PUNIBILIDADE DA TENTATIVA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Sumário

Sumário:
Nos termos do art. 22º nº 2 do Código Penal, são actos de execução os que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime, bem como os que forem idóneos a produzir o resultado típico, sendo-lhes equiparados aqueles que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos executivos.
O regime jurídico da tentativa orienta-se, assim, numa direcção objectiva, centrada no conceito da punibilidade dos actos executivos da conduta típica.
Por outro lado, a seriação do que são actos de execução é efectuada por referência a critérios que assentam no pressuposto da causalidade adequada, aferido pela idoneidade ou capacidade potencial de produção do evento, o que vale por dizer que, ao mesmo tempo, que fica excluída a punição de meros pensamentos, intenções, resoluções e/ou atitudes, há que proceder à avaliação da conduta externa do agente e determinar se essa conduta consubstancia um acto ou vários actos de execução, no sentido de actos que encerram em si mesmos momentos de ilicitude, pois ainda que não produzam a lesão do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime consumado, produzem já uma situação de perigo para esse bem, por preencherem um ou alguns dos elementos constitutivos de um tipo de ilícito.
A questão que se coloca perante as conclusões do recurso, é a de saber se a conduta do arguido está abrangida pelo nº 3 do artigo 23º do Código Penal, ou seja, se é ou não punível.
No que importa ao presente caso, este preceito legal dispõe que a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente.
Ora, a circunstância de a arma de fogo usada pelo arguido para disparar contra o corpo do ofendido estar apta a disparar, tal como resulta demonstrado, designadamente, no facto 11 (contrariamente ao que o arguido pretende, mas não conseguiu provar), impõe, sem margem para qualquer dúvida ou necessidade de ulterior argumentação, a exclusão liminar da possibilidade de ponderar a possibilidade de tentativa impossível, pois era precisamente, na alegada, mas não demonstrada impossibilidade de a arma deflagrar as munições insertas na câmara, que o recorrente sustentou esta sua tese da tentativa impossível, impondo-se, também, nesta parte, negar provimento ao recurso.
A actividade jurisdicional de escolha e determinação concreta da pena não corresponde a uma ciência exacta, sendo certo que além de uma certa margem de prudente arbítrio na fixação concreta da pena, também em matéria de aplicação da pena o recurso mantém a sua natureza de remédio jurídico, não envolvendo um novo julgamento. O tribunal de recurso só alterará a pena aplicada, se as operações de escolha da sua espécie e de determinação da sua medida concreta, levadas a cabo pelo Tribunal de primeira instância revelarem incorrecções no processo de interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais vigentes em matéria de aplicação de reacções criminais. Não decide como se o fizesse ex novo, como se não existisse uma decisão condenatória prévia.
E sendo assim, é preciso ter sempre em atenção que o Tribunal recorrido mantém incólume a sua margem de actuação e de livre apreciação, sendo como é uma componente essencial do acto de julgar.

Texto Integral

Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido no dia 10 de Abril de 2025, no Processo Comum Coletivo nº 261/24.0GDALM do Juízo Central Criminal de Almada - Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi decidido:
1. Absolver AA de um crime de homicídio qualificado agravado pela utilização de arma, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, alínea j), 22.º e 23.º, todos do Código Penal, e artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
2. Condenar AA:
a. Pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 22.º e 23.º do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3, do RJAM, na pena parcelar de 5 (cinco) anos de prisão.
b. Pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, v), 3.º, n.º 2, alínea l), todos do RJAM, na pena parcelar de 1 (um) ano e 6 (seis) meses.
c. Em cúmulo jurídico das precedentes penas, na pena unitária de 6 (seis) anos de prisão.
3. Condenar AA a pagar a BB a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a data do presente acórdão até integral pagamento.
4. Declarar perdidas a favor do Estado, a arma e munições apreendidas (cf. auto de apreensão 50), ordenado a sua destruição., bem como os recipientes contendo vestígios sujeitos a exame e juntos à contracapa.
5. Determinar que, após trânsito, caso se mantenha a condenação em pena de prisão igual ou superior a três anos, se oficie ao Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, para que diligencie pelas necessárias diligências com vista a recolha de amostra de ADN nos termos do disposto nos artigos 1.º, n.º 1 e n.º 2, e 8.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro.
O arguido interpôs recurso desta decisão, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões:
1. No modesto entendimento do recorrente, e sempre com o devido respeito pelo douto Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, este não devia dar como provados determinados factos, nomeadamente os constantes dos Pontos a 15 da douta Sentença recorrida.
2. O testemunha da Sra. Inspetora da Polícia Judiciária CC, perita em armas e munições, deveria implicar uma valoração distinta por parte do douto tribunal a quo da atuação do arguido, com implicação nos factos dados como provados.
3. Resultou demonstrado pelo depoimento da Senhora perita, Inspetora da Polícia Judiciária, que a arma não estava em condições de ser deflagrada e, consequentemente, o arguido não tinha a disponibilidade de atentar contra a vida do ofendido, nos termos em que o tribunal a quo assim o entendeu 4. Veja-se passagem constante de 08.01.2025_11-37-13 Minuto 13:19
Instâncias da Defesa.
Defesa - Muito bom dia, Sra. Inspetora. Consegue me ouvir bem?
Inspetora - Sim, sim, bom dia.
Defesa - Sra. Inspetora, eu pretendia aqui só um esclarecimento relativamente ao funcionamento desta arma. Perceber como é que funciona esta arma, se é uma arma que requer alguma técnica especial para poderem ser deflagradas as munições. Como é que funciona esta arma? Pode nos dizer, por favor!
Inspetora - Não, é bastante simples. É semiautomática, portanto, basta puxar a corrediça atrás ou puxar o cão atrás a primeira vez, a partir daí, portanto, o carregador faz subir automaticamente as próximas munições e, portanto, não tem nenhuma técnica especial, por assim dizer.
Defesa - Ou seja, a partir do momento em que é deflagrado o primeiro disparo, se não acontecer nenhuma questão acidental, excecional, digamos assim, basta premir o gatilho que ela continuará a disparar!?
Inspetora - Correto, exatamente! A menos que aconteça como aconteceu e que haja um golpe que fica ali junto da câmara, aí já é preciso algumas manobras para retirar esse invólucro.
Defesa - Já agora que mencionei esta questão, já agora precise que manobras são essas que são necessárias para poder tirar esse invólucro, para poder deflagrar novamente as munições e utilizar a arma?
Inspetora - Retirar o carregador e voltar a puxar a corrediça atrás com força, não é!? De forma, a que esse invólucro que está encravado saia definitivamente da câmara extratora ou da janela de injeção. A partir daí, voltar a puxar a corrediça atrás, colocar o carregador e puxar novamente o carregador atrás para subir novamente a primeira munição. E isso já requer algum tempo!
Defesa – Exatamente! Isso já requer algum tempo e alguma perícia, digamos assim!? Ou pelo menos saber manusear a arma!?! Ou seja, estando o invólucro como se encontrava, creio eu, permita-me, se estiver a utilizar expressões erradas, na câmara da arma, não se consegue deflagrar novamente nenhuma munição!?
Inspetora - Não, não se consegue e digamos assim, no âmbito de uma luta, não é? No contexto de uma luta, a pessoa não tem tempo de interromper a luta corpo a corpo com o outro, e estar ali a fazer essas manobras para voltar a desfazer a munição. Porque é preciso, de facto, algum tempo para o fazer.
(…)
MP- Ainda relativamente agora ao funcionamento da arma, suscitou-se-me uma dúvida que é a seguinte. Relativamente à pressão no gatilho, à pressão no gatilho, é uma pressão contínua? É uma pressão que pode ser feita de duas maneiras? Eu gostaria que me elucidasse a esse respeito.
Inspetora - Não. É uma pressão tiro a tiro. Ou seja, se fosse uma arma automática, puramente automática, basta uma pressão e os invólucros saem de forma contínua. Sendo uma arma semi-automática, pressupõe uma libertação do gatilho e um novo premir do gatilho. Portanto, há um gesto de tiro do dedo-indicador ou do outro dedo, mas normalmente será o indicador. Portanto, dois disparos, significa que há dois movimentos do dedo-indicador para efetuar o disparo.
MP - O que pergunto é se, qualquer que seja o movimento para cada disparo, se isso implica uma pressão contínua? Sim, a questão é saber se posso ir premindo até disparar.
Juiz -Não, doutora, eu já disse que não. Cada disparo implica um movimento.
MP - Sim, sim, mas eu digo é um movimento de pressão para libertar.
Inspetora - Sim, mas já percebi a pergunta, doutora, e a resposta é sim. O disparo não é automático, por assim dizer. Há um momento em que vai premindo e o disparo não sai. Sim, a doutora tem razão. Há sempre um espaço de segurança, por assim dizer, em que o gatilho vai sempre premido, mas o disparo não sai. E passados alguns segundos, aí sim, o disparo é deflagrado.
MP - No fundo é só uma concretização. Muito bem, é tudo. Obrigada.
Inspetora – Mas, em relação à força em si, até uma criança consegue disparar.
MP - Sim, sim, não era bem essa questão. Obrigada.
5. Em conformidade, encontrando-se a arma no estado em que se encontrava não havia qualquer evidência da possibilidade do meio (arma) para produzir o resultado (disparo), ou seja, estamos perante uma tentativa impossível de homicídio.
6. Na esteira da jurisprudência fixada e mais concretamente discorrendo sobre o Acórdão do TRE de 21.09.2021 expressa-se que, “A punibilidade da tentativa impossível depende da evidência ou não da impossibilidade do meio para produzir o resultado, sendo que a tal determinação preside um critério objectivo – saber se do ponto de vista de um homem médio, colocado na posição dos intervenientes na acção em apreço (agente e vítima), a inadequação do meio era visível, ou seja, se segundo as regras da experiência, observando a conduta do agente e considerando as demais circunstâncias concretas, inclusive tendo em conta os especiais conhecimentos do agente, se poderia concluir, de forma evidente, pela impossibilidade do meio para produzir o resultado – juízo de prognose póstuma ex ante”
7. A apreciação jurídica nos termos sobreditos devia redundar na não punibilidade do arguido, recorrente, ou na redução da medida da pena parcelar aplicada ao arguido.
8. No modesto entendimento do recorrente e salvo o devido respeito, o tribunal a quo ao aplicar uma pena de prisão de seis anos de prisão contrariou as normas legais penais, processuais e constitucionais aplicáveis in casu, bem como a jurisprudência, afrontando, assim, os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), as regras da experiência, apresentando-se, a este Tribunal ad quem, a possibilidade de tal reparação, com aplicação de uma pena adequada e proporcional na defesa do ordenamento jurídico, sem ultrapassar, no respetivo entendimento, a medida da culpa.
9. Ainda que se conceba pela manutenção dos factos dados como provados no douto Acórdão, Pontos 40.º a 50.º do douto acórdão, o arguido, ora recorrente, entende, salvo douta e melhor opinião, que o quadro geral de apreciação dos ilícitos perpetrados não são suficientes, de modo a considerar-se de per si como obrigatória a aplicação de uma pena acima do patamar dos cinco anos, tendo, inclusivamente, o arguido confessado em tribunal a maior parte dos factos, e, ainda que a sua explicação não tenha recebido colhimento por parte do tribunal a quo, sempre será de considerar o facto de o arguido se encontrar embriagado no momento da prática dos factos, refletindo a atuação inconsciente e irrefletida por parte do arguido, muito em função do estado de embriaguez em que se encontrava.
10. Em consonância com a jurisprudência que vem sendo fixada pelos Tribunais superiores entende-se pela desproporcionalidade e excessividade das penas parcelares, não obstante se observe a danosidade ínsita na ação do recorrente, pelo que as penas parcelares deverão ser reduzidas nos seguintes termos:
a. Pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 22.º e 23.º do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3, do RJAM, na pena parcelar de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
b. Pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, v), 3.º, n.º 2, alínea l), todos do RJAM, na pena parcelar de 6 (seis) meses.
c. Em cúmulo jurídico das precedentes penas, na pena unitária de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão.
11. O arguido tem 55 anos de idade e nunca teve qualquer contato com o sistema judicial. Está inserido social e familiarmente e apresenta uma imagem positiva no seu meio social, sem problemas de natureza interpessoal, é pessoa cordial, com adequadas competências de comunicação, sendo prestável/solícito e aparentando tender a evitar conflitos.
12. E, antecipando-se a possibilidade da redução da pena de prisão aplicada ao arguido para um patamar igual ou inferior a cinco anos de prisão não pode, nem deverá, a pena de prisão efetiva resultar como a única pena a ponderar e aplicar nos presentes autos, facto com o qual, obviamente, não pode concordar o recorrente, por ilegal e por desrespeito às normas constantes dos artigos 32.º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, e artigos 1.º, 40.º, 43.º, 47.º, 48.º, 50.º, 53.º, 70.º e 71.º, todos do CP e 379.º do CPP.
