre a localização dos bens ou sua absorção por outros terá de ser discutida numa acção declarativa. Assim, a argumentação da C.C. não é sustentada”.
Fundamentada se encontra, pois, a sentença com a indicação das razões de facto e de direito a fundamentar a decisão de serem aditadas as doações, sendo que a apreciação do acerto ou não da decisão será efetuada de seguida.

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No que concerne ao vício apontado pelo apelante cumpre deixar claro que se encontra, também, fundamentada a decisão de inclusão do legado na relação de bens, não padecendo a sentença de nulidade por falta de fundamentação de facto nem de direito, em violação da alínea b) do nº1, do art. 615º do C.P.C., pois na sentença, estão indicados os fundamentos de facto (cfr. f.p. nº11) e de direito que justificam essa decisão, sendo referido: “Em relação ao legado a favor da cabeça-de-casal, por conta da quota disponível, o mesmo deve ser relacionado como decorre dos conjuntos dos artigos 1097.º, 1098.º, 1120.º, n.º 3 do C.P.C. e 2032.º do C.C. Acresce que o legado é um elemento a ter em linha de conta para o apuramento do valor total da herança e, portanto, para apuramento da quota disponível”. “Certamente que não será relacionado como activo por partilhar, mas como legado, no seguimento dos bens a partilhar. Tudo à semelhança do que acabou de se mencionar quanto às doações”.

Do acerto de tal fundamentação será apreciado de seguida.
Não padece, pois, a decisão dos apontados vícios formais, que improcedem.


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2. Da obrigatoriedade de relacionar as liberalidades: os bens doados (liberalidades em vida) e os legados (liberalidades por morte).

Pretendem os apelantes que reclamaram contra a relação de bens, o requerente do inventário e a outra herdeira, que as doações referidas no f.p. nº12 sejam relacionadas, insurgindo-se a Cabeça de Casal contra a decisão que determinou que o sejam.

Entendem, também, aqueles interessados não dever o legado, já cumprido, ser levado à relação de bens, considerando a apelada, cabeça de casal, o contrário, negando a ocorrência de cumprimento do legado.

Cumpre apreciar, in casu, da obrigatoriedade de relacionação das doações em vida e da de ser efetuada a relacionação das liberalidades para produzirem efeitos depois da morte (legado).

Comecemos por referir que a relacionação de bens no inventário alcança todos os bens móveis, imóveis, semoventes, direitos e ações, créditos e dívidas do autor da herança que desta não devam excetuar-se, inclusive, havendo herdeiros legitimários, os bens doados, compreendendo aquela genérica atribuição as benfeitorias[10].

Deste modo, e, na verdade, o cabeça de casal deve relacionar:

i) os bens em poder da herança;

ii) os bens da herança em poder de quaisquer co-herdeiros que estivessem na posse deles à data da morte do de cujus;

iii) os bens doados pelo autor da herança, havendo herdeiros legitimários[11].

O nº1, do artigo 940º, do Código Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos doravante citados sem outra referência, define doação como sendo “o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente”.

Surge, assim, a doação, desde logo, como um contrato nominado e típico, a que se aplica o regime consagrado nos artigos 940º a 979º.

Pretendem os recorrentes que se decida serem de aditar à relação de bens os doados suprarreferidos.

Consagra o nº1, do art. 2104º que “Os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação”.

O instituto da colação visa, assim, a igualação dos descendentes na partilha do de cujus, mediante a restituição fictícia à herança dos bens que foram doados em vida por este a um deles[12]. A colação é a restituição pelos descendentes, em regra pelo valor, dos bens ou valores que os ascendentes lhes doaram, constitui condição de participação na sucessão destes e visa a igualação na partilha do descendente do donatário com os demais descendentes[13].

A colação é um instituto supletivo, podendo o autor da sucessão dispensar de colação e, em caso de dispensa de colação, conclui-se que o autor da sucessão quis avantajar o descendente. Nesse caso, a imputação é feita não na sua legítima subjetiva mas, sim, na quota disponível e só se a extravasar será feita na quota indisponível[14].

