RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA
LEGITIMIDADE ATIVA
Sumário

I – A legitimidade ativa para, nos termos do art. 123º do CIRE, proceder à resolução em benefício da massa insolvente de atos de transmissão de bens incumbe ao administrador da insolvência.
II – Se a carta, enviada com essa finalidade, não é subscrita pelo administrador da insolvência, mas sim por uma advogada que em parte alguma da mesma refere a qualidade em que a subscreve, não resultando dos autos que tenha poderes para a subscrever na qualidade de patrona nomeada à massa insolvente, não lhe pode ser conferida eficácia resolutiva.

Texto Integral

Proc. nº 437/24.0T8AMT-J.P1

Comarca do Porto Este – Juízo de Comércio de Amarante – Juiz 3

Apelação

Recorrente: “A..., Unipessoal Lda.”

Recorrida: Massa Insolvente da B..., Unipessoal Lda.

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadoras Alexandra Pelayo e Maria Eiró

Acordam na secção cível do Tribunal de Relação do Porto:

RELATÓRIO

A autora “A..., Unipessoal Lda.”, com sede na Rua ..., ..., ..., veio, ao abrigo do disposto no art. 125º do Cód. da Insolvência e da Recuperação de Empresas [doravante CIRE] e por apenso ao processo de insolvência acima identificado, propor ação de impugnação de resolução de negócio em benefício da massa insolvente.

Formulou os seguintes pedidos:

- Que se reconheça a ineficácia da comunicação da resolução recebida pela autora e, assim, sem qualquer efeito quanto à compra de bens por ela efetuada à insolvente;

- Subsidiariamente, e para o caso de assim não se entender, que se reconheça que não se encontram verificados os pressupostos previstos nos arts. 120º e 121º do CIRE, obstando-se à resolução da compra e venda da autora à insolvente titulada pela fatura ... por esta última emitida;

- Subsidiariamente, e caso viesse a ser declarado resolvido o negócio da autora, a Massa Insolvente teria de proceder à devolução do valor que foi pago à Insolvente, na quantia de 3.843,75€.

A ré Massa Insolvente de B..., Unipessoal, Lda. apresentou contestação, pronunciando-se no sentido da improcedência da ação e do consequente reconhecimento da resolução do negócio em benefício da massa insolvente.

Foi depois proferida decisão que, em primeiro lugar, considerou não ter caducado o direito potestativo de resolução relativamente ao contrato de compra e venda de móveis a que se refere a FAT ... e determinou, nessa parte, o prosseguimento dos autos de modo a apurar da ineficácia ou da invalidade dessa resolução.

Na parte restante, julgou-se parcialmente procedente a impugnação apresentada pela autora e, em consequência, declarou-se ineficaz a resolução efetuada quanto à venda de “sete viaturas”/negócio vertido na FAT 2024/41.

Inconformada com o decidido no segmento atinente ao prosseguimento dos autos, interpôs recurso a autora, que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. A comunicação recebida pela Recorrente no dia 25 de setembro de 2024 por carta datada do dia 23 do mesmo mês, assinada pela Exma. Sr.ª Dr.ª AA, deverá ser declarada ineficaz e,

2. Deve, ainda, ser declarado caducado o direito do Administrador de Insolvência resolver o negócio referente à fatura ... emitida pela Insolvente à Recorrente.

Efetivamente,

3. A referida comunicação recebida pela Recorrente não foi efetuada por quem tinha o poder de a efetuar, que é o Administrador de Insolvência, nos termos do número 1 do artigo 123º do CIRE.

4. Essa comunicação foi efetuada por pessoa estranha à Recorrente, não veio acompanhada de qualquer procuração ou mandato nem, no seu teor, a signatária se identifica como mandatária da massa insolvente ou do Administrador. Aliás,

5. Nessa comunicação, a signatária identifica-se precisamente como Administrador de Insolvência que, confessadamente, não é. Por conseguinte,

6. Essa comunicação é ineficaz e assim deve ser declarada. Neste sentido,

7. Mal andou o Tribunal a quo ao considerar lícita tal comunicação.

8. O despacho proferido viola pois o disposto no número 1 do artigo 123º do CIRE, devendo por isso ser revogado e substituído por outro que determine i) a ineficácia da comunicação efetuada à Recorrente e, ii) a caducidade do direito da massa insolvente a resolver o citado negócio.

Nestes termos, requer a Vossas Excelências se dignem revogar o despacho proferido no que à apreciação da ineficácia e caducidade da comunicação recebida pela Recorrente a 25 de setembro de 2024 diz respeito, substituindo por outro que determine i) a ineficácia da comunicação efetuada à Recorrente e, ii) a caducidade do direito da massa insolvente a resolver o citado negócio.

Não consta dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido como apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.

