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AÇÃO DE REGRESSO DA SEGURADORA
ACIDENTE DE TRABALHO
CULPA DO EMPREGADOR
NEXO DE CAUSALIDADE
ÓNUS DA PROVA
Sumário
I – O agravamento da responsabilidade previsto no artigo 18.º da Lei dos Acidentes de Trabalho e, consequentemente, o direito de regresso referido no artigo 79.º, n.º 3, do mesmo diploma, depende da verificação de dois requisitos: a) a culpa, numa das duas variantes referidas no n.º 1, daquele artigo 18.º: (1) ter o acidente sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra ou (2) resultar de falta de observação das regras sobre segurança e saúde no trabalho; b) o nexo de causalidade entre o acto ou omissão assim descritos e a ocorrência do acidente. II – O ónus da prova dos factos susceptíveis de preencher cada um destes requisitos impende sobre quem pretende tirar proveito do agravamento da responsabilidade ou do direito de regresso. III – No que concerne ao primeiro requisito, embora as duas situações enunciadas no n.º 1 do artigo 18.º se refiram à culpa efectiva e não meramente presumida, é patente a diferença entre ambas em termos de ónus probatório, tendo em conta que, na segunda daquelas situações, a demonstração da culpa resulta da própria demonstração da violação das regras de segurança, na medida em que esta configura, em si mesma, uma conduta pelo menos negligente do agente. IV – Quanto ao segundo requisito, embora a definição do nexo de causalidade suscite maior debate doutrinal, a questão está hoje mais pacificada na jurisprudência, por força do AUJ n.º 6/2024, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 17 de Abril de 2024, publicado no DR n.º 92, 1.ª Série, de 13.05.2024, o qual não dispensa a demonstração do nexo causal entre a violação das regras de segurança e o acidente em causa, dispensando apenas a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação (que seria exigível se adoptássemos a teoria da conditio sine qua non ou uma visão estanque e bipartida da formulação negativa da teoria da causalidade adequada), assim concluindo que o estabelecimento do nexo causal entre a violação culposa das regras de segurança e as consequências danosas do acidente se basta com a demonstração de que, no caso concreto, tal violação se traduziu num aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se.
Texto Integral
Processo: 286/24.5T8PNF.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório A... – Companhia de Seguros, S.A., com sede na Rua ..., ..., Lisboa, intentou a presente acção declarativa comum contra B..., Lda., com sede na Rua ..., ....
Alegou, em essência, os valores que despendeu, ao abrigo do contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado entre as partes, com a indemnização dos danos sofridos pelo trabalhador da ré, AA, na sequência do acidente de trabalho de que este foi vítima. Mais alegou que a ocorrência deste acidente se ficou a dever à violação, por parte da ré, das regras de segurança, higiene e saúde no trabalho, nomeadamente à falta de protecções na máquina que o referido trabalhador manobrava no momento do acidente, que evitassem a projecção de partículas durante o corte de pedra, bem como à inobservância do dever de prestar informação sobre o funcionamento da mesma máquina, designadamente as regras de segurança a observar na sua utilização, atendendo à elevada perigosidade da mesma.
Com base nestes factos, invocou o seu direito de regresso sobre a ré, com fundamento, entre outras normas, nos artigos 18.º e 79.º, n.º 3, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (LAT), e na Cláusula 28.º das Cláusulas Gerais do contrato de seguro acima referido.
Concluiu pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 10.674,18 €, acrescida dos juros de mora vincendos, calculados à taxa legal, desde a data da entrada da presente acção até efectivo e integral pagamento.
A ré apresentou contestação, onde impugnou parcialmente os factos alegados pela autora, afirmando a inexistência de qualquer regra de segurança que tenha sido por si violada, bem como do nexo causal entre o acto ou omissão que a autora lhe imputa e o acidente.
Terminou pugnando pela improcedência da acção.
Tramitada a acção, veio a realizar-se audiência de julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido.
