CONTRATO PROMESSA
INCUMPRIMENTO
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE
ABUSO DE DIREITO
SINAL
PRESUNÇÃO
PER
Sumário

1- A venda, a terceiro, da coisa prometida vender, constitui um exemplo de incumprimento da obrigação pelo promitente vendedor.
2- A impossibilidade superveniente é imputável ao devedor se a sua conduta puder ser valorada à luz do princípio da culpa; isto é, se o evento que determina a impossibilidade superveniente é suscetível de ser prevenido, controlado ou superado, respeitando-se os deveres de cuidado exigíveis a um bom pai de família.
3- Na situação, como a dos autos, em que a impossibilidade superveniente de cumprimento resultou da venda, a terceiro, da coisa prometida vender, não tem aplicação o disposto no artº 795º do CC pela simples razão de este preceito se destinar a resolver “o problema do risco da impossibilidade de incumprimento fortuita ou causal nos contratos sinalagmáticos”.
4- Apenas em circunstâncias especiais o direito proíbe o venire contra factum proprium; uma dessas circunstâncias ocorre nas situações em que é criada uma aparência jurídica em termos tais que suscita a confiança das pessoas, assentando em algo objectivo: uma conduta que possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura. Sem a prova dessa tomada de posição vinculante para futuro, não pode considerar-se actuação em abuso do direito.
5- Em sede de contrato-promessa de compra e venda, de acordo com o artº 441º do CC, a entrega de quantias em dinheiro pelo promitente comprador ao promitente-vendedor constituiu presunção da estipulação de sinal, isto, mesmo que as quantias entregues o sejam a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço.
6- Essa presunção apenas pode ser ilidida quando as partes declarem que a quantia entregue não desempenha função de sinal.
7- Não basta, para se considerar uma cláusula penal excessiva, que a pena seja superior ao dano, mas de uma cláusula cujo montante seja manifestamente excessivo, desmesurado e desproporcional ao dano.
8- Se o crédito, em discussão nestes autos, é de constituição posterior ao da homologação do PER e, tem uma causa debendi diferente do crédito que foi reconhecido no PER da ré, apesar de serem de montante igual, o crédito em causa nesta acção não está sujeito às estipulações do PER da ré.

Texto Integral

Acordam os juízes desembargadores que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO
1-AA e, BB, instauraram acção declarativa, com processo comum, contra Pelicano – Investimento Imobiliário, SA, pedindo:
- Seja declarado que o contrato-promessa de compra e venda, relativo a imóvel, que identificam, se encontra definitivamente incumprido por causa imputável à ré e, seja esta condenada no pagamento do dobro do sinal prestado, correspondente a 528 825,54€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação.
Alegaram, em síntese, que celebraram com a ré contrato-promessa de compra e venda relativo a lote de terreno para construção e moradia, designado por lote 31-24, Localização 1, pelo preço de 264 412,77€, com sucessivos reforços de sinal, que discriminam; estipularam que a escritura de compra e venda seria celebrada no prazo de 30 meses após a assinatura do contrato-promessa e, não o sendo, o promitente-comprador poderia interpelar a ré para a marcação da escritura de compra e venda e, se não fosse efectuada, o promitente comprador poderia resolver o contrato-promessa e exigir as quantias entregues a título de sinal, acrescidas de juros; além do prazo de 30 meses, foi estipulado um outro prazo, de 45 meses para a realização da compra e venda, findos os quais ocorreria incumprimento definitivo. Os autores entregaram à ré, a título sinal 158 647,68€. Findos 30 meses após a celebração do contrato-promessa, a ré nem sequer tinha licença de utilização; após os 45 meses, a obra ainda se encontrava em curso; em 2007 a obra não estava totalmente concluída e, a ré sugeriu a realização da escritura de compra e venda mas ficou condicionada à reparação de defeitos visíveis, como infiltrações pelo telhado. Em Novembro de 2008 a ré agendou a escritura de compra e venda e os autores solicitaram vistoria ao imóvel tendo sido verificada a persistência de anomalias, que descrevem. A ré veio marcar nova data para a realização da escritura, a 15/05/2009 e, efectuada a vistorias, constataram-se as mesmas anomalias tendo surgido outras; a ré propôs aos autores pagarem o remanescente do preço, o que eles fizeram e, a escritura seria marcada para 30/12/2009; os réus não foram notificados da marcação da escritura a 30/12/2009. Somente em 2012 a ré agendou nova vistoria ao imóvel tendo sido verificadas diversas anomalias, que descrevem e, em Novembro de 2012 foi realizada nova vistoria na qual se verificaram novas anomalias, que especificam, as quais, em Maio de 2013, ainda não havia sido reparadas; em Junho e em Setembro de 2013 e em fevereiro de 2014, as anomalias não havias sido reparadas. A ré deixou de contactar os autores. Os autores procederam à marcação da escritura pra o dia 18/08/2014, mediante notificação judicial avulsa mas a ré não compareceu à escritura.
Após 13 anos sem a realização da escritura, os autores instauraram acção declarativa, contra a ré, pedindo fosse declarado resolvido o contrato-promessa e a devolução do sinal em dobro, acção essa que foi declarada improcedente, por os autores não terem transformado a mora da ré em incumprimento definitivo, considerando o contrato-promessa ainda em vigor. Em face dessa sentença, os autores tentaram notificar a ré para a realização da escritura de compra e venda a 27/08/2018, por meio de notificação judicial avulsa, que se frustrou. Em Agosto de 2019 os autores tentaram novamente a notificação judicial avulsa da ré, que mais uma vez se frustrou.
Os autores vieram a ter conhecimento que a ré, no dia 07/11/2017, vendeu a terceiros, o imóvel prometido vender aos autores, em data anterior à da realização do julgamento realizado na anterior acção judicial, o que consubstancia um incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda.
2- Citada, a ré contestou.
Pugna pela improcedência da acção e, invoca a excepção de abuso do direito dos autores e, subsidiariamente, a excepção de concorrência de culpas no não cumprimento e, em consequência, a condenação da devolução do sinal em singelo; subsidiariamente, se considere que o sinal prestado foi somente de 158 647,66€ e, subsidiariamente, que o valor da devolução seja reduzido equitativamente ou, que se considere que a restituição tenha lugar mediante as regras do enriquecimento se causa.
Invocou, em síntese, que os autores criaram na ré a convicção de que não pretendiam cumprir o contrato-promessa nem tinham interesse na prestação da ré, por na acção judicial instaurada anteriormente contra a ré os autores declararam que perderam interesse na celebração do contrato prometido e que haviam convertido a mora em incumprimento definitivo.
Os autores sabem que a ré encontra-se sujeita a Plano de Revitalização, que foi homologado por sentença transitada em julgado em Junho de 2017, sentença que obriga todos os credores da ré e na qual foi reconhecido, sob condição, o crédito de 528 825€ dos autores sobre a ré, pelo que eventual pagamento aos autores terá de ser feito de acordo com o Plano de Revitalização.
Impugna parte dos factos; invocam que os autores colocaram a moradia à venda no sentido de cederem a sua posição contratual; os autores aceitaram a moradia tal como se encontrava em Maio de 2009 e pagaram a totalidade do preço, conforme aditamento ao contrato-promessa e, os autores obrigaram-se a reembolsar a ré do valor do IMI e, a suportar a quota-parte nos espaços comuns e, deixaram cópia das chaves da moradia no stand de vendas para que a moradia pudesse ser mostrada a terceiros nela interessados, demonstrado não terem interesse na compra da moradia.
Os autores aceitaram a moradia em 2009, não tendo a ré de reparar quaisquer defeitos.
A ré colocou a moradia à venda em 2017 porque os autores não pretendiam cumprir o contrato prometido.
Mesmo que assim não se entenda, deve considerar-se que os autores também tiveram culpa na não celebração do contrato prometido.
O valor do sinal prestado é de 317 295.32€ e não de 528 825, 54€, porque o valor de 105 765.11€ foi entregue como remanescente do preço e não como sinal.
Tem sido entendido que o regime do artº 812º do CC é de aplicar ao contrato-promessa, o que permite a redução equitativa do montante de sinal a restituir.
Defende que os autores actuam em abuso do direito por terem enviado carta, em final de 2013, a manifestarem intenção de resolverem o contrato-promessa e, posteriormente, vieram exigir reparações na vivenda.
Os autores declararam à ré que não pretendiam cumprir o contrato-promessa, quando esta prestação ainda era possível, há incumprimento definitivo e, por isso, a ré vendeu a vivenda a terceiros e a impossibilidade de cumprimento pela ré foi gerada pelos autores.
3- Por despacho da 1ª instância, de 09/09/2021, foi concedido aos autores o prazo de 30 dias para responderem às excepções deduzidas na contestação, “…ficando precludida de o fazerem no início da audiência prévia.
4- Os autores responderam às excepções, salientando que, na sentença proferida no anterior processo, foi constatado que os autores não haviam transformado a mora em incumprimento definitivo e, por isso, não podiam obter sentença a reconhecer a resolução do contrato-promessa. Nessa sentença foi considerado que não houve desinteresse dos autores no cumprimento do contrato-promessa, e que não foi considerado que houve resolução infundada do contrato, pelo que aquela sentença forma autoridade de caso julgado em relação a estes fundamentos, não podendo a ré invocá-los nesta acção; concretamente, se na 1ª sentença, o pedido de declaração de resolução do contrato foi julgado improcedente, por sentença transitada em julgado, não pode decidir-se, em acção posterior, que o contrato estava resolvido na data da primeira sentença e, se o Tribunal decidiu não existir perda de interesse na prestação da ré, não pode decidir-se, em acção posterior, que ocorreu desinteresse; e se o tribunal decidiu não existir interpelação, não pode decidir-se, em acção posterior, que ocorreu interpelação.
A ré não informou os autores da sua perda de interesse na celebração do contrato-promessa e procedeu à veda da vivenda, a terceiros, sem nada dizer no anterior processo; pugna pela improcedência da excepção de abuso do direito.
Defende a violação do princípio da concentração e preclusão do direito de defesa da ré, invocando que a ré poderia ter invocado, na anterior acção, as matérias de excepção que agora invoca e, não o tendo feito, está impossibilitada de o fazer agora.
Negam ter existido tradição da vivenda.
Entendem que a quantia de 105 765,11€ que entregaram à ré o foi a título de sinal.
Discordam do invocado incumprimento bilateral do contrato-promessa.
Pugnam pela falta de fundamento para a pretendida redução equitativa do sinal em dobro porque essa possibilidade pressupõe a verificação de um exagero manifesto ou situação de clamorosa iniquidade que, no caso não se verifica.
Entendem que não há fundamento para que a restituição tenha lugar nos termos do enriquecimento sem causa.
Quanto ao Processo de Revitalização da ré, defendem não se lhes aplicar porque o seu direito a receberem o sinal dobrado nasceu após o transito em julgado da sentença homologatória do Plano Especial de Revitalização e, à data do processo, ao autores não podiam reclamar o seu crédito; o direito dos autores nasceu quando a ré vendeu a vivenda a terceiros, em momento posterior ao do transito em julgado da sentença homologatória do PER.
4- Com data de 26/10/2023, foi elaborado despacho saneador tabelar, em que foi consignado, além do mais, inexistirem excepções dilatórias ou peremptórias, indicado o objecto do litígio e os temas de prova.
5- Em 11/12/2023 os autores, discordando do saneador tabelar, salientam a existência de diversas excepções peremptórias e, requereram a correcção desse saneador tabelar.
6- A 1ª instância, reconhecendo razão aos autores, declarou que a matéria das excepções invocadas seria apreciada e decidida aquando da decisão final.
7- Nos dias 27, 28/05/2024 e 05/07/2024 realizou-se a audiência final e ficou acordado que as alegações finais teriam lugar por escrito.
8- Com data de 17/10/2024 foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:
3. Decisão
Pelos fundamentos expostos, julgo a acção procedente, e em consequência condeno a Ré a pagar aos Autores a quantia de € 528.825,54, acrescida de juros de mora, contados desde a data de citação até integral pagamento.”
9- Inconformada, ré interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
1.ª- O Tribunal recorrido julgou a ação como se a R., sem qualquer justificação, tivesse decidido vender a terceiro o imóvel prometido vender aos AA., assim incumprindo, 16 anos após a sua celebração, o contrato-promessa de compra e venda celebrado, quando nada disso sucedeu!
2.ª- O Tribunal recorrido julgou erradamente não provado que:
xi) Os Autores nunca pretenderam outorgar a escritura pública, tendo antes interesse em ceder a sua posição contratual;
3.ª- Impunha decisão diversa, o Doc. n.º 2 junto com a contestação em que os AA. declararam por escrito pretender ceder a sua posição contratual, o teor do aditamento ao contrato-promessa de compra e venda e o Doc. n.º 3 junto com a contestação.
4.ª- Impunha igualmente decisão diversa o depoimento das testemunhas José Manuel Lopes Antunes (depoimento prestado em 5.07.2024, o qual ficou registado em suporte digital de 00m 01s a 30m 04s, a minutos 2:00 e seguintes e a minutos 19:00 e seguintes) e CC (depoimento prestado em 5.07.2024, o qual ficou registado em suporte digital de 00m 01s a 22m 52s, minutos 04:00 e seguintes, minutos 9:00 e seguintes, minutos 11:00 e seguintes e minutos 15:00 e seguintes) e os depoimentos de parte dos administradores da R., DD (depoimento de parte prestado em 27.05.2024, o qual ficou registado em suporte digital de 00m 03s a 34m., minutos 21:00 e seguintes) e EE (depoimento de parte prestado em 27.05.2024, o qual ficou registado em suporte digital, minutos 11:00 e seguintes e minutos 24:00 e seguintes) que referiram que os AA. não pretendiam adquirir a moradia, mas sim
“revendê-la”, no sentido de ceder a sua posição contratual.
5.ª- Da concatenação da prova documental, da prova testemunhal e dos depoimentos de parte, o Tribunal recorrido devia ter julgado provado que:
“Os Autores nunca pretenderam outorgar a escritura pública, tendo antes interesse em ceder a sua posição contratual.”
6.ª- O Tribunal recorrido julgou erradamente não provado que:
xii) Os Autores criaram a convicção na Ré de que não pretendiam cumprir o contrato promessa, nem tinham interesse na outorga da escritura de compra e venda, tendo demonstrado tal à Ré;
xiii) Os Autores demonstraram à Ré que consideravam o contrato promessa resolvido.
7.ª- Parte dos factos julgados provados, os depoimentos de parte e a prova documental impunham decisão diversa.
8.ª- Dos factos julgados provados (factos provados sob os números 24 a 26 e 31), da prova documental carreada para os autos, em particular dos termos e teor da notificação judicial avulsa notificada à R. em 25.07.2024 (factos provados sob os números 24 a 26), da causa de pedir e do pedido formulados na ação intentada em Outubro de 2014 (factos provados sob os números 29 e 30), da reclamação de créditos e reconhecimento deste apresentados no processo especial de revitalização ao qual a R. está sujeita (certidão judicial junta aos autos em 27.05.2024) e das declarações de parte (declarações de parte do A. marido tomadas em 5.07.2024, registadas em suporte digital de 00m 01s a 55m 39s, a minutos 51:00 e seguintes) e dos depoimentos de parte, dos administradores da R., DD (depoimento de parte prestado em 27.05.2024, o qual ficou registado em suporte digital de 00m 03s a 34m., minutos 15:00 e seguintes, minutos 20:00 e seguintes, minutos 25:00 e seguintes e minutos 28:00 e seguintes) e EE (depoimento de parte prestado em 27.05.2024, o qual ficou registado em suporte digital, minutos 6:40 e seguintes, minutos 14:00 e seguintes e minutos 16:00 e seguintes) resulta indubitavelmente que os AA. demonstraram judicial, extrajudicial e inequivocamente que não pretendiam celebrar o contrato-promessa de compra e venda, que consideravam o mesmo resolvido e que pretendiam receber o valor do sinal prestado, em dobro.
