PERÍCIA
ASSINATURA
PERÍCIA MÉDICO-LEGAL
PESSOA FALECIDA
AUTÓPSIA PSICOLÓGICA
Sumário

Não se mostram liminarmente inviáveis as perícias à assinatura e médico-legal (incluindo a denominada «autópsia psicológica»), a pessoa falecida, cabendo a cada instituição ajuizar, no caso concreto, da possibilidade da sua realização, face aos meios probatórios instrumentais disponíveis.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Acordam os Juízes da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. O relatório
AA
interpôs a presente acção comum, contra
BB,
peticionando:
Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui suprimento de V.Exas., deve a presente acção ser recebida, correr os seus trâmites usuais e legais e, em consequência, vir a ser reconhecida e decretada a anulabilidade do casamento celebrado entre a progenitora do requerente e o Requerido, produzindo-se efeito desde a celebração do ato.
Requereu, logo na petição inicial, a realização de perícia, nos seguintes termos:
1- Médica: Indireta para que indique se ela teria condições de ter ciência dos poderes outorgados na procuração diante da alta dose de medicação quando da sua assinatura
2- Grafológico: para que possa ser confirmada a autenticidade da assinatura na procuração
O réu contestou, impugnando a factualidade vertida na petição inicial, excepcionando a ilegitimidade do autor e a caducidade do direito invocado pelo mesmo e propugnando pela improcedência da demanda.
Sob convite, o autor respondeu às excepções, propugnando pela sua improcedência.
Mais requereu, nesse articulado, o autor:
ii. Requer-se a V. Ex.a, para a boa decisão da causa e a descoberta da verdade material, nos termos dos artigos 411.°, 417.°, 467.°, n.° 1, 475.°, n.° 1 e 476.° do CPC, o aditamento ao objeto da perícia médico-legal requerida com a petição inicial na análise dos registos diários do processo clínico da nubente CC (DOC. 4 junto com a p.i.) e do atestado médico de incapacidade (DOC. 5 junto com a p.i.), de forma a que se incluam os seguintes quesitos:
1 - Em face da análise do processo clínico da paciente CC durante o período do seu internamento hospitalar e até à data do seu falecimento, quais são discriminadamente os medicamentos e medicamentosas que foram administrados à paciente CC?
2 - Em face da resposta ao quesito anterior, algum medicamento ou medicamentosa que foram administrados à paciente CC é suscetível de influir na sua capacidade psíquica, nomeadamente na sua capacidade de raciocínio, de tomada de decisões e de compreensão?
3 - Em face da resposta atribuída ao quesito n.° 1, algum medicamento ou medicamentosa é suscetível de influir na capacidade de decisão e compreensão da paciente CC de celebração de um matrimônio, no dia 02-06-2022?
4 - Em face da resposta atribuída ao quesito n.° 1, algum medicamento ou medicamentosa é suscetível de influir na capacidade de decisão e compreensão da paciente CC na outorga de uma procuração a terceiro para que a represente perante a Conservatória do Registo Civil para a celebração do matrimônio?
5 - Tendo em conta o estado clínico da paciente CC, incluindo a situação debilitada que se encontra descrita no seu processo clínico em consequência da patologia de que sofria, bem como a administração dos medicamentos e medicamentosas descritos em resposta ao quesito n.° 1, é possível concluir que a paciente sofria de alterações do ponto de vista psíquico e físico que influíram na sua capacidade de decisão e de compreensão de celebração de um matrimónio no dia 02-06-2022, bem como na outorga de uma procuração para que terceiro a represente para o efeito?
iii. Por fim, requer-se ainda a V. Ex.a, nos termos dos artigos 467.°, n.° 1, 475.°, n.° 1 e 476.° do CPC, a realização de uma perícia a requisitar à Ordem dos Psicólogos, que tenha por objeto a elaboração de relatório pericial que tenha por objeto a resposta aos seguintes quesitos, por confronto com o processo clínico da paciente CC (DOC. 4 junto com a p.i.) e os relatórios juntos como DOC. 3 da p.i.:
1 - Para além das competências legalmente atribuídas em exclusivo aos psicólogos, um médico é geralmente dotado das capacidades necessárias para avaliar a capacidade cognitiva e psicológica de uma pessoa?