13. Face à matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo não resta tão- somente a possibilidade de aplicação da pena de prisão imposta pela douta decisão recorrida ao arguido, ora recorrente, conquanto se verifique a legal e ponderada redução das penas parcelares aplicadas ao arguido, sendo de boa e salutar ponderação sobre a sua necessidade, adequação e proporcionalidade e à luz da gravidade e censurabilidade do comportamento do arguido, e salvo melhor e douto entendimento, a condenação do arguido numa pena de prisão, por excesso, no máximo de cinco anos e consequente suspensão da execução da pena de prisão.
14. Entende o ora recorrente, e sempre com o mui devido respeito, que ao decidir da forma exposta, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 40.º, 47.º, 50.º, 53.º, 70.º e 71.º do Código Penal, artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
15. Pelo que se conclui que existe uma resolução forte de o recorrente não incorrer novamente neste comportamento, sendo, ainda, manifesto, que existe um circunstancialismo tendente à realização de um juízo de prognose favorável, no que concerne a uma redução, não só da graduação da pena de prisão que lhe foi aplicada pelo Tribunal a quo, mas também pela possibilidade da suspensão da execução da pena de prisão, com regime de prova, tudo na justa e proporcional medida da culpa e da pena.
16. Por último, entende o recorrente que face à matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo, deverá ser reduzida a pena de prisão aplicada ao arguido, entendendo-se por adequada e proporcional a pena de prisão inferior a 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução, com regime de prova a definir e com acompanhamento pelos Serviços de Reinserção Social, concebendo-se como razoável um juízo de prognose positiva no sentido de que a censura do facto e a ameaça da prisão caso haja incumprimento do plano ou reincidência serão suficientes para que o arguido não volte a delinquir, realizando-se, assim, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou resposta, na qual concluiu que as conclusões do recurso interposto pelo arguido não cumprem o art. 412º nº 2, 3 e 4 do CPP, não estão verificados os pressupostos da tentativa impossível, não houve excesso na aplicação das penas parcelares e única e não estão verificados os pressupostos da suspensão da execução da pena, pelo que o recurso deve improceder e o acórdão recorrido deverá ser confirmado na íntegra.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, a Exma. Sra. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer, no qual, além do mais, referiu o seguinte (transcrição parcial):
Na verdade, pretendendo impugnar a matéria de facto, o Recorrente não especifica (i.e. explicando com pormenor e clareza) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, nem concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (cf. artigo 412.º, n.º 3 do CPP).
Por outro lado, a afirmação genérica de que a prova produzida foi insuficiente para dar como provados determinados factos resulta, assim cremos, insindicável pelo Tribunal de recurso, por contender com o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º do CPP).
Acresce que, a conclusão de que a arma não se encontrava apta a disparar e por isso a tentativa era impossível é contrariada pela sequência dos factos (facto 11): o arguido efetuou um primeiro disparo para o ar (facto 16), apontou da arma em direção ao peito do visado (facto 18), encostou a arma entre as clavículas do visado enquanto dizia que o matava (facto 19) e ocorreu um segundo disparo quando o arguido empunhava a arma (facto 20). É, pois, evidente que a arma empunhada pelo arguido, e que este apontou e encostou ao corpo do visado, estava apta a disparar, e tanto assim é que disparou…
Depois destes factos, a arma encravou (facto 24). Contudo, o arguido continuou a premir o gatilho, estando a arma apontada ao corpo do visado (facto 25) e apercebendo-se que a arma estava encravada tentou retirar, com a mão, a munição encravada (facto 26).
Tanto basta, em nosso entender para concluir em sentido inverso do pretendido: a tentativa não era impossível, o ilícito é pela sua própria natureza grave, como intenso foi o dolo do arguido.
Assim, e aderindo, no mais à posição expendida pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido, somos de parecer que o acórdão não merece censura, devendo o recurso ser julgado improcedente.
Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência prevista nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DO ÂMBITO DO RECURSO E DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito ( Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões, as questões a tratar são as seguintes:
A) Erro de julgamento, nos termos do art. 412º do CPP, quanto aos factos 11, 16, 18 a 20, 22 a 28, 31 a 33, 36, 37 e 39 exarados na matéria de facto provada, no acórdão recorrido;
B) Se o acórdão recorrido padece de algum dos vícios decisórios previstos no art. 410º nº 2 als. a) a c) do CPP;
C) Se foi violado o princípio «in dubio pro reo»;
D) Se se verificam os pressupostos da tentativa impossível;
E) Se houve excesso das penas parcelares e única;
F) Se deve ser aplicado o instituto da suspensão da execução da pena.
2.2. DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Do acórdão recorrido consta a seguinte matéria provada e não provada e a forma como o Tribunal a quo fundamentou a mesma (transcrição):
Da acusação:
1.º O arguido AA conhece BB desde 2006, data em que o segundo foi residir para a ... (1.º da acusação)
2.º A relação foi cordata até data não concretamente apurada, mas pelo menos há nove anos, altura em que se iniciaram conflitos entre ambos por motivos vários, incluindo acerca da limpeza do espaço em que ambos habitavam, bem como por motivos familiares pois o arguido imputa a BB o abuso sexual da sua sobrinha, que este nega (2.º da acusação).
3.º Por força da inimizade entre ambos, o arguido, quando se encontrava embriagado, várias vezes disse a BB que “um dia destes lhe dava um tiro” (3.º da acusação).
4.º No dia ...-...-2024, entre as 8:00 e as 10:00, o arguido, encontrando-se embriagado, dirigiu-se à residência de BB, sita também na ..., procurando-o para que este procedesse à limpeza do lixo existente junto da sua casa (4.º da acusação).
5.º Ao verificar que o mesmo aí não se encontrava, iniciou uma discussão com DD, companheira de BB, tendo esta, na sequência da referida discussão, empurrado o arguido (5.º da acusação)
6.º Como consequência directa e necessária do referido empurrão, o arguido caiu ao chão e sofreu uma ferida no seu dedo indicador direito (6.º da acusação).
7.º Por volta das 10:00 horas, o arguido AA encontrava-se junto à porta da residência de BB (7.º da acusação).
8.º Ao verificar que BB se encontrava a sair da sua residência, o arguido AA chamou-o e disse-lhe “estás a ver esse lixo aí? hoje vais limpar isto de obriga”, referindo-se ao lixo e entulho que se encontrava à porta da residência do primeiro (8.º da acusação).
9.º BB respondeu-lhe, dizendo “tu tens a tua porta e eu tenho a minha, manda na tua porta que eu mando na minha” (9.º da acusação).
10.º De seguida BB voltou as costas ao arguido AA e dirigiu-se à saída da ... (10.º da acusação).
11.º Nesse instante o arguido AA dirigiu-se à sua residência, entrou no seu quarto, e do interior de uma gaveta da cama retirou a sua pistola semiautomática, transformada, de marca Browning, de calibre 6.35, com deficiências frequentes de funcionamento, mas apta a disparar, que se encontrava contida num cofre metálico de cor branca, com o intuito de efectuar disparos em direcção ao corpo de BB e de atentar contra a vida deste (11.º da acusação).
12.º Alguns minutos depois, o arguido AA dirigiu-se à saída da ..., seguiu em direcção a um contentor do lixo que aí se encontrava e visualizou BB, que se encontrava sentado nas imediações (12.º da acusação).
13.º O arguido AA dirigiu-se a BB, ficando parado em frente dele, a distância não apurada, e permanecendo cerca de 5 minutos a olhar fixamente para o mesmo (13.º da acusação).
14.º De seguida, surgiu DD que após colocar o saco de lixo que trazia consigo no referido contentor, abandonou o local na companhia de BB em direcção à residência de ambos (14.º da acusação).
15.º O arguido AA seguiu no encalce de ambos (15.º da acusação).
16.º Ao verificar que DD e BB haviam entrado na residência de ambos, o arguido AA deslocou-se até ao seu quintal, tendo aí efectuado um disparo com a referida arma de fogo para o ar enquanto gritou “filho da puta, vou-te matar” (16.º da acusação).
17.º Ao ouvir os referidos disparo e expressões, BB saiu da sua residência (17.º da acusação).
18.º O arguido deslocou-se na direcção de BB, com a referida arma na sua mão e, ao visualizar este último, apontou-a em direcção ao peito deste (18.º da acusação).
19.º BB levantou as mãos e o arguido AA aproximou-se dele, encostando o cano da arma entre as clavículas deste, fez força com a mesma, empurrando BB para trás, enquanto dizia que o matava (19.º e 20.º da acusação).
20.º Nesse momento, BB deu um passo atrás, com a sua mão, desviou a mão do arguido que empunhava a pistola, ocasião em que ocorreu um disparo (21.º da acusação).
21.º O referido disparo não acertou em BB (22.º da acusação).
22.º De seguida, ao verificar que BB havia agarrado a arma com a sua mão, o arguido fez força com a mão que se encontrava a segurar na arma procurando voltar o seu cano em direcção ao corpo de BB (23.º da acusação).
23.º Por sua vez, BB, que continuava a agarrar a referida arma, fez força com a sua mão, em sentido contrário à força exercida pelo arguido, procurando afastar o cano do seu corpo (24.º da acusação).
24.º Enquanto isto, o arguido premiu o gatilho, mas a arma não disparou porque a munição ficou encravada no cano (25.º da acusação).
25.º Continuou a premir o gatilho da referida arma, estando esta apontada ao corpo de BB, que, por se encontrar encravada, não efectuou qualquer disparo (26.º da acusação).
26.º Ao aperceber-se que a arma se encontrava encravada, o arguido AA tentou retirar, com a sua outra mão, a munição encravada no cano da mesma (27.º da acusação).
27.º Acto continuo BB desferiu um soco na face do arguido AA (28.º da acusação).
28.º Ao verificar que o arguido AA não cessava a sua conduta, BB desferiu um novo soco na face deste (29.º da acusação).
29.º Como consequência do último soco, o arguido AA caiu ao chão de costas, tendo BB caído por cima de si (30.º da acusação).
30.º Nesse momento, BB efectuou um puxão com força na referida arma, tendo desarmado o arguido AA e, por sua vez, entregou-a a DD (31.º da acusação).
31.º BB disse ao arguido que não lhe ia fazer mal, levantou-se e saiu de cima dele (32.º e 33.º da acusação).
32.º Alguns momentos depois, o arguido AA levantou-se e, ao verificar que BB se encontrava a contactar com as autoridades através do telemóvel, agarrou num fogareiro que se encontrava no local e dirigiu-se ao primeiro com o intuito de o agredir (34.º da acusação).
33.º O arguido AA não conseguiu atingir com o referido fogareiro no corpo de BB, por força deste se ter apercebido da intenção do arguido e lhe ter desferido um soco ou um pontapé antes que o conseguisse alcançar (35.º da acusação).
34.º Nas referidas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o arguido AA detinha seis munições, de calibre 6,35mm, próprias para armas de fogo com canos estriados, de percussão central, com projéctil ogival em chumbo encamisado a cobre, quatro delas no interior de carregador e uma delas no interior de um cofre metálico branco (36.º da acusação).
35.º O arguido não é titular de qualquer licença de uso e porte de armas (37.º da acusação).
36.º O arguido agiu, quis e representou disparar pistola semiautomática, transformada, de calibre 6.35, sucessivamente, sobre o corpo de BB, visando o pescoço e o peito deste, bem sabendo que nessas zonas do corpo se alojavam órgãos vitais ao funcionamento do corpo humano e que tal conduta é apta a causar lesões, hemorragia e morte, o que apenas não logrou por motivos alheios à sua vontade (38.º da acusação).
37.º Mais representou e quis causar a morte BB, não se coibindo de utilizar armas de fogo, pretendendo disparando contra uma pessoa desarmada, e, por isso, indefesa (39.º da acusação).
38.º O arguido conhecia as características e natureza da pistola e munições que possuía, bem sabendo que se tratavam de objecto cuja detenção é proibida por lei, bem como, que não era titular de qualquer licença para o poder fazer legalmente, e, não obstante, decidiu deter as mesmas, o que conseguiu (40.º da acusação).
39.º O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária, e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento (41.º da acusação).
Das condições pessoais e socioeconómicas do arguido e antecedentes criminais:
40.º À data dos factos, o arguido vivia na morada referida nos autos, tratando-se de uma casa térrea de tipologia T3, pertença da ... e arrendada em nome do pai, entretanto falecido. A habitação insere-se numa quinta, onde se encontram mais três casas, sendo uma delas habitada por BB e as outras duas por irmãs do arguido.
41.º O agregado era constituído pelo próprio e a companheira, relação que perdurava há cerca de 2 a 3 anos, e que foi avaliada por ambos como funcional e caracterizada pela interajuda.
42.º O arguido trabalhava então como ..., situação que se registava há cerca de 4 meses, não tendo ainda formalizado contrato de trabalho. Auferia diariamente € 60,00 pagos à semana. A companheira do arguido trabalhava como …, auferindo salário mensal de € 695,00. Mantinham uma situação financeira estável, assumindo o arguido as despesas com os consumos domésticos e renda, partilhando com a companheira as despesas alimentares. Dispunham de uma horta para cultivo de alimentos para consumo próprio.
43.º Frequentava pontualmente cafés, sobretudo ao final do dia de trabalho, onde convivia com um grupo de conhecidos e amigos, apresentando uma imagem positiva no seu meio social, sem problemas de natureza interpessoal, não obstante o consumo bebidas alcoólicas de modo regular, com algum excesso em contexto de festividades.