9.ª- Da concatenação da prova documental, da prova testemunhal e dos depoimentos e declarações de parte, o Tribunal recorrido devia ter julgado provado que:
- os AA. criaram a convicção na R. de que não pretendiam cumprir o contrato promessa, nem tinham interesse na outorga da escritura de compra e venda, tendo demonstrado tal à Ré;
e que:
- os Autores demonstraram à Ré que consideravam o contrato promessa resolvido.
10.ª- O Tribunal recorrido violou, desde logo, o disposto no art. 436º do Código Civil.
11.ª- O que se discutia na ação judicial intentada pelos AA. em Outubro de 2014 era saber se a R. devia, ou não, ser condenada ao pagamento do valor do sinal prestado, em dobro, sendo que a R. não colocou em crise a resolução do contrato, mas sim a licitude da mesma, no sentido de não ter incumprido o contrato promessa de compra e venda e, por isso, não dever ser condenada no pagamento do sinal prestado, em dobro.
12.ª- A douta sentença recorrida devia ter concluído que, quando a R. vendeu o imóvel a terceiro, já o vínculo contratual com os AA. se encontrava extinto, por vontade destes.
13.ª- Acresce que, ainda que se entendesse, como erradamente se entendeu na douta decisão recorrida, que quando o imóvel foi vendido o contrato promessa celebrado com os AA. ainda vigorava, no que não se concede e apenas por dever de patrocínio se equaciona, então sempre se teria de entender que não houve, por parte da R., dolo de incumprimento quando vendeu o imóvel a terceiro.
14.ª - Pois que estava convicta, como expressamente declararam os seus administradores, que o contrato “estava extinto”.
15.ª- A douta decisão recorrida violou, assim, o disposto nos arts. 442º e 799º, ambos do Código Civil.
16.ª- Os AA. demonstraram à R., judicial, extrajudicial e inequivocamente que não pretendiam celebrar o contrato-promessa de compra e venda, que consideravam o mesmo resolvido e o vínculo contratual extinto e que pretendiam receber o valor do sinal prestado, em dobro, pelo que, a alegação por parte dos AA. que a R. incumpriu o contrato-promessa de compra e venda em 2017, quando vendeu o imóvel a um terceiro, como se as partes considerassem, nessa data, que o contrato-promessa de compra e venda se encontrava a produzir os seus efeitos, consubstancia um claro abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.
17.ª- A douta decisão recorrida violou o disposto no art. 334º do Código Civil.
18.ª- Caso assim não se entenda, no que não se concede e apenas por dever de patrocínio se equaciona, sempre se teria de considerar que a R. está impossibilitada de cumprir.
19.ª- Tal impossibilidade de cumprimento ocorreu, assim, por causa não imputável à R., ou seja, ao devedor, pelo que, dessa forma as obrigações provenientes do contrato promessa de compra e venda extinguem-se – art. 790º n.º1 do Código Civil.
20.ª - Pelo que, no termos do art. 795º do Código Civil, os AA. apenas teriam direito à restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa.
21.ª- Caso assim não se entenda, no que não se concede e apenas por dever de patrocínio se equaciona, sempre se teria de considerar que o comportamento contratual dos AA. contribuiu para uma situação de impasse, existindo incumprimento bilateral do contrato, pelo que o contrato-promessa deve ser resolvido tendo por base as normas gerais, pela compensação de culpas concorrentes, verificados os respetivos pressupostos - art. 570.º do Código Civil.
22.ª- O valor do sinal prestado em dobro é de €317.295,32 e não de €528.825,54 como o entendeu, sem fundamentar, o Tribunal recorrido.
23.ª- Correspondendo o pagamento de €105.765,11 ao remanescente do preço, o mesmo, pela natureza das coisas, não foi, nem podia ter sido entregue a título de sinal.
24.ª- Pelo que, o montante de €105.765,11 não poderá ser considerado como sinal para efeitos do n.º 2 do art. 442º do Código Civil, que também nesta parte da decisão recorrida, o Tribunal a quo violou.
25.ª - Caso se considere que existiu incumprimento definitivo por parte da R., no que não se concede e só por dever de patrocínio se equaciona, e por isso se considere que a R. deve ser condenada a pagar aos AA. o sinal prestado em dobro, deve a douta sentença recorrida ser revogada, considerando-se que esse montante (o do sinal em dobro) deve ser reduzido equitativamente, nos termos do art. 812º do Código Civil.
26.ª- A R. encontra-se sujeita a um Plano Especial de Revitalização, o qual, sob o n.º 25143/15.2T8LSB, correu termos pela 1ª Secção do Comércio de Lisboa, J5.
27.ª- O direito de crédito dos AA. é, hoje, o mesmo que foi reconhecido sob condição no âmbito do PER, pelo que, caso esse Alto Tribunal confirme a decisão recorrida, no que não se concede e apenas por dever de patrocínio se equaciona, e a R. venha a ser, com transito em julgado, condenada nos presentes autos, o pagamento aos AA., seja de que quantia for, sempre terá de ser realizado de acordo o previsto no Plano de Revitalização da R.
Pelo exposto, deve esse Alto Tribunal julgar totalmente procedente o presente recurso e, consequentemente, revogar a douta decisão recorrida e:
a) julgar provados os factos indicados sob os números xi a xiii dos factos julgados não provados;
b) julgar a presente ação improcedente, por não provada e absolver a R. do pedido;
c) caso assim não se entenda, no que não se concede, julgar a ação improcedente, por os AA. atuarem em abuso de direito;
d) caso assim não se entenda, no que não se concede, considerar que o contrato-promessa deve ser resolvido tendo por base as normas gerais, pela compensação de culpas concorrentes, com a restituição em singelo do sinal recebido;
e) caso assim não se entenda, no que não se concede, considerar o valor do sinal prestado foi de €158.647,66 e caso entenda condenar a R. na devolução do sinal prestado, em dobro, deve tal montante ser reduzido equitativamente para um valor com o sentido de uma mera censura, já que nenhum fim de ressarcimento tem sentido;
f) caso assim não se entenda, no que não se concede, considerar que os A. A. apenas têm direito à restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa;
g) qualquer condenação da R., que apenas por dever de patrocínio se admite, terá de ter em consideração o decidido no processo especial de revitalização.
***
10- Os autores contra-alegaram, pugnado pela improcedência do recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1) Não deve a decisão recorrida ser revogada, na medida em que a Recorrente pretende que sejam apreciadas questões já decididas no proc. 2436/14.0T8LSB, no qual se decidiu que “Não se verifica no caso dos autos a conversão pelos Autores da mora da Ré em incumprimento definitivo, por não ter havido interpelação admonitória, bem como não se verifica da matéria de facto provado que tenha havido uma perda objectiva de interesse na prestação pelos Autores. Sendo assim, o Tribunal não se encontra em condições de declarar a resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado entre os Autores e a Ré”.
Esta sentença manteve o contrato válido e eficaz entre as partes.
2) A sentença do proc. 2436/14.0T8LSB aprecia e decide claramente pela existência de interesse dos Autores no contrato prometido e na inexistência de qualquer comunicação ou comportamento dos Autores para a resolução do contrato nem que essa convicção fosse criada na Ré;
Considera ainda, a referida sentença, que o relatório que a Ré utiliza para tentar demonstrar falta de interesse reforça precisamente esse interesse: Tal manutenção do interesse dos Autores vem reforçado pelo relatório de vistoria de 18 de Maio de 2009 (doc. 44 junto à Petição Inicial);
3) O mesmo considerou o Tribunal recorrido: “O interesse dos Autores na realização da escritura é, claramente, reconhecido na sentença anteriormente proferida” (cfr. Página 39 da sentença recorrida) – Trata-se, sem dúvida, de factualidade apreciada anteriormente.
4) A alegação da Ré, que se traduz no facto de o Autores não terem pretendido celebrar a escritura de compra e venda, preferindo antes ceder posição/revender, não segue nem faz sentido, não só porque já apreciada concretamente, mas ainda porque que tendo os Autores procedido ao pagamento da totalidade do preço, mesmo que colocassem a hipótese de ceder/revender não faria sentido não querer celebrar a escritura pois não tinham a posse nem a propriedade do imóvel e já haviam entregue a totalidade do preço.
5) A partir do momento em que foi pago, a título de sinal, o remanescente do preço, aos Autores apenas lhe interessaria escriturar e registar o imóvel em seu nome uma vez que se encontrava paga a totalidade do preço acordado - É inquestionável o interesse dos Recorridos no negócio prometido.
6) Se as intenções dos Autores fossem outras, a partir de Julho de 2005 poderiam, legitimamente, proceder à resolução do contrato por incumprimento definitivo imputável à Ré face ao prazo de 45 meses que a Ré deixou ultrapassar (factos provados 8), 9) e 13) da sentença junta como doc. 44 e facto provado 7) e 9) da sentença recorrida).
7) Até à data da Sentença do processo 2436/14.0T8LSB (18.05.2018) e por força da mesma, dúvidas não restam do interesse dos Autores na realização do contrato prometido e que o mesmo se mantinha válido, não tendo os Autores demonstrado à Ré que não pretendiam celebrar o contrato prometido, que não tinham interesse na prestação da Ré ou que consideravam o contrato promessa resolvido – O interesse do Autores e a validade do contrato é incontornável pela sentença do proc. 2436/14.0T8LSB, por mais voltas que a Recorrente tente dar - “O comportamento dos Autores não revela essa perda de interesse na prestação do devedor, porquanto durante cerca de 9 anos (após a data limite estabelecida para a celebração da escritura); “os Autores não perderam o seu interesse no cumprimento do contrato promessa e tal resulta da matéria de facto provada pelas sucessivas marcações de vistorias e de escrituras (Novembro de 2008 – facto provado em 15., Maio de 2009 – facto provado em 17.).” - sentença junta como doc. 40 à Petição Inicial.
8) Isso mesmo afirmou o Autor em Tribunal.
9) Os aqui Recorridos sempre demonstraram vontade em outorgar a escritura pública, sempre se comprometeram a outorgá-la, quer por escrito quer verbalmente quer pela sua conduta de persistente indagação do andamento dos procedimentos de reparação e, a cada vistoria comprometeram-se a celebrar a escritura pública de compra e venda conforme resulta dos relatórios de vistoria, o mesmo acontecendo com na outorga do aditamento em que se comprometem a celebrar a escritura.
10) Se o Tribunal, tivesse entendido, como hoje diz a Ré, que os Autores tinham feito cessar os efeitos do contrato por ter demonstrado judicial ou extrajudicial e inequivocamente que não pretendiam celebrar o contrato-promessa de compra e venda, que os Autores consideravam o vínculo contratual extinto e que tinham provocado essa convicção na Ré, mas, por infundada, sem conferir aos Autores o direito à restituição do sinal em dobro, seguramente que a decisão teria sido diferente, pois não faria sentido julgar improcedente o pedido de declaração de resolução do contrato - A ser como diz a Ré o Tribunal teria declarado resolvido o contrato promessa sem culpa da Ré;
11) Naquele processo foram ouvidas as mesmas testemunhas, à excepção do terceiro adquirente, que nada mais adiantaram nos presentes autos além do que já tinham testemunhado anteriormente pelo que nada acrescentaram relativamente à documentação junta.
12) Dessa forma bem decidiu o Tribunal A Quo ao considerar que “Aqui chegados, não restam dúvidas que a Ré ao vender o imóvel prometido a um terceiro incumpriu o contrato promessa, porquanto o mesmo se encontrava válido à data da sentença do proc. n.º 2436/14.0T8LSB, não tendo, até essa data, Autores ou Ré demonstrado, comunicado, transmitido, judicial ou extrajudicialmente, não terem interesse na prestação um do outro, bem como nenhuma das Partes procedeu à resolução do contrato, judicial ou extrajudicialmente.”
13) Tendo em conta a decisão proferida no proc. 2435/14.0T8LSB, neste processo são relevantes apenas os factos posteriores aos considerados naquela decisão, incluindo-se, contudo, a venda a terceiro, por ser do total desconhecimento do Tribunal e dos Autores à data da sentença.
14) E assim o é porque a Recorrente pretende a apreciação de factos já decididos, violando a Autoridade do Caso julgado material;
15) Com efeito
A Autoridade de caso julgado importa à aceitação de uma decisão proferida em acção transitada em julgado, visando obstar que a relação e/ou situação jurídica material definida por sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, impondo-se, por isso, aceitar a decisão proferida no primeiro processo, na medida em que o núcleo fulcral das questões de direito e de facto ali apreciadas e decididas são exactamente as mesmas que se pretende ver apreciadas, discutidas e decididas, havendo pois uma necessária relação de prejudicialidade.
16) A Autoridade de caso julgado determina, assim, que decisões sobre litígios conexos a um litígio primeiramente decidido terão de ter teor compatível, harmónico com o que foi primeiramente decidido.
17) Duas decisões são contraditórias se a segunda decisão vier impedir, totalmente ou
parcialmente, a primeira decisão de produzir o seu efeito útil normal, e assim o é para que uma decisão judicial tenha efetiva utilidade para compor os conflitos de interesse, perpetue os seus efeitos e não se torne “letra morta”.
18) Portanto, considerando as regras de legitimidade, a autoridade de um julgado anterior faz-se valer numa sentença posterior para obviar à contradição prática, e não a uma contradição teórica de julgados. Explicando, visa-se evitar que (i) as partes da primeira ação fiquem sujeitas a (ii) sentenças posteriores que (iii) afetem de modo contraditório o gozo dos seus bens jurídicos.
19) É inequívoca a violação de autoridade de caso julgado entre as alegações da Recorrente e a decisão no proc. 2436/14.0T8LSB, cuja sentença de improcedência transitou em julgado antes da propositura da presente ação, de forma que o que foi discutido e decidido naquela acção condiciona a decisão a proferir nesta acção.
20) A Ré alega que os Autores demonstraram judicial e extrajudicialmente que não pretendiam celebrar a escritura pública, não tendo interesse no negócio nem na prestação da Ré, que pretendiam ceder/revender a sua posição entendendo, em última análise, que o contrato se encontrava resolvido e que lhe criaram essa convicção, mas o que resulta da sentença anterior é o contrário - Os Autores não interpelaram admonitoriamente, não demonstraram nem transmitiram perda de interesse, não resolveram o contrato nem criaram essa convicção, por isso, haverá que concluir que teriam de cumprir o contrato.
21) A Ré pretende assim a apreciação da mesma relação material controvertida apreciada anteriormente de forma que a desconsideração do teor da primeira decisão redundaria na prolação de efeitos que seriam incompatíveis com o teor da segunda decisão no plano prático - Assim o seria caso agora o Tribunal entendesse que os Autores, aqui Recorridos teriam demonstrado/transmitido/comunicado, extra, e/ou judicialmente e inequivocamente que não pretendiam celebrar o contrato prometido e que o mesmo se encontrava anteriormente resolvido judicial ou extrajudicialmente.