Cumpre, então, apreciar e decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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A questão a decidir é a seguinte:

Apurar se a carta remetida à autora/recorrente, datada de 23.9.2024, subscrita pela Sr.ª Dr.ª AA – e não pelo Sr. Administrador da Insolvência – pode operar a resolução em benefício da massa insolvente dos atos de transmissão de bens a que se referem as faturas ... e ....


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Para além do que consta do antecedente relatório, para a decisão do presente recurso, teremos ainda em atenção os seguintes elementos processuais e factuais resultantes dos autos[1]:

1. O texto da decisão recorrida, na parte relevante, é o seguinte:

“(…)

Comece-se por dizer que a comunicação da resolução prevista no art. 123.º do CIRE não tem de ser efetuada pela mão física do AI nomeado nos autos, podendo sê-lo pela mão jurídica de Advogado constituído com procuração junta aos autos ou por nomeação de Patrono, como acontece no caso em apreço.

Por outra parte, o facto de na carta de resolução constarem imprecisões tais como a menção de ter sido nomeado como Administrador de Insolvência o “ora signatário”, quando a carta de resolução foi enviada pela II. Advogada nomeada como patrona nos autos, a menção de a insolvência ter sido [por] apresentação quando na verdade a insolvência foi requerida por credor são meras irregularidades sem repercussão no entendimento e defesa dos interesses da A..

Importa acrescentar que, apesar de não terem sido enviados documentos com a carta de resolução enviada em 23/09/2024, designadamente, a sentença que decretou a insolvência nem a ... sujeita a resolução, não impediu a A. de perceber e se defender, já que foi apresentada informação quanto à identidade da pessoa declarada insolvente, nº de processo, de tal forma que a demandante apresentou a competente impugnação de resolução, tendo tido anterior contacto com o AI nomeado do processo de insolvência em Julho de 2024, como a própria refere.

Não padece a comunicação da resolução respeitante ao negócio a que se refere a ..., de 19/03/2024, no valor de €3.843,75 (bens móveis) de qualquer nulidade ou outro vicio, importando apenas apurar em audiência de julgamento se se verificam os pressupostos desse ato de resolução.

(…)”.

2. A “B..., Unipessoal, Lda.” foi declarada insolvente por sentença proferida em 18.4.2024, tendo sido nomeado administrador da insolvência o Sr. Dr. BB.

3. A carta com vista à resolução em benefício da massa insolvente dos atos de transmissão de bens a que se referem as faturas ... e ..., datada de 23.9.2024, mostra-se subscrita pela Sr.ª Dr.ª AA.

4. A insolvente “B..., Unipessoal, Lda.”, em 11.3.2023, constituiu sua mandatária a Sr.ª Dr.ª CC, que substabeleceu sem reserva os poderes que lhe tinham sido conferidos, em 5.12.2024, no Sr. Dr. DD.

5. Em 16.9.2024, a Sr.ª Dr.ª AA foi nomeada patrona à insolvente “B..., Unipessoal, Lda.”.

6. Em 23.9.2024, a Sr.ª Dr.ª AA enviou carta à Ordem dos Advogados – Delegação de ... – a solicitar a retificação desta nomeação, tendo escrito o seguinte:

“Acontece, que há erro na nomeação da vossa parte por quanto a insolvente tem mandatária constituída e o que foi requerido pelo A.I. foi apoio judiciário com nomeação de patrono à Massa Insolvente para resolução de negócio em benefício da massa.

Pelo que se requer, a V. Ex.ª, que verifiquem o erro e/ou lapso, supra referido e procedam à sua retificação em conformidade com o requerido.”

7. Em 15.10.2024 a Sr.ª Dr.ª AA foi nomeada patrona da Massa Insolvente da B..., Unipessoal Lda., tendo-se consignado na comunicação da Ordem dos Advogados que o apoio judiciário foi pedido para efeitos de “Insolvência pessoa colectiva (Requerida)”.


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Passemos à apreciação do mérito do recurso.

1. A autora/recorrente, nas suas alegações, pugna pela ineficácia da comunicação efetuada pela Sr.ª Dr.ª AA, através de carta datada de 23.9.2024, com vista à resolução em benefício da massa de atos de transmissão de bens efetuados pela insolvente.

Sustenta que essa comunicação deveria ter sido feita pelo administrador da insolvência, sucedendo que foi feita por uma outra pessoa que não apresenta procuração, nem se identifica como mandatária da massa insolvente ou do respetivo administrador.

Vejamos se lhe assiste razão.

2. O art. 123º, nº 1 do CIRE estatui que a resolução pode ser efetuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de receção nos seis meses seguintes ao conhecimento do ato, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência.

Deste preceito resulta, sem margem para hesitações, que a legitimidade ativa para proceder à resolução em benefício da massa insolvente incumbe ao administrador da insolvência.

