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ELEMENTOS DO TIPO
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
DOLO DIRECTO
Sumário
Sumário: I. Não existindo fórmula sacramental e nem vinculação a uma forma única, a descrição dos elementos típicos deve apresentar-se com a clareza e completude que permita concluir, no caso da sua verificação ou prova, que o preenchimento do tipo está completo, permitindo-se, com isso, a analise integral das circunstâncias, includentes e excludentes, que possam determinar, sem recurso a elementos externos [que importariam sempre uma alteração de factos – nota no texto], a condenação sem dúvidas do agente. Nesta medida e neste contexto, sempre que esta conclusão não seja possível, são elementos do tipo que faltam. Significando isto que, por antecipação, são esses os que devem constar obrigatoriamente da acusação. II. Por outro lado, os elementos do tipo, não se presumindo, devem mostrar-se factualizados de forma suficiente a permitir, no caso de procedência da acusação, que a culpabilidade do agente se consiga inequivocamente estabelecer. Ora, quem lê os factos constantes da acusação que foi deduzida consegue atingir com perfeita clareza o que se pretende dizer e imputar, e consegue integrar esses factos na tipicidade penal. Está de facto a dizer-se que o arguido, sabendo e conhecendo as proibições legais, decidiu com plena liberdade actuar como fez e consciente de que assim fazia, conduzindo nessas condições. III. O dolo directo, ao contrário do que se diz no despacho recorrido, é efectivamente a forma de dolo imediatamente reconhecível. Para que se integrasse outro tipo de dolo é que seria mais difícil aceitar a peça acusatória apenas nestes termos. Como tal, neste caso será de receber a acusação que foi deduzida, importando isso a revogação do despacho recorrido.
Texto Integral
Acordam os juízes da 3ª Sec. Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
Relatório
Pelo Juízo Local Criminal do Barreiro – J2 – foi proferido despacho a rejeitar a acusação com o seguinte teor: (…) Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro, por referência ao artigo 121.º do CE. Nos termos do disposto no artigo 311.º do CPP, recebidos os autos no Tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. Acrescenta o n.º2 do citado normativo que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente rejeita a acusação se a considerar manifestamente infundada [al. a)], considerando-se como tal aquela que, além do mais, não contenha a narração dos factos (artigo 311.º, n.º3, al. b), do CPP). Relativamente ao estatuído na última alínea do nº 3 do preceito acabado de citar, tem entendido a doutrina e a jurisprudência atuais que a rejeição da acusação somente pode ocorrer quando manifestamente inexistam factos que correspondam à prática de um ilícito criminal, ou seja, quando diante do texto da acusação faltem elementos típicos objetivos e subjetivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante (neste sentido vide Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, 2008, p. 791, n. 8). Sucede que, do ponto de vista subjetivo, o crime de condução sem habilitação legal é um crime doloso. A estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo. Seja qual for a modalidade de dolo que no caso concreto se verifique, é sempre necessário que o agente conheça, saiba, represente corretamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto- elemento intelectual do dolo- mas também que se verifique no facto uma particular intenção dirigida à sua realização- elemento volitivo. Temos que, o elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objetivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável. O elemento volitivo consiste na especial direção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber: o dolo direto – a intenção de realizar o facto – o dolo necessário – a previsão do facto como consequência necessária da conduta – e o dolo eventual – a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta. Consta do libelo acusatório que «3. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo que não era titular de carta de condução válida que o habilitasse a conduzir veículos a motor na via pública, conhecendo as características do veículo por si conduzido e da via onde o conduziu» e que «4. Conhecia o arguido a proibição e punibilidade legais da sua conduta». Os factos suprarreferidos reconduzem-se, desde logo, ao elemento intelectual do dolo (ou seja, o conhecimento da ilicitude). A par deste, encontra-se igualmente alegado que o arguido agiu de forma livre (ou seja, sem coação) e consciente (esclarecida). Mais se fez constar que a sua atuação foi «deliberada», o que pressupõe que o ato é dominado pela vontade do agente (o que é diferente de qualificar a intenção com que age), não sendo por isso um ato incidental ou reflexo, como ocorre, por exemplo, com um espasmo corporal que o agente não consegue controlar. A atuação livre, deliberada consciente traduz um juízo de culpabilidade. Na verdade, a culpa implica o uso indevido da vontade livre, e por isso pressupõe a liberdade de decisão e de atuação- a liberdade de o agente se determinar de acordo com o dever ser jurídico. Mas o dolo não se basta, como se disse, com