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DOCUMENTO
TRADUÇÃO
Sumário
Havendo discrepância entre o tempo do verbo utilizado no documento escrito em inglês e o tempo do verbo constante da tradução, há fundadas dúvidas sobre a idoneidade desta, pelo que é aplicável o disposto no nº 2 do art. 134º do CPC.
Texto Integral
Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório
Nos autos de procedimento cautelar instaurados por AA Unipessoal, Lda. contra BB, S.A. em 18/02/2025 foi apresentado o seguinte requerimento pela requerida em 23/07/2025:
«notificada da junção aos autos da alegada “tradução” do documento n.º 2, correspondente à carta datada
de 26.01.2024 junta com o Requerimento Inicial vem, no exercício do contraditório dizer o que se lhe oferece, o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
1
A tradução ora junta foi efetuada pela própria Requerente da Providência cautelar, conforme resulta do documento no qual se pode ler, e citamos:
(…)
“CERTIFICO nos termos e para os efeitos disposto no Artigo nº 38 do Decreto Lei nº 76-A/2006 de 29-03, e da portaria nº 657-B/2006, de 29-06, que nesta data, perante mim, abaixo assinado, compareceu CC….a qual sob compromisso de honra me declarou que a tradução do documento em anexo e escrito na Língua Inglesa traduzido para a Língua Portuguesa, foi por ela realizada, e é tradução fiel e correta do respetivo original, junto ao presente, tradução essa pela qual me declarou assumir inteira e completa responsabilidade.”
(…)
2
Sucede que a versão de tradução ora apresentada não foi corretamente efetuada, desvirtuando o sentido da declaração constante do original.
3
E, esse desvirtuamento não é inocente, comprometendo de forma inaceitável o sentido da declaração constante do doc. n.º 2, correspondente à carta datada de 26.01.2024 junta com o Requerimento Inicial.
Desde logo porquanto a Requerente/Tradutora em causa própria alterou o tempo do verbo “rescindir” constante do primeiro parágrafo da dita carta, colocando-o no futuro, quando na versão original se encontra no presente do indicativo.
5
Com efeito a tradução da Requerente/Tradutora em causa própria foi a seguinte:
(…)
“Serve a presente para informar que será efetuado o encerramento do contrato de abertura da conta acima referida, com efeitos a partir de 26 de fevereiro de 2025. A partir dessa data a conta será encerrada. Tenha em atenção que a cessação do contrato e o consequente encerramento da conta em referência, determina, na mesma data, o fecho de contas associadas à conta em referência, bem como o cancelamento de serviços associados à mesma e/ou a contas associadas. Relembramos também, que deverá devolver à Caixa quaisquer cheques não utilizados e outros instrumentos de movimento da conta em referência e contas de depósito associadas, incluindo cartões de débito e crédito.”
6
E, a tradução correta – do ponto de vista da Requerida - será a seguinte:
(…)
“Serve a presente para informar que rescindimos o contrato de abertura de conta em causa, com efeitos a partir de 26 de fevereiro de 2025, data em que o encerraremos. Informamos que a rescisão do contrato e o consequente encerramento da conta de referência determinam, na mesma data, o encerramento das contas associadas à conta de referência, bem como o cancelamento dos serviços associados à conta de referência e/ou contas associadas. Relembramos ainda que deverá devolver à Caixa quaisquer cheques e outros instrumentos não utilizados que permitam a movimentação da conta de referência e das contas de depósito à ordem associadas, incluindo cartões de débito e crédito.”
(…)
Atendendo a que o tempo do verbo “rescindir” não é, de todo, irrelevante para o mérito desta Providência Cautelar – conforme, aliás, claramente resulta da Oposição apresentada pela BB, S.A. - a tradução agora apresentada é inaceitável pelo que vai a mesma impugnada.
8
Nesta conformidade deverá ser dado cumprimento ao disposto no nº 2 do art. 134º do CPC, no qual se estipula que “surgindo dúvidas fundadas sobre a idoneidade da tradução, o juiz ordena que o apresentante junte tradução feita por notário ou autenticada por funcionário diplomático ou consular do Estado respetivo; na impossibilidade de obter a tradução ou não sendo a determinação cumprida no prazo fixado, pode o juiz determinar que o documento seja traduzido por perito designado pelo tribunal.”
9
O que se requer.».
*
A parte contrária respondeu nestes termos:
«2
Cumpre esclarecer que a tradução foi efetuada por tradutor competente, conhecedor da língua inglesa, com experiência em terminologia jurídica, e devidamente autenticada por uma colega Advogada inscrita na Ordem dos Advogados, registado sob o nº 13727L/7422, nos termos do artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, e da Portaria n.º 657-B/2006, de 29 de junho.
3
A tradução apresentada respeita substancialmente o conteúdo e o sentido do documento original, não se verificando qualquer desvio com relevância jurídica.