44.º O processo de desenvolvimento do arguido decorreu até aos 11 anos de idade em ..., junto do agregado materno, e desde então em Portugal, inserido no agregado paterno refeito. Ambos os agregados mantiveram um registo relativamente funcional e normativo, onde o trabalho foi uma dimensão bastante valorizada.
45.º O arguido iniciou o percurso escolar em ... onde conclui o 4.º ano de escolaridade. Porém quando veio para Portugal teve que retomar os estudos desde o primeiro ano do primeiro ciclo de ensino. Apesar da diferença de idades, integrou-se adequadamente, frequentando a escola até cerca dos 18 anos de idade, tendo concluído o 5.º ano de escolaridade.
46.º O arguido iniciou então o seu percurso laboral, conjuntamente com o pai numa padaria, tendo posteriormente trabalhado no sector industrial, encontrando-se activo no sector da … desde os 28 anos de idade, essencialmente como ..., embora com experiência em várias das profissões desta área.
47.º O arguido é pessoa cordial, com adequadas competências de comunicação, sendo prestável/solícito e aparentando tender a evitar conflitos.
48.º Durante o período de permanência no ..., tem mantido um comportamento ajustado às regras internas vigentes, ocupando o seu tempo de forma estruturada, nomeadamente através da prática de actividade desportiva, leitura e realização de jogos de quebra cabeças.
49.º Não antecipa constrangimento no campo da futura reintegração em meio livre, dado o seu contexto sociocomunitário e familiar, manifestando consciência da gravidade dos crimes em causa nos autos.
50.º Do seu certificado de registo criminal, emitido em 5 de Fevereiro de 2025, não consta qualquer condenação.
b) Factos não provados
a. O arguido cortou relações com BB quando o seu progenitor morreu (2.º da acusação).
b. O arguido frequentemente proferia as expressões descritas em 3.º (3.º da acusação).
c. Na ocasião descrita em 8.º, o arguido apontou para o lixo e entulho (8.º da acusação).
d. Na ocasião descrita em 9.º, BB disse «tu mandas na tua rua, eu mando na minha rua” (9.º da acusação).
e. Na ocasião descrita em 13.º o arguido permaneceu a cerca de 3 metros de BB (13.º da acusação).
f. Na ocasião referida em 16.º o arguido, por diversas vezes, proferiu a expressão «se não limpares este lixo, vou-te matar» (16.º da acusação).
g. Na ocasião referida em 17.º, BB permaneceu mesmo à entrada da sua residência (17.º e 18.º da acusação).
h. Nas circunstâncias descritas em 20.º foi o arguido quem de forma intencional procedeu ao disparo (21.º da acusação).
i. O disparo referido em 20.º não acertou em BB, porque o mesmo conseguiu afastar a arma do seu corpo e a munição deflagrada passou por cima do seu ombro (22.º da acusação)
j. Na ocasião descrita em 31.º BB dirigiu-a a seguinte expressão ao arguido «Eu não te vou matar, não te vou fazer mal, vou chamar a polícia para ti»
k. O golpe descrito em 33.º foi desferido na face do arguido (35.º da acusação).
Inexistem outros factos provados ou a provar com relevo para a decisão, revestindo o demais alegado natureza jurídico-conclusiva ou de mera impugnação.
c) Motivação
Na formação da sua convicção o Tribunal atendeu aos meios de prova disponíveis, alicerçando-se nos dados objectivos fornecidos pelos documentos dos autos, fazendo uma análise das declarações e depoimentos prestados, e apreciando globalmente a prova produzida de acordo com as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, procedendo à sua análise crítica (cf. artigo 127.º do Código de Processo Penal).
Atendeu-se, designadamente, aos seguintes meios de prova:
- Declarações – prestadas pelo arguido em audiência de julgamento, em primeiro interrogatório judicial de arguido detido e perante a órgão de polícia criminal reproduzidas em audiência nos termos do artigo 357.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal.
- Testemunhal – depoimentos de EE, DD, BB, FF e CC.
- Pericial – relatórios periciais de reportagem fotográfica, de folhas 189-198, pesquisa de resíduos de disparo de armas de fogo, de folhas 207; e de balística, de folhas 222 a 226, de biologia, de folhas 272-274.
- Documental – comunicação de notícia de crime, de folhas 2 a 4; reportagem fotográfica, de folhas 39; relatório de inspecção judiciária, de folhas 40 a 49; auto de apreensão, de folhas 50; autos de exame, de folhas 51-52 (arma) e 53 a 55 (munições); auto de notícia, de folhas 210-211; informação sobre a titularidade de licença de uso e porte de arma e registo de arma, de folhas 147; relatório social de folhas 314-316, certificado de registo criminal, folhas 366.
Quanto às declarações do arguido, o mesmo prestou-as perante órgão de polícia criminal (em ...-...-2024, documentadas a folhas 35-38), em primeiro interrogatório judicial de arguido detido (em ...-...-2024, documentadas a folhas 101-120), ambas reproduzidas em audiência, nos termos do artigo 357.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, e, finalmente, em audiência de julgamento.
Ressalvadas as circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreram os factos, bem como a animosidade existente entre si e BB, bem como a detenção da arma e munições, as declarações apresentam entre si, várias discrepâncias, especialmente relevantes quanto ao número de tiros que disparou, e em que moldes o fez, em particular a direcção em que o fez, o que, desde logo, denota a sua falta de correspondência à verdade.
O arguido referiu o conflito existente entre si e BB por causa, além de um abuso sexual que aquele terá praticado na pessoa da sua sobrinha, de lixo que este deixa no terreno onde se encontram as residências de ambos, propriedade da ... e cuja utilização lhes é cedida, intitulando-se como a pessoa responsável pela sua manutenção, respondendo perante a proprietária. Mais referiu, em moldes coincidentes nas três vezes que prestou declarações, que, no dia em causa, pelas onze horas, após ter ingerido bebidas alcoólicas em excesso, dirigiu-se a casa de BB para instá-lo, mais uma vez, a proceder a limpezas, tendo encontrado este e a companheira DD.
A partir deste ponto, as declarações do arguido prestadas nos diversos momentos processuais, começam a divergir entre si.
Perante o competente órgão de polícia criminal, referiu o arguido que BB reagiu mal, dizendo-lhe que, se queria tudo limpo, que limpasse. Perante isto, porque se encontrava alcoolizado e sentiu-se desrespeitado, perdeu o controlo e insistiu na limpeza, tendo sido surpreendido com uns socos na face desferidos por BB, começando a sangrar abundantemente do nariz e do dedo indicador da mão direita. DD juntou-se ao companheiro, agredindo-o com pontapés nas pernas. Sentindo-se humilhado e irritado, foi a casa buscar uma arma, tendo-se deparado, ao aí chegar, com FF, a quem relatou que tinha sido agredido por BB e companheira, foi buscar a arma, que identificou, que se encontrava num cofre, tendo este ficado ensanguentado quando o manuseou. Saiu de casa com o propósito de ir ao encontro de BB, tendo efectuado imediatamente um disparo, mas dirigido ao ar. Seguiu pelo corredor comum até à casa de BB, com a arma na mão direita. Ao chegar junto daquele, ao lado do qual se encontrava a companheira, apontou a arma de fogo na direcção das pernas daquele, com o propósito de o intimidar, repetindo que ele tinha de limpar o espaço. Nega ter realizado qualquer disparo, afirmando ter ficado por instantes a apontar a arma às pernas de BB, a cerca de um metro de distância. Foi subitamente agarrado por BB e companheira, que o atiraram violentamente para o chão. Estava a segurar a arma de fogo quando caiu. BB caiu por cima de si. Não tem a certeza se a arma disparou ou não quando caíram no solo. Em suma: o único disparo intencional foi o que realizou junto à sua casa; nunca quis matar BB, pretendendo apenas intimidá-lo.
Quanto à proveniência da arma, declarou tê-la adquirido em 1991, no Entroncamento, a pessoa cuja identidade desconhece.
Já em sede de primeiro interrogatório, realizado dois dias depois das referidas declarações, aludiu o arguido a quatro disparos. Com efeito, afirmou ter disparado uma primeira vez junto da sua casa, para o ar, com o propósito de intimidar BB. Este estava na esquina à frente da casa da sua irmã que é em frente à casa dele e viu-o, tendo começado a gritar e a dizer “isso é pra quê, é pra mim”. Respondeu-lhe que, se fosse, teria apontado para ele. Depois, chegou junto dele e disparou um tiro por entre as pernas dele, a um metro de distância, tendo a bala passado no meio das pernas como realmente pretendia. Apesar disto, BB não se intimidou e empurrou-o contra a parede; desviou-se, ele veio para cima de si, deu-lhe socos na cara, fazendo com que o declarante caísse no chão. Com a queda, a arma bateu no chão e disparou sozinha. Foi a companheira de BB que lhe tirou a arma da mão. Nesta altura, a arma estava encravada. Durante toda esta actuação, DD estava a lavar a loiça, só tendo intervindo do final e dito que ia chamar a guarda.
Acrescentou, em momento posterior destas declarações, que, depois de ter atirado para o ar, tentou disparar para o mato e a arma encravou. Puxou-a atrás outra vez, e veio a conseguir atirar efectivamente para o mato, isto junto da sua casa. Foi depois deste tiro, que se aproximou de BB e disparou um por entre as pernas dele, tendo o último disparo sido o acidental quando caiu no solo. Já na fase final das declarações, referiu que BB o empurrou mais vezes, incluindo antes do disparo realizado antes de disparar por entre as pernas dele e apesar de ter uma arma na mão. Por fim, acabou por sintetizar o evento do seguinte modo: ele empurrou-o, a sua mão, que empunhava a arma, bateu no chão, a arma disparou, ele veio para cima de si, agarrou-lhe na mão, levantou-lhe a mão e tirou-lhe a arma
Nunca disse a BB que o mataria, nem no dia dos factos, nem em data anterior. Nunca o quis matar, senão tê-lo-ia conseguido. Apenas pretendia intimidá-lo.
Nestas declarações, admitiu que a arma era sua, que não tinha licença. Quando ao modo como entrou na sua posse, declarou tê-la encontrado junto do caixote do lixo ao pé de casa. Há mais de 5 anos. Achou bonita. Estava guardada num cofre, no interior da gaveta existente debaixo da cama. Encontrou-a carregada. Nunca abriu, portanto, não sabe quantas munições tinha. Só a disparou naquele dia. Foi a primeira a vez que pegou numa arma. Para disparar pela primeira vez, puxou para trás, depois, como era automática, já estava preparada. Foi um rapaz a quem mostrou a arma que lhe disse que era automática e “trabalhada” (sic).
Já em sede de audiência de julgamento, declarou o arguido que se dirigiu a casa de BB pelas onze horas, deparando-se com o mesmo à frente da porta. Disse-lhe que limpasse o lixo para não ouvir falar mais disso (da parte da ...) e aquele respondeu: “limpa se quiseres”: DD estava a lavar loiça no quintal. Repetiu o que tinha dito e BB continuou a responder mal. Nessa altura, começaram a discutir. DD desferiu-lhe um empurrão, atingindo-o no peito, levando-o a cair e a sofrer ferida no dedo indicador direito. Enquanto estava no chão, BB desferiu-lhe vários socos na cara. Começou a sangrar do nariz, levantou-se, verificando que tinha sangue na roupa. Deslocou-se a sua casa, onde se encontrava FF, que à data se encontrava a viver lá em casa e estava a ver televisão. Foi ao quarto buscar a arma, que estava num cofre, na gaveta da cama. Chegou ao quintal da sua casa, de onde tinha contacto visual com BB, que permanecia no mesmo sítio, e deu um tiro para o ar. Pretendia intimidá-lo, mas ele não teve medo e veio na sua direcção, tendo o próprio fechado a distância e ficado ambos a um metro um do outro. Apontou a arma para o chão e disse a BB “não te aproximes mais”. Porém, ele aproximou-se, bateu na mão do arguido (que empunhava a arma) e empurrou-o. Na sequência desde empurrão, o declarante bateu com a costas na parede, caiu no chão. A arma disparou acidentalmente quando caiu ao chão. Eles agarraram na arma que estava no chão e DD ficou com a arma até chegar a polícia. Tudo isto se passou perto da árvore representada na fotografia de folhas 44. Depois, foi novamente para casa tirar a roupa pois estava a sangrar e quando voltou a sair, a GNR já estava no local e deteve-o
Em nenhum momento se apercebeu que a arma estivesse encravada. Não se lembra de ter visto BB anteriormente junto ao contentor do lixo. Negou que BB tenha posto as mãos do ar. Negou ter dito a BB que o mataria. Nunca lhes disse que tinha uma arma. Não se lembra de ter disparado por cima do ombro desse, nem de terem estado a agarrar na arma fazendo força em sentido contrário. Estava um bocado alcoolizado da festa de onde tinha estado. Não se lembra de quanto bebeu. Não se lembra de nenhuma questão com o fogareiro.
Confrontado com a circunstância de ter mencionado mais disparos no primeiro interrogatório, o arguido não conseguiu apresentar qualquer explicação.