o conhecimento das circunstâncias do facto e da sua configuração jurídica, antes sendo igualmente necessário a verificação no facto de uma particular vontade dirigida à sua realização – ou seja, o elemento volitivo do dolo do tipo. Compulsado o teor da acusação constatamos que o Ministério Público, no que ao concerne ao dolo do tipo, limitou-se a enunciar o elemento intelectual, sendo aquela totalmente omissa na descrição de factos que configurem o elemento volitivo. Efetivamente, nada consta da acusação quanto à vontade que norteou a atuação do arguido. Nada se diz se a realização do tipo era o seu objetivo último, ou se antes foi encarada como uma consequência necessária ou eventual da sua conduta. Em nosso entendimento não basta afirmar que a atuação foi deliberada, porque esta não esgota o sentido da ilicitude nem o sentido de desvalor, nos termos supra expostos, não se concordando igualmente que a formulação escolhida na acusação se refira ao dolo direto. Ora, estando em causa crime doloso, “a acusação deve conter a referência aos factos que sustentam a imputação do dolo do tipo, ou seja, o elemento intelectual (conhecimento de todos os elementos descritivos e normativos do facto) e o elemento volitivo (vontade de realizar o facto típico), precisando a modalidade em que se exprime essa vontade (intenção direta de praticar o facto, previsão do resultado como consequência necessária ou possível da conduta e aceitação do resultado...) a estes elementos acresce um terceiro, chamado emocional, que se consubstancia na falta de consciência ética por parte do agente, ou seja, na sua atitude de indiferença perante os valores tutelados pelo direito, que deve igualmente constar da acusação.”- Ac. do TRL de 23.09.21, disponível em www.dgsi.pt (sublinhado nosso). Aliás, como foi decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº1/2015, “a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual). A acrescer a esses elementos teríamos o tal elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso, na doutrina de FIGUEIREDO DIAS”. Mais entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”. Pelos fundamentos expostos, por ser omissa na descrição de factos essenciais, os quais não podem ser aditados pelo Tribunal em sede de julgamento (considerando a doutrina do AUJ n.º 1/2015), não recebo a acusação deduzida e determino a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para os fins tidos por convenientes. Notifique. (…)
Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões: (…) 1) O tribunal a quo fez uma incorreta aplicação do Direito, violando os artigos 13.º e 14.º do Código Penal e os artigos 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3 e 283.º, n.º 3, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, ao ter rejeitado a acusação pública. 2) Na acusação pública o Ministério Público procedeu à narração factual de todos os elementos constitutivos do tipo objetivo e subjetivo do crime de condução sem habilitação legal, explicitando o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, ou seja, narra toda a factualidade que descreve que o arguido praticou os factos consciente que não era titular de carta de condução, o que fez de forma voluntária (querendo a realização do facto), livre (podendo agir de modo diverso, em conformidade com o dever ser jurídico) e conscientemente (representou todas as circunstâncias do facto). 3) O acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2015, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça apenas tem aplicação aos casos de total ausência da descrição do elemento subjetivo na acusação, o que não se verifica nos presentes autos. 4) O douto despacho recorrido ignora o mencionado nos artigos 3.º e 4.º da acusação pública que contêm a descrição factual de todos os elementos constitutivos que integram o crime de condução sem habilitação legal, donde resulta que o arguido agiu com a vontade concretizada e a consciência, em todas as suas vertentes (intelectuais e volitivas) de que a ausência de titulo de condução, emitido por entidade competente o inibia de conduzir veículos motorizados, na via pública; 5) O Ministério Público, na acusação pública, fez a descrição factual de todos os elementos constitutivos dos elementos objetivos e subjetivos do crime de condução sem habilitação legal, de forma sucinta, objetiva e concretizada, razão pela qual respeitou o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), inexistindo fundamento para a aplicação do artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, do Código de Processo Penal, pelo que a acusação deduzida nos presentes autos não pode ser considerada manifestamente infundada. Nestes termos, deverão Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, dar provimento ao presente recurso, devendo o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que, em cumprimento do disposto no artigo 311.º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, receba a acusação pública deduzida nos presentes autos e, consequentemente, determine o prosseguimento dos mesmos, por se encontrarem descritos na acusação pública todos os elementos, objetivos e subjetivos, do tipo de crime imputado ao arguido. (…)
Nenhum outro Interveniente veio manifestar-se.