4
Acresce que a única dúvida quanto à tradução provém da compreensão linguística do ilustre mandatário da Requerida, não sendo apresentada qualquer fundamentação técnica ou linguística válida que ponha em causa a fidelidade da tradução.
5
Não existe, assim, qualquer base objetiva que justifique a sua rejeição, sendo abusiva a tentativa de descredibilizar o documento traduzido, cuja autenticidade e correção formal se encontram legalmente asseguradas.
6
Por conseguinte, não se justifica a aplicação da regra excecional prevista no n.º 2 do artigo 134.º do CPC, pois inexiste qualquer indício concreto que ponha em causa a idoneidade da tradução apresentada.
Nestes termos,
Requer-se a admissão da tradução junta aos autos, por cumprir todos os requisitos legais, e a rejeição da oposição apresentada por carecer de fundamento legal ou técnico.»
*
Em 13/08/2025 foi proferido o seguinte despacho:
«Requerimentos que antecedem:
Considerando que não foram suscitadas dúvidas fundadas sobre a idoneidade da tradução, mas apenas uma discordância quanto ao seu teor (parágrafo enunciado no requerimento de 23-07-2025), não sendo, como bem nota a requerente, «apresentada qualquer fundamentação técnica ou linguística válida que ponha em
causa a fidelidade da tradução», nada há a determinar ao abrigo do art. 134.º, n.º 2 do CPC, indeferindo-se o requerido.»
*
Inconformada, apelou a BB, S.A., terminando a alegação com estas conclusões:
«1 - Ao contrário do que o douto despacho recorrido refere a aqui apelante suscitou expressamente na sua peça processual de 23.07.2025 (refª citius de entrada com o nº 43466899), fundadas dúvidas sobre a idoneidade da tradução;
2 - Com efeito, nos nºs 2 a 4 dessa peça processual refere a requerida que a versão de tradução não foi corretamente efetuada, desvirtuando o sentido da declaração constante do original, desvirtuamento esse que não é inocente, comprometendo de forma inaceitável o sentido da declaração constante do doc. n.º 2, constatando-se a alteração do tempo do verbo “rescindir” constante do primeiro parágrafo da dita carta, colocando-o no futuro, quando na versão original se encontra no presente do indicativo.
3 - E, tal como nessa mesma peça processual se referiu (cfr. nº 7 da mesma), o tempo do verbo “rescindir” não é irrelevante para o mérito desta Providência Cautelar – conforme, aliás, claramente resulta da Oposição apresentada pela BB, S.A. – pelo que a tradução apresentada é inaceitável;
4 - Com efeito, para efeitos de denúncia do contrato, uma coisa é a dita carta mencionar que que “será efetuado o encerramento do contrato de abertura da conta” conforme vem referido na tradução, e outra muito diferente é mencionar que “rescindimos o contrato de abertura de conta” como facilmente se entenderá;
5 - No entendimento da apelante a expressão "idoneidade da tradução" constante da norma do art. 134º nº 2 do C.C. refere-se à qualidade e precisão de uma tradução, ou seja, se a tradução é fiel ao documento original, se transmite corretamente o seu significado, e se é fiável para os fins a que se destina.
6 – Basta colocar a frase traduzida em causa no “google translate” ou em plataformas informáticas de tradução com indiscutível reconhecimento internacional como a “linguee” para se concluir que a tradução não foi corretamente efetuada, ou seja é inidónea;
7 - A norma do nº 2 do art. 134º do CPC menciona “a idoneidade da tradução” e não a “idoneidade do tradutor”, pelo que o que está em causa não é a qualidade da pessoa de quem elaborou a tradução, nomeadamente se por exemplo é ou não tradutor oficial, nem, tão pouco a realizada autenticação da tradução por Advogada (autenticação esta que, obviamente, não atesta a veracidade da tradução), mas sim a conformidade da tradução à realidade expressa no texto que se pretendeu traduzir;
8 - A norma do art. 134º do CPC não exige que a parte contra quem a tradução é oferecida junte ela própria uma versão traduzida oficialmente por tradutor creditado para o efeito, bastando justificar e fundamentar as razões pelas quais entende que a tradução não é fiável, o que a aqui apelante fez.
Pelo que deverá o douto despacho recorrido ser revogado, e ordenado que seja dado o devido cumprimento ao nº 2 do art. 134º do CPC»
*
Não há contra-alegação.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, pelo que a questão a decidir é:
- se deve ser ordenada a realização de tradução do documento por perito nomeado pelo tribunal
*
III – Fundamentação
A) É de considerar:
a) Na petição inicial, entrada em juízo em 18/02/2025, vem alegado, além do mais:
«5. No dia 26 de Dezembro de 2024, a requerente recebeu uma missiva por parte da requerida, informando o encerramento da conta, de forma unilateral e sem qualquer fundamento – Cfr. Doc. 2 que ora se junta e cujo teor se dá por reproduzido.