Confrontado com as declarações prestadas perante órgão de polícia criminal, designadamente quanto à circunstância de ter narrado outra dinâmica dos factos, rectificou que, afinal, apontou para meio das pernas de BB quando estava a cerca de um metro dele; rectificou, ainda, que da primeira vez que se deparou com DD, aquela apenas o empurrou e não lhe deu pontapés e que apenas quando caiu o fez.
Quanto à arma, para cujo uso e porte não tinha licença, adquiriu-a, em 1992, a um colega que disse estar a precisar de dinheiro. Achou-a bonita e decidiu ajudá-lo. Não queria fazer mal a ninguém. Comprou e nunca mais lhe tocou, desconhecendo até se estava carregada. Não percebe nada de armas.
Confrontado com a circunstância de estar uma munição no cofre (cf. folhas 48), não soube responder se também a tinha comprado, referido, quanto ao receptáculo, tê-lo em casa pois em tempos recebia a remuneração em dinheiro.
Sobre a sua relação com BB, referiu ter cortado relações com ele, há cerca de nove anos, porque ele tentou abusar sexualmente da sobrinha que à data tinha dezasseis anos.
No que respeita a depoimentos, relevaram primordialmente os de DD, BB e FF.
A primeira, em sede de declarações prestadas perante Magistrado do Ministério Público, reproduzidas em audiência, nos termos do artigo 356.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, começou por referir que, desde que começou a coabitar com BB, o arguido sempre foi provocador, tendo inclusivamente sido ameaçada e assediada pelo mesmo. No dia em causa, após ter ido tomar café com o seu companheiro, pelas sete horas, e este seguido para o trabalho, regressou a casa e estava a fazer limpezas, quando o arguido surgiu, alcoolizado e trazendo uma caneca de vinho, perguntou pelo “corno e o cabrão” do marido, chamando-a de “puta”, “filha da puta”. Iniciou uma discussão com o mesmo por causa dessas expressões proferidas, acabando por empurrá-lo, tendo aquele caído ao chão. Posteriormente, o seu companheiro regressou do trabalho, tendo o arguido se dirigido ao mesmo e dito “seu boi, seu cabrão, vais limpar isto já”. O companheiro ignorou-o, virou-lhe as costas e saiu da quinta em direcção ao contentor do lixo ali existente, tendo o arguido seguido atrás. Dirigiu-se ao mesmo contentor para despejar o lixo, e encontrou o companheiro sentado na relva com os seus cães e o arguido a olhar para o primeiro. Deitou o lixo que trazia consigo no contentor, tendo o arguido ido verificar o que havia sido despejado. A própria e o companheiro seguiram para casa e o arguido veio atrás de ambos. Ao chegarem à porta da casa, disse ao companheiro para limparem o lixo para que o arguido não arranjasse problemas, e o companheiro respondeu que limparia quando quisesse. Deixou de ver o arguido e, quando já se encontrava no interior de casa, ouviu um disparo. Deslocou-se para o pátio e viu o arguido a encostar a pistola que empunhava ao pescoço do seu companheiro. Este, desviou a arma do pescoço com as suas mãos. Não se lembra concretamente da actuação do companheiro, mas sabe que foi disparado um tiro e que o segundo ficou encravado na arma. Ficou sem reacção, que apenas recuperou quando viu o companheiro no chão, em cima do arguido, e a puxar a arma para o desarmar. Quando o companheiro conseguiu retirar a arma, entregou à depoente que, por seu turno, ligou à polícia tendo entregue o telefone ao primeiro. Não se lembra em concreto das agressões desferidas por um ou por outro, contudo tem a certeza que o companheiro desferiu murros na face do arguido e que o mesmo ficou a sangrar do nariz. Quando tinha arma consigo, refere que o arguido e companheira lhe pediam que devolvesse a arma, razão pela qual acabou por se afastar do local, tendo aguardado junto do contentor do lixo pela chegada da GNR. Estava bastante nervosa, especialmente quando lhe foi entregue a arma para guardar, não se recordado com certeza do que se havia passado.
BB, por seu turno, começou por descrever a sua relação com o arguido, caracterizando-a como positiva quando foi residir para a propriedade onde o mesmo residia, até que, após lhe ter arranjado trabalho com o seu patrão, aquele foi-lhe dizer coisas que levaram ao seu despedimento, designadamente que tinha estado preso, facto desconhecido da sua entidade patronal. A partir dessa altura, que situa em ...0.../2009, começaram os problemas. O arguido, inclusivamente, difamou-o dizendo que era “pedófilo” (sic), tendo corrido termos processo no qual a irmã do arguido lhe imputa a violação da filha. De resto, esta já chegou a ameaçá-lo com uma arma. O arguido, que tem de passar pela sua casa para ir para a sua, quando estava bêbado, dizia “qualquer dia dou-te um tiro”, mas o depoente não lhe dava importância, nem respondia. O arguido já chegou a dar-lhe com uma catana, já lhe partiu portas e janelas.
No dia em causa, foi trabalhar pelas oito e regressou a casa às dez para tomar o pequeno-almoço. O arguido estava à porta de uma casa a falar do o irmão de FF. Quando entrou em casa, a companheira disse-lhe que o arguido tinha estado a chamar nomes e lhe tinha perguntado onde estava “o filho da puta do seu marido” (sic). Disse-lhe para não ligar e saiu de casa com os cães. Quando saiu, o arguido chamou e disse “estás a ver esse lixo aí, hoje tens de limpar de obriga”. Respondeu-lhe “tu tens a tua porta e eu tenho a minha, manda na tua porta que eu mando na minha” (sic). Ele deslocou-se para casa dele. Minutos depois, quando o depoente se encontrava sentando na relva, a brincar com os cães, o arguido surgiu, com as mãos nos bolsos, passou por trás de si e não disse nada. Depois foi ver o caixote do lixo, olhou para dentro do caixote, usando uma das mãos e mantendo a outra mãos no bolso. Voltou para junto de si, e ficou mais de cinco minutos a olhar para si fixamente, a abanar a cabeça, a rir, e de mãos nos bolsos. A sua companheira, entretanto, surgiu para despejar o
lixo e avisá-lo que o pequeno-almoço estava pronto, acabando ambos por ir para dentro de casa para evitar problemas. Entraram, e o arguido continuou da direcção da casa dele, dizendo “filho da puta, vou-te matar”. Quando estava em casa, ouviu o barulho de um tiro e o arguido a dizer “filho da puta, vou-te matar”. Saiu para ir buscar os cães, e viu-o, a cerca de quatro/cinco metros, empunhando uma pistola na mão, apontada na direcção do seu peito. Perante isto, ficou parado e levantou os braços, o arguido continuou a andar e, ao chegar diante de si e encostou o cano da arma à parte inferior do seu pescoço/garganta, empurrando-o para trás, sempre a dizer que o matava. Deu um passo atrás, e, com a sua mão, desviou a mão do arguido que tinha a pistola, e logo ocorreu um disparo. Assim que ocorreu o disparo, ambos agarraram a arma. O arguido tentava empurrar a arma na sua direcção, e a testemunha no sentido inverso. Enquanto tal sucedia, o arguido continuava a pressionar o gatilho, sempre com o dedo indicador no gatilho. Reparou que a arma tinha ficado encravada, pois “ficou aberta” (sic) na parte onde fica a munição, nas palavras do depoente. Quando o arguido, usando a outra mão, tentou desencravar a arma, fechando a referida abertura, deu-lhe dois socos na cara, tendo ambos caído no chão, tendo a testemunha ficado por cima do arguido e conseguido, só nessa altura, desarmá-lo. Entretanto também ocorreram ao local FF e a GG, companheira do arguido. Entregou a arma à DD que, entretanto, tinha chegado, e telefonou para a polícia. Saiu de cima do arguido, tendo-lhe dito que não lhe iria fazer mal. Quando o próprio estava ao telefone com a polícia, ele veio para cima de si com um fogareiro, tendo o depoente lhe desferido um soco ou pontapé, não se lembra concretamente, fazendo com que o arguido, que estava “um bocado bêbado” caísse no solo. Desconhece se o arguido tinha agredido a sua companheira ou vice-versa, mas constatou, quando estavam a lutar pela posse da arma, que ele tinha um corte na mão.
FF, que se encontrava a viver com o arguido há uns meses, referiu que, no dia em casa, estava em casa do arguido, foram ambos à casa onde o irmão do depoente dorme e depois foram os dois para casa do AA. Durante este período, o arguido apenas bebeu um copo. Estava sentado junto da casa e viu o arguido a disparar um tiro, após o que se ausentou. O depoente permaneceu em casa do arguido, tendo vindo a ouvir um segundo tiro.
Só então se deslocou para casa de BB. Aí chegado, viu o arguido no chão, a sangrar do nariz e uma senhora com a pistola. Caracterizou o arguido como uma boa pessoa.
EE, militar GNR, deslocou-se à ... no exercício das suas funções, por ter sido comunicada a ocorrência de desacatos com arma de fogo, envolvendo disparos. Aí chegado, à porta da quinta encontravam-se BB e a sua companheira, tendo esta a arma utilizada na mala. A referida arma estava encravada, com a corrediça puxada para trás e encravada. Aqueles informaram que a arma era do vizinho e indicaram a respectiva residência. O arguido estava no quintal da sua casa, à porta. Queixou-se de ter sido agredido, e tinha um hematoma no olho. Repararam na existência de dois invólucros no chão, um deflagrado e outro por deflagrar, sendo o deflagrado na esquina da casa do arguido e o não deflagrado à entrada da quinta. O depoimento foi conjugado com o auto de folhas 145-146, do qual a testemunha é autor, tendo o depoente sido confirmado com as imagens juntas aos autos, concretamente a folhas 43, e a folhas 44, indicando ter sido no local representado na primeira imagem desta, que foi localizado um dos invólucros.
Por último, CC, inspectora da Polícia Judiciária e que, em tal qualidade, também ocorreu ao local, explicitou as diligencias por si realizadas, designadamente a inspecção judiciária e apreensões, relatou os factos por si observados, designadamente os ferimentos que o arguido apresentava, e a circunstância de um dos invólucros estar encravado na arma. Descreveu ainda o arguido como muito colaborante, tendo entregue o cofre onde se encontravam as munições.
Ponderando as declarações e depoimentos enunciados na sua globalidade, conjugados com a prova pericial de documental junta aos autos, não teve o tribunal quaisquer dúvidas quanto à factualidade controvertida.
Quanto à relação mantida pelo arguido e BB, atendeu-se às declarações de ambos que, coincidentemente, referiram que a mesma foi cordata até determinada altura, tendo depois começado os conflitos, reconhecendo ambos também a existência de desentendimentos quanto à limpeza do terreno onde se situam as suas casas, e a imputação que o arguido faz a BB quanto à circunstancia de este ter abusado sexualmente da sua sobrinha (factos provados 1.º e 2.º). O arguido situa a ruptura há cerca de nove anos, enquanto BB a situa em ...0.../2009. Não sendo seguro a exacta data, há que concluir, das declarações de ambos, que terá ocorrido pelo menos há nove anos. Nem arguido, nem BB relacionaram os desentendimentos com a morte do pai do primeiro, tendo-se, consequentemente, tal factualidade como não provada (facto não provado a)).
Já quanto aos demais factos, a decisão do tribunal assentou, eminentemente e como referido, nos depoimentos de BB, DD, complementados pelo de FF, que se reputaram credíveis uma vez que foram, ressalvadas algumas imprecisões compreensíveis dada a natureza dinâmica dos mesmos, emoções vivenciadas, e lapso temporal decorrido, essencialmente consentâneas entre si, bem como plausíveis à luz das regras da experiência e critérios de normalidade.
Contrariamente, e como ressalta da súmula a que acima se procedeu, o arguido prestou declarações discrepantes entre si em todos os momentos processuais. Além disso, no decurso de cada uma delas incorreu em contradições, e, à medida que foi sendo confrontado com as mesmas, foi introduzindo elementos novos na sua narrativa dos eventos, fazendo precisões que, na realidade não são precisões, mas representam realidade diversa da espontaneamente narrada. Destas contradições, assume particular relevância as relativas ao número de tiros disparado e exactas circunstâncias em que o foram.
Com efeito, perante OPC, o arguido declarou ter disparado um primeiro tiro junto a sua casa e que depois apontou a arma para as pernas de DD e, nesta altura, não fez qualquer disparo pelo que, a ter ocorrido, foi acidental quando caiu; Já em primeiro interrogatório, aludiu a dois tiros junto de casa (um primeiro para o ar, um segundo para o mato); e depois, já junto de BB a outros dois (um primeiro por entre as pernas deste e um outro acidental, quando caiu). Por último, já em audiência, espontaneamente voltou à primeira versão, mas, quando confrontando com o primeiro interrogatório, admitiu já que atirou por entre as pernas de BB. Não apresenta qualquer explicação para tais contradições.
Estas sucessivas contradições evidenciam a falta de correspondência à verdade das declarações do arguido, tendo-se apenas valorado as mesmas quando consonantes e/ou corroboradas com os demais elementos probatórios.