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Inconformada, a autora apelou desta sentença, concluindo assim a sua alegação:
«i. A Recorrente interpõe o presente recurso por não concordar com o teor da sentença do Tribunal a quo na parte em que decide pela absolvição da Ré, por entender que não se encontram preenchidos todos os pressupostos legais que permitam o exercício do direito de regresso, pela aqui Recorrente, nos termos do disposto nos artigos 79.º, n.ºs 1 e 3 e 18.º, n.º 1 da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro;
ii. Entende a Recorrente, com o devido respeito, que não foi feita uma correta e atenta análise dos pressupostos do exercício do direito de regresso,
iii. Não consubstanciando a sentença uma rigorosa aplicação do direito, razão pela qual não concorda com as conclusões retiradas e a decisão proferida, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que faça uma correta aplicação do direito;
iv. Com interesse para o presente recurso, foi dada como provada, entre outra, a matéria que consta dos pontos 20, 21, 22, 23 e 24 dos factos assentes, para cujo teor, por brevidade e economia processual;
v. A conclusão vertida na sentença ora colocada em causa, parte de uma premissa errada e num sentido contrário ao entendimento vertido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2024, proferido em 13 de Maio de 2024, no âmbito do processo n.º 179/19.8T8GRD.C1.S1-A;
vi. Naquela decisão ficou expresso, com carácter vinculativo, que “Para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador ou por uma qualquer das pessoas mencionadas no artigo 18.º n.º 1, da LAT, é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação”;
vii. No entanto, na sentença colocada em crise, concluiu-se, em manifesta divergência, que a imputação da Recorrida da responsabilidade nos termos do artigo 18.º, n.º 1 e 79.º, n.º 2 da Lei n.º 98/2009, impõe a demonstração do necessário nexo causal entre tal violação e o acidente em causa nos autos;
viii. Conforme referido no aludido Acórdão nº 6/2014 do Supremo Tribunal de Justiça, “mesmo que as regras de segurança sejam escrupulosamente observadas, podem ocorrer acidentes de trabalho. E, por isso mesmo, não se poderá frequentemente afirmar que a violação culposa de uma regra de segurança foi conditio sine qua non de um acidente, porquanto nem sempre se pode afastar liminarmente que um dado acidente não poderia ter igualmente ocorrido sem a referida violação, ainda que a possibilidade de tal suceder, e/ou de ter aquelas consequências danosas, fosse, porventura, muito menor”;
ix. Certo é que nos presentes autos se apurou que ocorreu efectiva violação das normas de segurança, nomeadamente a falta da placa identificativa e marcação CE na máquina, das fichas de procedimento de segurança, do manual de instruções e da sinalização ou informação de segurança;
x. Tal violação traduziu num aumento da probabilidade da ocorrência do acidente, tal como, efectivamente, veio verificar-se;
xi. Desta forma, apurada a violação das normas de segurança pela Ré, Recorrida e que a mesma se traduziu num aumento da probabilidade da ocorrência do acidente, impunha-se decisão diversa da tomada;
xii. O entendimento contrário, em face das limitações das teorias tradicionais da causalidade, serão “incapazes de garantir segurança jurídica e justiça no trato da obrigação de indemnizar”, mormente para que nalguns casos “este pressuposto da responsabilidade civil não se converta numa prova diabólica ou quase impossível para o lesado” (cfr. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2014, proferido em 13 de Maio de 2024, processo n.º 179/19.8T8GRD.C1.S1-A);
xiii. Veja-se, ainda, a este propósito o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 28 de Junho de 2024, no processo n.º 5408/16.7T8MAI.P1 e o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 11 de Dezembro de 2024, no processo n.º 497/22.8T8CTB.P1.;
xiv. O Tribunal deveria ter tido por referência e consideração a Jurisprudência Uniformizada quanto a esta temática, tanto mais que nos termos do invocado Acórdão ficou consagrado e uniformizado o entendimento de que para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente;
xv. Não sendo necessária a demonstração concreta de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação.
xvi. Não pode, por isso, ser ignorado o conteúdo do n.º 1 do artigo 18.º e n.º 3 do artigo 79.º ambos da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, sendo assim, indiscutível a responsabilidade da ora Recorrida e assistindo, consequentemente, à Recorrente o direito ao reembolso do valor por si despendido na regularização do sinistro;
xvii. Nesta conformidade, considerando a matéria apurada nos autos, e tendo por referência a Jurisprudência Uniformizada pelo aludido Acórdão, impõe-se que a sentença proferida pela 1.ª instância seja revogada, substituindo-se por outra que condene a Ré no pagamento do valor peticionado, acrescido dos juros de mora, até efectivo e integral pagamento, com todas as consequências legais».
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A recorrida respondeu à alegação do recorrente, concluindo assim essa resposta:
«I. Todas as alegações que vem a Recorrente invocar são manifestamente vagas e destituídas de fundamento, existindo um esforço por sustentar as mesmas em suposto erro na exclusão dos pressupostos do alegado direito de regresso de que, supostamente, seria titular, alicerçado no disposto no artigo 79.º n.º 3 da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.
II. Alega a Recorrente que se aplica o disposto no artigo 79.º n.º 3 da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro em virtude da aplicação cumulativa, à situação em causa nos presentes autos, do artigo 18.º n.º 1 do mesmo diploma legal, que refere que “Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais”.
III. A aplicação deste último, segundo o alegado pela Recorrente, estaria alicerçada na “permissão da entidade empregadora da utilização da máquina de partir pedra da marca ... pelo trabalhador sinistrado sem a placa identificativa e marcação CE, sem as fichas de procedimentos de segurança, manual de instruções e sinalização ou informação de segurança” que consubstanciaria uma “manifesta violação das regras de segurança por parte da ora Recorrida”, que se terá traduzido, alegadamente, “num aumento de probabilidade da ocorrência do acidente, tal como ele efectivamente veio a verificar-se”.
IV. Ora, na verdade, tal como se pode ler na Sentença do Tribunal a quo, a norma de segurança que seria suscetível de ser aplicável in casu e cuja violação a Recorrente terá suscitado aquando da Petição Inicial que originou os presentes autos, seria a do artigo 15.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de fevereiro, que dispõe que “O equipamento de trabalho que provoque riscos devido a quedas ou projeções de objectos deve dispor de dispositivos de segurança adequados”.
V. Não obstante, o Tribunal de 1.ª Instância considerou que a Recorrida não violou essa norma de segurança, uma vez que o trabalhador sinistrado, aquando da ocorrência do acidente, encontrava-se a utilizar equipamento de proteção individual fornecido pela Recorrida e a eventual colocação de qualquer dispositivo de segurança na máquina impediria o seu funcionamento e utilização.