2 - As escalas de Glasgow e a Escala de Nível de Consciência são adequadas e suficientes para avaliar a capacidade cognitiva e psicológica de uma pessoa?
3 - A avaliação da consciência de uma pessoa é suficiente para determinar se esta se encontra em uma situação de anomalia que se projete no domínio da inteligência e da vontade?
4 - As escalas de Glasgow e a Escala de Nível de Consciência são adequadas para o efeito referido no quesito anterior?
5 - Tendo em conta o estado clínico da paciente CC, incluindo a situação debilitada que se encontra descrita no seu processo clínico em consequência da patologia de que sofria, bem como a administração dos medicamentos e medicamentosas descritos no mesmo processo, incluindo os medicamentos SOS, é possível concluir que a paciente sofria de alterações do ponto de vista psíquico e físico que influíram na sua capacidade de decisão e de compreensão de celebração de um matrimônio no dia 02-06-2022, bem como na outorga de uma procuração para que terceiro a represente para o efeito?
*
Procedeu-se à realização de audiência prévia, no decurso da qual foi proferido despacho saneador, onde se julgou improcedente a excepção de ilegitimidade e se relegou para final o conhecimento da excepção de caducidade, bem como à fixação do objecto da causa e à delimitação dos temas de prova, nos seguintes termos:
Fixa-se o objecto da causa:
a) A procuração apresentada como sendo outorgada pela mãe do Autor para casar com o Réu não foi assinada por aquela?
b) A mãe do Autor ao assinar a indicada procuração não tinha consciência de que através da mesma contraia casamento com o Réu?
Indicam-se os temas de prova:
- Matéria de facto alegada pelo Autor e pelo Réu nas suas peças processuais.
No que se refere à realização das requeridas perícias, foi ainda decidido o seguinte:
A prova pericial pedida não é impertinente, nem dilatória. Importa apurar, contudo, se é de realização possível.
Assim, oficie o INML - Lisboa, a fim de a mesma entidade esclarecer se a perícia médica solicitada é de realização possível e, em caso afirmativo, que documentos deverão ser entregues àquela entidade.
Oficie igualmente o Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária quanto à perícia grafológica.
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O Laboratório de Polícia Científica, junto da Polícia Judiciária, informou nos seguintes termos:
Em resposta ao solicitado, informamos V. Ex.a que é viável a realização da perícia em apreço desde que a amostra problema seja remetida em original e que nos seja(m) enviada(s) amostra(s) referência, em cuja recolha se devem seguir as instruções presentes em www.políciaiudiciária.pt. separador “Espaço Público”, opção “Laboratório de Polícia Científica”, seguida de “Solicitar Perícia de Escrita Manual”, bem como utilizar os impressos que aí se disponibilizam.-
No que concerne à obtenção de resultados esclarecedores quanto à autenticidade e/ou autoria da(s) escrita(s) suspeita(s), tal dependerá da qualidade e quantidade do material que nos seja remetido.-
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O Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. respondeu nos seguintes termos:
Na sequência do v/ pedido datado de 17-03-2025 com a ref.a 443745226, remetemos resposta de médico Psiquiatra da Delegação Sul deste INML:
"«O Autor alega que o casamento de sua mãe foi celebrado sem ser essa a sua vontade consciente, invocando que a mesma estava em estado terminal e que lhe eram administradas elevadas doses de morfina. Está, pois, em causa situação subsumível à "demência notória"prevista no art. 1643°, n°1, al.a)do CC. A açcão deu entrada em 21 de julho de 2024, isto é, menos de três anos após a celebração do casamento.»
E nesse contexto é solicitada perícia médica indireta que indique «se uma pessoa teria condições de ter ciência dos poderes outorgados na procuração diante de alta dose de medicação aquando da sua assinatura» Com os quesitos:
«a) A procuração apresentada como sendo outorgada pela mãe do Autor para casar com o Réu não foi assinada por aquela?
b) A mãe do Autor ao assinar a indicada procuração não tinha consciência de que através da mesma contraia casamento com o Réu?»