Assim, quanto às expressões que o arguido dirigia a BB (facto provado 3.º), que o arguido negou, atendeu-se ao depoimento deste, que, além de espontâneo, resulta credível dada a animosidade existente entre ambos, demonstrando-se consentâneo com os factos que vieram a ser praticados pelo arguido e que aqui se apreciam. A testemunha referiu que tal ocorreu várias vezes quando o arguido estava embriagado e passava por sua casa, e podia acontecer num determinando dia e voltar a acontecer só no mês seguinte, não podendo concluir-se, perante tal, que tal ocorria frequentemente (facto não provado b.).
Relativamente aos factos ocorridos no primeiro momento do dia ...-...-2024 (factos provados 4.º a 6.º), resultou, desde logo, do depoimento de DD que o arguido veio a casa uma primeira vez, que tiveram o referido desentendimento e que acabou por empurrá-lo. BB confirma que a companheira lhe transmitiu o mesmo quando chegou a casa, o que corrobora o depoimento da primeira. O arguido, pese embora narrando uma dinâmica diversa (também aqui se contraria dizendo, perante OPC que a mesma lhe desferiu pontapés, e, em julgamento, que também o empurrou tendo sido por isso que caiu ao solo), também refere ter sido agredido antes de ir buscar a arma, o que se retira das imagens de folhas 39, tendo sido confirmado por BB que o arguido, quando se envolveram em luta, já apresentava um ferimento na mão (factos provados 4.º a 6.º). O arguido explicitou os motivos pelos quais foi ao encontro de BB, em moldes que se reputaram credíveis, e reconheceu que estava embriagado, facto constatado por BB (facto provado 4.º). Por se entender ser tal circunstancialismo relevante, teve-se o mesmo por provado.
Já quanto aos ocorridos depois de BB chegar a casa e antes de o arguido se deslocar a casa (factos provados 7.º a 10.º), atendeu-se ao depoimento deste, que essencialmente foi sustentando pelo de DD, pese embora algumas discrepâncias naturais quanto às expressões concretamente proferidas. BB descreveu com detalhe as expressões proferidas e os gestos do arguido, os quais se mostram
compatíveis com o clima de animosidade havido bem como um dos motivos subjacentes a tal animosidade. Em nenhum momento foi referido que o arguido tenha apontado concretamente para o lixo/entulho (facto não provado c.).
Relativamente ao ocorrido após o arguido ter ido buscar a arma a casa, concretamente junto do caixote do lixo (factos provados 11.º a 15.º), atendeu-se também aos depoimentos de BB e DD que pormenorizaram a actuação do arguido, detalhando o seu comportamento junto ao contentor do lixo, inclusivamente o olhar fixo que o arguido dirigiu a BB. Os detalhes fornecidos pelas testemunhas são compatíveis com a vivência dos factos por si relatados, sendo irrelevantes as divergências registadas entre ambos e indicadoras, precisamente, da sua espontaneidade. O arguido declarou não se lembrar deste momento, admitindo ter ido buscar a arma a casa – enunciando também o local onde se encontrava guardada - depois de agredido por BB e DD. Porém, como já se viu, não só o arguido relatou a dinâmica das alegadas agressões de forma distinta nas várias declarações prestadas ao longo do processo, mas esta versão é infirmada pelas testemunhas. FF, a que o arguido terá, segundo o próprio, mencionando as agressões, não corroborou as declarações do arguido. Ponderando estes elementos, e bem assim o depoimento de BB na parte em que refere que o arguido, enquanto o olhava, manteve as mãos no bolso, inclusivamente assim manteve uma delas quando abriu o caixote do lixo, conclui-se que, nessa altura, o arguido já tinha ido buscar a arma a casa. Não se apurou a que distância o arguido ficou a olhar fixamente para BB (facto não provado e)).
Quanto aos factos posteriores (factos provados 16.º a 33.º), e, desde logo, quando ao disparo que o arguido realizou no quintal (facto provado 16.º), atendeu-se às declarações do próprio, que neste ponto foram sempre consistentes, bem como no depoimento de FF, na parte em que relatou ter visto o arguido a disparar um tiro no local, e depois sair do mesmo. Também EE, militar da GNR, referiu terem encontrando um invólucro deflagrado na esquina da casa do arguido, resultando da conjugação dos auto de apreensão, de folhas 50, e relatório de balística, de folhas 222 a 226, que o invólucro deflagrado apreendido e que se encontrava no solo (o outro ficou encravado no interior da arma), foi disparado da arma detida pelo arguido. Assim, e apesar do assinalado nas imagens de folhas 43-47, concretamente de folhas 44, que EE referiu situar-se entre as casas, não teve este tribunal dúvidas quanto ao local onde ocorreu este disparo.
Não podem aqui deixar de referir-se existir lapso na identificação da imagem de folhas 46 pois não se trata, conforme declarações do arguido, do corredor entre as casas do mesmo e do ofendido, mas sim do corredor entre entrada e casas. De resto, apesar do arguido ter dito, num dos momentos, que quando disparou junto de casa tinha já contacto visual com BB, não é isso que resulta do depoimento deste, nem foi mencionado por FF.
A descrição realizada por BB quanto aos factos seguintes, designadamente a circunstância de ter vindo ao exterior apenas após ouvir o primeiro disparo e o arguido a mencionar que o mataria se não limpasse o lixo, é clara e espontânea, resultando das mesmas que foi o arguido, apontando a arma para o peito do ofendido, quem se dirigiu àquele, que permaneceu próximo da sua casa (embora não se tenha apurado se ficou exactamente à entrada – facto não provado g)), circunstancialismo que é admitido pelo arguido perante OPC e primeiro interrogatório, mas não já em audiência quando diz ter BB avançado na direcção (factos provados 17.º e 18.º).
A descrição de BB é tão espontânea, que, sendo peremptório quanto à circunstância de o arguido lhe ter encostado o cano da arma entre as clavículas (garganta) (facto provado 19.º) o mesmo ao descrever toda a dinâmica, tem o cuidado de referir que foi só quando agarrou na mão do arguido, que empunhava a arma, que ocorreu um disparo, daqui decorrendo que este poderá ter sido acidental (facto provado 20.º e não provado h.). Tal denota o distanciamento e isenção da testemunha que poderia ter dito, e não disse, ter sido o arguido quem o realizou. Desconhece-se o exacto motivo pelo qual o disparo não atingiu BB, não podendo concluir-se ter sido em razão do movimento pois o disparo ocorreu precisamente nesse momento (facto não provado i.), não tendo sido produzida prova quanto à direcção do projéctil.
Inequívoco é, de acordo com a descrição clara de BB, que depois deste disparo o arguido lutou para manter a arma e mantê-la apontada ao corpo de BB, premiu o gatilho, só não tendo ocorrido disparo porque a munição ficou encravada, como resulta das imagens de folhas 52. Mais resulta do depoimento, que o arguido continuou a premir o
gatilho e, ainda assim, tentou movimentar a corrediça com vista a desencravar a arma até que foi agredido por BB, caíram ao solo e foi desarmado (factos provados 22.º a 31.º). A queda ao solo e a tomada de controlo da arma por BB foram também enunciadas pela testemunha DD (factos provados 29.º e 30.º). Pese embora BB tenha referido que disse ao arguido que não lhe ia fazer mal, não referiu quaisquer outras expressões (facto provado 31.º e facto não provado j.).
A utilização do fogareiro pelo arguido também foi narrada de forma inequívoca por BB, que também esclareceu o modo como o impediu de o atingir, com um soco ou pontapé, embora não tenha referido onde (facto provado 32.º e 33.º e não provado k.).
Quanto à arma e munições detidas pelo arguido, local onde se encontravam, bem como suas características, atendeu-se às declarações do arguido (quanto ao local onde a guardava) ao auto de apreensão de folhas 50, conjugado com o relatório pericial de balística de folhas 373 a 374 do qual resulta inequivocamente que, apesar de ter deficiências frequentes de funcionamento, a mesma está apta a disparar (factos provados 11.º e 34.º). Das declarações do próprio arguido e informação de folhas 147, resulta que o mesmo não era titular de licença de uso e porte de arma, e não se encontrava manifestada qualquer arma em seu nome (facto provado 35.º).
No atinente aos elementos subjectivos do tipo, incluindo a intenção de matar, trata-se, como é sabido, de evento do foro psíquico, não directamente captável pelos sentidos. Assim, só pode ser captado através de presunções legais, inferidas a partir dos factos materiais apreciados à luz de critérios de a normalidade e as regras da experiência.
Ora, atentas as circunstâncias em que os factos ocorreram, é de concluir, fazendo uso das regras da experiência, que o arguido agiu pretendendo atingir o ofendido e provocar-lhe a morte, contrariamente ao por si referido.
Com efeito, não só o arguido avançou na direcção de BB apontado uma arma de fogo ao peito deste, que sabia estar municiada pois já havia realizado um disparo junto à sua casa, como encostou o cano da mesma às clavículas daquele e, após um disparo acidental (que uma vez mais bem demonstrava que estava apta a disparar), lutou com o ofendido pela posse da arma, tentando apontá-la na direcção do corpo daquele, premiu o gatilho, só não
tendo ocorrido o disparo porque a arma encravou. Não satisfeito, o arguido ainda tentou desencravar a arma, tendo finalmente sido agredido pelo ofendido e desarmado. Ainda não satisfeito, tentou atingir o ofendido com um fogareiro, apesar de este ter dito que não lhe ia fazer mal, só não o tendo logrado dada a actuação do ofendido.
De toda a dinâmica destes factos, inclusivamente das zonas corporais a que o arguido apontou a arma (peito) e encostou o respectivo cano (garganta), num primeiro momento, proximidade a que se encontrava do ofendido, do meio utilizado e expressões proferidas, também depois do disparado enquanto o ofendido o tentava desarmar, se extrai que o arguido, não só tinha intenção de matar o ofendido, mas que persistiu na mesma apesar dos sucessivos obstáculos (arma encravada e actuação do ofendido) (factos provados 36.º, 37.º e 39.º).
Quanto à arma e munições, considerando as declarações do próprio arguido, o local onde as mantinha ocultadas também se extrai, à luz das regras da experiência e critérios de normalidade, que tinha plena consciência da ilicitude da sua detenção e, não obstante, quis detê-las.
Quanto às condições pessoais e socioeconómicas do arguido, valorou-se o relatório social de folhas 314-316, cujo teor foi corroborado pelo próprio (factos provados 40.º a 49.º)
A ausência de antecedentes criminais do arguido encontra-se certificada a folhas 366 (facto provado 50.º).
2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
As questões a decidir identificadas nas alíneas A), B) e C) por se referirem todas à decisão de facto, serão apreciadas em conjunto.
Nos termos do artigo 428º do CPP, os tribunais da relação conhecem dos recursos em matéria de facto e em matéria de direito, em concretização da garantia do duplo grau de jurisdição no domínio da matéria de facto, a qual pode ser sindicada por duas vias: uma, de âmbito mais estrito, a que se convencionou designar de «revista alargada», implica a apreciação dos vícios enumerados nas als. a) a c) do art. 410º nº 2 do CPP; outra, denominada de impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
Assim, se no primeiro caso, o recurso visa uma sindicância centrada exclusivamente no texto da sentença, dirigida a aferir da capacidade do juiz em expressar de forma adequada e suficiente as razões pelas quais se convenceu e o sentido da decisão que tomou, já no segundo, o que o recurso visa é o reexame da matéria de facto, através da fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção, a partir delas.
No entanto, essa reapreciação não é livre, nem abrangente, antes tem vários limites, porque está condicionada ao cumprimento de deveres muito específicos de motivação e formulação de conclusões do recurso (Maria João Antunes, in RPCC – Ano 4 Fasc.1 – pág. 120; Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012 Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc. 31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C1; da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1 e de 28.04.2021, processo 4426/17.2T9LSB.L1, in http://www.dgsi.pt) e porque não envolve um novo julgamento, em face da concepção do recurso penal como um mero remédio jurídico destinado à correcção de erros pontuais e não a uma substituição da convicção do tribunal de primeira instância pela convicção do tribunal do recurso.
Esses limites são os seguintes:
Em primeiro lugar, a imposição, como condição essencial, da reapreciação da actividade probatória realizada durante a audiência de discussão e julgamento, do cumprimento do ónus de impugnação especificada previsto no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP.
O cumprimento deste triplo ónus envolve: a especificação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados; a indicação expressa do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, sendo os excertos/segmentos/passagens das declarações ou depoimentos identificados por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º (nº 4 do artigo 412º do C.P.P.), ou através da identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens/excertos” dos meios de prova oral gravados, a exposição das concretas razões da discordância, ou seja, dos motivos exactos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo proposto, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 7 ao art. 412º., pág. 1144).
Em segundo lugar, partindo da constatação de que fruto da natural falta de oralidade e de imediação em fase de recurso, com a consequente restrição do «contacto» do Tribunal da Relação com as provas, ao que consta das gravações, a convicção do Tribunal de primeira instância só não prevalecerá, se as concretas provas indicadas pelo recorrente e os argumentos por si aduzidos na análise das provas especificadas ilustrarem que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é arbitrária, impossível, ilegal ou desprovida de razoabilidade (Paulo Saragoça da Mata, in A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra 2004, pág. 253).