Inoficiosidade é a ofensa da legítima dos herdeiros legitimários por via de liberalidades do autor da herança que excedam o âmbito da sua quota disponível, sendo a mesma suscetível de abranger as que ocorram entre vivos - doações - ou por morte – legados[15].
Como se explica no referido Acórdão do STJ de 3/11/2015, processo 05B3239, “Legítima é, na expressão da lei, a porção de bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários (artigo 2156º). É uma reserva hereditária, designada por quota legítima ou legitimária, que a lei estabelece a favor dos herdeiros legitimários, por isso fora do poder de disposição do autor da herança, variável em função do vínculo dos herdeiros em relação a ele, do seu número e da respectiva posição jurídica (artigo 2027º).
A legítima do cônjuge e dos filhos, em caso de concurso, é de dois terços da herança, e, não havendo cônjuge sobrevivo, a legítima dos filhos é de metade ou dois terços da herança, conforme exista um só filho ou existam dois ou mais (artigo 2159º).

Para o cálculo da legítima - e da quota disponível - deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança (artigo 2162º).

Assim, a herança para efeitos do cálculo da legítima compreende, além do mais que aqui não releva, os bens existentes no património do de cujus à data do seu decesso e os que daquele foram distraídos em vida do autor da sucessão por via de doação.

Entre os herdeiros legítimos contam-se o cônjuge e os parentes, são chamados em primeiro lugar o cônjuge e os descendentes, estes preferem às classes imediatas e, dentro de cada uma, os parentes de grau mais próximo preferem aos de grau mais afastado e os de cada classe, em regra, sucedem por cabeça, em partes iguais (artigos 2132º e 2133º, nº 1, alínea a), 2134º, 2135º e 2136º).

A partilha entre o cônjuge e os filhos faz-se por cabeça, dividindo-se a herança em tantas partes quantos forem os herdeiros; mas a quota do cônjuge não pode ser inferior a uma quarta parte da herança; e se o autor da sucessão não deixar cônjuge sobrevivo, a herança divide-se pelos filhos em partes iguais (artigo 2139º).

A proteção legal da quota legítima dos herdeiros legitimários é estabelecida, além do mais, na lei por via do normativo que qualifica de inoficiosas as liberalidades entre vivos ou por morte que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários (artigo 2168º).

Assim, a inoficiosidade consubstancia-se na ofensa da legítima dos herdeiros legitimários por via de liberalidades do autor da herança que excedam o âmbito da sua quota disponível, sendo susceptível de abranger as que ocorram entre vivos, como é o caso das doações, ou por morte, como é o caso dos legados (artigo 2168º).

Em concretização da mencionada protecção, prescreve a lei que as liberalidades inoficiosas são redutíveis, a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida (artigo 2169º).

Assim, a sanção de redução aplicável às liberalidades inoficiosas não é oficiosa, certo que só é susceptível de operar a requerimento dos herdeiros legitimários que sejam afectados.

A referida redução abrange, em primeiro lugar, as disposições testamentárias a título de herança, em segundo lugar os legados e, por último, as liberalidades que hajam sido feitas em vida do autor da sucessão (artigo 2171º )”[16].

Cumpre, assim, ao cabeça de casal relacionar todos os bens da herança que hão de figurar no inventário, ainda que a respetiva administração lhe não pertença, compreendendo-se no acervo hereditário todos os bens, direitos e obrigações que não sejam considerados intransmissíveis que o inventariado possuía ao tempo do seu falecimento. Sendo a regra geral que resulta da noção de sucessão, constante do artigo 2024º, a de que todos os bens pertencentes à herança, e só esses, devem ser relacionados, e daí que o não deveriam ser, em princípio, os bens doados em vida pelo de cujus, porquanto, à data do seu óbito, já não se encontravam na respetiva titularidade, não sendo, portanto, objeto de sucessão mortis causa, a primeira questão que se coloca é a de saber se as doações em causa, efetuadas a filhos, devem ser objeto de relacionação.