Com a informação disponibilizada, não é possível efetuar um exame pericial, porquanto seria necessário conhecer qual a prescrição concreta que é alegada e qual o efeito da mesma na "examinanda" (ou através de doseamentos dofármaco aquando da assinatura em questão, ou através de registos clínicos contemporâneos aos factos em análise). No geral, o objetivo terapêutico da medicação referida (morfina) é a analgesia, e não a colocação num estado de inconsciência ou "demência" (exceto em contexto de internamento em unidade de cuidados intensivos, por exemplo), mas também se desconhece o contexto clínico da prescrição.
Ou seja,
-O quesito a) não é passível de ser respondido por uma perícia médico-legal, sendo matéria para análise factual (perito em caligrafia, ou outros métodos que não são de âmbito médico-legal).
-O quesito b) só é passível de ser respondido mediante informação clínica robusta e que abranja a data da assinatura em questão e deverá incluir o exame direto da pessoa em questão(desconhece-se o estado atual da signatária e se viva, qual a sua posição face ao que é alegado)"
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Com data de 21/5/2025, foi proferido o seguinte despacho:
Da resposta apresentada pelo INML - Delegação de Lisboa conclui-se que a perícia pedida não é viável pelos motivos ali indicados.
Indefere-se, pois, a mesma.
Da resposta do LNPC - PJ:
Afigura-se que esta perícia não será viável.
Para além da amostra problema terão de ser recolhidas amostras referência nos moldes indicados no site da PJ, bem como utilizar os impressos ali disponibilizados. Isso mesmo resulta da informação datada de 26 de Março de 2025, a qual remeta para https://www.policiajudiciaria.pt/solicitar-pericia-escrita-manual/.
Ora, da consulta daquela informação resulta que a perícia de grafologia implica a existência de um auto de recolha de autógrafos. Nele a pessoa cuja assinatura se pretende periciar escrever várias vezes em linhas pautadas sucessivas o seu nome. No caso dos autos, mesmo recolhendo os elementos que o Autor pretende não se vê que aquele objectivo (assinaturas sucessivas num curto espaço de tempo) seja alcançável. Aliás, a informação não indica sequer que essa seja uma possibilidade.
Crê-se que os técnicos que a elaboraram desconhecem que a pessoa cuja assinatura se pretende que seja objecto de perícia faleceu já, pelo que não poderá ser dado cumprimento ao procedimento que indicam.
Ainda assim, indefere-se a solicitada perícia.
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Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
A. O presente recurso é interposto sobre o despacho proferido pelo douto Tribunal a quo de 21-05-2025, com referência eletrônica 445234311, na parte em que indefere a realização das perícias médico-legal e grafológica requeridas pelo Recorrente, e deixa de se pronunciar sobre a perícia psicológica requerida pelo mesmo.
B. Em discussão nos autos encontra-se, em conformidade com o objeto da causa fixado por despacho saneador exarado em ata de audiência prévia de 12-032025, saber se:
"a) A procuração apresentada como sendo outorgada pela mãe do Autor para casar com o Réu não foi assinada por aquela?
b) A mãe do Autor ao assinar a indicada procuração não tinha consciência de que através da mesma contraia casamento com o Réu?”.
C. Na sua petição inicial requereu o aqui Recorrente uma perícia grafológica a fim de comprovar a falsidade da assinatura aposta na procuração que instruiu o processo de casamento cuja anulação requereu e que se atribui à sua falecida progenitora - DOC. 5.
D. Requereu ainda o Recorrente uma perícia médico-legal, com base nos registos clínicos da sua falecida progenitora, a fim de apurar se, em face do estado terminal da doença de que padecia, tendo em conta os fármacos que lhe eram administrados e o efeito que os mesmos detinham sobre a mesma, tal implicava uma limitação na sua capacidade de compreensão e decisão, de tal forma que fosse possível concluir que não teria a plena capacidade de alcance do real sentido da procuração que alegadamente terá outorgado, ou dito de outra forma, se padecia ou não, face à letra da lei, de demência notória para a celebração do casamento - DOC. 5 e 6.