Em terceiro lugar, a forma minuciosa e exigente como está previsto e regulado este tríplice ónus de especificação ilustra como o duplo grau de jurisdição da matéria de facto não implica a formulação de uma nova convicção por parte do tribunal de recurso, em substituição integral da formada pelo tribunal da primeira instância, nem equivale a um sistema de duplo julgamento, antes se cingindo a pontos concretos e determinados da matéria de facto já fixada e que, de acordo com a prova já produzida ou a renovar, devem necessariamente ser julgados noutro sentido, justamente, de harmonia com os referidos princípios que postulam a excepcionalidade das alterações ao julgamento da matéria de facto, feito na primeira instância e a concepção do recurso penal como um mero remédio jurídico (Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012. No mesmo sentido, Germano Marques da Silva, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001. No mesmo sentido, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393).
Em quarto lugar, o limite que resulta do facto de o tribunal de segunda instância, no recurso da matéria de facto, poder alterar a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, se as provas indicadas pelo recorrente impuserem necessariamente uma decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art. 412º).
Assim, a convicção do julgador, no tribunal do julgamento, só poderá ser modificada se, depois de cabal e eficazmente cumprido o triplo ónus de impugnação previsto no citado art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, se constatar que a decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados quando comparada com a prova efectivamente produzida no processo, deveria ter sido a oposta, seja porque aquela convicção se encontra alicerçada em provas ilegais ou proibidas, seja porque se mostram violadas as regras da experiência comum e da lógica, ou, ainda, porque foram ignorados os conhecimentos científicos, ou inobservadas as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, os princípios da livre apreciação da prova e «in dubio pro reo», assim como, as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos (autênticos e autenticados).
Porém, se a convicção ainda puder ser objectivável de acordo com essas mesmas regras e a versão que o recorrente apresentar for meramente alternativa e igualmente possível, então, deverá manter-se a opção do julgador, porquanto tem o respaldo dos princípios da oralidade, do contraditório e da imediação da prova, característicos da audiência de discussão e julgamento, do qual já não beneficia o Tribunal de recurso.
«A censura dirigida à decisão de facto proferida deverá assentar “na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção (…)”.
«A reapreciação da prova, dentro daqueles parâmetros, só determinará uma alteração da matéria de facto quando do respectivo reexame se concluir que as provas impõem uma decisão diversa, excluindo-se a hipótese de tal alteração ter lugar quando aquela reapreciação apenas permita uma decisão diferente da proferida, porquanto, se a decisão de facto impugnada se mostrar devidamente fundamentada e se apresenta como uma das possíveis soluções face às regras da experiência comum, deve a mesma prevalecer, não ocorrendo, nesse caso, violação das regras e princípios de direito probatório» (Ac. da Relação de Lisboa de ........2019 proc. 150/18.7PCRGR.L1-5. No mesmo sentido, por todos, Acs. do STJ de 12.09.2013, proc. 150/09.8PBSXL.L1.S1 e de 11.06.2014, proc. 14/07.0TRLSB.S1; Acs. da Relação de Coimbra de 16.11.2016, proc. 208/14.1JACBR.C1; de 13.06.2018, proc. 771/15.0PAMGR.C1 e de ........2019, proc. 62/17.1GBCNF.C1; Acs. da Relação do Porto de 15.11.2018, proc. 291/17.8JAAVR.P1, de 25.09.2019, processo 1146/16.9PBMTS.P1 e de 29.04.2020, proc. 1164/18.2T9OVR.P1; da Relação de Lisboa de 24.10.2018, proc. 6744/16.8L1T9LSB-3; de 13.11.2019, proc. 103/15.7PHSNT.L1, de 09.07.2020, proc. 135/16.8GELSB.L1-9, da Relação de Guimarães de 08.06.2020, proc. 729/17.4GBVVD.G1 da Relação de Lisboa de 2.11.2021, proc. 477/20.8PDAMD.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
É, pois, é preciso que dessa indicação das provas concretas resulte comprovada a insustentabilidade lógica ou a arbitrariedade da decisão recorrida e que a versão probatória e factual alternativa proposta no recurso é que é a correcta.
Para que possam ser consideradas verificadas, a arbitrariedade, a impossibilidade lógica e/ou a ilegalidade da decisão da matéria de facto recorrida em que se materializa o erro de julgamento, este terá necessariamente de resultar de se ter dado como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem que este o tenha presenciado ou por outro motivo não tenha razão de ciência que permita atribuir fidedignidade a esse depoimento; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; ou com fundamento em provas proibidas, dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido, ou o assistente ou parte civil não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram, ou que disseram o contrário e esses relatos terem sido desconsiderados, apesar de verdadeiros e credíveis; dar-se como provado um facto com base num documento, ou relatório pericial do qual não consta o que se deu como provado, ou consta o seu contrário; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições e pressupostos em que esta podia operar (neste sentido, Acs. da Relação de Lisboa de 04.02.2016, proc. 23/14.2PCOER.L1-9, da Relação de Lisboa de 04.05.2017, proc. 12/15.0JDLSB.L1-9, da Relação de Lisboa de 11.03.2021, proc. 179/19.8JDLSB.L1-9, da Relação de Lisboa de 26.10.2021, processo nº 510/19.6S5LSB.L1-5, da Relação de Coimbra de 25.10.2023, proc. 101/20.9T9GVA.C2, in http://www.dgsi.pt).
No presente recurso, o arguido começou por cumprir o ónus de indicação precisa de quais os factos que considerou erradamente julgados e em que sentido – os factos provados 11, 16, 18 a 20, 22 a 28, 31 a 33, 36, 37 e 39, que entende que deveriam ter sido considerados como não provados.
Porém, no que se refere ao ónus de identificação das provas concretas de que resulta a ilegalidade, a impossibilidade lógica e/ou a arbitrariedade, nem as motivações, nem as conclusões do recurso o cumprem, em primeiro lugar porque o depoimento da testemunha CC, Inspetora da Polícia Judiciária perita em armas e munições, cujo excerto vem transcrito a páginas 7 a 9 das motivações e na conclusão 4, mais do que não contrariar a circunstância dada como provada de que a arma de fogo utilizada pelo arguido para disparar contra o corpo do ofendido BB, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar descritas em 4 a 39 dos factos provados, estava em condições de poder disparar até a confirma, como se pode retirar de forma clara e evidente da resposta « Retirar o carregador e voltar a puxar a corrediça atrás com força, não é!? De forma, a que esse invólucro que está encravado saia definitivamente da câmara extratora ou da janela de injeção. A partir daí, voltar a puxar a corrediça atrás, colocar o carregador e puxar novamente o carregador atrás para subir novamente a primeira munição. E isso já requer algum tempo» à pergunta que lhe foi dirigida sobre quais as manobras necessárias para poder deflagrar novamente as munições e utilizar a arma, em resultado da circunstância de a mesma ter um golpe junto da câmara.
Portanto, o que pode extrair-se do excerto transcrito do depoimento desta testemunha é apenas que a arma usada pelo arguido tinha um golpe junto à câmara que impedia o seu normal funcionamento, mas não que tal golpe a tornasse insusceptível ou inapta a disparar; apenas que seria necessário realizar alguns procedimentos para a fazer disparar novamente, após um tiro anterior, o que demoraria mais tempo, do que aquele que demoraria a efectuar uma sucessão de disparos, caso estivesse em perfeitas condições de funcionamento.
Ou seja, tratando-se, como se trata de uma arma semi-automática, em circunstâncias normais, aquela era uma arma que para deflagrar as munições existentes no carregador, bastaria puxar a corrediça atrás ou puxar o cão atrás a primeira vez e, a partir daí, o respectivo carregador faria subir automaticamente as munições seguintes, bastando premir o gatilho para que continuasse a disparar. Porém, em virtude do tal golpe, impunha-se, para que pudesse, continuar a disparar, depois do primeiro tiro, retirar o carregador e voltar a puxar a corrediça atrás com força para fazer sair o invólucro, voltar a puxar a corrediça atrás, colocar o carregador e puxar novamente o carregador atrás para subir novamente a primeira munição.
Assim, o segmento do depoimento testemunhal em que o recorrente alicerçou o desacerto do Tribunal Colectivo ao considerar provados os factos 11, 16, 18 a 20, 22 a 28, 31 a 33, 36, 37 e 39 não consente a demonstração da versão preconizada no recurso que assenta exclusivamente na circunstância de a arma de fogo usada pelo arguido naqueles circunstâncias não poder disparar, ao contrário do que refere o acórdão recorrido, designadamente, nos factos provados no ponto 11 e esta discordância estar alicerçada apenas e só num depoimento cujo conteúdo até contraria a circunstância que o recorrente pretende ver demonstrada.
Acresce que as condições de funcionamento da arma, suas características e o concreto facto de que a mesma, embora com deficiências de funcionamento, estava em condições de deflagrar munições e disparar tiros, resultam expressas no relatório pericial de balística de folhas 373 a 374.
Este relatório consta da exposição de motivos da decisão de facto quanto aos factos provados, tem o valor probatório específico pré-estabelecido no art. 163º do CPP, do qual resulta que o juízo técnico e científico dele constante está subtraído da livre convicção do julgador e acerca dele, assim como dos demais meios de prova, por declarações do arguido, por testemunhas, documentos e perícias invocados no texto do acórdão como fundamentos da convicção do Tribunal quanto aos factos provados, o recorrente não aduziu fosse que argumento.
E assim, se impõe a conclusão de que, afinal, o presente recurso não logrou demonstrar que a convicção do julgador tenha sido obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova ou tenha afrontado, de forma manifesta, as regras da experiência comum, ou as condições em que é legalmente admissível o recurso à prova indirecta por presunções judiciais, que seria a condição essencial para que a tal convicção pudesse ser modificada, pelo tribunal de recurso.
O art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal, estabelece a possibilidade de o recurso se fundamentar na insuficiência da matéria de facto provada para a decisão; na contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, ou no erro notório na apreciação da prova, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito».
Trata-se de vícios estruturais cuja apreciação não envolve nem pode envolver qualquer sindicância à prova produzida, no Tribunal de primeira instância, porque só o texto da decisão recorrida os pode evidenciar. Referem-se apenas à forma como a decisão se encontra redigida, pelo que a indagação da sua existência faz-se, exclusivamente, a partir da análise do respectivo texto, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo, com excepção das regras de experiência comum.
São vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Vícios da decisão, não do julgamento (Maria João Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
Da simples leitura do texto do acórdão constata-se que deste não resulta que se tenha retirado de qualquer dos factos uma conclusão inaceitável, à luz da lógica ou de critérios de razoabilidade, nem que tenha sido considerado provado algum facto de verificação notoriamente impossível, ou sido dado como não provado algo que resulta evidente que aconteceu, nem qualquer ambiguidade, ou contradição entre os factos ou entre os factos e a motivação ou entre algum destes items e a fundamentação de direito e a decisão, do mesmo modo que não se detecta que o Tribunal tenha procedido erradamente para o enquadramento jurídico-penal dos factos imputados ao arguido num determinado tipo legal de crime, sem antes realizar todas as diligências probatórias tidas por necessárias para o apuramento da verdade dos factos constantes da acusação, ainda possíveis mas pura e simplesmente omitidas.
De resto, o recorrente invocou os vícios decisórios da insuficiência da matéria de facto para a decisão e das contradições, mas nem sequer extraiu, seja de que excerto do texto do acórdão, algum argumento apto a ilustrar qual teria sido a prova que poderia e deveria ter sido produzida e que o tribunal recorrido omitiu injustificadamente, nem que factos seriam incompatíveis ou contrários entre si, nem que uma coisa e o seu contrário resultem exarados seja em que segmento do acórdão.
O recurso também não merece provimento em matéria de vícios decisórios.
Quanto à violação do in dubio pro reo:
A violação do princípio «in dubio pro reo» pode e deve ser conhecida como vício do texto da decisão, na modalidade de erro notório na apreciação da prova, como previsto no art. 410º nº 2 al. b) do CPP assumindo, nesta vertente, uma natureza subjectiva de dúvida histórica que o tribunal do julgamento, deveria ter tido e não teve.
Assim, se é o estado de dúvida subjectivamente sentida pelo julgador aquando da valoração e exame crítico dos meios de prova que constitui o pressuposto específico do princípio «in dubio pro reo», o mesmo não se mostrará violado quando o tribunal de julgamento não se confrontou com dúvida séria sobre a demonstração do facto desfavorável ao arguido e a aferição da sua existência é feita, como é próprio dos vícios decisórios previstos no citado art. 410º do CPP, exclusivamente, através da análise do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, mas sem qualquer recurso à prova produzida, ou a qualquer outro elemento exterior.
A análise do «in dubio pro reo» e a aferição da sua eventual violação, tem necessariamente de ficar circunscrita à concepção subjectiva da dúvida, quando o recurso seja interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, porquanto as questões de facto, enquanto tais, encontram-se, fora do domínio dos poderes de cognição e decisão do STJ que, sendo um tribunal de revista, apenas conhece de direito, tal como previsto nos arts. 432º e 434º do CPP.