22) Verifica-se, assim, a existência nos fundamentos das alegações apresentadas pela Ré violadores da autoridade de caso julgado em relação à sentença proferida no proc. 2436/14.0T8LSB.
23) Nos termos dos artigos 619.º, 621.º e 580.º nº 2 do CPC, encontra-se o Tribunal impossibilitado de se pronunciar, num patamar de mérito, sobre as pretensões já anteriormente analisadas, não podendo decidir num sentido contrário ao ali propugnado, com prevalência da decisão anterior por imposição da autoridade de caso julgado.
24) Razão pela qual impõe-se que este Tribunal Superior, quando julgar, julgue de forma a não inutilizar a primeira decisão e os seus fundamentos, exercício este que a verificada autoridade de caso julgado impõe.
25) A Autoridade do caso julgado alcança também a preclusão de todas as questões em relação aos quais impenda sobre o réu o ónus de concentrar toda a defesa, impondo que toda a defesa que seja possível deduzir, seja efetivamente deduzida na contestação, sob pena de o não poder ser em momento posterior, impossibilitando que possa invocar em ação posterior factos que podia e devia ter alegado como fundamento anteriormente.
26) No já referido proc. 2436/14.0T8LSB a Ré nunca alegou eventual resolução operada pelos Autores, quer por interpelação, quer por perda de interesse, quer judicialmente quer extrajudicialmente, não se referindo a nenhuma destas questões em concreto e muito menos alegou, no indicado processo, que tenha ficado convicta que os Autores não pretendiam cumprir o contrato promessa e que não tinham qualquer interesse na prestação da Ré. Não alegou igualmente que os Autores tivessem demonstrado a ela Ré, judicial, extrajudicial e inequivocamente que não pretendiam celebrar o contrato-promessa de compra e venda e que considerava o mesmo resolvido.
27) Ao abrigo do princípio da concentração da defesa a Ré tinha o ónus de concentrar na primeira acção toda a defesa que coubesse contra o pedido dos Autores o que abrange a hipotética demonstração judicial, extrajudicial e inequívoca que os Autores não pretendiam celebrar o contrato-promessa de compra e venda, que considerava o mesmo resolvido e o vínculo contratual extinto, que criaram essa convicção na Ré que, sabendo que os Autores tinham resolvido o contrato-promessa de compra e venda, na prossecução do seu objecto social, vendeu o imóvel a um terceiro.
28) Estes factos que a Ré hoje pretende demonstrar, a ocorrer, não são supervenientes em relação ao proc. 2436/14.0T8LSB, quer na sua fase inicial, com a sua contestação, quer da audiência final quer da sentença.
29) A doutrina e a jurisprudência têm vindo a entender que ficam precludidas todas as questões pertinentes não oportunamente suscitadas pela defesa e que o devessem ser - A Ré silenciou totalmente, dessa forma, as questões que agora tardiamente suscita e, nesses termos, tais questões encontram-se igualmente cobertas pela autoridade do caso julgado acima considerada.
30) A Recorrida entende, ainda, que a douta sentença recorrida devia ter concluído que, quando a Ré vendeu o imóvel a terceiro, já o vínculo contratual com os Autores se encontrava extinto, por vontade destes, mas tal não corresponde à verdade pois existe uma sentença anterior que a Recorrida insiste em esquecer e que manteve o contrato válido e tal sentença é de 2018, transitou em julgado e a Ré não recorreu da mesma.
31) A sentença recorrida entendeu, e bem, que o contrato promessa se encontrava válido em virtude de existência de sentença anterior, da qual resultou que não ocorrera qualquer resolução nem, demonstração de resolução ou criação de convicções da Ré nesse sentido atá à data da venda a terceiro.
32) E, obviamente que na venda ocorreu dolo porquanto a apresentação da anterior acção em juízo, com o pedido ali formulado pelos Autores não legitimava a Ré a desvincular-se do contrato promessa, pela simples razão que o mesmo se mantinha plenamente válido e eficaz, subsistindo a relação contratual.
33) A própria Ré admite a validade do contrato quando o incumpriu ao afirmar que procedeu à venda do imóvel em 2017 por ter estado 8 anos a aguardar que os AA. celebrassem a escritura – entre 2009 e 2017.
Não existe, pelo exposto, qualquer violação na apreciação dos factos e na aplicação do Direito.
34) A Ré imputa ainda aos Autores um comportamento de abuso de direito, fundamentando esse comportamento abusivo com matéria apreciada anteriormente na sentença do proc. 2436/14.0T8LSB, pedindo que agora seja considerada de forma contrária, alegando que os Autores demonstraram à Ré judicial e extrajudicial e inequivocamente que não pretendiam celebrar o contrato-promessa de compra e venda, que considerava o mesmo resolvido e o vínculo contratual extinto e que pretendiam receber o valor do sinal prestado em dobro.
35) Resulta de forma muito clara que nenhuma factualidade alegada agora pela Ré para fundamentar o alegado abuso de direito foi dada com provada na sentença do proc. 2436/14.0T8LSB: não demonstraram, não transmitiram que não pretendiam celebrar a escritura nem criaram essa convicção, demonstrando sim, interesse na compra e venda prometida mantendo-se o contrato válido.
36) Nem o Tribunal A Quo poderia agora decidir de forma contrária à primeira sentença. Não pode, por, por isso, equacionar-se um “abuso de direito” por parte dos Autores pelo facto de terem proposto a presente acção.
37) A Recorrente pretende a restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa o qual não é aplicável nos presentes autos.
38) Os Autores, em momento algum, declararam à Ré que não pretendiam cumprir com o contrato promessa, antes pelo contrário.
39) Comprometeram-se a celebrar a escritura após todas as vistorias e o aditamento, procederam à marcação da escritura por uma vez e tentaram-no por mais duas.
Não declararam nem criaram convicção na Ré de que o contrato estaria resolvido ou que não pretendiam celebrar a escritura.
40) Nem a Ré consegue concretizar temporalmente essa alegada convicção e, tanto assim é, que a Ré, segunda mesma, colocou a moradia à venda apenas em 2017, por ter estado aguardar oito anos pela celebração da escritura.
41) O instituto do enriquecimento sem causa tem carácter subsidiário enquanto a lei facultar outro meio de ser indemnizado ou restituído.
42) A obrigação de restituição a que a Ré se encontra vinculada é fundada no contrato-promessa celebrado, na perspectiva do seu incumprimento por impossibilidade culposa a ela imputável, seguindo o regime previsto no art. 442º do Código Civil.
43) Por outro lado, o sinal prestado pelos Autores no valor de € 264412,77 no âmbito do contrato-promessa celebrado, não ocorreu sem uma causa justificativa, está inteiramente justificado pelo próprio contrato-promessa.
44) Não ocorrendo culpa dos Autores para a impossibilidade superveniente não poderá verificar-se restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa.
45) Da mesma forma também não se verificam culpas concorrentes
Diz o Tribunal A Quo: “(…) os Autores não contribuíram para o incumprimento do
contrato promessa, por via da venda a terceiro, antes, foram a única parte
contratual a tentar concretizar o negócio.”
46) Os Autores não contribuíram, em nada, para o impasse verificado, tendo participado em todas as vistorias para as quais foram convocados e tendo solicitado outras tantas, indagaram pelo andamento das reparações, solicitaram que a Ré realizasse as reparações e celebraram um aditamento demonstrando inequivocamente a intenção de celebrar o contrato prometido.
47) Notificaram por uma vez a Ré para a celebração da escritura no dia 18 de Agosto de 2014 e tentaram por duas vezes, após sentença do proc. 2436/14.0T8LSB, as quais se vieram a verificar negativas (cfr. Doc. 45 e 49 juntos à petição inicial).
48) A Ré não pode, por isso, afirmar a existência de incumprimento bilateral por os Autores não terem contribuído, em nada, para a venda a terceiro.
49) Bem julgou o Tribunal recorrido: “O interesse dos Autores na realização da escritura é, claramente, reconhecido na sentença anteriormente proferida.
Depois da referida sentença, o interesse dos Autores é inquestionável, uma vez que por duas vezes tentaram notificar a Ré para a realização da escritura pública de compra e venda, uma em 2018 e outra em 2019.” (página 39 da sentença recorrida)
50) Quanto à restituição do sinal em singelo pedida pela Ré, dispõe o art. 441º do Código Civil que “No contrato-promessa de compra e venda presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço.”
51) A Ré não ilide a presunção com a mera afirmação de “correspondendo tal pagamento ao remanescente do preço, o mesmo, pela natureza das coisas, não foi entregue a título de sinal” (página 28 das Alegações da Recorrente)
52) Procedendo as partes a um aditamento ao contrato promessa no qual fazem constar que “os promitentes compradores entregam à Promitente vendedora, nesta data, através de cheque, a quantia de € 105.765,11 (cento e cinco mil, setecentos e sessenta e cinco euros e onze cêntimos), quantia da qual a promitente Vendedora dá integral quitação após boa cobrança” (cfr. cláusula primeira do doc. 18 junto à petição inicial) sem qualquer outra referência, certo será, salvo melhor e mui douta opinião, que a quantia entregue terá, também ela, carácter de sinal.
53) Relativamente à redução equitativa do sinal, como se viu não existe qualquer culpa dos Recorridos
54) Na cláusula sexta nº 5 do contrato promessa (cfr. doc. 2 junto à petição inicial), acordaram as partes que: “5. O incumprimento definitivo da Promitente Vendedora, traduzido na não tradição de pleno direito da fracção ora prometida comprar e vender a favor dos Promitentes Compradores, confere a estes últimos o direito de resolver o presente contrato e exigir da Promitente Vendedora a restituição em dobro de todas as importâncias entregues ao abrigo do mesmo, nomeadamente às a título de sinal e sucessivos reforços de sinal.”
55) As partes estipularam como válida a restituição do sinal em dobro, o que corresponde à sanção legal estabelecida no art. 442º nº 2 do Código Civil para situações de incumprimento definitivo do contrato imputável à parte faltosa.
56) Resultando tal sanção da Lei bem como da manifestação de vontades reduzida a escrito, que não foi objecto de alteração, não se vislumbra, salvo melhor e mui douta opinião, a existência de motivo para redução equitativa do dobro do sinal.
57) Quanto à alegação que o crédito dos Autores deverá ser aceite nos termos do plano de revitalização, a Ré parte do princípio errado de que o Plano aprovado e homologado pode ser imposto a um crédito com nascimento em data posterior, o que não resulta do regime, nem poderia resultar, em face de regras e princípios que norteiam o nosso direito.
58) No processo especial de revitalização 25143/15.2T8LSB os Autores viram um crédito no valor de € 528,825,00 reconhecido sob condição suspensiva da sentença que viesse a ser proferida no âmbito da acção de processo nº 2436/14.0 T8LSB.
- Em caso de procedência da acção o crédito era reconhecido;
- Em caso de improcedência o crédito não era reconhecido.
59) Transitada em julgado a sentença de homologação do PER prosseguiu o proc. 2436/14.0 T8LSB que veio a indicar que o contrato se mantinha válido e que não haveria lugar a condenação para pagamento, não reconhecendo, dessa forma, o crédito condicional dos Autores constante da lista de créditos.
60) A constituição do crédito dos Autores no âmbito do PER estava sujeita à verificação de um acontecimento futuro e incerto que era a decisão que viesse a ser proferida no proc. 2436/14.0 T8LSB e, proferida que foi, não reconheceu aquele crédito.
61) O incumprimento definitivo imputável à Ré que aqui se discute ocorre após o transito em julgado da sentença homologatória do PER - o objecto gerador de responsabilidade nasce com a venda a terceiro no dia 7 de Novembro de 2017.
Apenas a partir dessa data nasce o crédito para cuja condenação da Ré os Autores peticionam.
65) Tratam, assim, de situações diferentes:
- no primeiro caso um crédito que não chegou a ser por força da sentença no proc. 2436/14.0 T8LSB;
- no segundo um crédito que nasce após a sentença homologatória do PER e que não está relacionado com o crédito que consta da lista de créditos provisórios.
62) Dessa forma estamos perante um crédito novo, cujos fundamentos para a sua verificação nem sequer coincidem com os fundamentos daquele cuja verificação ficou dependente da decisão do proc. 2436/14.0 T8LSB
63) No PER, relativamente aos créditos de constituição posterior (com referência à data até à qual podiam ser reclamados créditos no processo), em que o credor nem sequer os poderia ter reclamado (veja-se que o incumprimento da Ré, facto gerador do crédito, ocorre depois da sentença de homologação) a solução não pode deixar de ser a inaplicabilidade do plano.
64) E, esses créditos que não são regulados pelo plano poderão e deverão ser discutidos e serão, se verificados em sede própria, exigíveis nos termos gerais – Não pode o plano ser aditado após homologação.
65) A aplicação do plano a créditos posteriores à sua homologação implicaria a violação de princípios constitucionais como o direito de defesa, acesso à justiça, violação do contraditório.
66) Se o crédito ora alegado pelos Autores nem sequer existia à data da reclamação de créditos e da homologação do plano, afigura-se-nos cristalino que o acordo de recuperação homologado não podia abrangê-los.
67) Outra solução que que não seja a que os direitos e créditos posteriores sejam totalmente reconhecidos, sem restrições do Plano, legitimaria a Ré a contrair as dívidas que bem entendesse sabendo que as mesmas seria reduzidas de acordo com o PER, até porque seria incongruente criar limitações aos futuros credores - quem se prestaria a negociar com a Ré sabendo que em caso de incumprimento e recurso a Tribunal veria os seus créditos sujeitos a limitações?
Sendo o crédito reclamado nos presentes autos de constituição e vencimento ulterior à data de homologação do PER, conclui-se que o mesmo não se encontra abrangido pelo plano aí aprovado.
68) Por fim decidiu bem o Tribunal A Quo ao considerar que a Ré incumpriu o contrato ao vender o imóvel prometido a um terceiro
No proc. 2436/14.0T8LSB decidiu o Tribunal não se verificar a conversão pelos Autores da mora da Ré em incumprimento definitivo, por não ter havido interpelação admonitória e por não ser verificar perda de interesse na prestação pelos Autores, absolvendo a Ré do pedido – cfr. doc. 44 junto à Petição Inicial.
Com esta decisão considerou o Tribunal que o contrato promessa se manteve válido com os inerentes direitos e obrigações decorrentes do mesmo.
69) Acatando a sentença transitada em julgado, os Autores tentaram notificar a Ré, por duas vezes, em 2018 e 2019 para comparecer para a realização da escritura de compra e venda, conforme resulta das notificações juntas à Petição Inicial como docs. 45 e 49. Contudo, as notificações não se concretizaram por não se encontrar a Ré nem o Legal Representante nas moradas indicadas, sede e escritório funcional.
70) Os Autores vieram a descobrir que a Ré, na pendência do proc. 2436/14.0T8LSB, procedeu à venda do imóvel prometido vender aos Autores a um terceiro.
71) Aos Promitentes Compradores não foi comunicada a transmissão a favor de terceiro, nem previamente nem após a realização daquele negócio, conforme resulta das declarações do Autor e dos depoimentos de Parte dos Legais Representantes da Ré.
72) Por outro lado, a Ré não declarou aos Autores a perda do seu interesse ou que fazia seu o sinal entregue; não propôs ação de execução específica nem procedeu à marcação de nova escritura.