Porque importa preservar a observância das quotas disponíveis e a igualação da partilha, é necessário, no processo de inventário, organizar uma relação de bens doados, sendo caso disso, que, não fazendo já parte da herança, são relacionados, exclusivamente, com vista à eventual redução por inoficiosidade ou à mera igualação da partilha, aplicando-se, para o efeito, na falta de disposição específica quanto aos bens doados, as regras próprias da relação de bens da herança[17].

Dispensar a colação ou doar por conta da quota disponível são afirmações que se equivalem, havendo, nesse caso, apenas que considerar a redução por inoficiosidade. Apesar de poder haver dispensa de colação e não obstante verbas doadas não integrarem o acervo hereditário, a respetiva integração na relação de bens em inventário é necessária a fim de verificar a eventual inoficiosidade das doações e prevenir a ofensa do interessado não beneficiado”.[18]

Sendo, assim, na verdade, de relacionar, no processo de inventário, os bens doados tem de improceder o recurso da cabeça de casal, improcedendo, também os recursos dos restantes interessados, por os bens, comprovadamente, legados terem, também eles, de ser considerados.
Como ficou já claro, a existência de herdeiros legitimários implica a obrigatoriedade de relacionar os bens que o inventariado doou, quer para efeitos de colação quer com vista ao apuramento de inoficiosidade[19] e a lei manda considerá-los pelo valor que tiverem à data da abertura da sucessão (nº1, do art. 2109º) ou estimá-los pelo valor que teriam à data da abertura da sucessão se não tivessem perecido, sido consumidos ou alienados (nº2, do art. 2109º).
“Neste último caso cumprirá relacionar os próprios bens em poder de quem estejam, na certeza de que, subsistindo o registo do ónus da colação, vêm ao processo para aí se sujeitarem ao regime que a lei estabelece, com o adquirente deles a substituir o donatário no exercício dos respetivos direitos e obrigações; e, inexistindo tal registo, o chamamento dos bens alienados ao inventário tem por fim facilitar e possibilitar a determinação do respectivo valor para, em face deste, se apurar da inoficiosidade.
Nos demais casos (perecimento e consumpção), a relacionação é meramente simbólica, pois alcança tão só o objetivo de lhes fixar a natureza, qualidades e … para, através de bens equivalentes existentes no mercado ao tempo da abertura da herança, se lhes fixar o valor com vista à integridade das legítimas”[20].
Certo sendo que os bens doados não existiam já na esfera jurídica dos inventariados, aquando da abertura da sucessão, consagrando, contudo, o art. 2031º que “a sucessão abre-se no momento da morte do seu autor”, temos que, na verdade, dispõe o art. 2109º, sob a epígrafe “Valor dos bens doados”, que:
“1- O valor dos bens doados é o que eles tiverem à data da abertura da sucessão.
2 - Se tiverem sido doados bens que o donatário consumiu, alienou ou onerou, ou que pereceram por sua culpa, atende-se ao valor que esses bens teriam na data da abertura da sucessão, se não fossem consumidos, alienados ou onerados, ou não tivessem perecido”
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Devem, pois, ser levados à relação de bens os bens doados com o valor que teriam na referida data.
“Afirmam Pires de Lima/Antunes Varela, em anotação ao artº. 2109º do Código Civil que “No nº. 2 prevê a lei os casos relativamente frequentes em que o donatário tenha consumido, alienado ou onerado os bens que lhe foram doados, bem como o caso em que estes bens tenham perecido por culpa dele.
Em todos estes casos, a lei, fiel ao mesmo critério que enuncia no nº. 1, manda considerar relevante o valor que os bens doados teriam à data da abertura da sucessão, se não tivessem sido consumidos, alienados ou onerados, ou não tivessem perecido.” – Código Civil Anotado, Volume VI, ano 1998, pág. 183.

Assim, mandando a lei estimar os bens doados pelo valor que teriam à data da abertura da sucessão se não tivessem alterados, o valor a considerar para os bens doados é o que teriam à data da abertura da sucessão.