E. Em requerimento datado de 05/12/2025 (DOC. 6), requereu ainda o Recorrente a realização de uma perícia psicológica, a fim de determinar, em suma, se um médico é geralmente dotado das capacidades necessárias para avaliar a capacidade cognitiva e psicológica de uma pessoa, se as escalas de Glasgow e a Escala de Nível de Consciência são adequadas e suficientes para avaliar a capacidade cognitiva e psicológica de uma pessoa e se esta se encontra em uma situação de anomalia que se projete no domínio da inteligência e da vontade, e se, tendo em conta o processo clínico da nubente, é possível concluir que a mesma sofria de alterações do ponto de vista psíquico e físico que influíram na sua capacidade de decisão e de compreensão de celebração de um matrimónio no dia 02-06-2022.
F. Por despacho proferido em sede de audiência prévia, decidiu o douto Tribunal a quo não serem as perícias requeridas impertinentes nem dilatórias, colocando, todavia, a questão de saber se as mesmas são de possível realização - DOC. 7.
G. Para o que ordenou os ofícios correspondentes ao Laboratório da Polícia Científica da Polícia Judiciária e ao Instituto Nacional de Medicina Legal.
H. No dia 26-03-2025, o Instituto Nacional de Medicina Legal veio a pronunciar-se, dizendo, em suma, que “Com a informação disponibilizada, não é possível efetuar um exame periciar, sendo que tal apenas seria possível através da análise de informação concreta e robusta sobre o processo clínico da visada, o que desconhece o Instituto - DOC. 8.
I. Em 04-04-2025, veio o Laboratório da Polícia Científica da Polícia Judiciária a pronunciar-se, referindo que é viável a realização da perícia desde que sejam remetidas em original a amostra problema e amostras referência - DOC. 9.
J. Nesta razão, procedeu o Recorrente requerendo ao Tribunal a quo o ofício ao Instituto Português de Oncologia de Lisboa para que disponibilizasse os documentos necessários à realização da perícia médico-legal, entre os quais a documentação do processo clínico da sua progenitora; a Conservatória do Registo Civil de Lisboa para que remetesse a procuração original que instruiu o processo de casamento em crise; e a junção aos autos de documentos originais que detinha em sua posse e que tinham sido assinados pela sua progenitora antes de falecer - DOC. 10 e 11.
K. Em 21/05/2025, foi pelo douto Tribunal a quo proferido o despacho de que ora se recorre, que indeferiu as perícias requeridas pelo Recorrente, com fundamento na suposta inviabilidade da perícia do INML, e nas instruções constantes do sítio da internet para o qual remete o ofício do Laboratório da Polícia Científica da Polícia Judiciária, que pressupõem a recolha de diversos autógrafos em um curto espaço de tempo pela visada, o que, devido ao seu falecimento, constituirá um impedimento natural para a sua realização - DOC. 12.
L. Salvo melhor opinião, todavia, não entende o Recorrente assim, porquanto a leitura que realiza do ofício do INML permite-lhe concluir que a perícia é, de facto, de possível realização, mas apenas mediante a disponibilização de informação concreta e robusta sobre o estado da visada, os fármacos que lhe eram administrados e os seus efeitos na mesma, o que, a par da documentação já constante dos autos, constituem elementos de possível obtenção junto do IPO de Lisboa.
M. Mas, mesmo que tal não se afigurasse possível, o que apenas a posteriori seria possível concluir, apenas o INML estaria em condições de atestar tal facto, munido de todos os elementos que compõem a informação da visada (o que não detinha em sua posse aquando da elaboração do ofício solicitado).
N. No tocante à perícia grafológica solicitada, o próprio ofício recebido da entidade competente atesta a viabilidade da realização da perícia, não podendo constituir causa da sua recusa a mera remessa para as instruções que pressupõem uma recolha de amostras em vida do visado.
O. Conforme se vem entendendo maioritariamente na nossa jurisprudência, a circunstância do autor aparente de determinado documento ter falecido não obsta a que se proceda à perícia da sua assinatura com base em outros documentos existentes e assinados pelo mesmo, ainda que tal implique um acrescido esforço, onerosidade ou dificuldade por parte do perito designado.
P. Mas, ainda assim, apenas a entidade competente para a realização da perícia poderá, munido de tais elementos, atestar pela viabilidade ou não da perícia solicitada.
Q. Ora, tendo já sido objeto de decisão que as perícias requeridas não são impertinentes, nem dilatórias (DOC. 7), deveriam as mesmas ter sido ordenadas às entidades respetivas.