VI. Concluiu apenas o Tribunal a quo que a Recorrida violou normas de segurança pelo facto de não ter ficado demonstrado que a máquina que o trabalhador sinistrado utilizava aquando do acidente não possuía a placa identificativa e marcação CE, nem que se encontravam junto da referida máquina ou nas instalações da Recorrida fichas de procedimento e manuais de instruções mas que, porém, não havia sido demonstrado o necessário nexo causal de tal violação legal com o acidente dos autos.
VII. Com efeito, a Recorrente não logrou fazer prova desse mesmo nexo causal, nem mesmo nas suas Alegações de Recurso, limitando-se a referir, de forma genérica, que aquelas circunstâncias aumentaram a probabilidade de ocorrência do acidente de trabalho verificado sem, contudo, nunca demonstrar nem concretizar essa alegação que, de facto, não se coaduna com a realidade.
VIII. Ademais, ao contrário do alegado pela Recorrente, não se verifica qualquer contradição entre a Sentença recorrida e o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em sede do Processo n.º 179/19.8R8GRD.C1.S1-A, não só pelo facto deste último se debruçar sobre uma situação com contornos muito distintos da que está em causa nos presentes autos, como, sobretudo, pelo facto de o entendimento nele propugnado considerar que, quanto à violação de normas de segurança por parte de uma entidade empregadora, “é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se”.
IX. Ora, compulsada toda a prova produzida nos autos, bem como o teor da Sentença recorrida, é inconcebível que se conclua que tenha havido uma violação de normas de segurança por parte da Recorrida que tenha resultado num aumento de probabilidade da verificação do sinistro em causa nos presentes autos.
X. Nem a Recorrente logrou fazer prova desse aspeto, limitando-se a alegar genericamente, que aumentou o grau de probabilidade de ocorrência do acidente de trabalho verificado, em virtude da violação de tais normas sem, contudo, nunca o concretizar.
XI. Note-se que o Tribunal a quo não considerou que a Recorrente tivesse que demonstrar que sem a violação de tais normas de segurança pela Recorrida, o referido acidente não teria ocorrido.
XII. Apenas considerou que não ficou demonstrada qualquer relação entre ambos os factos, ainda que longínqua.
XIII. De facto, é notório que, mesmo que a máquina que o trabalhador sinistrado utilizava aquando do momento da ocorrência do acidente de trabalho em crise contivesse os elementos que o Tribunal a quo considerou em falta, o referido acidente, infelizmente, pelos moldes em que ocorreu, não teria sido evitado.
XIV. A Recorrente efetivamente não demonstrou a existência do nexo causal entre a violação das supramencionadas regras de segurança (recorde-se: que a máquina que o trabalhador sinistrado utilizava aquando do acidente não possuía a placa identificativa e marcação CE, nem se encontravam junto da referida máquina ou nas instalações da Recorrida fichas de procedimento e manuais de instruções) e a verificação do acidente de trabalho em crise.
XV. E reitere-se que a demonstração de tal nexo causal era incontornavelmente exigível para que pudesse ter havido procedência do pedido da Recorrente.
XVI. Com efeito, a questão levantada pela Recorrente reside em suposto erro na exclusão da verificação dos pressupostos do seu alegado direito de regresso, estipulado no artigo 79.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.
XVII. Na verdade, sempre seria exigível para a procedência do pedido da Recorrente, tal como resulta do teor da Sentença recorrida, que esta tivesse alegado e provado o nexo de causalidade entre o acidente de trabalho ocorrido e a violação das regras de segurança da Recorrida, uma vez que esta interpretação se revela assertiva e adequada às regras de interpretação do direito civil, pelo que se deverá postular este entendimento.
XVIII. Na realidade, o artigo 9.º n.º 1 do Código Civil determina que “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.
XIX. Ora, será imprescindível para uma correta interpretação legal a consideração de todos os elementos hermenêuticos de interpretação da lei e não só dar primazia ao elemento literal, descurando os restantes elementos histórico, sistemático e racional, dado que adotar entendimento diverso sempre resultaria no alcance de um resultado interpretativo que se revelaria contrário à natureza do elemento civilístico.
XX. Considerando-se todos os elementos supramencionados e a génese do art. 79.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, bem como todo o conjunto de princípios norteadores do Direito Civil, não vislumbra a Recorrida razões jurídicas para entender de modo diferente da Sentença recorrida o significado do fundamento do direito de regresso das seguradoras.
XXI. Na verdade, caso se considerasse que, compulsado o teor do art. 79.º do diploma legal supramencionado, haveria desnecessidade de a Recorrente alegar e provar o nexo causal, tal entendimento significaria também um despedaçar desta norma em relação à natureza do Direito Civil, pelo que, também por aqui, se impõe uma interpretação da lei que não descure o elemento sistemático e racional e consequentemente a unidade do sistema jurídico.
XXII. Por elemento sistemático da interpretação da lei, entende-se a ideia de que a ordem jurídica tem unidade e coerência jurídico-sistemática, isto é, as normas jurídicas relacionam-se por subordinação, conexão, analogia, visando a unidade do sistema jurídico.