Neste sentido, conforme à lei e à orientação da Doutrina, se orienta uniformemente a jurisprudência – cfr., designadamente os Acórdãos da Relação de Guimarães de 19/3/2013: Processo 577/04.1TBEPS-A.G1[21] e de 29/3/2012:Processo 181/07.2TBAMR.G1, este onde se refere “Em processo de inventário, os bens doados, ainda que com dispensa de colação, têm de ser descritos, para efeito de cálculo da legítima, pelo valor que tiverem à data da abertura da sucessão (art. 2109º, 1). Relativamente às benfeitorias feitas pelo donatário nos bens doados (nem todas, mas somente as necessárias e as úteis que não seja possível levantar sem detrimento da coisa) cabe também ao cabeça-de-casal relacioná-las pois têm de ser avaliadas e descontadas no valor desses bens. Tendo as benfeitorias sido feitas por donatário em bens que lhe foram doados pelo inventariado, não lhes é aplicável o regime do art. 1345º, nº5 do CPC, pois o donatário não é terceiro em relação à herança (Ac. da RG de 29/3/2012:Proc.181/07.2TBAMR.G1.dgsi.Net)”[22].

Assim se decidiu, também, no Ac. do TRG de 14/6/2018, onde se considerou:

1- Não obstante as coisas doadas não integrarem o acervo hereditário devem, no processo de inventário, havendo herdeiros legitimários, ser objeto de relacionação, com o objetivo de lhes ser fixada a natureza, qualidades e valor, para efeitos de cálculo das legítimas e com vista à sua integralidade, com eventual redução, por inoficiosidade, ou à mera igualação da partilha;
2- Doados a descendentes prédios rústicos, que à data da morte do inventariado eram urbanos, têm os mesmos de ser relacionados com a natureza e o valor que tiverem à data da morte do inventariado (momento de abertura da sucessão) – cfr. artigos 2109º nº1 e 2 e 2031º, do Código Civil;
3- Sendo o valor dos bens doados o que eles tiverem à data da abertura da sucessão – artº. 2109º, do Código Civil -, nele não se compreende a valorização económica resultante das benfeitorias, sendo, por isso, dever do cabeça de casal relacionar as benfeitorias necessárias e as úteis feitas pelo donatário nos bens doados, para que o seu valor seja descontado no valor daqueles bens”[23], decisão esta que aqui seguimos.

Assim, bem decidiu o Tribunal a quo quando determinou fossem relacionadas as liberalidades (doações e legado).

Vejamos.

Pretende a Cabeça de Casal a revogação da decisão que determinou o aditamento das doações à relação de bens com o fundamento de não ser possível identificar os imóveis doados. Ora, como decidiu o Tribunal a quo, provadas se mostram as doações em causa e não podem as mesmas deixar de ser relacionadas. Na verdade, provado se encontra que:

12) Na escritura-pública, designada “Doações”, datada de 25/01/1979, figuram como primeiros outorgantes BB e mulher CC, assim como segunda e terceiro outorgantes AA e DD respetivamente, os primeiros a declararem que fazem as seguintes doações, com dispensa de colação: i. À segunda outorgante, do prédio urbano constituído por um só pavimento, ocupando a superfície coberta de vinte e sete metros quadrados e logradouro com a área de vinte e quatro metros quadrados, sito no lugar ..., da mencionada freguesia ..., a confrontar de nascente com a Estrada ..., e do poente norte e sul com eles doadores, que é parte do prédio descrito na Conservatória sob o número ..., a folhas quarenta e três, verso do livro B-cento e vinte e dois, e está inscrito na matriz sob o artigo ...; ii. Ao terceiro outorgante, do prédio urbano constituído por um só pavimento, ocupando a superfície coberta de e sete metros quadrados e logradouro com a área de vinte e quatro metros quadrados, sito no lugar ..., a confrontar de nascente com a Estrada ..., e do poente norte e sul com eles doadores, que é parte do prédio descrito na Conservatória sob o número ..., a folhas quarenta e três, verso do livro B-cento e vinte e dois, e está inscrito na matriz sob o artigo ...”, tendo resultado não provado que os identificados prédios sejam alguns dos mencionados na relação de bens.