73) Também não informou o Tribunal, até ao trânsito ou após este, tendo a oportunidade de o fazer quer por requerimento quer por declarações do Legal Representante da Ré.
74) Por outro lado, nem os Autores celebraram ou aceitaram um contrato de cessão de posição contratual a que as partes estavam obrigadas face à aplicação ao caso em apreço das exigências de forma do regime do contrato promessa de compra e venda previsto no art. 410º do Código Civil, nos termos do art. 425º do Código Civil.
75) A venda do prédio celebrada sem o conhecimento e o consentimento dos Autores, por configurar uma cessão da posição contratual, viola expressamente o regime legal previsto nos arts. 424º e seguintes do Código Civil.
76) A venda realizada pela Ré foi com nítida má-fé negocial e má fé processual.
77) Por outro lado, a omissão, em sede de julgamento e sob juramento, de factos essenciais como a venda já realizada a terceiro é, no mínimo, um comportamento reprovável, que é de má-fé e antijurídico quanto às relações entre promitente vendedor e promitente comprador bem como daquele com o Tribunal.
78) Desta forma, a venda da moradia a terceiro, além da manifestação de violação do dever de boa-fé contratual, é bem elucidativa da intenção inequívoca da Ré não vir a celebrar o contrato prometido e obter um ganho indevido.
79) Com a alienação a terceiro a Ré impossibilitou definitivamente o pontual cumprimento do contrato e não ressarciu os Autores das quantias entregues.
Estamos, por isso, em presença de uma impossibilidade superveniente culposa imputável à Ré, o que determina a aplicação do nº 2 do art. 442º do Código Civil.
80) A jurisprudência e a doutrina defendem que se o promitente vendedor aliena a terceiro bens que, por via de contrato, se obrigou a vender a um promitente comprador, torna impossível o cumprimento do contrato.
Existe, assim, um incumprimento definitivo imputável à Ré, tendo decido bem o Tribunal A Quo.
81) Pelo exposto não existiu qualquer violação das regras de direito probatório, tendo o Tribunal a quo apreciado e julgado devidamente a prova produzida e respeitado a Autoridade do caso julgado material.
82) Em face de tudo quanto foi exposto, cabe concluir pela falta manifesta, completa e absoluta de fundamento do presente recurso que, assim, deve ser julgado improcedente.
Nestes termos e nos demais de direito e sempre com mui douto suprimento de V. Exas., deverá a presente apelação ser julgada improcedente, por não provada, e, em consequência, ser confirmada a decisão proferida pelo Tribunal recorrido.
***
II-FUNDAMENTAÇÃO.
1-Objecto do Recurso.
1-É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC) e, ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
a)- A Impugnação da Matéria de Facto;
b)- A revogação da sentença.
***
2- Matéria de Facto.
É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto decidida pela 1ª instância:
- Factos provados.
1) Os Autores celebraram casamento, sob o regime de comunhão de adquiridos em 3 de Setembro de 1994.
2) Os Autores, enquanto casal, e a Ré, na qualidade de Promitentes- Compradores e Promitente-Vendedora respectivamente, celebraram em 5 de Outubro de 2001, o denominado de “contrato promessa de compra e venda” de imóvel, junto a fls. 20 a 28, que tinha por objecto um lote de terreno para construção de moradia, designado por lote ..., sito em Localização 1, no aldeamento turístico denominado “...” e construção da respectiva moradia de acordo o projecto tipo para o condomínio.
3) Por esse acordo, os Autores prometeram comprar e a Ré prometeu vender, pelo preço de € 264.412,77 (duzentos e sessenta e quatro mil quatrocentos e doze euros e setenta e sete cêntimos), livre de ónus, hipotecas ou quaisquer outros encargos, e totalmente acabada, o prédio constituído por lote com moradia correspondente ao projecto J3, conforme planta anexa ao contrato.
4) Ficou acordado na cláusula Terceira que o preço seria pago através de um sinal e reforços de sinal de acordo com o seguinte plano:
a) € 26.441,28 (vinte e seis mil quatrocentos e quarenta e um euros e vinte e oito cêntimos) na data da assinatura do contrato promessa a título de sinal e princípio de pagamento, correspondente a 10%do valor de aquisição;
b) € 13.220,64 (treze mil duzentos e vinte euros e sessenta e quatro cêntimos), a título de reforço de sinal, no prazo de 90 (noventa) dias a contar da assinatura do contrato promessa, correspondente a 5% do valor de aquisição;
c) € 26.441,28 (vinte e seis mil quatrocentos e quarenta e um euros e vinte e oito cêntimos) a título de reforço de sinal, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias a contar da assinatura do contrato promessa, correspondente a 10% do valor de aquisição;
d) € 13.220,64 (treze mil duzentos e vinte euros e sessenta e quatro cêntimos), a título de reforço de sinal, no prazo de 270 (duzentos e setenta) dias após a assinatura do contrato promessa de compra e venda, correspondente a 5% do valor de aquisição;
e) € 26.441,28 (vinte e seis mil quatrocentos e quarenta e um euros e vinte e oito cêntimos), a título de reforço de sinal, no prazo de 360 (trezentos e sessenta) dias a contar da assinatura do contrato promessa, correspondente a 10% do valor de aquisição;
f) € 13220,64 (treze mil duzentos e vinte euros e sessenta e quatro cêntimos), a título de reforço de sinal, no prazo de 450 (quatrocentos e cinquenta) dias após a assinatura do contrato promessa de compra e venda, correspondente a 5% do valor de aquisição;
g) € 13220,64 (treze mil duzentos e vinte euros e sessenta e quatro cêntimos), a título de reforço de sinal, no prazo de 540 (quinhentos e quarenta) dias a contar da assinatura do contrato promessa, correspondente a 5% do valor de aquisição;
h) € 13220,64 (treze mil duzentos e vinte euros e sessenta e quatro cêntimos), a título de reforço de sinal, no prazo de 630 (seiscentos e trinta) dias a contar da assinatura do contrato promessa, correspondente a 5% do valor de aquisição;
i) € 13220,64 (treze mil duzentos e vinte euros e sessenta e quatro cêntimos), a título de reforço de sinal, no prazo de 720 (setecentos e vinte) dias a contar da assinatura do contrato promessa, correspondente a 5% do valor de aquisição;
j) O remanescente do preço, ou seja, €105.765,11 (cento e cinco mil setecentos e sessenta e cinco e onze cêntimos), correspondente a 40% do valor de aquisição, no acto da outorga da escritura pública de compra e venda.
5) Para a realização da escritura pública de compra e venda foi estabelecido um prazo de 30 meses após a assinatura do contrato promessa, incumbindo à Ré a marcação da escritura, obrigando-se, ainda, a avisar os Autores da data, hora e local da mesma, através de carta registada com aviso de recepção com a antecedência mínima de oito dias da data marcada (cfr. cláusula Quarta).
6) Ficou ainda acordado que caso a escritura pública não fosse outorgada no prazo de 30 meses, o Promitente Comprador poderia interpelar a Promitente Vendedora para a marcação da escritura e, caso tal não fosse efectuado no prazo de 180 dias, poderiam os aqui Autores resolver o contrato e exigir as quantias entregues a título de sinal e reforço de sinal, acrescidas de juros calculados à taxa Euribor a 6 meses, até à data da sua efectiva restituição. (cfr. cláusula Quinta).
7) Além deste prazo de 30 meses ficou estabelecido um segundo prazo, de 45 meses, findo o qual ocorreria o incumprimento definitivo da Sociedade Ré: “Considera-se incumprimento para o efeito do número anterior, a não realização da escritura pública de compra e venda, por causa imputável exclusivamente à promitente vendedora, no prazo de 45 (quarenta e cinco) meses a contar da data da assinatura do presente contrato promessa de compra e venda” (cfr. cláusula Sexta, número 5 e 6).
8) Os Autores pagaram à Ré, até Dezembro de 2003 e ao abrigo do referido contrato promessa de compra e venda, a quantia total de € 158.647,68 (cento e cinquenta e oito mil seiscentos e quarenta e sete euros e sessenta e oito cêntimos), ficando o remanescente, no valor de € 105.765,11 (cento e cinco mil setecentos e sessenta e cinco euros e onze cêntimos), por pagar na data de outorga da escritura pública de compra e venda. Decorridos 30 meses da data da assinatura do contrato promessa a moradia prometida vender não se encontrava concluída nem a Ré possuía licença de utilização.
9) Decorrido o prazo de 45 meses, a moradia prometida vender não se encontrava construída.
10) Em Julho de 2005, a Ré informou que existia, efectivamente um atraso na obra mas que dentro de pouco tempo a moradia estaria pronta, podendo proceder à escritura pública.
11) A 7 de Setembro de 2007, a Ré remeteu ao Autor a carta junta a fls. 33, com o seguinte teor:
Tendo-se Exa. escusado a outorgar a escritura pública de compra e venda por, alegadamente, existir a necessidade de realizar reparações na moradia prometida comprar e vender, e na sequência das solicitações de reparações anotadas por V Exas., quanto a problemas de infiltrações, vimos informar que a Pelicano irá deslocar uma equipa especializada da Sociedade Monterg S.A. empresa pertencente ao prestigiado Grupo Lena, para avaliar da necessidade de realizar essas reparações e, em caso afirmativo, proceder às mesmas, tudo durante os meses de Setembro/Outubro de 2007.
Posteriormente e na sequência da intervenção anterior, a Pelicano fará deslocar a sua equipa de manutenção de interiores para solucionar os problemas que possam eventualmente existir, derivados da "patologia" inicial que possa ter sido detectada.
Assim, solucionando que esteja o eventual problema fundamental que afecta a moradia, e que se consubstancia na primeira intervenção, estão reunidas as condições para a celebração da escritura pública de compra e venda, no prazo máximo de 10 dias após a conclusão dos trabalhos acima referidos.”.
12) Em Novembro de 2008, a Ré agendou a marcação de escritura para o dia 29 de Dezembro de 2008, pelas 15hOO no Cartório Notarial do Dr. FF, tendo dado conhecimento ao Autor pela carta junta a fls. 34.
13) No dia 22 de Dezembro de 2008, foi realizada uma vistoria cujo relatório, assinado pelo Autor e pela Ré, tem o seguinte teor:
"1.1. ANOMALIAS DETECTADAS
Alçado direito reparar pintura;
Concluir reparação da cobertura no alçado direito:
Reparar pedra partida soleira da escada;
Rever escoamento da cobertura no alçado principal e diversas zonas de escorrimento:
Corrigir infiltrações no tecto da cozinha;
Repor rodapés na sala e escadas:
Impermeabilizar soleiras e parapeitos;
Refazer reparações Soleira da Sala:
Reparar fissuras em paredes interiores e mezzanine;
Reparar infiltração nas paredes do quarto com varanda;
Substituir cinco tábuas de parquet na mezzanine;
Rever estores da suite e outros compartimentos;
Acrescentar folha de parquet junto à janela pequena do quarto com varanda;
Colar bite existente no último degrau da escada;
Substituir dez ripas de parquet no arranque da escada'
Cobertura de acesso ao carport
Pintura interior e exterior a rever tudo,
Rever pavimento do exterior.
Declaro que para além das anomalias acima designadas não foram encontradas na unidade de alojamento quaisquer outras não conformidades, pelo que considero a unidade de alojamento vistoriada, comprometendo-se a Pelicano a proceder às reparações nas datas acordadas”.
14) Em 4 de Maio de 2009, a Ré comunicou, através de carta, a marcação de escritura pública para o dia 15 de Maio de 2009, bem como o agendamento da vistoria para o dia 13 de Maio de 2009.
15) No dia 13 de Maio de 2009, foi efectuada vistoria, cujo relatório, assinado pelo Autor e pela Ré, tem o seguinte teor:
"Anomalias Detectadas
Polir, reparar e impermeabilizar pedras à volta da janela da sala.
Envernizar escadas, betumar rachas da madeira.
Tampa de máquina lavar loiça.
Pintar mais uma demão de tinta branca.
Envernizar madeira de varanda interior.
Lixar e limpar pedra de janela da suite.
Verificar a infiltração visível na parede, escorrimento.
Afinar melhor roupeiro.
Pintar laterais da janela da suite.
Repintar remendos.
Repintar azul por baixo da varanda
Limpeza e aplicar areia nas juntas
Pintar por baixo da varanda
Limpeza de blocos de pavê volta da moradia.
Após o términos das reparações das anomalias supra mencionadas, comprometo-
me a realizar a Escritura Pública de Compra e Venda num prazo máximo de 15 dias".
16) No dia 18 de Maio de 2009, foi realizada nova vistoria, cujo relatório, assinado pelo Autor e pela Ré, tem o seguinte teor:
"ANOMALIAS DETECTADAS
Limpeza de pedra de piscina (manchada)
Colocar cimento em 2 metros de pavê
Pintar tampas de esgoto (ferrugem)
Recolha de electrodomésticos o cliente propõe que fiquem à guarda da Pelicano
Substituir remate por baixo da guarda
Cliente solicita que se acompanhe as zonas anteriormente detectadas c/infiltrações
Remate do rodapé à janela dos dois lados
Verificar sistema de rega e arranque da piscina”.
17) No relatório vistoria de 18 de Maio de 2009, subscrito pelo Autor e pela Ré, consta que a “Escritura não depende da execução dos trabalhos supra citados, dependerá de contratação de exploração turística ou cedência de posição.”.
18) As partes acordaram que os Autores efectuariam o pagamento da totalidade do preço, tendo celebrado o denominado “aditamento ao contrato promessa de compra e venda junto a fls. 36v a 37, tendo o mesmo sido outorgado no dia 25 de Maio de 2009, no qual ficou estipulado que os Promitentes compradores se obrigavam a celebrar a escritura pública de compra e venda até ao dia 30 de Dezembro de 2009.
19) Os Autores procederam ao pagamento do remanescente do preço, no montante de € 105.765,11.
20) Até ao dia 30 de Dezembro de 2009, não foram os Autores notificados da marcação da escritura nem tão pouco para proceder a vistoria do imóvel.
21) Em 7 de Fevereiro 2012, a Ré agendou via email, a marcação de nova vistoria, para o dia 15 de Fevereiro.
22) Nesse email consta:
A moradia 31-24, cujo proprietário é o Sr. Dr. AA, está entregue ao Stand de Vendas para revenda. Numa ida moradia foram identificados os seguintes problemas:
PISO 0
Sala - Borracha das portas para o exterior, ressequidas, fazendo com que as portas deslizem com alguma dificuldade e que dificultem o seu fecho;
Escadas - pavimento danificado, no "hall" das escadas, junto ao vidro (lado esquerdo) devido a infiltração;
PISO 1
Quarto 2 - infiltração/humidade, na parede, junto à janela que dá para a varanda;
Suite - Estore, do lado esquerdo, não funciona, estando completamente levantado.
Nessa direcção o piso está danificado.
Depois de falar com o proprietário, o mesmo referiu que os problemas agora existentes, já teriam sido identificados aquando vistoria”.
23) O Autor solicitou uma reunião e nova vistoria, através de email enviado no dia 30 de Maio de 2013.