XXIII. A função reparadora de danos do Direito Civil tem como base uma ideia compensatória do prejuízo causado a outrem.
XXIV. Certo é que esta “sanção” civil - entenda-se responsabilidade civil - tem como pressupostos essenciais a verificação de um ação que seja imputável ao autor - não sendo graduada a culpa - e que se estabeleça a essa mesma ação um nexo de causalidade com o dano causado.
XXV. Ora, não basta que se prove a culpa do agente nem esta per si é fundamento de compensação ou indemnização, sendo imprescindível que se demonstre e prove o nexo de causalidade entre a ação e o dano.
XXVI. O mesmo sucederá com o exercício e determinação do direito de regresso.
XXVII. Deste modo, mesmo considerando que a Recorrida havia violado determinadas regras de segurança, por si só tal não seria condição para legitimar o direito de regresso da Recorrente, enquanto Seguradora e, por conseguinte, sancionar a Requerida pelo sinistro ocorrido.
XXVIII. Caso se considerasse que seria dispensável a necessidade estabelecer um nexo causal entre a violação das regras de segurança pela Recorrida e o acidente de trabalho ocorrido, estar-se-ia a alterar a natureza reparadora do Direito Civil.
XXIX. Isto porque sancionar-se-ia o agente (in casu, a Recorrida, que teria de suportar as despesas que a Recorrente, enquanto Seguradora, suportou, e que eram efetivamente devidas pela mesma em virtude do contrato de seguro existente) em função da sua alegada culpa e não da causalidade entre a sua ação e os danos casuísticos da mesma (in casu, o acidente de trabalho verificado).
XXX. Ora, ao Direito Civil não compete um papel puramente sancionador, mas sim um papel materialmente reparador.
XXXI. Ora, é imprescindível para o sistema reparador de danos do Direito Civil a verificação do nexo de causalidade entre a ação do agente e os danos dela resultante, sem graduar culpa e muito menos sem a considerar como causa única que legitima uma sanção civil, sendo qualquer entendimento em sentido divergente do exposto, contrário à natureza do direito civil português.
XXXII. É precisamente o que sucederia com a implementação do entendimento do artigo 79.º n.º 3 da Lei 98/2009, de 4 de setembro retirado da interpretação que resulta do alegado pela Recorrente, pois ao considerar-se a violação de uma qualquer regra de segurança pela entidade empregadora, in casu, pela Recorrida, como pressuposto da existência do direito de regresso da Seguradora, in casu, da Recorrente, atribui-se uma função penalizadora ao Direito Civil, fundada na culpa do agente por agir ilicitamente o que vai em contrário à sua natureza compensatória.
XXXIII. Tal conduzir-nos-ia, aliás, a situações extremas e atípicas, dado que ainda que de uma forma nublada estaríamos a tipificar um comportamento e a atribuir-lhe uma sanção.
XXXIV. Pelos motivos supra enunciados, cimentar a necessidade da alegação e prova do nexo causal entre a violação das regras de segurança pela Recorrida e o acidente de trabalho ocorrido, será o resultado de uma correta interpretação do artigo 79.º n.º 3 da Lei 98/2009, de 4 de setembro, que não descura o elemento sistemático da interpretação da lei, mantendo-se desta forma a unidade do sistema jurídico e intocável a natureza do direito civil.
XXXV. Note-se ainda que o facto de o referido preceito normativo estipular o direito de regresso da seguradora nos casos nele previstos, tal não significa que a atribuição desse direito seja automática e que o preenchimento dos seus pressupostos seja dispensável.
XXXVI. Do mesmo modo, no que concerne ao artigo 18.º da Lei 98/2009, quando o mesmo refere “Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão de obra, ou resultar da falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho (…)”, tal expressão não encerra um alargar da previsão a todos os casos em que tenha ocorrido um acidente de trabalho e que a entidade empregadora tenha violado normas de segurança, uma vez que será necessário demonstrar, como resulta do supraexposto, o nexo causal entre essa violação e o acidente ocorrido.
XXXVII. Não tendo a Recorrente logrado fazer prova desse mesmo nexo de causalidade, conclui-se que não poderia, nunca, a decisão do Tribunal a quo ter sido distinta daquela que proferiu dados os elementos objetivos que foram recolhidos tendo, por isso, andado bem o Tribunal a quo.
XXXVIII. Tudo visto, é forçoso concluir que a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo não comporta qualquer erro de direito, pelo que devem improceder as alegações de recurso da Recorrente A... – Companhia de Seguros, S.A.»
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II. Fundamentação A. Objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, importa decidir se estão verificados todos os pressupostos de que depende o direito de regresso desta sobre a recorrida.
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B. Factos provados
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
1. A Autora dedica-se à atividade seguradora.
2. No exercício da sua atividade, a Autora celebrou com a Ré, em 1 de abril de 2019, contrato de seguro do ramo Acidentes de Trabalho, titulado pela apólice n.º ..., nos termos do qual assegurou a cobertura do risco completo dos danos traumatológicos causados aos trabalhadores daquela indicados nas respetivas folhas de salários.
3. Em 18 de julho de 2022, a Ré participou à Autora um acidente ocorrido no dia 15 de julho de 2022, cerca das 18h, com o trabalhador ao seu serviço, AA, que constava da folha de salários que a Ré lhe havia apresentado.