Deste modo, provadas se mostrando as declarações dos contraentes, por documento com força probatória plena, têm as doações, comprovadas pela escritura pública, de constar, como tal, da relação de bens.

E não há que retirar qualquer imóvel do ativo, face ao facto que resultou não provado, não cabendo, no recurso, resolver questões novas, não colocadas em 1ª instância nem aí objeto de decisão.

O documento autêntico, ao qual não foi oposta falsidade, faz prova plena dos factos nele referidos como praticados pelo notário, assim como dos factos que nele são atestados com base nas perceções deste (cfr. artigo 371.º, nº 1 do CCivil)[24].

Assim, tendo as doações sido efetuadas por escritura pública há que as relacionar com o exato conteúdo que dessa escritura consta, pois que as doações, comprovadas, e que, como vimos têm, obrigatoriamente, de ser relacionadas, foram essas e não outras. Os bens doados são os identificados nas escrituras públicas em causa, sendo precisamente essas doações aos reclamantes DD e AA que cabe aditar, com os elementos constantes de tais escrituras (embora tudo aponte, e de modo ostensivo, para que as liberalidades - doações e legado - em nada ofendam as legítimas dos herdeiros legitimários).

Não se desconhecem, pois, os prédios doados pelos inventariados, antes outros não são senão os referidos, como tal, na escritura pública.

Quanto à liberalidade para após morte, que o requerente do inventário e a outra interessada apelante pretendem se não relacione, a cabeça de casal declarou a existência do testamento outorgado pela inventariada CC, em 26/04/2002, no extinto Segundo Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia, iniciado a fls 47 verso do livro próprio de nº 169-T, no qual a testadora fez um legado (legou por conta da quota disponível à sua filha EE a importância de duzentos mil euros) e desse testamento, junto aos autos, a fls 26-27, tiveram os herdeiros António e AA conhecimento logo que notificados das declarações de cabeça de casal, nunca puseram em causa a existência ou autenticidade de tal testamento tendo o referido legado, comprovado pela cabeça de casal, de ser, como vimos, relacionado, tendo de ser considerado no inventário.

Afirmada a referida liberalidade e comprovada nos autos, tem a mesma de ser relacionada, como bem decidiu o Tribunal a quo.

Acresce referir que a questão do cumprimento do legado, a ter de ser fundadamente colocada em 1ª instância, a ser o caso, sendo este um tribunal de recurso, tinha de ser densificada e comprovada pelos reclamantes, a quem cabia o ónus de alegação e da prova dos factos alegados. E incumbindo aos referidos interessados o ónus de alegação e da prova, não o logrando observar, sempre têm as conclusões da apelação de improceder, sendo que mesmo que o legado já tivesse sido cumprido, ainda assim estaria sujeito à sua relacionação para, como vimos, se apurar da sua, eventual, redução por inoficiosidade.


*


3- Da fixação do valor ao inventário

Entendeu o Tribunal a quo ser de fixar, desde logo, o valor da causa e fê-lo da seguinte forma, diversamente do indicado pelo requerente, ora apelante, que atribuiu o valor de 1000 €:

“Nos termos do artigo 302.º, n.º 3 do C.P.C., o valor do inventário corresponde à soma dos valores dos bens a partilhar.

Nos autos está indicado o valor de 1.000,00€, o que se tratará certamente de um lapso, já que da simples leitura da relação de bens – independentemente do incidente de reclamação à relação de bens e eventuais avaliações – é possível percepcionar que o valor do inventário, à data da usa instauração, não era inferior a 1.146.958,39€.

Dessa feita, sem prejuízo de ulterior rectificação decorrente de avaliações ou licitações, determina-se a actualização do valor dos autos para 1.146.958,39€”.

Ora, ficando postergada para momento posterior a decisão do juiz relativa à fixação do valor da causa, em diversas situações, “principalmente quando se anteveja que o valor a fixar à causa possa ter implicações …, será conveniente que o juiz, à luz do princípio da adequação formal (art. 547º), profira decisão acerca do valor da causa assim que findem os articulados, desde logo para assegurar o efeito útil à previsão contida no art. 310º acerca das consequências da decisão do incidente”[25].