24) Os Autores procederam à marcação da escritura pública, efectuando a Notificação Judicial da Ré, notificando para o dia 18 de Agosto de 2014 para a realização da escritura do imóvel, livre de ónus, hipotecas ou quaisquer outros encargos e totalmente acabada, pelas 14hOO, no Cartório Notarial Rui Januário, sito na Av. 5 de Outubro, 52, 10 E, 1050-058 Lisboa, devendo a Ré enviar para o indicado Cartório até 10 dias antes da data agendada para a escritura todas a documentação necessária para o efeito, nomeadamente:
- Certidão permanente da Requerida;
- Identificação dos representantes da Requerida que estarão presentes no
acto:
- Licença de utilização;
- Certidão de teor da descrição e de todas as inscrições em vigor;
- Caderneta Predial;
- Certificado Energético;
- Ficha técnica de habitação:
- Certidão camarária comprovativa da recepção provisória das obras de urbanização ou de que a caução prestada é suficiente para garantir a boa execução das obras de urbanização.
- Certificado energético;
- Comprovativo do cancelamento de todos os ónus e encargos.
25) Da notificação constava ainda que, tornava-se necessário, previamente, que a reparação de todas as anomalias fosse verificadas bem como reparadas, devendo a Ré apresentar até aos 15 dias anteriores à escritura, termo de responsabilidade de Eng. Civil inscrito como perito, que reconhecesse que todas as patologias de defeitos da construção se encontravam reparados e que o imóvel não sofria de qualquer defeito de construção, efectuando-se vistoria conjunta (Compradores, representante da vendedora e Técnico) em igual período.
26) O Agente de Execução efectuou a indicada notificação avulsa no dia 25 de Julho de 2014, pelas 10h21
27) No dia 18 de Agosto, pelas 14hOO, os Autores compareceram no Cartório Notarial do Dr. FF.
28) Às 15hOO, não comparecendo a Ré, o Notário lavrou certidão, certificando:
Não foi remetida a este Cartório qualquer documentação relacionada com o imóvel acima identificado. Chegada a hora, verificou-se não estar presente quem representasse a sociedade vendedora, tendo sido feita chamada por várias vezes até às quinze horas.”.
29) Os Autores intentaram acção judicial pedindo que fosse declarado resolvido, por incumprimento definitivo da Ré, o contrato promessa outorgado entre Autores e Ré e, em consequência, fosse esta última condenada a devolver aos Autores o sinal em dobro.
30) A referida acção correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Cível – Juiz 17 sob o nº de proc. 2436/14.0T8LSB e nele se consubstanciou o seguinte pedido: que fosse declarada a resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado entre Autores e Ré, por incumprimento definitivo e culposo desta e, em consequência, ser a Ré condenada a pagar aos Autores o dobro do que receberam destes, a título de sinal e reforço de sinal, no montante de € 528825,54 (quinhentos e vinte e oito mil oitocentos e vinte e cinco euros e cinquenta e quatro cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a data da citação até integral pagamento
31) Realizada a audiência de julgamento veio o Tribunal a decidir que: “Tendo em atenção as considerações expendidas e as normas legais citadas, julga-se a acção improcedente e, em consequência absolve-se a Ré PELICANO – INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO, S.A. dos pedidos formulados pelos Autores AA e BB PINTO.
32) Fundamentou o Tribunal a sua decisão da seguinte forma:
“No caso dos autos
1 – Do não cumprimento dos prazos estabelecidos: No contrato-promessa de compra e venda em causa consta que:
− Para a realização da escritura pública de compra e venda foi estabelecido um prazo de 30 meses após a assinatura do contrato promessa, incumbindo à Ré a marcação da escritura, obrigando-se, ainda, a avisar os Autores da data, hora e local da mesma, através de carta registada com aviso de recepção com a antecedência mínima de oito dias da data marcada (facto provado em 6.);
− Caso a escritura pública não fosse outorgada no prazo de 30 meses, o Promitente Comprador poderia interpelar a Promitente Vendedora para a marcação da escritura e, caso tal não fosse efectuado no prazo de 180 dias, poderiam os Promitentes Compradores resolver o contrato e exigir as quantias entregues a título de sinal e reforço de sinal, acrescidas de juros calculados à taxa Euribor a 6 meses, pelo período compreendido entre as datas das suas respectivas entregas e a data da sua efectiva restituição (facto provado em 7.);
− Para além deste prazo de 30 meses, o incumprimento definitivo pela promitente vendedora, traduzido na não tradição de pleno direito da moradia prometida comprar e vender, a favor dos Promitentes Compradores, conferia a este o direito de resolver o contrato promessa e exigir da promitente vendedora a restituição em dobro de todas as importâncias entregues ao abrigo do mesmo, nomeadamente as a título de sinal e sucessivos reforços de sinal (facto provado em 8.)
E
− Considera-se incumprimento a não realização da escritura pública de compra e venda, por causa imputável exclusivamente à promitente vendedora, no prazo de 45 meses a contar da data da assinatura do contrato promessa de compra e venda (facto provado em 9.).
Por outro lado, está provado que, pelo menos até Novembro de 2008, a Ré não notificou os Autores para a celebração da escritura de compra e venda prometida.
Perante esta factualidade, entende-se que não tendo a Ré interpelado os Autores, no prazo de 30 meses a contar da data da assinatura do contrato-promessa, para comparecer em certo dia, hora e Cartório para a outorga da respectiva escritura pública, incorreu em mora.
É indiscutível que só o incumprimento definitivo do promitente-vendedor (e não só a simples mora) habilita o promitente-comprador inocente a resolver o contrato-promessa e a exigir a entrega, em dobro, do sinal (e dos seus reforços) e sabendo-se que a mora do promitente-vendedor só se converte em incumprimento definitivo se a prestação (a outorga da escritura e a sua marcação) não for por ele realizada dentro do prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo promitente-comprador ou, em alternativa, se este perder o interesse que tinha na prestação (na transmissão da propriedade), perda esta que deve ser apreciada objectivamente (artigo 808.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Civil), a verdade é que, no caso dos autos, por um lado, os Autores não alegaram factos concretos de que se pudesse extrair terem eles perdido, objectivamente, o interesse na prestação da Ré (isto é, na celebração do contrato definitivo) e, por outro, não ocorreu qualquer interpelação admonitória da Ré, por parte dos Autores, para realizar a sua prestação.
É certo que sempre teria sido ultrapassado o prazo fixado na cláusula 6.ª, n.º 5, do contrato-promessa, o qual constitui um prazo-limite, absoluto ou improrrogável, cujo decurso determina o incumprimento definitivo do contrato e a sua imediata resolução ou caducidade.
“Como qualquer outro contrato, também o contrato-promessa poderá ser resolvido com fundamento na lei ou em cláusula contratual que o permita” (ANA PRATA, O CONTRATO- PROMESSA E O SEU REGIME CIVIL, página 728). “Fundamento legal de resolução do contrato é (...), se este for sinalagmático, o culposo e definitivo não cumprimento da obrigação por uma das partes, com base no art. 801º, nº 2 do Cód. Civil” (obra citada).
No caso dos autos, competindo à Ré, nos termos contratuais, o dever de marcar a escritura pública de compra e venda, apenas a tendo marcada em Novembro de 2008, nem havendo ela curado de invocar quaisquer factos impeditivos de tal marcação que lhe não fossem imputáveis, forçoso se torna concluir que ela se colocou em mora, ao não diligenciar pela marcação da escritura até ao termo do prazo contratualmente previsto (30 meses após a data da assinatura do presente contrato promessa de compra e venda).
Como, porém, nos termos contratualmente acordados entre as partes no contrato-promessa, caso a escritura pública de compra e venda objecto do contrato não fosse outorgada no prazo de 45 meses a contar da data da assinatura do contrato promessa de compra e venda, por causa imputável exclusivamente à promitente vendedora, o contrato-promessa se considerava definitivamente incumprido (cfr. A Cláusula 6.ª, n.º 5, do contrato-promessa), não se tornava sequer necessária, para haver incumprimento definitivo, a interpelação admonitória da promitente-vendedora para cumprir a sua prestação dentro do prazo razoável que o promitente-comprador lhe fixasse para tanto.
“É frequente que as partes convencionem que o cumprimento de um contrato-promessa deverá verificar-se até certo momento, hipótese em que, referido o prazo ao cumprimento das obrigações, não é de duvidar de que se trate de um prazo destas, desencadeador do respectivo vencimento; em dúvida pode ficar, isso sim, se o prazo convencionalmente estabelecido é ou não essencial, isto é, se o seu esgotamento sem que tenha havido cumprimento basta ou não para constituir o devedor numa situação de definitivo não cumprimento” (ANA PRATA, obra citada, página 636).
No caso dos autos, o clausulado do contrato-promessa de compra e venda firmado entre a Ré (como promitente-vendedora) e os Autores (como promitentes-compradores) é, por si só, suficientemente impressivo para fundamentar uma conclusão acerca do carácter essencial do prazo nele fixado para a celebração do contrato definitivo.
Na verdade, as partes trataram de prever, expressamente, a possibilidade de, no termo do prazo inicialmente estabelecido para a celebração do contrato definitivo
(trinta meses a contar da data da assinatura do contrato-promessa), a escritura pública de compra e venda não ter ainda sido celebrada e estipularam que, em tal hipótese, caso a escritura pública não fosse marcada pela promitente vendedora dentro do prazo de 180 dias, apesar da interpelação do promitente-comprador nesse sentido, este poderia, sem mais, resolver o contrato-promessa.
Acresce que, para além dos prazos estipulados, as partes estipularam (na cláusula 6.ª do contrato-promessa) um novo prazo, esse, sem dúvida, absoluto, tendo definido que se considerava existir incumprimento definitivo por parte da vendedora, se a escritura pública de compra e venda não fosse realizada, por causa imputável exclusivamente à promitente vendedora, no prazo de 45 meses a contar da data da assinatura do contrato promessa de compra e venda.
A inserção desta cláusula no contrato promessa parece não poder ter outra interpretação senão a de que as partes pretenderam fixar, desde logo, um prazo peremptório, absoluto e essencial, decorrido o qual, sem que a escritura definitiva estivesse realizada – por culpa exclusiva do promitente vendedor - se considerava definitivamente incumprido o contrato, conferindo-se ao promitente comprador o direito de resolver o contrato promessa e exigir da promitente vendedora a restituição em dobro de todas as importâncias entregues ao abrigo do mesmo, nomeadamente as a título de sinal e sucessivos reforços de sinal.
No entanto, os Autores não perderam o seu interesse no cumprimento do contrato promessa e tal resulta da matéria de facto provada pelas sucessivas marcações de vistorias e de escrituras (Novembro de 2008 – facto provado em 15., Maio de 2009 – facto provado em 17.).
Tal manutenção do interesse dos Autores vem reforçado pelo relatório de vistoria de 18 de Maio de 2009, no qual surge que a escritura não depende da execução dos trabalhos (facto provado em 20.). e pelo aditamento ao contrato promessa (facto provado em 21.), no qual até os Autores se responsabilizaram pelas quotas e despesas relacionadas com o condomínio (facto provado em 22.).
Nesse aditamento foi fixado novo prazo para a celebração do contrato definitivo – 30 de Dezembro de 2009.
Certo é que até 2012 (mais de dois anos após o prazo fixado no referido aditamento), tanto os Autores como a Ré nada fizeram.
Resulta pelos factos provados em 23. e 24., que, em 2012, a moradia estava entregue no stand de vendas para revenda.
Apenas em 2013 e em 2014, os Autores solicitaram reunião e nova vistoria e procederam à marcação da escritura, à qual a Ré não compareceu.
Não podendo os Autores (credor) resolver o contrato-promessa em razão da mora da Ré (devedora), deveriam, em face do disposto no artigo 808.º, n.º 1 do Código Civil, ter transformado tal mora em incumprimento definitivo, podendo tal conversão suceder pela perda de interesse na prestação por parte do credor, ou pela não realização da prestação no prazo que for, razoavelmente, fixado pelo credor, sob a cominação estabelecida no preceito legal (interpelação admonitória).
Neste caso, o contraente não faltoso fixa ao outro um prazo para o cumprimento da obrigação, findo o qual a obrigação se tem por definitivamente não cumprida.
Com esta última oportunidade dada pelo credor ao devedor em mora, aquele como que desencadeia a aposição de um prazo adicional, peremptório e essencial, findo o qual a obrigação se considera definitivamente incumprida. Consequentemente, a interpelação admonitória prevista no artigo 808.º, n.º 1 do Código Civil deve conter três elementos:
a) a intimação para o cumprimento;
b) a fixação de um prazo peremptório com dilação razoável para o cumprimento;
c) a cominação de que a obrigação se terá como definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo.
É indispensável que o credor dê conhecimento ao devedor, e sem margem para quaisquer dúvidas, de que, após o decurso desse prazo, ele se desliga completamente do contrato, não mais estando vinculado por ele e recusando eventual prestação que o devedor lhe queira fazer (cfr. Acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de 22 de Janeiro de 2008, em www.dgsi.pt).
No caso dos autos, neste particular, provou-se que em Agosto de 2014, os Autores notificaram a Ré da marcação da escritura pública, devendo, previamente, proceder-se à verificação de todas as anomalias, bem como à sua reparação (facto provado em 29.).
Contudo, esta solicitação não tem a virtualidade de traduzir a fixação de um prazo suplementar relevante capaz de gerar o incumprimento definitivo, não tem o significado de uma interpelação admonitória, por não ser reveladora de uma intenção dos Autores de, caso não fosse, sequencialmente, celebrada a escritura pública, considerarem definitivamente não cumprida a obrigação.
Por outro lado, se bem que se possa considerar que a Ré estava em mora e que esta não foi convertida em incumprimento definitivo, também o comportamento dos Autores anterior à notificação judicial avulsa acima referida, não revela uma perda de interesse na realização do negócio prometido.
A perda de interesse na prestação (o que se sucederá quando esta, apesar de ser fisicamente concretizável, deixou de ter oportunidade), é apreciada objectivamente em conformidade com o disposto no artigo 808.º, n.º 2 do Código Civil, razão por que eventuais subjectivismos serão de afastar. Dizer que a perda de interesse é apreciada objectivamente significa que não basta que o credor diga que a prestação já não lhe interessa; há que ver, em face das circunstâncias, se a perda de interesse corresponde à realidade dos factos. Isto é, a perda do interesse deve ser justificada segundo um critério de razoabilidade entendido pela generalidade das pessoas (cfr. Professor GALVÃO TELLES, DIREITO DAS OBRIGAÇÕES, página 311 e Acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de 22 de Janeiro de 2008, já citado).
No caso em apreço, os Autores/promitentes compradores não comunicaram à Ré/promitente vendedora, na referida notificação judicial avulsa, que perderam o interesse na celebração do contrato prometido e que consideravam resolvido o contrato-promessa, nem se provaram factos que, objectivamente, demonstrassem essa perda de interesse.
O comportamento dos Autores não revela essa perda de interesse na prestação do devedor, porquanto durante cerca de 9 anos (após a data limite estabelecida para a celebração da escritura) não interpelaram os Réus, por escrito, no sentido de lhes fixar um prazo adicional e peremptório para a celebração do contrato definitivo, apenas interpelando a Ré para proceder às reparações, sendo que em 2009, a escritura já não estava dependente da execução dos trabalhos e foi celebrado o aditamento, o que cria a convicção de que os Autores não tinham perdido o interesse na realização do negócio (artigo 217.º, n.º 1 in fine do Código Civil).
Dificilmente se poderá concluir também que, pelo mero decurso do tempo, os Autores tenham perdido o interesse na realização do negócio.