4. Na data e hora referida em 3, o referido trabalhador, no exercício da sua atividade laboral de pedreiro, se encontrava a partir pedra numa máquina de partir pedra.
5. O trabalhador encontrava-se a desempenhar as referidas funções por conta e no interesse da Ré e de acordo com as suas instruções transmitidas pelo seu superior hierárquico.
6. O sinistrado encontrava-se a partir uma pedra de grande dimensão numa máquina de partir pedra.
7. Tendo de mover a pedra de um lado para o outro, consoante os cortes que pretende efetuar, até atingir o tamanho desejado, nomeadamente de um paralelo.
8. No momento do acidente, aquele funcionário efetuava o corte de uma pedra.
9. Tendo, após efetuar um corte do lado esquerdo, começando a cortar a pedra do lado direito.
10. Ato contínuo, uma lasca de pedra foi projetada para o seu olho esquerdo.
11. Conseguindo atravessar os óculos de proteção e atingindo o olho esquerdo do trabalhador sinistrado.
12. Em consequência do acidente, o trabalhador sinistrado sofreu úlcera da córnea perfurada.
13. Tendo sido assistido na Clínica ..., em Penafiel.
14. E submetido a uma intervenção cirúrgica de Vitrectomia via pars associada à extração de cristalino com introdução de lente intraocular no hospital ..., no Porto.
15. Após a alta, o sinistrado necessitou de acompanhamento médico e farmacêutico, tendo sido assistido em diversas instituições de prestação de cuidados de saúde.
16. Foi, ainda, acompanhado pelos serviços clínicos da Autora, até à data de alta clínica.
17. Em virtude do acidente, o sinistrado AA encontrou-se afetado de incapacidade temporária absoluta para o trabalho desde 18.7.2022 até 17.1.2023 e de incapacidade temporária parcial de 50% desde 18.1.2023 até 28.2.2023, data em que lhe foi atribuída alta por se encontrar curado sem desvalorização.
18. O sinistrado encontrava-se a operar uma máquina de partir pedra da marca ....
19. Tratando-se de uma prensa automática de partir pedra, de 30 toneladas que é acionada por um pedal, não existindo qualquer proteção contra o risco de contacto mecânico com o elemento móvel designado “cunha”, nem contra a projeção de partículas.
20. A aludida máquina não possuía placa identificativa e marcação CE.
21. Nem possuía fichas de procedimento de segurança, junto ao equipamento.
22. Nem no posto de trabalho nem em arquivo.
23. A máquina não tinha manual de instruções nas instalações da empresa nem junto à máquina existia sinalização ou informação de segurança.
24. A máquina encontrava-se instalada em terreno aberto coberta com chapas metálicas.
25. Em consequência da participação do acidente, a Autora despendeu a quantia de €10.465,08 (dez mil, quatrocentos e sessenta e cinco euros e oito cêntimos).
26. Que corresponde às seguintes importâncias parcelares: €543 (quinhentos e quarenta e três euros) de despesas médicas em ambulatório; €72 (setenta e dois euros) de despesas com exames de diagnóstico – ecografia; €190 (cento e noventa euros) de despesas com exames de diagnóstico – EAD; €3.434,77 (três mil, quatrocentos e trinta e quatro euros e setenta e sete euros) de despesas com intervenções cirúrgicas – EAD; €3.405,66 (três mil, quatrocentos e cinco euros e sessenta e seis cêntimos) de indemnização por incapacidade temporária absoluta; €384,51 (trezentos e oitenta e quatro euros e cinquenta e um cêntimos) de indemnização por incapacidade temporária parcial; €178,24 (cento e setenta e oito euros e vinte e quatro cêntimos) de despesas com medicamentos; €700 (setecentos euros) de despesas com próteses e ortóteses; €558,90 (quinhentos e cinquenta e oito euros e noventa cêntimos) de subsídios; e €998 (novecentos e noventa e oito euros) de transporte Táxi.
27. A Autora despendeu ainda a quantia de €209,10 (duzentos e nove euros e dez cêntimos) com despesas de averiguação para a regularização do sinistro.
28. A Ré disponibiliza equipamento de proteção individual a todos os trabalhadores.
29. No momento do acidente, o sinistrado usava o equipamento individual de proteção, designadamente, auscultadores, óculos, luvas e máscara.
30. A máquina em que o sinistrado operava no momento do sinistro foi fabricada na década de 80.
31. A mesma possui uma mesa de trabalho, na qual o trabalhador coloca o bloco de pedra e de seguida posiciona-o para o corte pretendido, aciona o elemento móvel da máquina através do pedal, no desiderato de reduzir a dimensão da pedra até obter o tamanho pretendido.
32. A Ré possui outra máquina de partir pedra, a qual foi fabricada em 2019 pela sociedade C..., Lda, marca ..., modelo ..., com marcação CE, não possuindo a mesma qualquer componente de proteção que evite o risco de contato mecânico com o elemento móvel da máquina, nem contra a projeção de partículas.
33. A instalação de tal componente implicaria não ser possível a colocação do bloco de pedra na mesa de trabalho e o seu correto posicionamento para a execução do corte.
34. O trabalhador sinistrado ao tempo do acidente já laborava na Ré há mais de três anos como pedreiro e conhecia muito bem a máquina de partir pedra e o seu modo de funcionamento.