Tinha, pois, na consideração do disposto no nº3, do art. 306º, do CPC, o tribunal de fixar o valor da causa, dada a interposição do recurso.

E, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes, cabe ao juiz fixar o valor da causa, sendo que o indicado pelo requerente certamente o foi por lapso.

Na verdade, não pode deixar de se considerar erro (a não se entender má-fé) na indicação do valor – € 1000,00 -, sendo o requerente, como revela, conhecedor da realidade dos bens a partilhar e bem entendeu o Tribunal a quo não ser de atender ao valor, manifestamente errado, quando, ostensivamente, resulta ser possível percecionar que o valor dos bens a partilhar no inventário, à data da sua instauração, era, seguramente, não inferior a 1.146.958,39 €, o que transparece da própria reclamação e das alegações de recurso.

Assim, também quanto a esta questão, e face ao que dispõem os nº1 e 3, do art. 306º, o nº3, do art. 302º e o nº4, do art. 299º, do CPC, mantém-se o valor fixado, não se aceitando o indicado, por desajustado, sendo que o valor do inventário será, ainda, objeto de correção, como o Tribunal a quo deixou claro, quando a utilidade económica estiver totalmente definida (v. referidos nº4, do art. 299º e nº3, do art. 302º, ambos do CPC).

Improcedem, por conseguinte, as conclusões de todas as apelações, não ocorrendo a violação dos normativos invocados pelos apelantes, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.


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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar as apelações totalmente improcedentes e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.


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Custas de cada um dos recursos pelo respetivo apelante, pois que cada um deles ficou vencido – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 15 de setembro de 2025

Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores

Eugénia Cunha

Ana Paula Amorim

Manuel Domingos Fernandes

______________________
[1] Tem a decisão a seguinte parte dispositiva:
“Pelo exposto, decide julgar-se parcialmente procedente a reclamação apresentada e consequentemente:
A. A condenar a cabeça-de-casal a reformular a relação de bens, aditando os bens a partilhar conforme acordo e decisão agora proferida;
B. Absolver a cabeça-de-casal de aditar as doações peticionadas aos reclamantes DD e AA”.
[2]Tendo o seguinte teor:
Nos presentes autos de inventário para partilha da herança aberta por óbito de BB e de CC, a cabeça-de-casal EE apresentou a relação de bens que consta de folhas 33 verso e seguintes - referência 449236931 de 03/05/2016.
A interessada AA acusou a omissão da identificação dos bens objecto da doação outorgada a 25/01/1979 – referência 449236910 de 07/10/2016, folhas 163 a 166.
O interessado DD deduziu incidente de reclamação à relação de bens – conforme requerimento de folhas 167 e seguintes/referência 449236909 de 08/10/2016, alegando que: a) A descrição da verba n.º 6 do activo não corresponde à realidade material, já que se trata “de uma habitação com rés-do-chão, 1.º andar e 2.º andar, ou seja, com três pavimentos e não dois como descrito”; b) A relação de bens é omissa quanto aos bens que foram doados ao reclamante e à interessada AA, não especificando, contudo, quais os bens e qual o contexto da doação; c) A relação de bens é omissa quanto aos rendimentos prediais, sem, contudo, identificar quais; Mais alega, desconhecimento d) Dos valores existentes, quer em numerário, quer nas contas bancárias dos inventariados; e) Se os valores depositados são apenas os mencionados nas verbas n.º 1 e 2 do activo da relação de bens;
O reclamante não indica prova, apenas requer que se oficie ao Banco de Portugal informação sobre os saldos bancários.
Por usa vez, a cabeça-de-casal apresentou resposta à reclamação, conforme – referência 449236901 de 20/02/2017/folhas 176 e seguintes -, aí se pronunciando nos seguintes termos: a) Descrição da verba n.º 6 - deverá ser requerida a actualização do prédio na Autoridade Tributária; b) Desconhece a existência de doação dos inventariados ao reclamante e à interessada AA; c) Desconhece a existência de crédito proveniente dos rendimentos prediais; d) Existir testamento outorgado pelo inventariado BB, que deverá ser aditado à relação de bens.
Os autos prosseguiram, tendo a cabeça-de-casal junto no dia 19/12/2017 (referência 449236890) documentos respeitantes aos bens doados pelos inventariados – folhas 206 e seguintes.
Está junta aos autos rectificação da relação de bens pela cabeça-de-casal - requerimento de 16/09/2020, referência 449236858/folhas 248 verso.
Posteriormente, a cabeça-de-casal alegou ainda que as doações outorgadas não foram registadas e já não existem, pelo que não podem ser relacionadas - referência 449236827 de 26/04/2022. Requereu o aditamento à relação de bens de um legado - referência 449236828 de 26/04/2022.
Requerida a remessa do processo do Cartório Notarial a este Tribunal, foi tal remessa determinada, conforme despacho de 25/05/2023. (…)
Com relevo para a boa decisão do incidente, apuram-se seguintes factos:
(…)
Como é consabido, a sucessão por óbito de uma pessoa é o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais da pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam – artigos 2024.º e 2025.º do C.C.
De outra banda, “as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos” (artigo 341.º do C.C.).
Assim,“àquele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado, sendo que “a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita” (art. 342.º, n.os 1 e 2 do C.C.).
Para além do ónus de alegação, decorrente do princípio do dispositivo, à parte impõe-se o ónus da prova do facto visado. Deste modo, cada uma das partes tem o ónus de provar os factos que constituem pressupostos da aplicação das normas que lhe são favoráveis.
(…)  No que respeita às doações. 
Efectivamente, a sentença era omissa, quer na fundamentação de facto, quer na fundamentação de direito, quanto às alegadas doações outorgada no ano de 1975. A sentença referia-se (quanto a nós, de forma imprecisa – reconhecemo-lo) genericamente a doações feitas aos reclamantes António e AA.
Posto isto, é procedente a reclamação respeitante às doações de 1975. Questão que na verdade é essencialmente jurídica, já que a cabeça-de-casal não põe em causa, porque não pode de todo, a escritura-pública, mas alega que desconhece que bens são esses. Ora, isso é uma questão distinta que não interfere na decisão que se profere.
Assim, deve constar da presente decisão cada uma das doações – facto provado em 12) – e deve também cada uma dessas doações constar da relação de bens. Naturalmente, não como activo (imóveis) a partilhar, mas como bens doados em vida ou doações em vida.
Circunstância, aliás, que torna a partilha mais transparente e certamente mais justa.