R. Ao não o ter feito, o douto Tribunal a quo violou as regras dos artigos 7.°, 411.°, 417.°, 436.° e 476.°, n.° 1 do CPC e o direito à prova do Recorrente, que emerge do direito constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.° da Lei Fundamental.
S. Outrossim, a não realização das perícias solicitadas enferma o despacho recorrido de nulidade, nos termos do artigo 195.°, n.° 1 do CPC, porquanto corresponde a uma omissão que influi no exame e na decisão da causa, afetando as respostas a dar aos temas da prova e à sentença final.
T. Não se pronunciou, todavia, o despacho recorrido, quanto à perícia psicológica requerida, o que enferma o despacho em nulidade por omissão de pronúncia, por força do artigo 615.°, n.° 1, alínea d) do CPC, devendo tal nulidade ser corrigida através da regra da substituição do Tribunal recorrido prevista no artigo 665.°, n.° 2 do CPC.
C - DO PEDIDO
Nestes termos e nos melhores de Direito, com o douto suprimento de V. Ex.as que se solicita, deverá o presente recurso merecer provimento e, em consequência:
a) Ser o despacho proferido pelo douto Tribunal a quo em 2105-2025, com referência eletrônica 445234311, revogado, na parte em que indefere a realização das perícias médico-legal e grafológica requeridas pelo Recorrente, ordenando-se a produção da prova indeferida;
b) Ser declarado o despacho proferido pelo douto Tribunal a quo em 21-05-2025, com referência eletrônica 445234311 nulo por omissão de pronúncia, porquanto não se pronunciou sobre a perícia psicológica requerida pelo Recorrente;
c) Ser corrigida a nulidade prevista no ponto anterior através da regra da substituição do Tribunal recorrido, deferindo-se a realização da perícia em apreço.
Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!
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O réu contra-alegou, propugnando pela improcedência da pretensão recursória.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, em separado e efeito meramente devolutivo.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. O objecto e a delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
Viabilidade da realização da prova pericial.
Nulidade do despacho proferido.
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III. Os factos
Flui dos autos a realidade processual supra exposta.
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IV. O Direito
Viabilidade da realização da prova pericial.
O cerne do presente recurso consiste na reavaliação do juízo efectuado na 1ª instância, relativamente à viabilidade da realização da prova pericial, pelo Laboratório de Polícia Científica, junto da Polícia Judiciária e pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P..
Dúvidas não existem que a realização desses exames periciais não se mostra impertinente ou dilatória, pelo que bem andou a Sra. Juíza a quo em determinar a sua realização, à luz do disposto no art. 476º, nº1 do Código de Processo Civil.
Contudo, deveria no mesmo despacho, ter fixado o objecto das perícias, nos termos do nº 2 do citado preceito, o que não fez.
Mas a nossa discordância relativamente ao despacho recorrido prende-se com o fundo da questão, na medida em que concluiu a Sra. Juíza a quo que a realização das perícias não será viável, na medida em que a pessoa objecto das mesmas – a mãe do autor -, infelizmente, faleceu.
Recorde-se que falamos em perícias póstumas, de objecto médico-legal e à assinatura imputada à mesma.
A nosso ver e sem necessidade de maiores considerações, o despacho recorrido mostra-se precipitado e infundado, na medida em que se baseia na interpretação da Sra. Juíza a quo relativamente aos ofícios de resposta dessas entidades.
Ora, esses ofícios, supra citados, limitam-se a reproduzir informações tipificadas e a remeter para formulários – o que se compreende, face ao elevado número de perícias que aquelas entidades realizam – sem que se pronunciem sobre a circunstância de a pessoa em causa ter falecido.
Pelo que, a manterem-se as dúvidas, sempre poderia a Sra. Juíza a quo obter esclarecimentos complementares junto dessas entidades e não, de forma apressada, concluir pela inviabilidade das perícias.
Mostrando-se, evidentemente, inviável, a recolha de autógrafos à sua assinatura e a realização directa do exame médico-legal, na pessoa da falecida.
Contudo, essa circunstância não impede a realização de ambas as perícias, com a devida adaptação às circunstâncias post mortem.
Pelo que sempre se julga inútil a obtenção de esclarecimentos complementares.