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C. Factos não provados
O tribunal recorrido julgou não provados os seguintes factos:
a) A Ré dá formação profissional a todos os seus trabalhadores e adverte-os pessoal e periodicamente de atenção para os procedimentos recomendáveis que se têm por adequados e se devem aplicar na execução de todas as tarefas profissionais junto de todos os seus trabalhadores;
b) Os equipamentos industriais da Ré são alvo de manutenções e revisões regulares para assegurar o seu funcionamento normal e em segurança.
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D. O Direito
A decisão recorrida considerou que a autora não tem direito de regresso sobre a ré, por não ter ficado demonstrado o nexo de causalidade entre a violação de regras de segurança a que esta estava obrigada enquanto entidade patronal e o acidente de que foi vítima o seu trabalhador AA.
A recorrente discorda, afirmando que esta conclusão parte de uma premissa errada e contrária ao entendimento vertido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2024 (doravante AUJ n.º 6/2024), proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 17 de Abril de 2024, publicado no DR n.º 92, 1.ª Série, de 13.05.2024.
Apreciemos a questão assim suscitada, começando por analisar o quadro legal aplicável.
Dispõe assim o artigo 18.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (diploma que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, que doravante designamos por Lei dos Acidentes Trabalho ou LAT): «1 – Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais. (…) 4 – No caso previsto no presente artigo, e sem prejuízo do ressarcimento dos prejuízos patrimoniais e dos prejuízos não patrimoniais, bem como das demais prestações devidas por actuação não culposa, é devida uma pensão anual ou indemnização diária, destinada a reparar a redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte, fixada segundo as regras seguintes: a) Nos casos de incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, ou incapacidade temporária absoluta, e de morte, igual à retribuição; b) Nos casos de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, compreendida entre 70 % e 100 % da retribuição, conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível; c) Nos casos de incapacidade parcial, permanente ou temporária, tendo por base a redução da capacidade resultante do acidente».
Em consonância com a epígrafe da secção IV, do Capítulo II, da Lei dos Acidentes de Trabalho, esta disposição legal prevê situações especiais de reparação, em que a fixação da indemnização obedece a um regime diferente do geral, sofrendo as respectivas prestações um agravamento.
Por sua vez, o artigo 79.º, n.ºs 1 e 3, do mesmo diploma legal, preceitua o seguinte: «1 – O empregador é obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na presente lei para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro. (…) 3 – Verificando-se alguma das situações referidas no artigo 18.º, a seguradora do responsável satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso».
Embora a responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes de acidentes de trabalho caiba, em primeira linha, aos empregadores, nos termos previstos no artigo 7.º da LAT, a norma do artigo 79.º preceitua que estes estão obrigados a transferir tal responsabilidade para uma companhia de seguros, que passa então a ser a responsável por aquela reparação, nos termos do respectivo contrato de seguro, sem prejuízo de, nas situações previstas no artigo 18.º da LAT, poder exercer o direito de regresso.
Cremos ser pacífico na jurisprudência dos tribunais superiores que o agravamento da responsabilidade previsto no artigo 18.º da LAT e, consequentemente, o direito de regresso referido no artigo 79.º, n.º 3, do mesmo diploma, depende da verificação de dois requisitos: a) a culpa, numa das duas variantes referidas no n.º 1, daquele artigo 18.º: (1) ter o acidente sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra ou (2) resultar de falta de observação das regras sobre segurança e saúde no trabalho; b) o nexo de causalidade entre o acto ou omissão assim descritos e a ocorrência do acidente.
Julgamos ser igualmente pacífico que o ónus da prova dos factos susceptíveis de preencher cada um destes requisitos impende sobre quem pretende tirar proveito do agravamento da responsabilidade ou do direito de regresso – no caso a recorrente seguradora.
No que concerne ao primeiro requisitos embora as duas situações enunciadas no n.º 1 do artigo 18.º se refiram à culpa efectiva e não meramente presumida – traduzindo ambas uma omissão dos deveres de cuidado ou diligência que o bom pai de família teria observado, em face das circunstâncias do caso, para evitar o facto danoso (cfr. artigo 487.º, n.º 2, do CC) –, é patente a diferença entre ambas em termos de ónus probatório, tendo em conta que, na segunda daquelas situações, a demonstração da culpa resulta da própria demonstração da violação das regras de segurança, na medida em que esta configura, em si mesma, uma conduta pelo menos negligente do agente.
Quanto ao segundo requisito, embora a definição do nexo de causalidade se revele mais complexa e suscite maior debate doutrinal, a questão está hoje mais pacificada na jurisprudência, por força do acórdão uniformizador acima referido. Voltaremos a este assunto mais adiante.
Perante o exposto, podemos afirmar que, nas situações em que a culpa assenta na falta de observação das regras sobre segurança e saúde no trabalho, o direito de regresso da seguradora depende da verificação dos seguintes pressupostos: i) que sobre a entidade empregadora (ou as demais entidades mencionadas no artigo 18.º, n.º 1, da LAT) recaia o dever de observar determinadas regras de segurança; ii) que tal dever não tenha sido observado; iii) que se verifique uma relação de causalidade entre esta omissão e o acidente de trabalho.