Aqui chegados, importa então reformular as conclusões oportunamente retiradas. Com excepção do exposto, não se demonstrou a existência de um ou outro imóvel na relação de bens que coincida com os identificados na relação de bens. Reforça-se, por isso, que as doações devem constar da relação de bens e que não há imóveis a retirar do activo. Qualquer litígio sobre a localização dos bens ou sua absorção por outros terá de ser discutida numa acção declarativa. Assim, a argumentação da C.C. não é sustentada.(…)
[3] Fundamenta o Tribunal a quo a sua convicção: 
A Convicção do Tribunal decorre … dos documentos juntos aos autos – Factos … 12).
Neste segundo caso, os documentos atendidos são os já enunciados no elenco dos factos provados, … , o testamento outorgado pela inventariada referência 449236936 (05/04/2016) e a escritura (certidão) de “Doações” junta como (reclamação de despesa) – referência 449236910 de 07/10/2016.
Da análise dos documentos em apreço decorrem os factos apurados, mas também o afastamento da factualidade que se tem como não demonstrada.
Com efeito, existe prova documental bastante de os inventariados terem declarado doar aos interessados AA e António os prédios identificados em 12) dos factos provados – que mais não se trata do que uma transcrição textual. Inexiste prova de qualquer outra doação verbal ou escrita dos prédios em litígio (relacionados no activo da herança) e que ainda façam parte do acervo hereditário.
Verifica-se sim, em relação ao prédio urbano descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...90, que após o registo da aquisição do prédio a favor dos inventariados foi registada a aquisição por sucessão hereditária pela inventariada e os seus filhos, todos herdeiros do inventaria falecido em 1996.”.
[4] Cfr., entre muitos, Ac. do STJ de 1/4/2014, Proc. 360/09: Sumários, Abril /2014, e Ac. da RE de 3/11/2016, Proc. 1070/13, in dgsi.Net.
[5] Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.
[6] Ac. Rel de Évora  de 3/11/2016, Proc. 1774/13.4TBLLE.E1.dgsi.net, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª ed., Março/2017, pág. 922
[7] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348.
[8] Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 332.
[9]  José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 735
[10] João Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 4ª edição, volume I, Almedina pág 429 e segs.
[11] Abílio Neto, Direito das Sucessões e Processo de Inventário Anotado, Outubro/2017, Ediforum, pág 754
[12] Ac. da Relação de Lisboa de 2/7/2009, processo 11687/06.0TBOER-A.L1-8, acessível in dgsi.net
[13] Acórdão do STJ de 3/11/2015, processo 05B3239, acessível in dgsi.net
[14] Ana Prata (Coord.), Código Civil Anotado, volume II, 2017, Almedina, pág. 1019
[15] Referido Acórdão do STJ de 3/11/2015
[16] Referido Acórdão do STJ de 3/11/2015.
[17] Ac. da Relação de Coimbra de 11/5/2004, processo 1201/04, acessível in dgsi.net (Relator: Senhor Juiz Desembargador Hélder Roque), onde se refere Não obstante o bem doado estar sujeito a colação em valor, deverá ser objecto de relacionação separada, exclusivamente, com vista à eventual redução por inoficiosidade ou à mera igualação da partilha. Também no Acórdão da Relação do Porto de 27/1/2015, processo 2727/09.2TBVCD-A.P1, acessível in dgsi.net, se decidiu que não obstante as doações manuais e as doações remuneratórias se presumirem dispensadas de colação quer umas, quer outras, devem ser relacionadas para efeitos de cálculo da legítima.
[18] Acórdão da Relação do Porto de 22/4/2008, processo 0822226, , acessível in dgsi.net
[19] A referida posição da Doutrina é também uniforme na Jurisprudência – cfr Ac da Relação de Guimarães de 30/5/2013, processo 2894/09.5TBVCT-A.G1, disponível in dgsi.net, onde se decidiu “Salvaguardado o preceituado nos arts. 2110º, nº 2 e 2113º, nºs 1 e 3, ambos do CC, está sujeito a colação tudo quanto o falecido tiver despendido gratuitamente em proveito dos descendentes. Deve por isso ser relacionado no processo de inventário, o prédio que a falecida doou a dois dos seus filhos, ainda que um deles tenha registado a seu favor uma parcela desse prédio na sequência de escritura de justificação notarial”.
[20] João Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 4ª edição, volume I, Almedina pág 447 e seg.
[21]Cfr. Ac. da Rel. de Guimarães de 19/3/2013: Processo 577/04.1TBEPS-A.G1, in dgsi.Net onde se refere “O valor dos bens doados é o que eles tiverem à data da abertura da sucessão – artº. 2109º, do CC-  e, por isso, nele se não compreende a valorização económica resultante das benfeitorias. É dever do cabeça de casal relacionar as benfeitorias úteis e as necessárias (não já as voluptuárias) feitas pelo donatário nos bens doados, já que têm de ser avaliadas para que o seu valor seja descontado no valor daqueles bens”.
[22] Ibidem, pág 779.
[23] Ac. do TRG de 14/6/2018, proc. 156/07.1TBMDR.G1, relatado pela ora relatora, acessível in dgsi.pt.
[24] Ac. da RP de 22/4/2024, proc. 604/23.3T8VLG.P1(Relator o Sr. Desembargador ora 2º adjunto)
[25] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, pág. 377