Como já se referiu, a perda do interesse na prestação, a apreciar objectivamente segundo um juízo de razoabilidade e sensatez, não se basta com uma simples mudança de intenção do credor, mesmo que essa mutação derive da demora no cumprimento da obrigação.
Deste modo, também aqui não se pode ter como verificado o incumprimento definitivo por parte da Ré.
2 - Da não expurgação da hipoteca
Não se vislumbra no acervo fáctico apurado qualquer declaração da Ré, ou circunstância pela mesma protagonizada, de que resulte, ainda que implicitamente, essa vontade clara, unívoca, séria e definitiva, de não cumprir.
É verdade que a Ré foi interpelada na notificação judicial avulsa para enviar o comprovativo do cancelamento de todos os ónus e encargos e que não compareceu a outorgar na escritura de compra e venda marcada para o dia 18 de Agosto de 2014, pelas 14H00.
Nada disto, porém, é reconduzível à conceptualizada recusa categórica e definitiva de cumprir, apenas apontando para a objectiva incapacidade da Ré, de lograr o distrate da hipoteca incidente sobre a fracção em causa.
3 – Da não eliminação dos defeitos por parte da Ré:
Vieram os Autores invocar o incumprimento definitivo por parte da Ré porquanto
a mesma não procedeu à eliminação dos defeitos, apesar das várias interpelações.
Nesta parte, importa novamente referir que foi dado como provado que “No relatório vistoria de 18 de Maio de 2009 subscrito pelo Autor e pela Ré, consta que “Escritura não depende da execução dos trabalhos supra citado, dependerá de
contratação de exploração turística ou cedência de posição” (facto provado em 20.).
Também não se pode falar em defeitos estruturais da moradia, porquanto não se deram como provados factos que possam levar a essa conclusão, nomeadamente os constantes dos relatórios de vistoria.
Em conclusão:
Não se verifica no caso dos autos a conversão pelos Autores da mora da Ré em incumprimento definitivo, por não ter havido interpelação admonitória, bem como não se verifica da matéria de facto provado que tenha havido uma perda objectiva de interesse na prestação pelos Autores.
Sendo assim, o Tribunal não se encontra em condições de declarar a resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado entre os Autores e a Ré, por incumprimento definitivo e culposo e consequentemente não poderá a Ré ser condenada a pagar aos Autores o dobro do sinal e reforço do sinal, no montante de € 528.825,54.”
33) Os Autores requereram a notificação judicial avulsa da Ré para comparecer no dia 27 de Agosto de 2018, pelas 11h00, no Cartório Notarial SNB – Sociedade de Notários no Barreiro, Carlos Barradas & Aniana Bilimória, sito em Av. Movimento das Forças Armadas, 79-C, 2830-091 Barreiro, Tel. ... / ..., email: cartório snb.pt, para a realização da escritura de compra e venda, devendo a Ré enviar para o indicado Cartório até 10 dias antes da data agendada para a escritura toda a documentação necessária para o efeito.
34) Para tanto requereram a notificação o judicial avulsa da Ré, a efectuar por Oficial de Justiça, para:
a) Enviar para o Cartório Notarial SNB – Sociedade de Notários no Barreiro, Carlos Barradas & Aniana Bilimória, sito em Av. Movimento das Forças Armadas, 79-C, 2830-091 Barreiro, Tel. ... / ..., email: cartório snb.pt, até 10 dias antes da data da escritura de compra e venda toda a documentação necessária para o efeito;
b) Comparecer no Cartório Notarial SNB – Sociedade de Notários no Barreiro, Carlos Barradas & Aniana Bilimória, sito em Av. Movimento das Forças Armadas, 79-C, 2830- 091 Barreiro, Tlf.. ... / ..., email: cartório snb.pt, no dia 27 de Agosto de 2018, pelas 11h00 a fim de celebrar a escritura pública de compra e venda do lote ..., sito na Localização 1, no aldeamento turístico denominado “...”, sob pena de não o fazendo considerar-se o contrato promessa definitivamente resolvido por incumprimento culposo imputável à Requerente.
35) A requerida notificação judicial avulsa a efectuar por Oficial de justiça na sede da Ré, Rua 2, não foi possível, tendo sido lavrada certidão negativa fazendo-se constar que “(…) em virtude de me ter deslocado à morada indicada onde constatei e fui informado pelo Sr. GG, de que no local, nesta data, labora a empresa “TGS Portugal” para a qual o mesmo se encontra a prestar serviços na qualidade de Revisor Oficial de Contas. Mais fui informada pelo Sr. HH, funcionário do condomínio de que o pretendido Notificando já não se encontra a laborar nesta morada há alguns anos a Ré já não labora naquele domicílio”, conforme resulta da certidão negativa junta ao doc. 45 e se dá por integralmente reproduzido.
36) Em 2018 e actualmente, a morada indicada na notificação judicial é a que consta no registo comercial como sendo a sede da Ré.
37) Na ausência de qualquer contacto, em Agosto de 2019 os Autores procederam a nova notificação judicial avulsa da Ré, para o escritório funcional da Ré sito em Rua 3, morada na qual a Ré foi notificada em 2014, e fornecida pela Ré para a notificação do Legal representante da Ré efectuada no dia 15 de Março de 2018 no proc. 2436/14.0T8LSB que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Cível – Juiz 17.
38) E, em caso de insucesso, requereram a notificação na pessoa do legal representante da Ré, DD, na Rua 3, por ser essa a morada que constava e consta da certidão comercial da sociedade Ré.
39) Requereram os Autores a notificação da Ré para enviar para o Cartório Notarial SNB – Sociedade de Notários no Barreiro, Carlos Barradas & Aniana Bilimória, sito em Av. Movimento das Forças Armadas, 79-C, 2830-091 Barreiro, Tel. 212 093 308 / ..., email: cartorio snb.pt, até 10 dias antes da data da escritura de compra e venda do lote de terreno para construção e moradia correspondente, designado por lote 31-24, sito na Localização 1, no aldeamento turístico denominado “..., toda a documentação necessária para o efeito e para comparecer no Cartório Notarial SNB – Sociedade de Notários no Barreiro, Carlos Barradas & Aniana Bilimória, sito em Av. Movimento das Forças Armadas, 79-C, 2830-091 Barreiro, Tlf.. ... / 212 093 309, email: cartório snb.pt, no dia 16 de Setembro de 2019, pelas 10h00 a fim de celebrar a escritura pública de compra e venda do lote de terreno para construção e moradia correspondente designado por lote ..., sito na Localização 1, no aldeamento turístico denominado “...”, sob pena de não o fazendo considerar-se o contrato promessa definitivamente resolvido por incumprimento culposo imputável à Requerida.
40) Uma vez mais não foi possível a notificação da Ré, tendo sido lavrada certidão negativa a 5 de Setembro de 2019, na qual consta: “a fim de proceder à notificação de Pelicano – Investimento Imobiliário, SA e em caso de insucesso na pessoa de seu Administrador, DD, não a podendo levar a efeito em virtude de ter encontrado estas moradas fechadas e sem ninguém presente nem sinais visíveis de actividade, aparentando se encontrarem vazias, não tendo conseguido encontrar ou contactar o Administrador acima identificado ou alguém ligado à requerida.
Mais consigno que fui informado na recepção do Edifício pela porteira/segurança que a requerida já aqui não se encontra há algum tempo, estando as moradas fechadas, sendo desconhecido o paradeiro quer da requerida quer do seu Administrador. Pelos motivos acima expostos, não pude efectuar a notificação.”
41) Os Autores souberam que na pendência do proc. proc. 2436/14.0T8LSB que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Cível – Juiz 17, a Ré, no dia 7 de Novembro de 2017, através de Procurador, Engenheiro II, no Cartório Notarial Rui Januário, veio a proceder à venda do imóvel prometido vender aos Autores.
42) A venda foi efectuada pelo valor de € 200.000,00 (duzentos mil euros) e teve a intervenção da mediadora Lifethanks – Mediação Imobiliária Lda., com licença Ami- 9071.
43) O adquirente foi JJ, natural de França, contribuinte fiscal nº ....
44) Aos Autores não foi comunicada a transmissão a favor de terceiro, nem previamente nem após a realização daquele negócio.
45) Em sede de julgamento, os Legais representantes da Ré prestaram declarações no dia 17 de Abril de 2018 sobre o objecto do processo tendo sempre ocultado o facto de à data a moradia construída no lote 31-24 do Palmela Village já ter sido alienada.
46) A R. encontra-se sujeita a um Plano Especial de Revitalização, o qual, sob o n.º 25143/15.2T8LSB, correu termos pela 1ª Secção do Comércio de Lisboa, J5.
47) Nesse processo, os credores votaram favoravelmente o Plano de Revitalização da R., que foi homologado por sentença, transitada em julgado em Junho de 2017.
48) Nesse processo foi reconhecido, sob condição de a R. ser condenada no pagamento, um crédito aos AA. do montante de € 528.825,00, com fundamento no incumprimento do contrato-promessa de compra e venda.
*
Factos não provados
i) Ficou acordado que, previamente à escritura, a moradia prometida comprar seria objecto de vistoria por parte dos promitentes-compradores acompanhados por um Engenheiro designado pela Ré.
ii) Em 2007, não se encontrando obra totalmente terminada, a Ré sugeriu aos Autores outorgar a escritura pública de compra e venda, só não acontecendo em virtude de os Autores terem condicionado a realização da escritura à reparação prévia dos defeitos visíveis, os quais, pela sua gravidade (infiltrações das águas das chuvas pelo telhado) não iriam permitir o uso normal e em segurança do imóvel.
iii) Após a vistoria a Ré informou que a escritura não seria no dia 28, comprometendo-se a proceder à reparação das anomalias no prazo de 15 dias, comunicando, posteriormente, nova data para vistoria.
iv) O Eng. KK, representante da Ré que procedeu à vistoria, informou que deveria ter ocorrido algum engano pois as anomalias não foram reparadas. No entanto, adiantou que em cinco dias iria proceder às reparações, agendado desde já nova vistoria para o dia 18 de Maio.
v) Apesar das insistências dos Autores para proceder a nova vistoria e marcação da escritura a Ré, sucessivamente, veio a desculpar-se com atrasos por parte da subempreiteira e de fornecedores, alheando-se de qualquer responsabilidade para o atraso nas reparações.
vi) Agendada a vistoria para o dia 15 de Fevereiro, cujo relatório não foi entregue aos Autores, verificaram-se as mesmas anomalias e muitas outras já detectadas aquando da primeira vistoria e ainda novas anomalias.
vii) A Ré, uma vez mais, prontificou-se a reparar as anomalias detectadas, acordando realizar nova vistoria.
viii) Volvidos 9 meses, em Novembro de 2012, a pedido dos Autores, a Ré agendou nova vistoria, tendo resultado que todas as anomalias detectadas nas vistorias anteriores se mantinham sem que tivesse sido feita qualquer reparação.
ix) Em Maio de 2013, não obtendo informação por parte da Ré, o Autor conseguiu contactar telefonicamente LL, tendo esta informado que as reparações previstas ainda não tinham sido efectuadas.
x) Efectuada nova vistoria, em Junho de 2013, verificaram-se exactamente as mesmas anomalias detectadas em todas as vistorias anteriores, o seu agravamento e o surgimento de outras.
xi) Os Autores nunca pretenderam outorgar a escritura pública, tendo antes interesse em ceder a sua posição contratual.
xii) Os Autores criaram a convicção na Ré de que não pretendiam cumprir o contrato promessa, nem tinham interesse na outorga da escritura de compra e venda, tendo demonstrado tal à Ré.
xiii) Os Autores demonstraram à Ré que consideravam o contrato promessa resolvido.
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3- As Questões Enunciadas.
3.1- Impugnação da Matéria de Facto.
A ré, apelante, impugna a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto relativamente aos pontos xi, xii, xiii, dos factos não provados, invocando, para o efeito, prova documental, testemunhal, depoimentos de parte dos seus gerentes e declarações de parte do autor marido, nos termos que se especificarão.
Os autores, na contra-alegação, pugnam pela improcedência da impugnação, argumentando, essencialmente, que a sentença anterior, proferida no processo 2436/14.0T8LSB (J 17), formou caso julgado, não só quanto à decisão de julgar a acção improcedente, mas também quanto aos fundamentos da decisão, concretamente, que os autores não haviam perdido o interesse na celebração do contrato de compra e venda prometida, nem operaram a transformação da mora em incumprimento definitivo e, por isso, a factualidade relativa esses argumentos não pode voltar a ser discutida entre as partes; além de que, por força do princípio da concentração da defesa, a ré está impedida de invocar os factos que podia e devia ter invocado na anterior acção.
Vejamos então.
- Ponto xi dos factos não provados.
A ré argumenta que do ponto 17 dos factos provados resulta que os autores não pretendiam outorgar a escritura de compra e venda mas ceder a sua posição contratual; invoca e transcreve, parcialmente, o depoimento da testemunha MM (que foi director comercial da ré até 2009) e que mencionou que o autor não estava interessado em comprar a casa mas ceder a sua posição a outra pessoa.
Invoca o depoimento de CC (responsável de vendas da ré desde 2011), que transcreve parcialmente, e que referiu que o autor lhe telefonava a perguntar se havia alguém interessado na casa, porque queria vender a casa a terceiro e, a ré não encontrou terceiro interessado; que em 2012 (a testemunha) já não estava a fazer vendas; que a pessoa que estava no stand, a fazer vendas, esteve lá pouco tempo, menos de um ano, uns meses; e, a perguntas do juiz, admitiu que teve conhecimento da casa, em 2011/2012, e passado pouco tempo, “quase imediatamente” deixaram de fazer revendas.
Aduz o depoimento de DD (administrador da ré), que transcreve parcialmente, que disse “tanto quanto sabe”, houve uma fase em que em que tentaram fazer uma cedência de posição do contrato.
Convoca o depoimento de EE (administrador da ré) que disse que, “o que lhe foi transmitido” foi que os clientes não pretendiam comprar a casa e não tinham interesse em fazer a escritura.
Vejamos se há fundamento para dar o ponto xi como facto provado.
Relembremos o teor desse ponto xi dos factos não provados:
xi) Os Autores nunca pretenderam outorgar a escritura pública, tendo antes interesse em ceder a sua posição contratual.”
O facto que a ré pretende ver como provado consiste em considerar-se que os autores NUNCA pretenderam outorgar a escritura de compra e venda e tinham interesse em ceder a sua posição contratual.
Pois bem, manifestamente, da factualidade dada como provada, não resulta que os autores NUNCA pretenderam outorgar a escritura de compra e venda. Bastará atentar que, apesar de no relatório de vistoria, de 18/05/2009, contar que a “Escritura não depende da execução dos trabalhos supra citados, dependerá de contratação de exploração turística ou cedência de posição” (ponto 17 dos factos provados), a verdade é que, no aditamento ao contrato-promessa, de 25/05/2009, portanto, assinado sete dias depois do auto de vistoria, ficou estipulado que os promitentes compradores celebrariam a escritura de compra e venda até 30/12/2009 (ponto 18 dos factos provados). Isso permite inferir que os autores se vincularam a celebrar a escritura de compra e venda e que essa era a sua vontade. Acrescente-se que a ré não notificou os autores da marcação da escritura até à data aprazada: 30/12/2009 (ponto 20 dos factos provados). Posteriormente, após nova vistoria em 2012, (ponto 20 dos factos provados) e de outro posterior pedido, do autor, de nova vistoria e reunião em 2013 (ponto 23 dos factos provados) a ré nada fez, não marcou a escritura de compra e venda. Nessa sequência, os próprios autores marcaram a escritura, para o dia 18/08/2014 (ponto 24 dos factos provados), o que demonstra a sua vontade na celebração da escritura. Acresce ainda que após a sentença proferida no Proc. 2436/14 (j 17), os autores tentaram notificar a ré para da nova marcação da escritura, em 27/08/2018, o que não foi possível por a ré não se encontrar na sua sede social (pontos 33 a 36 dos factos provados); e, posteriormente, tentaram os autores notificar a ré para a realização da escritura de compra e venda, em 2019 e, mais uma vez, não o conseguiram (pontos 37 a 40 dos factos provados). Esta factualidade demonstra que os autores pretenderam realizar a escritura, o que afasta que se possa dar como provado que “…os autores NUNCA pretenderam outorgar a escritura…”.