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O recurso foi admitido, com forma, modo e efeito devidos.
Uma vez remetido a este Tribunal, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, veio o processo à Conferência.
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Objecto do recurso
Resulta do disposto conjugadamente nos arts. 402º, 403º e 412º nº 1 do Cód. Proc. Penal que o poder de cognição do Tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o Tribunal está ainda obrigado a decidir todas as questões que sejam de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem a decisão, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 daquele diploma, e dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do mesmo Cód. Proc. Penal, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito, tal como se assentou no Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995 [DR, Iª Série - A de 28.12.1995] e no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência nº 10/2005, de 20.10.2005 [DR, Iª Série - A de 07.12.2005].
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º, por remissão do artº 424º, nº 2, ambos do mesmo Cód. Proc. Penal, resulta ainda que o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem preferencial:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão (artº 379º do citado diploma legal);
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela chamada impugnação alargada, se deduzida [artº 412º], a que se segue o conhecimento dos vícios enumerados no artº 410º nº 2 sempre do mesmo diploma legal.
Finalmente, as questões relativas à matéria de direito.
Tendo em vista estes princípios, e com as devidas adaptações a considerar aqui, averigue-se o caso.
O recorrente, nas conclusões do recurso, fixa o objecto de apreciação requerida nas seguintes questões:
- o Tribunal a quo fez errada interpretação do direito, violando os arts 13º e 14º do Cód. Penal e os arts 311º, nº 2, al. a) e nº 3 e 283º, nº 3, al. b), ambos do Cód. Proc. Penal, ao ter rejeitado a acusação pública, uma vez que o Ministério Público cumpriu as determinações legais, mostrando-se inscritos todos os elementos necessários ao recebimento da mesma.
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Fundamentação
Ficou transcrito supra o despacho recorrido.
Vejamos, então, na perspectiva desta Relação se merece acolhimento a pretensão do recorrente.
Comecemos por atender aos elementos relevantes resultantes do processo.
O Ministério Público deduziu acusação nos autos por crime p. e p. pelos arts. 3º, ns 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98 de 03.01, e 121º, nº 1 do Cód. Estrada [aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94 de 03.05, alterado pelo Decreto-Lei nº 2/98 de 03.01 e pelo Decreto-Lei nº 44/2005 de 23.02 e pelo Decreto-Lei nº 138/2012 de 05.07].
O juiz a quo entende que a acusação não contém os elementos necessários à caracterização do tipo subjectivo: (…) Compulsado o teor da acusação constatamos que o Ministério Público, no que ao concerne ao dolo do tipo, limitou-se a enunciar o elemento intelectual, sendo aquela totalmente omissa na descrição de factos que configurem o elemento volitivo. Efetivamente, nada consta da acusação quanto à vontade que norteou a atuação do arguido. Nada se diz se a realização do tipo era o seu objetivo último, ou se antes foi encarada como uma consequência necessária ou eventual da sua conduta. Em nosso entendimento não basta afirmar que a atuação foi deliberada, porque esta não esgota o sentido da ilicitude nem o sentido de desvalor, nos termos supra expostos, não se concordando igualmente que a formulação escolhida na acusação se refira ao dolo direto. Ora, estando em causa crime doloso, “a acusação deve conter a referência aos factos que sustentam a imputação do dolo do tipo, ou seja, o elemento intelectual (conhecimento de todos os elementos descritivos e normativos do facto) e o elemento volitivo (vontade de realizar o facto típico), precisando a modalidade em que se exprime essa vontade (intenção direta de praticar o facto, previsão do resultado como consequência necessária ou possível da conduta e aceitação do resultado...) a estes elementos acresce um terceiro, chamado emocional, que se consubstancia na falta de consciência ética por parte do agente, ou seja, na sua atitude de indiferença perante os valores tutelados pelo direito, que deve igualmente constar da acusação.”- Ac. do TRL de 23.09.21, disponível em www.dgsi.pt (sublinhado nosso). Aliás, como foi decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº1/2015, “a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual). A acrescer a esses elementos teríamos o tal elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso, na doutrina de FIGUEIREDO DIAS”. Mais entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”. (…)
Vejamos.
O artº 311º, nº 2, a) do Cód. Proc. Penal prevê que a acusação deva ser rejeitada quando, não tendo havido instrução, ela seja manifestamente infundada.