Consequentemente no que se refere à aferição do cumprimento dos princípios da livre apreciação da prova e do «in dubio pro reo», ao STJ apenas é possível apurar da respectiva violação através do teor literal da própria decisão: só da análise da matéria de facto e da sua fundamentação, tal como as mesmas se encontram escritas se poderá avaliar da eventual infracção destes princípios e nunca pelo exame das próprias provas que tenham sido produzidas, nem do exame crítico que delas tenha sido feito.
Porém, fora dos limites do recurso de revista, o princípio «in dubio pro reo» também pode e deve ser entendido objectivamente, ou seja, desgarrado da dúvida subjectiva ou histórica do julgador, postulando uma análise da sua violação já não só como vício decisório, mas também como erro de julgamento.
Nos termos do art. 428º do CPP, os poderes de cognição do tribunal da Relação incluem os factos fixados na primeira instância e, na medida em que o «in dubio pro reo» é uma vertente processual do princípio «nulla poena sine culpa», a sua inobservância também pode e deve ser apreciada como um erro de julgamento, nos termos regulados pelo art. 412º do CPP.
Com efeito, a impugnação ampla da matéria de facto, visando os chamados erros de julgamento, habilita o Tribunal da Relação, fora dos limites apertados dos vícios decisórios previstos no art. 410º do CPP a aferir da conformidade ou desconformidade da decisão sobre os factos impugnados com a prova efectivamente produzida no processo, de acordo com as regras da experiência e da lógica, com os conhecimentos científicos, bem como, com as regras específicas e os princípios vigentes em matéria probatória, entre os quais se incluem, naturalmente, os princípios da livre apreciação da prova e do «in dubio pro reo».
Nesta perspectiva, o enquadramento da violação do «in dubio pro reo» como erro de julgamento, postula uma concepção objectiva da dúvida quanto aos factos desfavoráveis ao arguido, que é, de resto, a que melhor se coaduna com os princípios da culpa e da livre apreciação da prova, perante as dúvidas sobre os factos desfavoráveis ao arguido, no sentido em que, se o Tribunal tem a máxima liberdade, mas também a máxima responsabilidade na forma como deve, com objectividade, efectuar o exame crítico e global das provas, adquirir a sua convicção quanto aos factos provados e fundamentar a sua decisão, também a dúvida relevante para a aplicação do princípio in dubio pro reo terá de ser motivada, segundo critérios de razoabilidade e de lógica, igualmente sindicáveis e passíveis de impugnação em via de recurso.
Assim sendo, também haverá violação do princípio «in dubio pro reo», sempre que o tribunal do julgamento tenha julgado provado facto desfavorável ao arguido, não obstante a prova disponível não permitir, de forma racional e objectiva, à luz das máximas de experiência comum, das regras da lógica, dos conhecimentos científicos aplicáveis, ou das normas e princípios legais vigentes em matéria de direito probatório, com o grau de certeza ou convencimento «para além de toda a dúvida razoável», dar por verificada a realidade desse facto, mesmo que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras do senso comum, não resulte que o Tribunal se tenha confrontado, subjetivamente, com qualquer dúvida insuprível, no momento da decisão (cfr. nesse sentido, Acs. da Relação de Évora de 19.08.2016, processo 36/14.4GBLLE.E1, da Relação de Lisboa de 29.11.2016, processo 18/14.6PFLRS.L1-5; de 07.05.2019, processo 485/15.0GABRR.L2 e de 22.09.2020, proc. 3773/12.4TDLSB.L1 e da Relação do Porto de 12.01.2022, proc. 285/18.6GAARC.P1 de 21.06.2023, proc. 14110/18.4T9PRT.P1 e de 27.09.2023, proc. 480/18.8T9STS.P1, in http://www.dgsi.pt).
Do texto da decisão recorrida resulta inequívoco que os factos considerados provados foram assim julgados para além de qualquer dúvida razoável e por terem a sustentá-los meios de prova que foram valorados como esclarecedores e convincentes, segundo o teor literal da motivação da decisão de facto.
Tal como explanado na motivação da decisão de facto, por um lado, e por comparação com a descrição dos factos provados e não provados, acerca dos descritos sob os pontos 11, 16, 18 a 20, 22 a 28, 31 a 33, 36, 37 e 39, não se descortina em relação aos mesmos um «non liquet» probatório, resultante da produção de meios de prova com conteúdos contraditórios ou de tal modo divergentes e sem que à luz das regras de experiência comum e do princípio da livre convicção do julgador tenha sido possível atribuir maior ou menor credibilidade a alguma das versões diametralmente opostas apresentadas acerca dos mesmos factos, pelo contrário, a prova é esclarecedora e inequívoca, mostra-se valorada em conformidade com o princípio da livre convicção e com as regras específicas da prova pericial e outra não poderia ter sido a solução que a que foi dada no acórdão recorrido, pelo que a matéria de facto ali dada como provada e como não provada não será alterada.
De harmonia com o disposto no artigo 22º nº 1 do Código Penal, há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.
Nos termos do art. 22º nº 2 do Código Penal, são actos de execução os que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime, bem como os que forem idóneos a produzir o resultado típico, sendo-lhes equiparados aqueles que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos executivos.
O regime jurídico da tentativa orienta-se assim, numa direcção objectiva, centrada no conceito da punibilidade dos actos executivos da conduta típica.
Por outro lado, a seriação do que são actos de execução é efectuada por referência a critérios que assentam no pressuposto da causalidade adequada, aferido pela idoneidade ou capacidade potencial de produção do evento, o que vale por dizer que, ao mesmo tempo, que fica excluída a punição de meros pensamentos, intenções, resoluções e/ou atitudes, há que proceder à avaliação da conduta externa do agente e determinar se essa conduta consubstancia um acto ou vários actos de execução, no sentido de actos que encerram em si mesmos momentos de ilicitude, pois ainda que não produzam a lesão do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime consumado, produzem já uma situação de perigo para esse bem, por preencherem um ou alguns dos elementos constitutivos de um tipo de ilícito (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, 313 e segs., Fernanda Palma, Da Tentativa Possível em Direito Penal, 2006, p. 35; Jescheck, Tratado de Derecho Penal, parte General, 4.ª Edición, p. 465, tradução de José Samaniego, Ed. Comares, Granada, 1993; Cavaleiro de Ferreira Lições de Direito Penal, V. I, 1985, p. 272).
A questão que se coloca perante as conclusões do recurso, é a de saber se a conduta do arguido está abrangida pelo nº 3 do artigo 23º do Código Penal, ou seja, se é ou não punível.
No que importa ao presente caso, este preceito legal dispõe que a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente.
Ora, a circunstância de a arma de fogo usada pelo arguido para disparar contra o corpo do ofendido estar apta a disparar, tal como resulta demonstrado, designadamente, no facto 11 (contrariamente ao que o arguido pretende, mas não conseguiu provar), impõe, sem margem para qualquer dúvida ou necessidade de ulterior argumentação, a exclusão liminar da possibilidade de ponderar a possibilidade de tentativa impossível, pois era precisamente, na alegada, mas não demonstrada impossibilidade de a arma deflagrar as munições insertas na câmara, que o recorrente sustentou esta sua tese da tentativa impossível, impondo-se, também, nesta parte, negar provimento ao recurso.
Resta, pois, apreciar a correcção das penas parcelares e da pena única concretamente aplicadas, ao abrigo dos princípios gerais da necessidade da pena e da sua proporcionalidade.
Assim, quanto às penas parcelares, única e pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão aplicada, importa começar por dizer o seguinte:
Nos termos do art. 40º nº 1 do CP, é função da pena, salvaguardar a reposição e a integridade dos bens jurídicos violados com a prática dos crimes e, na medida do possível, assegurar a reintegração do agente na sociedade, consagrando a prevenção geral e a prevenção especial como fundamentos legitimadores da aplicação das penas e acrescentando, no seu nº 2, que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (concepção ético-preventiva da culpa).
Este art. 40º veio, pois, concretizar no âmbito do Direito Penal e em matéria de escolha e dosimetria das penas, os princípios constitucionais da necessidade e da proporcionalidade ou da proibição do excesso, consagrados no artigo 18º nº 2 da CRP.
Por seu turno, o art. 71º nº 1 do CP impõe que a determinação da pena seja realizada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Com efeito, «o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena» (Hans Heinrich Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194).
Assim, as linhas orientadoras em matéria de escolha e determinação concreta da pena são as seguintes:
As penas servem finalidades exclusivas de prevenção geral e especial;
A pena concreta tem como limite máximo inultrapassável, a medida da culpa;
A medida da culpa constituí o fundamento ético da pena;
Tendo por referência esse limite máximo inultrapassável da culpa, a pena concreta é fixada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva ou de integração, cujos limites mínimo e máximo são, respectivamente, o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e as exigências mínimas de defesa da ordem jurídica penal, correspondendo às exigências básicas e irrenunciáveis de restabelecimento dos níveis de confiança por parte da sociedade, na validade da norma incriminadora violada.
Dentro desta moldura de prevenção geral positiva ou de integração, a dosimetria concreta da pena terá de resultar do que se mostrar necessário e ajustado às exigências de prevenção especial, em regra, positiva ou de socialização, ou em casos excepcionais, negativa, de intimidação ou de segurança individual (Figueiredo Dias, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, págs. 65-111 e na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril - Dezembro 1993, páginas 186 e 187. No mesmo sentido, Anabela Miranda Rodrigues, O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril/Junho de 2002, pág. 147 e ss., Claus Roxin, Culpabilidad y Prevención en Derecho Penal, p. 113; Eduardo Correia, BMJ nº 149, p. 72 e Taipa de Carvalho, Condicionalidade Sócio-Cultural do Direito Penal, p. 96 e ss.).
É função da pena salvaguardar a reposição e a integridade dos bens jurídicos violados com a prática dos crimes, introduzir um efeito de confiança, no seio da comunidade, acerca da validade e eficácia das correspondentes normas jurídicas incriminadoras e produzir um efeito dissuasor da criminalidade, nos cidadãos em geral, induzindo-lhes a aprendizagem da fidelidade ao direito.
Também é função da pena assegurar, no âmbito da prevenção especial, em regra, positiva ou de socialização, a reintegração do agente na sociedade, excepcionalmente negativa ou de intimidação, prevenindo a reincidência.
«A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial» (Fernanda Palma, As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva, nas Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, 1998, AAFDL, pág. 25).
A culpa não é, pois, o fundamento da pena, antes constituindo, a um tempo, o seu suporte axiológico-normativo, não havendo pena sem culpa – nulla poena sine culpa – e também o limite que a pena nunca poderá exceder.
E é a culpa apreciada em concreto, de acordo com a teoria da margem da liberdade, segundo a qual os limites mínimo e máximo da sanção são ajustados à culpa, conjugada com os fins de prevenção geral e especial das penas.
Assim, em primeiro lugar, a medida da pena será fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos (exigências de prevenção geral positiva).
De seguida, dentro desta moldura, a medida concreta da pena será doseada por referência às exigências de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais.
Por fim, a culpa fornece o limite máximo e inultrapassável da pena.
«A culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção» (Américo Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322).
Culpa e prevenção geral são, por conseguinte, os dois grandes limites a observar no processo de escolha e determinação concreta da medida da pena, prosseguindo a necessidade de assegurar o equilíbrio entre a medida óptima da tutela dos bens jurídicos e das expectativas da comunidade e a medida concreta da pena abaixo da qual «já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar» (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 229). À prevenção especial de socialização competirá fazer oscilar o quantum da pena no sentido da aproximação de um ou de outro daqueles dois limites.
«V - No vigente regime penal, a função primordial da pena é a de tutelar os bens jurídicos tipificados, de modo a assegurar a paz jurídica dos cidadãos.
VI - A culpa, de fundamento, passou a “teto” acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando à «paz» comunitária a dignidade humana do agente, assumindo, assim, a “função politico-criminal de garantia dos cidadãos e não mais do que isso”» (Ac. do STJ de 6.10.2021, proc. 401/20.8PAVNF.S1, in http://www.dgsi.pt).
«Dentro da moldura penal, o limite mínimo inultrapassável da dosimetria da pena concreta é dado pela necessidade de tutela dos bens jurídicos violados ou, na expressão de J. Figueiredo Dias, “do quantum da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 242). E o limite máximo pela medida da culpa - nulla poena sine culpa. A prevenção especial de socialização pode, sem interferir naqueles limites, fazer oscilar o quantum da pena no sentido de se aproximar de um dos limites.
«A pena concreta que se comporte nestes limites é uma pena necessária, imposta em defesa do ordenamento jurídico-criminal. Pena única em medida inferior colocaria em causa “a crença da comunidade na validade das normas violadas e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais”.
«Comportando-se nos estritos limites da culpa, que é a salvaguarda ética e da dignidade humana do agente, será uma pena proporcional.
«É uma pena em medida ótima se satisfizer as exigências de prevenção geral positiva e ao mesmo tempo assegurar a reintegração social do agente habilitando-o a respeitar os bens jurídicos criminalmente tutelados (sem, todavia, lhe impor a interiorização de um determinado modelo ou ordem de valores).
«As exigências de prevenção geral podem variar em função do tipo de crime e variam as necessidades de prevenção especial de socialização em razão das circunstâncias do concreto agente e da personalidade que revela no cometimento dos factos.» (Ac. do STJ de 19.01.2022, proc. 327/17.2T9OBR.S1, in http://www.dgsi.pt).