Neste sentido vide os arestos citados pela própria recorrente, bem como a demais jurisprudência neles citada.
No caso concreto, o Tribunal a quo julgou verificada a culpa da recorrida, ou seja, a violação das regras de segurança a que esta estava vinculada, na estrita medida em que ficou demonstrado que a máquina de corte de pedra que era manobrada pelo trabalhador da recorrida no momento do acidente não possuía placa identificativa e marcação CE, não existiam fichas de procedimento de segurança junto a esse equipamento, no posto de trabalho ou no arquivo, não existia manual de instruções dessa máquina nas instalações da empresa e não existia sinalização ou informação de segurança junto da mesma (cfr. pontos 20 a 23 dos factos provados).
As partes não questionaram esta afirmação da culpa da recorrida, com os fundamentos assinalados, a qual encontra respaldo nos artigos 127.º, n.º 1, alíneas c), g), h) e i), e 281.º, n.ºs 1 a 3, do Código do Trabalho (CT), e nos artigos 2.º, alíneas a) e b), 3.º, al. d), 4.º, n.º 1, 15.º, n.º 1, e 22.º do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de Fevereiro, que veio substituir integralmente, revogando, o Decreto-Lei n.º 82/99, de 16 de Março (que regulava as prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamento de trabalho e que havia transposto para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 89/655/CEE, do Conselho, de 30 de Novembro, alterada pela Diretiva n.º 95/63/CE, do Conselho, de 5 de Dezembro), ao mesmo tempo que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2001/45/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Junho (que alterou pela segunda vez a Directiva n.º 89/655/CEE, e que regulamenta a utilização de equipamentos destinados à execução de trabalhos em altura, para proteger a segurança e saúde dos trabalhadores).
O dissenso diz apenas respeito, como vimos, à afirmação da inexistência de nexo de causalidade entre a omissão culposa da recorrida e o acidente de que foi vítima o seu trabalhador.
O nexo de causalidade enquanto pressuposto do direito de regresso da seguradora, com fundamento na violação, por parte da entidade patronal, das regras de segurança a que estava obrigada, foi objecto de análise no AUJ invocado tanto na decisão recorrida como na alegação de recurso.
Esse aresto começa por pôr em evidência as fragilidades da doutrina da conditio sine qua non (ou da “causalidade sem a qual”, em cujos termos um determinado facto é causa do dano quando mostre ser uma condição sem a qual este dano não surgiria) para fundamentar o nexo de causalidade entre a violação culposa de regras de segurança e o acidente de trabalho, concluindo que a mesma não é adaptável à disciplina normativa plasmada na Lei n.º 98/2009.
De seguida, põe em causa que a imputação do dano nos acidentes de trabalho esteja sujeita exactamente ao regime consagrado na lei civil, afirmando que há indícios no sentido contrário (de que é exemplo o artigo 11.º, n.º 1, da LAT).
Mais afirma, na senda da doutrina mais recente, não ser actualmente pacífico o entendimento tradicional de que o artigo 563.º do CC consagra a teoria da causalidade adequada.
Põe, igualmente, em causa a visão estanque e bipartida da formulação negativa desta teoria, nos termos da qual o estabelecimento do nexo de causalidade exige a verificação de dois requisitos: (i) que o facto tenha sido, no caso concreto, condição sine qua non do dano; (ii) que, em abstrato, o facto seja idóneo a produzir o tipo de dano ocorrido ou, mais exatamente, que se conclua que provavelmente o lesado não teria sofrido os danos se o facto não tivesse tido lugar ou ainda, por outras palavras, que o facto não tenha sido indiferente à produção do dano, não tendo este sobrevindo devido à ocorrência de um evento anormal, extraordinário, devendo este juízo de prognose póstuma basear-se naquilo que um observador experiente teria conhecido no momento da prática do facto e ainda naquilo de que o lesante, à data, efetivamente conhecia. Citando Mafalda Miranda Barbosa, acrescenta o seguinte: «No fundo, confrontamo-nos com uma alternativa. Ou a causalidade adequada vem complementar a doutrina da conditio sine qua non, e o jurista continua preso aos problemas já referidos anteriormente; ou a causalidade adequada vem, para além de um segmento imputacional, corrigir a indagação condicional, pela introdução da nota probabilística, com o que se mostra a verdadeira intencionalidade que subjaz ao critério da adequação».
Prossegue o mesmo acórdão afirmando que «em face das limitações das teorias tradicionais da causalidade, “incapazes de garantir segurança jurídica e justiça no trato da obrigação de indenizar”, mormente para que nalguns casos “este pressuposto da responsabilidade civil não se converta numa prova diabólica ou quase impossível para o lesado”, a doutrina e a jurisprudência vêm desenvolvendo soluções dogmáticas destinadas a facilitar a prova do nexo de causalidade, construindo alternativas às formulações centradas na ideia de causalidade.
Entre estas últimas, destacam-se as teorias do escopo da norma violada (ou do escopo de proteção da norma), do bem jurídico tutelado e das esferas de risco, estruturadas na base de um nexo de imputação (entre conduta e resultado) que se reconduz a juízos estritamente normativos.