Nos termos do seu nº 3 a acusação é de considerar manifestamente infundada quando:
a) não contiver a identificação do arguido;
b) não contiver a narração dos factos;
c) não indique as normas legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;
d) os factos descritos na acusação não constituírem crime.
O despacho recorrido entendeu que a acusação públicanão contém a narração dos factos integradores do elemento do dolo, o que a torna manifestamente infundada na perspectiva da interpretação que faz daquele preceito. Acrescentando-se que já não será possível a sua retificação ou aperfeiçoamento.
A acusação foi deduzida com o seguinte teor: (…) 1. No dia ... de ... de 2025, pelas 22h30, o arguido conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-LT, na ..., no …. 2. O arguido não tinha carta de condução ou qualquer outro documento válido que o habilitasse a conduzir veículos a motor na via pública. 3. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo que não era titular de carta de condução válida que o habilitasse a conduzir veículos a motor na via pública, conhecendo as características do veículo por si conduzido e da via onde o conduziu. 4. Conhecia o arguido a proibição e punibilidade legais da sua conduta. (…)
Exige-se no artº 283º, nº 3, al. b) do Cód. Proc. Penal que a acusação contenha, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Tendo isto em consideração, bem como os princípios ínsitos no artº 1º, nº 1 do Cód. Penal, e se os factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido são necessariamente os que integram o tipo legal de crime que é imputado [pela acusação], a título objectivo e subjectivo, é de concluir que, conquanto o tipo objetivo defina o objeto da acção ou da omissão e o tipo subjetivo defina a relação particular do agente com essa ação ou omissão, sem esses elementos integralmente descritos e circunstanciados não existe correcta imputação.
Não há que facilitar e esgrimir informalidades.
Adiante.
Neste caso, o crime imputado é um crime doloso.
E nos termos do artº 13º do Cód. Penal só os factos praticados com dolo [ou, nos casos específicos, por negligência] podem ser punidos, pelo que, fechando para já este espaço de quadratura do círculo, se conclui que se só há pena com crime e só há crime com dolo1, sendo o dolo elemento essencial do tipo, da imputação e da condenação do agente.
O dolo é composto por vários elementos, habitualmente designados de forma sintética como conhecimento e a vontade de realização do tipo objectivo de ilícito (artº 14º do mesmo Cód. Penal).
O dolo, legalmente definido no citado artº 14, consiste no conhecimento – elemento intelectual – e vontade – elemento volitivo – do agente em realizar o facto, com consciência da sua censurabilidade – consciência da ilicitude 2.
O elemento intelectual implica a previsão ou representação pelo agente das circunstâncias do facto, portanto, o conhecimento dos elementos constitutivos do tipo objetivo, sejam descritivos sejam normativos.
Já o elemento volitivo consiste na vontade do agente de realização do facto depois de ter previsto ou representado os elementos constitutivos do tipo objetivo – assim revelando a sua personalidade contrária ao direito, para uns, ou uma atitude contrária ou indiferente perante a proibição legal revelada no facto [elemento emocional do dolo], para outros 3.
Assim, o elemento intelectual traduz-se no conhecimento (enquanto previsão ou representação), pelo agente das circunstâncias do facto, ou seja, dos elementos materiais constitutivos do tipo objectivo do ilícito, aqui se incluindo as eventuais circunstâncias modificativas agravantes.
Quanto aos elementos normativos do tipo [como, por exemplo, o carácter "alheio" da coisa nos crimes contra o património; a qualidade de "funcionário" nos crimes cometidos no exercício de funções públicas e, das noções de "documento", "documento autêntico" e "vale do correio", "letra de câmbio" e "cheque" nos crimes de falsificação], no entanto, o conhecimento que se exige é apenas que a representação do agente corresponda, no essencial, ao conteúdo da valoração jurídica, cumprindo assim a função de orientar o agente para a ilicitude do facto 4.