6. Por intermédio da sua mandatária, no dia 15 de Janeiro de 2025, a requerente refutou o encerramento da conta por não ter fundamento legal – Cfr. Doc. 3 que ora se junta e cujo teor se dá por reproduzido.
7. No dia 23 de Janeiro de 2025 a requerida, por missiva, informou a requerente da manutenção da sua decisão, encerramento a conta definitivamente no dia 26 de Fevereiro do presente ano, alegando que inexiste a obrigação de encerrar um fundamento para o encerramento da conta bancária – Cfr. Doc. 4 que ora se junta e cujo teor se dá por reproduzido.
8. Contudo, nos termos da cláusula 5.2 do Anexo à Carta Circular do Banco de Portugal nº CC/2025/00000003, em caso de resolução, o envio de comunicação com a identificação do fundamento legal ou contratual para resolução, exceto quando haja motivos atendíveis para a não divulgação desse fundamento, o que não ocorreu in casu.
(…)
11. A requerente não usa nem usou a conta bancária para fins ilegais.
12. Razão pela qual o único fundamento que a requerente antevê para o encerramento unilateral da conta bancária é a nacionalidade da sua sócia-gerente, por se tratar de uma cidadã russa.
13. Tratando-se, portanto, este ato de encerramento unilateral de um atropelo manifesto ao direito à não discriminação em favor da nacionalidade.
14. Não é porque a sócia-gerente da requerente tem nacionalidade russa que é criminosa e tem uma empresa criminosa.
(…)
18. Tendo em conta que todas as instituições bancárias se recusam a abrir uma conta devido à nacionalidade da sócia-gerente da requerente, não resta nenhuma outra opção à requerente do que a manutenção da conta na requerida, sendo que não existiu nenhuma violação contratual ou incumprimento.
(…)»
*
b) Na oposição deduzida pela BB, S.A. vem alegado, além do mais:
«1
I – Por exceção:
I.1. A não verificação dos pressupostos processuais para a apreciação/decretação desta providência cautelar: o erro na forma de processo.
A presente providência cautelar tem por escopo obter a condenação da Requerida “à manutenção da conta bancária número ... junto da instituição bancária da requerida”.
2
Conta bancária esta que foi já efetivamente cancelada pela Requerida, com efeitos a partir de 26.02.2025.…)
(…)
24
Ora, tal como a própria Requerente expressamente menciona e documenta no seu Requerimento Inicial a BB, S.A. procedeu à denúncia do contrato de abertura de conta por carta de 26.12.2024, com efeitos a partir de 26.02.2025.
(…)»
*
c) Em 15/07/2025 foi proferido o seguinte despacho:
«Nos termos do disposto no artigo 134.º do Código do Processo Civil, quando se ofereçam documentos escritos em língua estrangeira que careçam de tradução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, determina que o apresentante a junte.
Compulsados os autos,
Determina-se a notificação da requerente para juntar tradução do documento 2 junto com o requerimento inicial, ou seja, a carta de 26.1.2024.».
d) O documento 2 junto com a petição inicial contém o seguinte texto:
«»
e) No documento que contém a tradução lê-se:
«
»
f) A tradução apresentada é esta:
«
»»
»
*
B) O Direito
O art. 134º do CPC (Código de Processo Civil) estatui:
«1 - Quando se ofereçam documentos escritos em língua estrangeira que careçam de tradução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, ordena que o apresentante a junte.
2 - Surgindo dúvidas fundadas sobre a idoneidade da tradução, o juiz ordena que o apresentante junte tradução feita por notário ou autenticada por funcionário diplomático ou consular do Estado respetivo; na impossibilidade de obter a tradução ou não sendo a determinação cumprida no prazo fixado, pode o juiz determinar que o documento seja traduzido por perito designado pelo tribunal.»
No despacho recorrido vem afirmado que não foram suscitadas dúvidas fundadas sobre a idoneidade da tradução, mas apenas discordância quanto ao seu teor sem fundamentação técnica ou linguística válida.
Porém, afigura-se que há fundada dúvida sobre se é correcto traduzir os dizeres «We hereby terminate the account opening contract» para «(…) será efetuado o encerramento do contrato (…)», visto não ter sido utilizado o tempo do verbo no futuro, ou seja, «we will terminate».
Assim, deverá ser realizada tradução por perito nomeado pelo tribunal, visto que o documento original foi produzido em Portugal pela apelante.
*
IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido, devendo ser ordenada a realização da tradução por perito nomeado pelo tribunal da 1ª instância.
Custas pela apelada.
Lisboa, 25 de Setembro de 2025
Anabela Calafate
Vera Antunes
Maria Teresa Garcia