E quanto ao pretendido interesse, dos autores, na cessão da sua posição contratual, o que decorre do depoimento de DD, administrador da ré, é que, quando muito, houve uma fase em que tentaram fazer uma cedência de posição do contrato. Uma fase que, como resulta do depoimento de CC, foi muito curta, porque durou poucos meses as revendas de lotes.
A esta vista, não se vislumbra fundamento para alterar a decisão da 1ª instância sobre o ponto xi dos factos não provados.
-Pontos xii e xiii dos factos não provados.
A ré pretende que os pontos xii e xiii dos factos não provados se considerem provados.
Invoca que resulta dos factos provados que os autores não outorgaram na escritura de compra e venda que esteve marcada para 2008 e para 2009; e que, posteriormente, o autores marcaram a escritura de compra e venda para 18/08/2014, marcação de que a ré foi notificada a 25/07/2014, com o prazo muito curto para se munir de toda a documentação necessária e do termo de responsabilidade pelas reparações, o que demonstra, segundo entendem, a falta de interesse na realização da escritura; além disso, foi provado que os autores instauraram uma primeira acção judicial contra a ré (Proc. 2436/14, j 17), pedindo a resolução do contrato-promessa por incumprimento definitivo. Afirma que os autores nunca se prestaram a efectivar a compra e venda, nem no âmbito da insolvência da ré, onde apenas reclamaram o crédito correspondente ao sinal em dobro. Invoca o depoimento de DD (administrador da ré) que disse que após a instauração da acção pelos autores (Proc. 2436/14, j 17) em 2014, não houve mais contactos entre a ré e os autores e que, a partir dessa acção, a ré entendeu que os autores não tinham interesse na realização da escritura e que o contrato estava terminado e extinto. Aduz, ainda, o depoimento de EE, administrador da ré, que disse, em síntese, que na outra acção (Proc. 2436/14, j 17), os autores não tinham interesse na realização da escritura, mas na restituição do sinal em dobro e, foi isso que ele entendeu que não pretendiam a escritura e que o contrato esta resolvido e findo; que a outra acção resolveu o contrato e a ré ia devolver o dinheiro se o tribunal assim o decidisse e, logo que transitado em julgado o PER ele decidiu vender a moradia.
Vejamos.
Antes de mais, recordemos o teor dos pontos xii e xiii dos factos não provados:
xii) Os Autores criaram a convicção na Ré de que não pretendiam cumprir o contrato promessa, nem tinham interesse na outorga da escritura de compra e venda, tendo demonstrado tal à Ré.
xiii) Os Autores demonstraram à Ré que consideravam o contrato promessa resolvido.”
Pois bem, em primeiro lugar, constata-se que o ponto xii dos factos não provados constitui um “desdobramento” do ponto xi: neste, pretendia-se dar como provado que os autores não quiseram realizar a escritura e, no ponto xii, pretende-se dar como provado que os autores criaram a convicção na ré de que não pretendiam cumprir o contrato, ou seja, realizar a escritura.
Como vimos na fundamentação do ponto xi, afastou-se que os autores não quisessem realizar a escritura e que o conjunto de circunstâncias factuais aponta em sentido diferente e, por isso, manteve-se a decisão da 1ª instância de não considerar como provado que os autores não pretendiam realizar a escritura de compra e venda. E essa argumentação mantém-se válida para o ponto xii, pelo qual a ré pretende que seja dado como provado que que os autores criaram na ré a convicção de não pretenderem outorgar na escritura. Os autores pretendiam realizar a escritura e, se a ré criou uma convicção do contrário, formou uma convicção errada e sem fundamento.
A ser assim, não se altera o ponto xii dos factos não provados.
Quanto ao ponto xiii.
Volta-se a recordar o teor do ponto xiii:
xiii) Os Autores demonstraram à Ré que consideravam o contrato promessa resolvido.”
Como se viu, a ré funda esta sua pretensão, de se considerar este facto como provado, nos depoimentos dos seus dois administradores, DD e, EE e, estes baseiam-se na circunstância de os autores terem instaurado a primeira acção (Proc. 2436/14, J 17), contra a ré, em que pediam se declarasse resolvido o contrato-promessa. Ora, a circunstância de os autores terem peticionado, na acção anterior, a declaração de resolução do contrato-promessa não legitima que a ré considerasse esse contrato resolvido. E desde logo por duas razões: uma, porque na contestação à primeira acção (Proc. 2436/14, J 17), a ré pugnou e defendeu a falta de fundamentação/licitude da resolução do contrato, o que significa que, nessa acção, a ré considerava que não havia fundamento para considerar licitamente resolvido o contrato-promessa.
Outra, porque o administrador da ré, EE, entendeu (erradamente, como vimos) que os autores não pretendiam fazer a escritura e, que considerou que o contrato estava resolvido e findo e, por isso, decidiu (ele, administrador da ré) vender a vivenda, em Novembro de 2017, logo que transitou em julgado o PER da ré e, que referiu iam devolver o valor do sinal dobrado se a sentença da 1ª acção assim o decidisse. Ora esta argumentação é algo contraditória em si mesma porque, por um lado, era a própria ré que defendia que o contrato-promessa não foi licitamente resolvido e, por outro, decidiu vender a vivenda sem aguardar pela sentença da 1ª acção, que veio a ser proferida em 12/06/2018 e, a venda a terceiro, teve lugar a 07/11/2017. Note-se que o crédito reclamado pelos autores no PER da ré foi reconhecido sob condição suspensiva consoante a sentença que viesse a ser proferida no Proc. 2436/14.0T8LSBA – conforme consta da lista de créditos junta a 27/05/2024 - o que aconselhava a que se aguardasse pela prolação da sentença nesse processo; afigura-se-nos que, salvo o devido respeito, terá existido alguma precipitação, por parte da ré, quando decidiu vender a moradia a terceiro sem aguardar pelo desfecho da acção do Proc. 2436/14.
Seja como for, do que se expôs, com relevo para o facto de a ré ter defendido, na anterior acção, que o contrato-promessa foi ilicitamente resolvido, resulta não permitir seja dado como provado que “Os Autores demonstraram à Ré que consideravam o contrato promessa resolvido.
Em suma, a impugnação da matéria de facto improcede totalmente.
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3.2 – Da revogação da sentença.
A ré convoca vários fundamentos para obter a revogação da sentença sob impugnação.
Analisemos cada um deles e vejamos se podem proceder.
Assim:
3.2.1- A Falta de Dolo do Incumprimento.
A ré/apelante entende que a venda da moradia, em 07/11/2017, não constitui incumprimento definitivo e, muito menos culposo do contrato-promessa, argumentando que os autores sempre demonstraram à ré que não pretendiam celebrar o contrato-promessa e que, no PER da ré, foi fixado, sob condição suspensiva, o crédito dos autores e, somente quando transitou em julgado a sentença homologatória do PER é que a ré vendeu a vivenda a terceiro e, por isso, a sentença sob impugnação devia ter considerado que, aquando da venda, o vínculo contratual entre autores e ré estava extinto por vontade daqueles e que, por isso, a ré não actou com dolo de incumprimento e que, por isso não tem obrigação de indemnizar.
Será assim?
Desde logo, uma constatação:
Este fundamento da ré, para a revogação da sentença baseia-se, no fundo, na alteração da matéria de facto concretamente, na consideração de serem dados como provados os factos dos pontos xii e xiii dos factos não provados:
xii) Os Autores criaram a convicção na Ré de que não pretendiam cumprir o contrato promessa, nem tinham interesse na outorga da escritura de compra e venda, tendo demonstrado tal à Ré.
xiii) Os Autores demonstraram à Ré que consideravam o contrato promessa resolvido.”
Ora, como se demonstrou acima, não há fundamento para considerar esses pontos de facto como provados. Assim, cai pela base um dos argumentos da ré: de autores sempre demonstraram à ré que não pretendiam celebrar o contrato-promessa.
Além disso, não pode proceder o segundo fundamento da ré, de falta de dolo/culpa no incumprimento do contrato-promessa, pela singela razão de nos parecer censurável o comportamento da ré consistente na decisão de vender a vivenda a terceiro.
Com efeito, em termos simples, a culpa traduz um juízo de reprovação dirigido ao agente em virtude de, na situação concreta, ter agido de forma diferente da que devia e podia se empregasse o cuidado e a atenção exigíveis a um bonus pater familias (para outros desenvolvimentos, que aqui não nos interessam, ver Rui Mascarenhas Ataíde, Direito da Responsabilidade Civil, 2023, pág. 331 e segs.).
Ora, como tivemos oportunidade de ver acima, a ré decidiu vender a moradia sem aguardar pela sentença da 1ª acção, que veio a ser proferida em 12/06/2018 e, a venda a terceiro, teve lugar a 07/11/2017. A circunstância de o crédito dos autores, no PER da ré, ter sido admitido sob condição suspensiva conforme viesse a ser decidido na sentença do Proc. 2436/14 (J 17), aconselhava a que (a ré) aguardasse pela prolação da sentença nesse processo; e, por isso, se disse que se nos afigurava ter existido precipitação, por parte da ré, quando decidiu vender a moradia, a terceiro, sem aguardar pelo desfecho da acção do Proc. 2436/14 (J 17). Um promitente vendedor normal, diligente e avisado, que estivesse na situação/posição da ré, por certo teria aguardado pela prolação da sentença que poderia ter sido no sentido do pedido dos autores de considerar resolvido o contrato-promessa. Se assim fosse, a ré poderia vender a terceiro.
Esta actuação da ré, sem o cuidado e a atenção exigíveis a um bonus pater familias, consubstancia culpa da ré no incumprimento definitivo do contrato-promessa.
Com a venda a terceiro, a obrigação da ré não foi cumprida na sua totalidade por culpa sua. Aliás, a venda a terceiro constitui um dos exemplos de incumprimento da obrigação, com culpa, mencionados por Ana Prata (O Contrato-Promessa e Seu Regime Civil, 2ª reimpressão, 2006, pág. 692).
Assim sendo, resta concluir que a ré/apelante não tem razão quando pretende que agiu sem dolo/culpa na venda, a terceiro, da vivenda prometida vender aos AA.
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3.2.2- A actuação dos autores em abuso do direito.
A ré, invocando, mais uma vez, a factualidade que, segundo ela, por via da impugnação da matéria de facto, deveria ter sido considerado provada – concretamente que os autores demonstraram à ré judicial, extrajudicial e inequivocamente, que não pretendiam celebrar o contrato-promessa de compra e venda, e que consideravam o mesmo resolvido e, o vínculo contratual extinto, no fundo, a factualidade dos pontos xii e xiii dos factos não provados –, entende que a instauração desta acção, com base no incumprimento definitivo do contrato-promessa por virtude da venda da vivenda a terceiro, constitui abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium.
Será assim?
Desde já se diga que o fundamento em que a ré baseia a invocação de exercício abusivo do direito, pelos autores, não se verifica.
Com efeito, a apelante funda-se na pretendida alteração dos pontos xii e xiii dos factos não provados, querendo-os provados. Ora, como visto acima, a impugnação da matéria de facto improcedeu totalmente. O mesmo é dizer que não se provou que os autores criaram na ré a convicção de que não pretendiam cumprir o contrato-promessa e que demonstraram à ré que consideravam o contrato-promessa resolvido e extinto.
Ora, sem a verificação dessa base factual falece a pretensão de actuação dos autores em abuso do direito.
É sabido que a proibição do venire contra factum proprium, baseia-se na máxima de a ninguém ser permitido agir contra o seu próprio acto. À partida, ela exprime a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assuma comportamentos contraditórios. Baseia-se na ideia de boa fé e no princípio da tutela da confiança: o agente fica adstrito a não contradizer o que primeiro disse ou fez.
Apenas em circunstâncias especiais o direito proíbe o venire; uma dessas circunstâncias ocorre nas situações em que é criada uma aparência jurídica em termos tais que suscita a confiança das pessoas. A confiança digna de tutela radica em algo objectivo: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura. Para que a conduta em causa possa ser considerada em relação à criação de confiança é preciso que ela, directa ou indiretamente, revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro.
No caso, sem a prova de que os autores criaram, na ré, a convicção de que não pretendiam cumprir o contrato e que não estavam interessados na outorga da escritura de compra e venda e, sem a prova de que os autores demonstraram à ré que consideravam o contrato extinto, não pode falar-se em conduta susceptível de ser considerada uma actuação contraditória ao que primeiro se disse e fez.
Em suma: não há fundamento para considerar que os autores, ao instaurarem esta acção, actuaram em abuso do direito.
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3.2.3- A Impossibilidade de Cumprimento.
Entende a ré que os autores lhe comunicaram, em 2014, que não pretendiam cumprir o contrato-promessa de compra e venda e que essa declaração equivale a um incumprimento definitivo do contrato pelos autores. Que a ré, sabendo do incumprimento definitivo do contrato-promessa pelos autores, decidiu vender o imóvel a terceiro e que a impossibilidade de incumprimento do contrato pela ré foi gerada pelos autores; invoca o os artºs 790º e 795º do CC para defender que os autores apenas têm direito à restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa.
Como decidir?
Em primeiro lugar, salienta-se que, mais uma vez, a ré/apelante baseia-se numa circunstância factual que não se verifica: que os autores lhe comunicaram, em 2014, que não pretendiam cumprir o contrato-promessa de compra e venda. A instauração da acção, em 2014, não significa, necessariamente, uma declaração de que não se pretende cumprir. De resto, a sentença proferida nesse processo (Proc. 2436/14, J 17) conclui que o contrato-promessa não se havia extinguido e se mantinha em vigor.
Ora, como dissemos acima, não tem razão quando pretende que agiu sem dolo/culpa na venda, a terceiro, da vivenda prometida vender aos AA; e se conclui pelo contrário: que a ré agiu com culpa.
A impossibilidade superveniente é imputável ao devedor se a sua conduta puder ser valorada à luz do princípio da culpa: a epígrafe do artº 801º do CC alude à impossibilidade culposa e o artº 798º do CC faz referência expressa ao “devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação”.
Catarina Monteiro Pires (Impossibilidade da Prestação, Colecção Teses, Almedina 2018, pág. 612), acerca dos critérios de imputação da impossibilidade ao devedor, refere “…a imputação de um acto ilícito ao seu autor, (é) traduzido num juízo segundo o qual este devia ter-se abstido desse acto, ou dito de outro modo, a valoração de uma conduta destinada a inviabilizar a prestação ou a inobservância dos deveres de cuidado que ao caso coubesse. Assim, a impossibilidade pode ser imputável ao devedor se o evento que a determina é, em regra, suscetível de ser prevenido, controlado ou superado, respeitando-se os deveres de cuidado exigíveis ao bom pai de família. O devedor obriga-se, portanto, a cumprir de acordo com a diligência que lhe é exigível, densificada à luz do critério normativo da diligência do bonus pater familias previsto no artº 487º nº 2, aplicável também à culpa contratual (artº 799º nº 2)”.