Sendo que, como flui do exposto, para que cumpra as exigências de validade, a acusação deve descrever, através da narração dos respetivos factos, todos os elementos em que se decompõe o dolo. Ora, não existindo um padrão único para a descrição dos elementos subjetivos típicos, os mesmos são normalmente traduzidos, como se pode ler no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, de 20 de Novembro de 20145, como «fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).». Mais, uma vez que o dolo pode assumir, em cada caso, uma das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal, deve constar da acusação a narração dos factos integradores da concreta situação isto é, a intenção de realizar o facto, tratando-se de dolo direto, ou a previsão do resultado como consequência necessária da conduta, no caso de dolo necessário, ou ainda a previsão do resultado e a conformação com a sua verificação, no caso de dolo eventual. Assim sendo, na ausência de todos ou algum dos elementos caracterizadores do dolo na narração da acusação, o conjunto dos factos nela descritos não constituirá crime e assim sendo, torna-a inviável e, consequentemente, manifestamente infundada.6
Como se diz supra, não existindo fórmula sacramental e nem vinculação a uma forma única, a descrição dos elementos típicos deve apresentar-se com a clareza e completude que permita concluir, no caso da sua verificação ou prova, que o preenchimento do tipo está completo, permitindo-se, com isso, a analise integral das circunstâncias, includentes e excludentes, que possam determinar, sem recurso a elementos externos [que importariam sempre uma alteração de factos7], a condenação sem dúvidas do agente.
Nesta medida e neste contexto, sempre que esta conclusão não seja possível, são elementos do tipo que faltam. Significando isto que, por antecipação, são esses os que devem constar obrigatoriamente da acusação.
Recorda-se o que se disse supra, e como se diz no texto do Ac. Uniformizador de Jurisprudência citado [cuja data é 20.11.2014 - nº 1/2015 atenta a publicação no DR], a acusação (…) tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objetivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo direto, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).
O que vem sucedendo é que o elemento subjetivo dos crimes acaba por ser descrito, nas acusações e passando isso depois para os factos das decisões judiciais, com recurso a uma fórmula [genérica e abreviada] em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (podendo agir de modo diverso que seja conforme ao direito), [voluntária ou] deliberada (querendo a realização do facto), e consciente (tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto), sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição ou consciência da ilicitude).
Neste caso, a acusação diz: (…) 3. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo que não era titular de carta de condução válida que o habilitasse a conduzir veículos a motor na via pública, conhecendo as características do veículo por si conduzido e da via onde o conduziu. 4. Conhecia o arguido a proibição e punibilidade legais da sua conduta. (…)
Ora, se o elemento volitivo consiste na vontade do agente de realização do facto depois de ter previsto ou representado os elementos constitutivos do tipo objetivo, ao dizer-se que o arguido agiu de forma livre está a equivaler-se à indicação de que, podendo agir de modo diverso que seja conforme ao direito, não o fez, com a liberdade [que aqui sempre terá de ser consciente] de assim fazer, ou seja, ciente de que assim fazia.
A este propósito, diz o Recorrente: (…) Acresce que, o crime de condução de veículo sem habilitação legal é um crime de mão própria e o preenchimento do tipo subjetivo basta-se com o dolo, ou seja, em qualquer modalidade de dolo (cfr. artigo 14.º do Código Penal). Como tal, inexistindo qualquer facto que exclua a culpa, a conduta do arguido preenche os elementos subjetivos do tipo sempre que se demonstre que o agente agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. (…)
No entanto, o elemento «dolo», podendo assumir qualquer das formas previstas no artº 14º do Cód. Penal, depende, na sua verificação, dos factos que o caracterizem e possam, vista a actuação do agente, reconduzir-se a ela, ou, melhor dizendo, reconduzi-la a uma das categorias legais do dolo previstas na lei e que são diferentes.
Por isso, e porque a referência ao conhecimento e vontade não basta para imputar qualquer das formas concretas de dolo, deve ser inequívoca a imputação da intenção de realizar o facto por si [se tratar de dolo direto], ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo [nos crimes desta natureza], como consequência necessária da sua conduta [tratando-se de dolo necessário], ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento [se se tratar de dolo eventual].
A caracterização do dolo não é de somenos, uma vez que os factos demonstrativos do mesmo se revelam como essenciais. Tal como aqueles de que se extraia o tipo de dolo que está em causa. E tal como aqueles de que se extraia a vontade do agente dirigida a essa especial forma de actuação.
Visto isto, no entanto, parece-nos que é o recurso que não põe as coisas em devida perspectiva, acabando por não defender de forma suficiente a acusação que o próprio Ministério público deduziu.
É que a aparente simplicidade daquelas conclusões tem de ser vista no concreto do que foi imputado, ainda que usando-se da referida fórmula genérica abreviada.
Na fundamentação do citado Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, diz-se que «… a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa (…), englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de caráter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação do evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), atuando, assim, conscientemente contra o direito».