O art. 71º do Código Penal enumera as circunstâncias que contribuem para agravar ou atenuar a responsabilidade, a que o Tribunal deverá atender, para tal efeito.
Dispõe este preceito, no nº 1, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
O nº 2 do mesmo artigo enumera, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender, dispondo o nº 3, que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, em correspondência com o artigo 375º nº 1 do CPP, que impõe que a sentença condenatória especifique os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Nessa enumeração exemplificativa vislumbram-se critérios, tanto associados à prevenção geral, como é o caso da natureza e do grau de ilicitude do facto (que impõem maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como relacionados com exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
Com efeito, esses critérios referem-se, uns, à execução do facto – als. a), b), c) e e), parte final, como é o caso do grau de ilicitude do facto, do modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência e os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; outros, à personalidade do agente, como sejam as suas condições de vida e a sua preparação ou falta dela, para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena – als. d) e f) – e, outros, ainda, à conduta anterior e posterior ao facto – al. e) - especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime.
Mas estas circunstâncias a que se refere o mencionado nº 2 do art. 71º, são aquelas que não integram os elementos constitutivos do tipo, sob pena de violação do princípio do «ne bis in idem», embora, na parte em que a sua intensidade concreta ultrapasse os limites necessários que a lei considera no tipo incriminador para a determinação da moldura penal abstracta, devam ser consideradas na fixação concreta dessa moldura.
No que respeita à decisão sobre a pena, mormente à sua medida, começa por lembrar-se que os recursos não são novos julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. Assim, também em matéria de penas, o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.
A actividade jurisdicional de escolha e determinação concreta da pena não corresponde a uma ciência exacta, sendo certo que além de uma certa margem de prudente arbítrio na fixação concreta da pena, também em matéria de aplicação da pena o recurso mantém a sua natureza de remédio jurídico, não envolvendo um novo julgamento. O tribunal de recurso só alterará a pena aplicada, se as operações de escolha da sua espécie e de determinação da sua medida concreta, levadas a cabo pelo Tribunal de primeira instância revelarem incorrecções no processo de interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais vigentes em matéria de aplicação de reacções criminais. Não decide como se o fizesse ex novo, como se não existisse uma decisão condenatória prévia.
E sendo assim, é preciso ter sempre em atenção que o Tribunal recorrido mantém incólume a sua margem de actuação e de livre apreciação, sendo como é uma componente essencial do acto de julgar.
A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, abrange, pois, exclusivamente, a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais previstos nos arts. 40º e 71º do CP, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas já não abrange «a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídicas do Crime 1993, §254, p. 197).
«A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas, ou mantidas, pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a situação económica do agente, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares» (Ac. da Relação de Lisboa de 11.12.2019, proc. 4695/15.2T9PRT.L1-9. No mesmo sentido, Acs. da Relação do Porto de 13.10.2021, proc. 5/18.5GAOVR.P1, da Relação de Lisboa de 07.02.2023, proc. 1938/18.4SKLSB.L1-5 e de 17.10.2023, proc. 23/21.6PBCSC.L1-5; da Relação de Évora de 28.03.2023, proc. 182/21.8JAFAR.E1; da Relação de Coimbra 06.03.2024, proc. 8/19.2PTVIS.C1 e de 10.04.2024, proc. 227/22.4GBLSA.C1, todos, in http://www.dgsi.pt).
«Daqui resulta que o tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar» (Ac. do STJ de 19.05.2021, proc. 10/18.1PELRA.S1. No mesmo sentido Acs. do STJ de 3.11.2021, proc. 206/18.6JELSB.L2.S1, de 27.04.2022, proc. 281/20.3PAPTM.S1, in http://www.dgsi.pt).
O arguido pretende que as penas parcelares e única que lhe foram aplicadas, no acórdão recorrido, sejam reduzidas, nos seguintes termos:
a. Pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 22.º e 23.º do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3, do RJAM, para a pena parcelar de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
b. Pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, v), 3.º, n.º 2, alínea l), todos do RJAM, para a pena parcelar de 6 (seis) meses.
Em cúmulo jurídico das precedentes penas, pretende que a pena unitária passe a ser a de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão.
A propósito das penas parcelares, o acórdão recorrido, discorreu o seguinte (transcrição parcial):
Atender-se-á, desde logo, às necessidades de prevenção geral positiva ou de integração (na afirmação, reforço e reposição da validade das normas violadas). Estas são muito elevadas, tanto no crime de homicídio tentado, considerando a natureza do bem jurídico tutelado: a vida humana, supremo bem do indivíduo e igualmente um bem da colectividade e do Estado; como no crime de detenção de arma proibida em que está em causa a segurança comunitária. Tratam-se de valores basilares da vida em sociedade, cuja violação tem de ser fortemente sancionada, sobretudo se tivermos em consideração que ocorrências com esta gravidade causam forte e máximo alarme, obrigando a que a pena, tendo sempre como limite a culpa do arguido, seja aplicada e fixada de forma a não defraudar as expectativas da sociedade, fazendo-a continuar a acreditar na eficácia do ordenamento jurídico.
São, por tudo isto, também prementes as exigências de prevenção geral, mostrando-se ainda se necessária também uma dissuasão individual sem a qual se não conseguirá uma verdadeira dissuasão comunitária, sendo, pois, prementes também as exigências de prevenção especial.
Nos crimes contra a vida das pessoas, a natureza da ofensa, o modo e a intensidade da agressão, o meio utilizado, a gravidade das lesões causadas e o grau de culpa da vítima são elementos decisivos na ponderação pressuposta pelo citado artigo 71.º.
No caso, a ilicitude é elevada: o arguido, porque o ofendido, pessoa com quem já mantinha desentendimentos, não lhe obedeceu, apontou-lhe uma arma, encostou o respectivo cano à garganta daquele e, depois de um primeiro disparo acidental, enquanto disputava a posse da arma com o ofendido, para apontar o cano em direcção ao corpo daquele e premiu o gatilho quando se encontrava apontada na direcção que pretendia e pressionou o gatilho, só não tendo ocorrido disparo porque a arma encravou. Não obstante, continuou a premir o gatilho, tentou retirar a munição encravada, com vista a disparar novamente, no que foi impedido por BB; após desarmado, já depois de BB lhe dizer que não lhe faria mal, tentou atingir o mesmo com um fogareiro, o que não fez dada a actuação daquele. Tal conduta denota bem a persistência do arguido na sua intenção criminosa.
BB não sofreu quaisquer efectivas lesões na sua pessoa, circunstancialismo a que o tribunal atenderá.
A culpa é algo intensa. O arguido não controlou a reacção perante uma situação de conflito, munindo-se de uma arma de fogo, conhecedor da perigosidade de tal meio. O arguido havia consumido bebidas alcoólicas e, mantinha conflitos com o ofendido há, pelo menos, nove anos, por motivos vários, incluindo acerca da limpeza do espaço em que ambos habitavam, bem por motivos familiares pois o arguido imputa a BB o abuso sexual da sua sobrinha, o que este nega. Tal circunstancialismo, em nada excluindo a culpa, é susceptível de lhe ter perturbado a capacidade de controlo dos impulsos e de conformação com os valores jurídico-penalmente protegidos.
No que respeita às exigências de prevenção especial positiva, o percurso existencial do arguido é caracterizado por inserção sociofamiliar e profissional. Residia com a sua companheira, trabalhava como ... de cofragens, mantendo uma situação financeira estável. Convivia com conhecidos e amigos, apresentando uma imagem positiva no seu meio social, sem problemas de natureza interpessoal, não obstante o consumo bebidas alcoólicas de modo regular, com algum excesso em contexto de festividades. É pessoa reputada como cordial, com adequadas competências de comunicação, sendo prestável/solícito e aparentando tender a evitar conflitos.
Durante o período de permanência no ..., o arguido tem mantido um comportamento ajustado às regras internas vigentes, ocupando o seu tempo de forma estruturada, nomeadamente através da prática de actividade desportiva, leitura e realização de jogos de quebra cabeças.
Do seu certificado de registo criminal não consta qualquer antecedente criminal, circunstancialismo susceptível de revelar comportamento conforme ao dever-ser ético-jurídico-penal.
Pese embora a inserção sociofamiliar e profissional do arguido, e ausência de antecedentes criminais, ponderando os acima enunciados elementos de ilicitude e culpabilidade, em particular as exigências de prevenção geral e contornos da actuação, reputa-se adequado condenar o arguido nas penas parcelares de 5 (cinco) anos de prisão pela prática do crime de homicídio tentado, e de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão pelo crime de detenção de arma proibida. (fim de transcrição)
Importa ter em atenção, antes de mais, que a moldura penal abstracta prevista para o crime de homicídio simples tentado é de pena de prisão de dois anos, um mês e dezoito dias a dezasseis anos, sendo que o crime de detenção de arma proibida é punível com pena de prisão de um a cinco anos ou com pena de multa até seiscentos dias que as penas concretas aplicadas de cinco anos e de um ano e seis meses de prisão estão muito próximas dos limites mínimos das molduras penais abstractas, que a pena de seis meses que o recorrente pretende ver-lhe aplicada nem sequer tem fundamento legal por ser de duração inferior ao limite mínimo da penalidade aplicável ao crime de detenção de arma proibida e que a pena de três anos e seis meses de prisão que o arguido pretende ver-lhe aplicada pelo crime de homicídio tentado não acolhe de pleno nem a intensidade da culpa e da ilicitude – anotando-se, na factualidade apurada sob os pontos 4 a 39, a facilidade e ligeireza com que o arguido usou uma arma de fogo, com grande desproporção entre o contexto da interacção com o ofendido e o método usado para tomar posição na contenda em que ambos se envolveram, sendo certo que o arguido tentou com enorme grau de determinação, embora sem eficácia, mas apenas porque a arma encravou, matar o ofendido, apontando a arma para locais do organismo deste que sabia serem letais, caso a arma tivesse disparado e mesmo depois, quando percebeu que a arma não deflagrava as munições, premindo o gatilho uma e outra vez, tal como descrito nos factos 16 a 26, que revelam uma grande intensidade dolosa e uma personalidade avessa a valores essenciais ao convívio social em liberdade, como sejam o respeito devido pela saúde, pela vida e pela integridade física dos outros, além do grande à vontade com o uso de violência perante terceiros e sobre terceiros.
E justamente, no contexto da longa inimizade existente entre ambos, motivada por desconfianças de que o ofendido teria abusado sexualmente da sobrinha do arguido, do impacto que tal suspeita associada a um clima de hostilidade recíproca, atendendo à ausência de antecedentes criminais e às circunstâncias sobre as condições de vida do arguido, do ponto de vista social, laboral e familiar, descritas nos factos provados 40 a 50 é que as penas parcelares foram doseadas tão próximo dos limites mínimos das respectivas molduras abstractas e, diga-se até, com alguma benevolência, face ao grau de culpa do arguido e, sobretudo, às razões de prevenção geral, considerando a natureza jurídica do bem jurídico visado com a incriminação do homicídio – a vida humana – o seu grau de importância, bem assim a ligeireza e o grau de premeditação com que o arguido agiu.
Do texto da decisão recorrida, extrai-se, por conseguinte, que foram tidos em atenção todos os critérios de que os arts. 70º e 71º do CP fazem depender a escolha e fixação da medida concreta das penas parcelares.
Assim sendo, considerando que a actividade jurisdicional de escolha e determinação concreta da pena não corresponde a uma ciência exacta, sendo embora vinculada a critérios legais, só em casos em que se justifiquem alterações significativas, resultantes da inobservância ou de algum desvio importante a tais critérios normativos é que o tribunal de recurso deve alterar as penas concretas.
Não é o que se passa, no caso vertente.
Como defluí de forma evidente do texto da decisão recorrida, o Colectivo teve todo o cuidado na análise da gravidade dos factos, do grau de ilicitude e culpa do arguido, das exigências de prevenção geral e especial, das suas condições pessoais, do contexto relacional com a vítima envolvente aos factos, ponderaram-nos e sopesaram-nos na sua globalidade e comparativamente e, com equilíbrio e proporcionalidade, fixaram as penas.
O acórdão recorrido não merece, pois, qualquer alteração quanto à escolha e determinação concreta das penas parcelares, por se encontrarem fixadas em estrito cumprimento dos critérios previstos nos arts. 40º e 71º do CP e 18º da Constituição, até um pouco abaixo do que se imporia, em atenção à intensidade da culpa do arguido e das exigências de prevenção geral.
O mesmo tendo de dizer-se da pena única, que foi aplicada, segundo a gravidade global dos factos e a personalidade do arguido, como previsto no art. 77º do CP.
Também, nesta parte, o recurso não merece provimento.
Consequentemente, fica prejudicada a apreciação da pretensão do recorrente de lhe ver aplicada a suspensão da execução da pena de prisão.
III – DISPOSITIVO
Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando a Taxa de Justiça em 4 UCs – art. 513º do CPP.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Juízes Adjuntos.
Tribunal da Relação de Lisboa, 24 de Setembro de 2025
Cristina Almeida e Sousa
Francisco Henriques
Cristina Isabel Henriques