A ser assim, considera-se que contrariamente ao que defende, a ré actuou com culpa na venda, a terceiro, do prédio prometido vender aos autores.
Tanto basta para se concluir pela inaplicabilidade do artº 790º nº 1 do CC que tem como pressuposto que “…a prestação se tornou impossível por causa não imputável ao devedor.
Igualmente, não tem aplicação o artº 795º do CC pela simples razão de este preceito se destinar a resolver “…o problema do risco da impossibilidade de incumprimento fortuita ou causal nos contratos sinalagmáticos.” (Ana Prata, CC anotado, AAVV, I vol. 2017, pág. 993). Ou como explica Catarina Monteiro Pires (Impossibilidade da Prestação…cit., pág. 579) “O artº 795º nº 1 consagra o princípio segundo o qual, na impossibilidade não imputável ao devedor, nem ao credor (impossibilidade causal), o devedor perde o direito à prestação.”
Ora, como vimos acima, a impossibilidade é imputável ao devedor.
A esta luz, resta concluir que a ré/apelante não tem razão ao pretender que a impossibilidade de incumprimento do contrato pela ré foi gerada pelos autores e que estes apenas têm direito a ser ressarcidos segundo as regras do enriquecimento sem causa.
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3.2.4- Da Concorrência de Culpas.
Defende a apelante que deve considerar-se que o comportamento contratual dos autores contribuiu para a situação de impasse, existindo incumprimento bilateral do contrato e, por isso, deve aplicar-se o regime do artº 570º do CC, decidindo-se pela restituição do sinal em singelo.
Não nos parece que a apelante tenha razão. Não concretiza em que se consubstancia a culpa dos autores e, como vimos acima, afastou-se que o incumprimento do contrato-promessa seja imputável aos autores e, vimos que esse incumprimento é exclusivamente imputável à ré.
Tanto basta para se concluir que não existe concurso de culpas e, por conseguinte, não há fundamento para aplicação do artº 570º do CC.
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3.2.5- O valor do Sinal Prestado.
Entende a ré/apelante que a quantia de 105 765,11€ correspondia ao remanescente do preço em falta e não foi entregue a título de sinal, não tendo sido vontade das partes atribuírem ao dito montante o caráter de sinal, não podendo essa quantia ser considerada para efeitos de aplicação do artº 442º nº 2 do CC.
Será assim?
Em tese geral, o sinal consiste numa cláusula acessória dos contratos onerosos, pela qual uma parte entrega à outra, por ocasião da celebração do contrato, uma coisa fungível que pode ser diversa da obrigação contraída ou a contrair. Funciona como fixação das consequências do incumprimento, uma vez que se a parte que constituiu o sinal deixou de cumprir a sua obrigação, a outra parte tem direito de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento partir de quem o recebeu o sinal, tem este de devolver o dobro (artº 442º nº 2, 1ª parte, CC). Ocorrendo cumprimento do contrato, a coisa entregue é imputada na prestação devida, valendo então como princípio de pagamento, ou restituída caso essa imputação não seja possível (artº 442º nº 1 do CC) – (Cf. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 7ª edição, pág. 223).
Estabelece o artº 440º do CC que “Se, ao celebrar-se o contrato ou em momento posterior, um dos contraentes entregar coisa que coincida, no todo ou em parte, com a prestação a que fica adstrito, é a entrega havida como antecipação total ou parcial do cumprimento, salvo se as partes quiserem atribuir à coisa o carácter de sinal”.
Desta norma resulta que a realização de uma datio rei na altura da celebração do contrato ou em data posterior não implica presunção de constituição de sinal, sempre que se verifique coincidência entre a datio rei realizada e o objecto da obrigação a que aquele está adstrito. Se as partes quiserem que a prestação entregue tenha carácter de sinal, deverão atribuir-lhe especificamente essa natureza.
Isto para os contratos em geral.
Diferentemente se passam as coisas em sede de contrato promessa de compra e venda, onde a datio rei realizada pelo promitente comprador nunca pode ser coincidente com a prestação a que este fica adstrito, pelo que nunca se poderia qualificar como antecipação de cumprimento de uma obrigação vigente. Isto porque o contrato-promessa de compra e venda institui apenas a obrigação de prestação de facto jurídico (celebrar o contrato definitivo) de que a entrega de uma coisa nunca poderia constituir cumprimento (Cf. Menezes Leitão, ob. cit. pág. 234).
Justamente por ser assim, em contrário ao que estabelece o artº 440º, vem o artº 441º estabelecer “No contrato-promessa de compra e venda presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço”.
Deste preceito decorre que a entrega de quantias em dinheiro pelo promitente comprador ao promitente-vendedor constituiu presunção da estipulação de sinal, isto mesmo que as quantias entregues o sejam a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço. Na verdade, uma vez que a obrigação de pagamento do preço só surge com a celebração do contrato definitivo, a sua antecipação ou entrega na fase do contrato-promessa tem por referência uma obrigação ainda não existente, o que não chega para elidir a presunção de ter sido estipulado sinal. (Cf. Menezes Leitão, ob. cit. pág. 234 e seg.).
Tratando-se de uma presunção, pode ser ilidida, conforme decorre da regra geral do artº 350º nº 2 do CC.
À partida não basta, para afastar a presunção, que as partes digam que a quantia entregue constitui uma antecipação ou princípio de pagamento (parte final do artº 441º CC). No entanto, não proíbe a lei que as partes eliminem esse carácter de sinal, declarando que não desejam que a quantia entregue desempenhe função de sinal. Para tal “…não é necessário que o convencionem expressis verbis, bastando, por exemplo, que declarem que a quantia tem apenas o carácter de princípio de pagamento ou, por outro modo, signifiquem a vontade de excluir a função de sinal para a quantia entregue” (Cf. Ana Prata, O Contrato-Promessa e Seu Regime Civil, pág. 822).
A doutrina mais autorizada vai no sentido de a presunção do artº 441º poder ser afastada mediante convenção em contrário das partes: J. Dias Marques, diz que a presunção é válida “…a menos que as partes declarem o contrário…” (Noções Elementares de Direito Civil, pág. 145); Galvão Telles afirma “…se as partes quiserem que a quantia entregue pelo promitente vendedor não valha como sinal …terão de tornar suficientemente explícita essa sua vontade…” (Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 123); Almeida Costa, refere que “…Esta presunção é ilidível com base em oposta vontade real dos contraentes (artº 350º nº 2 do CC)” (Contrato-Promessa, pág. 54); Gravato Morais (Contrato-Promessa em Geral, Contrato-Promessa em especial, pág. 67 e seg.) refere que é possível demonstrar que a quantia entregue não tem carácter de sinal; Ana Coimbra (O sinal: Contributo para o estudo do seu regime, in O Direito, 1990, pág. 11 e 12 e segs) admite a possibilidade de afastamento da presunção.
No caso dos autos, as partes estipularam por escrito (expressamente) “Os Promitentes Compradores entregam à Promitente Vendedora, nesta data, através de cheque, a quantia de € 105 765,11, quantia da qual a Promitente Vendedora dá integral quitação após boa cobrança.” (aditamento ao contrato-promessa, junto com a petição inicial, como documento 18).
Desta cláusula resulta que as parte não afastaram a natureza de sinal relativamente à quantia dos 105 765,11€.
Sem necessidade de outros considerandos, conclui-se que a apelante não tem razão ao defender que aquela quantia não pode ser tida como sinal.
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3.2.6- A redução equitativa do sinal.
Defende a ré/apelante que o artº 812º do CC relativo à redução da cláusula penal pode ser aplicado ao sinal passado no contrato-promessa, reduzindo-se equitativamente. Invoca que a existir culpa da ré na não celebração da escritura pública terá de ser leve, uma vez que a mesma pretendia celebrar a escritura de compra e venda em maio de 2009 e, a ré apenas procedeu à venda do imóvel em 2017, mais de 8 anos depois de estar a aguardar que os autores celebrassem a escritura de compra e venda e mais de 3 anos depois de os autores terem demonstrado e comunicado que consideravam o vínculo contratual extinto.
Que dano efetivo dos autores é inexistente, na medida em que podiam ter adquirido o imóvel em 2009 e só não o fizeram porque não quiseram; que os autores não sofreram qualquer dano que justifique o recebimento do montante de 528 825,54€.
Salvo o devido respeito, não pode concordar-se com a apelante.
Desde logo porque o seu argumentário se baseia em circunstâncias factuais que não são as demonstradas no processo. Na verdade, não corresponde à verdade que os autores tenham demonstrado e comunicado à ré que consideravam extinto o vínculo contratual. Além disso, a escritura não se realizou em 2008 (29/12) porque na vistoria realizada a 22/12/2008, verificou a existência de defeitos na vivenda (ponto 12 e 13 dos factos provados); e o mesmo sucedeu com o agendamento da escritura para 15/05/2009: dois dias antes foi verificado, em vistoria, que persistiam defeitos na vivenda (pontos 14, 15 e 16 dos factos provados); além disso, ficou acordado que a escritura se realizaria até 30/12/2009 e a ré jamais notificou os autores para a realização dessa escritura (pontos 18 e 20 dos factos provados); os autores solicitaram a marcação de nova vistoria em 2012 e, em 2103 solicitaram nova vistoria e reunião (ponto 21, 22 e 23 dos factos provados). Depois disso, os autores marcaram a escritura para 18/08/2014 (ponto 24 dos factos provados) e, a ré não compareceu nem nada disse. O mesmo é dizer que não se nos afigura que a não realização da escritura seja imputável aos autores.
Por outro lado, o tribunal só pode reduzir a pena, de acordo com a equidade, caso ela seja manifestamente excessiva. A fórmula utilizada pelo legislador, manifestamente excessiva, mostra que não bastará a sua superioridade, maior ou menor, em face do dano efectivo, para legitimar, de per se, a redução, o que aponta para que o tribunal tenha de ponderar outros factores, como a finalidade com que a pena foi estipulada, ou seja, a espécie de pena tida em vista pelos contraentes: poderá não ser manifestamente excessiva se tiver sido determinada com intuito compulsório, mas poderá sê-lo se tiver sido acordada como cláusula meramente indemnizatória.(Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, pág. 739 e seg.).
Não basta, para se tratar de uma cláusula excessiva, a pena seja superior ao dano, mas de uma cláusula cujo montante desmesurado e desproporcional ao dano seja de excesso manifesto e evidente, numa palavra, de excesso extraordinário, “enorme”, que “salte aos olhos”. Tem de ser uma desproporção evidente, patente, substancial e extraordinário entre o dano causado e a pena estipulada. (Cf. Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1995, pág. 274).
Um critério que deve pautar a actuação do juiz quer para decidir se pode reduzir a pena quer para determinar a medida de redução é a diferença entre o valor do prejuízo efectivo e o montante da pena. Sendo acordada a pena com função compulsória, a eficácia da mesma pressupõe igualmente que só em casos de evidente e flagrante desproporção haja um controlo judicial. (Pinto Monteiro, ob. cit., pág. 741). Como se refere no Ac. TRP, de 03/03/2016 (Aristides Rodrigues de Almeida, www.dgsi.pt) “Não se pode, com efeito, através da redução da pena eliminar o efeito compulsório pretendido pelas partes, pois isso daria aos devedores a ideia de que podem aceitar qualquer cláusula penal (…) sem temerem pelo seu pagamento em caso de não cumprimento”.
A esta vista, porque nem a factualidade invocada corresponde à realidade, nem porque se vislumbre que o sinal dobrado seja em montante desmesurado e desproporcional ao dano, seja de excesso manifesto e evidente, de excesso extraordinário, “enorme”, que “salte aos olhos”. O valor do sinal dobrado tem aquele valor porque os autores entregaram à ré quantia correspondente ao do preço da compra e venda.
Não encontramos razão para reduzir o valor correspondente ao dobro do sinal.
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3.2.7- O Processo Especial de Revitalização a que a ré está sujeita.
Defende a ré/apelante que está sujeita a um Plano Especial de Revitalização, homologado por sentença, que obriga todos os credores da ré por igual medida; entende que o direito de crédito dos autores é o mesmo que foi reconhecido sob condição no PER e, por isso, deve ser pago aos autores nos termos de redução de capital, juros e tempo fixado no PER.
Será assim?
Segundo entendemos, apesar de o montante peticionado nesta acção ser de valor igual ao do crédito reconhecido no PER da ré, não se trata do mesmo crédito porque, no PER, foi reconhecido um crédito de 528 825€ sob condição de a sentença no processo 2436/14 (J 17) ser julgada procedente. A sentença foi julgada improcedente e, por isso, não se verificou a condição a que o crédito se mostrava sujeito.
De resto, a causa debendi na acção 2436/14 (J 17) é diferente da causa debendi desta acção. Com efeito, a causa debendi naquele processo radicava na invocada perda de interesse dos credores e na interpelação admonitória da ré; nesta acção o fundamento ou causa do pedido é o incumprimento definitivo por venda a terceiro da vivenda prometida vender. Ora. Sendo créditos diferentes, apesar de no mesmo montante, não é aplicável a este crédito o regime do PER.
Além disso, o crédito em discussão nestes autos é de constituição posterior ao da homologação do PER.
A jurisprudência tem decidido nesse sentido.
Com efeito, podem ver-se:
-TRL de 19/12/2019 (Carlos Castelo Branco) de que se salienta a seguinte parte do sumário respectivo:
“II) Nos casos em que o crédito não esteja abrangido no PER por motivos não imputáveis ao credor – designadamente por ser de constituição ulterior ou não se encontrar vencido aquando do prazo para a reclamação prevista no n.º 2 do artigo 17.º-D do CIRE -, sempre se terá de possibilitar ao credor o respectivo ressarcimento, sob pena de não ter meio de cobrar o seu crédito, o que se traduziria numa denegação de justiça, violadora do princípio da tutela jurisdicional efectiva, consignado no artigo 20.º da CRP.”
-TRL, de 12/09/2019 (Pedro Martins):
I- Os créditos constituídos depois de nomeado o administrador judicial provisório num processo especial de revitalização não são abrangidos pelo plano de recuperação que aí seja aprovado, pelo que, pelo menos depois de homologado o plano, não há qualquer impedimento legal ao direito de exigir judicialmente o seu cumprimento.”
- TRP, de 17/11/2014 (Paula Leal de Carvalho):
Inexiste fundamento para julgar extinta a instância de uma ação declarativa comum em que um trabalhador pretende fazer valer créditos constituídos posteriormente à reclamação de créditos no PER, uma vez que tais créditos não se encontram abrangidos pelo plano de revitalização.”
Em face do que fica exposto resta concluir que o crédito em causa nesta acção não está sujeito às estipulações do PER da ré.
Falecendo toda a fundamentação da ré/apelante, conclui-se pela improcedência do recurso.
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III-DECISÃO.
Em face do exposto, acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recuso totalmente improcedente e, por consequência mantêm a sentença sob impugnação.
Custas na instância de recurso pela apelante.

Lisboa, 25/09/2025
Adeodato Brotas
Nuno Lopes Ribeiro
António Santos