E é verdade que sim, aceitando-se esta forma de dizer, ainda que não se subscrevam as consequências que dela depois vieram a ser retiradas.
Está alegado que o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo que não era titular de carta de condução válida que o habilitasse a conduzir veículos a motor na via pública, conhecendo as características do veículo por si conduzido e da via.
Ou seja, diz-nos a acusação que o arguido quis agir como agiu (de forma livre, podendo agir de forma diversa), ciente de que o fazia (querendo a realização do facto), conscientemente (ou seja, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e conhecendo as características do carro e da estrada (ou seja, sabendo que só podia conduzir aquela viatura naquele local quando legalmente habilitado). E sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).
O recorrente considera que a acusação diz o que devia e que, não existindo causas de exculpação ou justificação, sempre se demonstra que o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente.
No entanto, não se pode dar por assente a completude do tipo e a punibilidade da conduta por exclusão de partes.
Não é este o argumento que salva esta acusação e nem poderia ser.
É que os elementos do tipo, não se presumindo, devem mostrar-se factualizados de forma suficiente a permitir, no caso de procedência da acusação, que a culpabilidade do agente se consiga inequivocamente estabelecer.
O juiz a quo entendeu que a peça acusatória não o permitia e disse, em face da acusação que foi deduzida: (…) Efetivamente, nada consta da acusação quanto à vontade que norteou a atuação do arguido. Nada se diz se a realização do tipo era o seu objetivo último, ou se antes foi encarada como uma consequência necessária ou eventual da sua conduta. Em nosso entendimento não basta afirmar que a atuação foi deliberada, porque esta não esgota o sentido da ilicitude nem o sentido de desvalor, nos termos supra expostos, não se concordando igualmente que a formulação escolhida na acusação se refira ao dolo direto. (…)
No entanto, não tem razão.
Quem lê os factos constantes da acusação que foi deduzida consegue atingir com perfeita clareza o que se pretende dizer e imputar, e consegue integrar esses factos na tipicidade penal.
Quando a acusação, que não se pretende que seja um tratado de direito penal, diz que: (…) 3. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo que não era titular de carta de condução válida que o habilitasse a conduzir veículos a motor na via pública, conhecendo as características do veículo por si conduzido e da via onde o conduziu. 4. Conhecia o arguido a proibição e punibilidade legais da sua conduta. (…)
Está de facto a dizer que o arguido, como se viu antes, sabendo e conhecendo as proibições legais, decidiu com plena liberdade actuar como fez e consciente de que assim fazia, conduzindo nessas condições.
O dolo directo, ao contrário do que se diz no despacho recorrido, é efectivamente a forma de dolo imediatamente reconhecível.
Para que se integrasse outro tipo de dolo é que seria mais difícil aceitar a peça acusatória apenas nestes termos.
Como tal, neste caso será de receber a acusação que foi deduzida.
É, pois, de conceder provimento ao recurso, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que receba a acusação.
Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, devendo o Tribunal de primeira instância substituí-lo por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público.
Sem custas (artº 4º, nº 1, al. a) do Reg. Custas Processuais).
Notifique.
Lisboa, 24 de Setembro de 2025
Hermengarda do Valle-Frias
João Bártolo
Rui Miguel Teixeira
Texto processado e revisto.
Redacção sem adesão ao AO
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1. Nesta circunstância concreta.
2. Para a doutrina tradicional do crime, sufragada, entre outros, por Eduardo Correia, o dolo desdobra-se dessa forma, num elemento intelectual e num elemento volitivo ou emocional. Figueiredo Dias, por seu turno, defende que este elemento emocional constitui já um terceiro e autónomo elemento do tipo.
3. Veja-se nota anterior.
4. Apud Figueiredo Dias - Direito Penal - Parte Geral, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, Tomo 1º, Coimbra Ed., 2.ª edição, 2007, p. 352ss.
5. Diário da República – Iª série A, nº 18 de 27 de Janeiro de 2015, sendo nosso o destaque.
6. Veja-se Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.12.2023 [Relator: juiz desembargador José Eduardo Martins] – www.dgsi.pt\trc. – destaque nosso.
7. Voltaremos adiante a este concreto ponto, atento a que no AUJ referido o nosso Supremo Tribunal deixou clara a posição segundo a qual entende que o juiz de julgamento não pode socorrer-se dos mecanismos previstos nos arts. 358º e 359º do Cód. Proc. Penal para sanar faltas ou insuficiências ao referido nível.