Nos seus desenvolvimentos mais recentes, também a formulação negativa da teoria da causalidade adequada vem incorporando as dimensões mais relevantes daquelas teorias, devendo atender, designadamente, ao escopo da norma violada, a qual é mais um corretivo daquela do que propriamente um seu substituto, como sustenta, v. g., Júlio Manuel Vieira Gomes.
(…)
Em suma, um importante setor da doutrina portuguesa nega hoje que o Código Civil tenha consagrado a teoria da causalidade adequada – é o caso por exemplo de ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO para quem na esteira de GOMES DA SILVA se deve partir sobretudo do escopo de proteção da norma e de uma visão probabilística da “causalidade”. Mas mesmo quem continua a defender que a causalidade adequada foi adotada no nosso Código Civil defende também que se deve adotar a formulação negativa e que, tendo o lesado provado o dano, deveria o lesante invocar que o mesmo se ficou a dever a um outro fator que não a sua conduta, fator esse imprevisível e excecional».
Como corolário desta argumentação, o aresto que vimos citando uniformiza jurisprudência no seguinte sentido: «para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador, ou por uma qualquer das pessoas mencionadas no artigo 18.º, n.º 1 da LAT, é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação».
Aplicando esta jurisprudência uniforme ao caso concreto, importa começar por deixar claro que a mesma não dispensa a demonstração do nexo causal entre a violação das regras de segurança e o acidente em causa, ao contrário do que parece pressupor a recorrente na conclusão vii. da sua alegação. Dispensa apenas a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação, que seria exigível se adoptássemos a teoria da conditio sine qua non ou a já referida visão estanque e bipartida da formulação negativa da teoria da causalidade adequada.
Apelando às mais recentes doutrinas sobre a causalidade enquanto pressuposto da obrigação de indemnizar (inclusivamente à teoria do escopo da norma violada, de acordo com a qual a «delimitação da causa exige a averiguação da correspondência entre os danos causados pelo facto e a frustração dos interesses prosseguidos com a atribuição de um direito subjectivo ou de uma protecção reflexa pela norma desconsiderada» - Henrique Sousa Antunes, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, UCP Editora, Lisboa, 2024, p. 556) ou à sua incorporação correctiva na formulação negativa da teoria da causalidade adequada, este aresto conclui que o estabelecimento do nexo causal entre a violação culposa das regras de segurança e as consequências danosas do acidente se basta com a demonstração de que, no caso concreto, tal violação se traduziu num aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se.
No caso concreto, os factos julgados provados não só não demonstram que o acidente não teria ocorrido se a recorrida não tivesse violado as obrigações acima descritas, como não permitem concluir que tal violação se traduziu num aumento da probabilidade de ocorrência do acidente tal como este ocorreu.
A recorrente afirma o contrário, nomeadamente na sua conclusão x., mas sem chegar a concretizar os factos em que baseia essa conclusão.
Perscrutada a factualidade apurada, não se descortina na mesma qualquer relação entre as omissões descritas nos pontos 20 a 23 dos factos provados (a inexistência de placa identificativa e marcação CE, de fichas de procedimento de segurança, de manual de instruções e de sinalização ou informação de segurança) e o acidente concretamente ocorrido.
A descrição deste acidente – depois de efetuar um corte do lado esquerdo, ao cortar a pedra do lado direito, uma lasca desta foi projetada, conseguindo atravessar os óculos de proteção e atingindo o olho esquerdo do trabalhador sinistrado (cfr. pontos 6 a 11) – não permite concluir que o mesmo tenha sido de alguma forma potenciado pela falta de conhecimento, por parte da vítima, quanto a algum aspecto do modo de funcionamento da máquina e/ou quanto aos procedimentos de segurança a adoptar na sua utilização. Pelo contrário, ficou demonstrado que o sinistrado conhecia muito bem essa máquina de partir pedra e o seu modo de funcionamento (cfr. ponto 34 dos factos provados).
Por outro lado, tendo-se provado que não faltava na referida máquina qualquer componente de proteção contra a projeção de partículas (cfr. pontos 30 a 33) e que, no momento do sinistro, o trabalhador usava equipamento individual de proteção disponibilizado pela recorrida, designadamente auscultadores, óculos, luvas e máscara (cfr. pontos 28 e 29), impõe-se concluir que o acidente e os danos sofridos pelo sinistrado ocorreram por circunstâncias anómalas.
Em suma, mesmo aderindo às mais recentes propostas de flexibilização do nexo de causalidade, por referência a juízos imputacionais de previsibilidade objectiva ou probabilidade (ob. cit., p. 559), no caso concreto não é possível afirmar a existência desse nexo causal entre a violação, pela recorrida, das regras de segurança a que estava obrigada e o acidente gerador dos danos cobertos pelo contrato de seguro celebrado entre as partes.
Pelas razões expostas, bem andou o Tribunal a quo ao concluir que a recorrente não logrou demonstrar esse nexo de causalidade, pelo que não estão verificados os requisitos legais do direito de regresso de que se arroga titular.
Por conseguinte, na total improcedência da apelação, importa manter a decisão recorrida e condenar a recorrente nas respectivas custas (cfr. artigo 527.º do CPC).
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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III. Decisão
Pelo exposto, os Juízes desta 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.
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Porto, 16 de Setembro de 2025
Artur Dionísio Oliveira
João Ramos Lopes
Rodrigues Pires