O administrador da insolvência tem essencialmente como funções assumir o controlo da massa insolvente, proceder à sua administração e liquidação e repartir pelos credores o respetivo produto final – cfr. art. 55º do CIRE.[2]

3. Sucede que no caso dos autos a carta visando a resolução em benefício da massa insolvente não se mostra subscrita pelo Sr. Administrador da Insolvência, mas sim pela Sr.ª Dr.ª AA, que foi nomeada patrona da Massa Insolvente da “B..., Unipessoal, Lda.”, no âmbito de pedido de apoio judiciário efetuado para o processo de insolvência.

Porém, nessa carta, a Sr.ª Dr.ª AA em momento algum invoca a qualidade de patrona nomeada à Massa Insolvente, antes a estrutura como se estivesse a ser redigida pelo próprio Administrador da Insolvência, como claramente resulta do seu ponto 1 que tem o seguinte texto:

“1. No dia 19.04.2024 foi declarada insolvente a sociedade comercial B..., Unipessoal, Lda.”, por sentença transitada em julgado, tendo sido nomeado Administrador Judicial, o ora signatário.”[3]

E também do seu cabeçalho cuja redação é a seguinte:

Constata-se, pois, que a comunicação com vista à resolução em benefício da massa insolvente não foi efetuada pelo Sr. Administrador da Insolvência, nem por um eventual mandatário deste munido de procuração com poderes especiais para a prática desse ato.

Foi realizada pela Sr.ª Dr.ª AA, que na carta respetiva nenhuma qualidade invoca para proceder à resolução, nem sequer a que tem que é a de patrona nomeada à Massa Insolvente, sendo, no entanto, de salientar que na nomeação feita pela Ordem dos Advogados apenas se refere que o apoio judiciário foi pedido para efeitos de “Insolvência pessoa colectiva (Requerida)”.

Aliás, dos elementos que se mostram juntos ao processo não decorre que a nomeação da referida Dr.ª AA tenha sido feita com o propósito desta proceder à resolução de negócios em benefício da massa insolvente, a que acresce que tal resolução se trata, face à redação do art. 123º, nº 1 do CIRE, de ato que só pode ser praticado pelo Administrador da Insolvência.

4. Com efeito, a leitura da carta resolutiva, dirigida à autora/recorrente “A...”, causa perplexidade.

Toda ela se mostra estruturada como se a resolução estivesse a ser feita, corretamente, pelo Sr. Administrador da Insolvência, mas depois surge subscrita pela Sr.ª Dr.ª AA, em suporte de papel com o seu timbre de advogada, sem que em parte alguma do respetivo texto se indique a qualidade em que esta causídica a elabora e assina.

Qualidade que não era a de administrador da insolvência, nem a de procuradora deste com poderes especiais para o ato, mas sim, conforme o que flui dos elementos depois juntos em sede de contestação, a de patrona nomeada à Massa Insolvente de “B..., Unipessoal, Lda.”

Porém, desses elementos, conforme já se escreveu atrás, não decorre que tal nomeação tenha tido como propósito a resolução em benefício da massa insolvente de quaisquer negócios, nem se nos afigura que a prática de tal ato se integre no domínio dos poderes de que dispõe o patrono que foi nomeado à Massa Insolvente no âmbito de apoio judiciário pedido para o respetivo processo de insolvência.

Em suma, o que se conclui é que a resolução não foi efetuada pelo Sr. Administrador da Insolvência, nem por mandatário deste dotado de procuração com poderes especiais para o ato.

A resolução foi efetuada pela Sr.ª Dr.ª AA, que ao longo da carta respetiva não invocou qualquer razão da qual pudesse resultar ter legitimidade para a prática de tal ato, circunscrita, como já se salientou, ao administrador da insolvência.

Neste contexto, haverá a concluir que a carta com vista à resolução de atos em benefício da massa insolvente, dirigida à aqui autora/recorrente “A..., Lda.”, não pode produzir efeitos resolutivos, o que implica a procedência do recurso interposto.


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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela autora “A..., Unipessoal Lda.” e, em consequência, declara-se ineficaz a comunicação resolutiva efetuada através de carta datada de 23.9.2024, o que determina a procedência da impugnação apresentada pela autora também no que respeita à FAT ....

Custas, pelo seu decaimento integral, a cargo da ré massa insolvente, sem prejuízo de apoio judiciário.


Porto, 16.9.2025
Rodrigues Pires
Alexandra Pelayo
Maria Eiró
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[1] Decorrentes também da consulta integral do processo na plataforma Citius.
[2] cfr. MENEZES LEITÃO, “Direito da Insolvência”, 8ª ed., pág. 119.
[3] Sublinhado nosso.