No caso da perícia à assinatura, é o próprio art. 482º, nº 1, do Código de Processo Civil que prevê expressamente a realização do exame mediante comparação com a letra constante do escrito já existente e que se saiba pertencer à pessoa a quem é atribuída.
No tocante à perícia médico-legal, será viável a realização da denominada autópsia psicológica, com recurso à documentação médica referente à malograda, como foi solicitado pelo autor e, se necessário, à faculdade prevista no art. 481º do citado Código.
Cabendo, em sede de relatório pericial, às entidades em questão, averiguar, ponderar e justificar da possibilidade, em concreto e face aos elementos disponíveis, da realização dessas perícias.
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Uma nota final haverá a fazer relativamente à perícia de âmbito psicológico, requerida pelo autor em sede de articulado de resposta às excepções.
Tal perícia foi, correctamente, deferida, em sede de audiência prévia.
Em causa está, contudo, a entidade que a realizará, na medida em que o autor solicitou a sua realização à Ordem dos Psicólogos.
Diz-nos o art. 467º, nº3 do Cód. Proc. Civil que As perícias médico-legais são realizadas pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamenta.
A competência dos Serviços Médico-Legais está devidamente estabelecida na lei por forma a permitir que se determine a sua intervenção em perícias médicas requeridas no âmbito de acções do foro civil.
Podemos encontrar na página WEB do INMLCF, I.P. (https://www.inmlcf.mj.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=122&Itemid=288) esta interessante síntese:
Ao INMLCF, I.P., cabe, no exercício das suas atribuições periciais forenses, cooperar com os tribunais, com o Ministério Público e com os órgãos de polícia criminal e demais serviços e entidades que intervêm no sistema de administração da justiça, realizando os exames e as perícias de medicina legal e forenses que lhe forem solicitados, nos termos da lei, bem como prestar-lhes apoio técnico e laboratorial especializado, no âmbito das suas atribuições.
O INMLCF, I.P. realiza, no âmbito das referidas atribuições processuais:
autópsias médico-legais, tendo como objetivo esclarecer a causa da morte e as circunstâncias em que esta ocorreu, nos casos de morte violenta ou de causa ignorada, estabelecendo-se o diagnóstico diferencial entre morte natural, suicídio, homicídio e acidente (e ainda outros exames cadavéricos, por ex. de antropologia forense, seja para fins de diagnóstico diferencial da causa da morte, seja para fins de identificação);
exames e perícias em pessoas para descrição e avaliação dos danos provocados no corpo ou na saúde, no âmbito do direito penal, civil e do trabalho;
perícias e exames laboratoriais químicos e toxicológicos para determinação de álcool etílico, substâncias medicamentosas, pesticidas, drogas de abuso, monóxido de carbono, metais e outros produtos, em amostras biológicas e não biológicas;
perícias e exames laboratoriais bacteriológicos de hematologia forense e dos demais vestígios orgânicos, nomeadamente os exames de investigação biológica da filiação;
perícias e exames psiquiátricos e psicológicos, para efeito de avaliação da imputabilidade jurídico-penal, de estados de perigosidade, da capacidade de exercício de direitos, e de perturbações pós-traumáticas de índole psíquica e psicológica;
perícias e exames de anatomia patológica forense, no âmbito das atividades da delegação e dos gabinetes que se encontrem na sua dependência, bem como a solicitação dos tribunais da respetiva circunscrição (no Serviço de Anatomia Patológica Forense).
Constitui ainda atividade operativa realizada no âmbito do sistema de administração da justiça a formulação de pareceres técnicos científicos pelo Conselho Médico-Legal.
No desenvolvimento da atividade formação, ensino, investigação e divulgação científicas, o Instituto prossegue as suas atribuições e exerce as suas competências em colaboração com as universidades, especialmente escolas médicas, com outros estabelecimentos de ensino superior e com instituições de investigação, mediante a celebração de protocolos nas áreas do ensino, da formação e da investigação científica no domínio da medicina legal e de outras ciências forenses.
A este propósito, o Instituto colabora estreitamente na formação pré-graduada, e promove a formação pós-graduada, bem como a realização de trabalhos e estudos de pesquisa e investigação científica, por si e em colaboração com outras entidades, cabendo-lhe também o desenvolvimento de ações de formação de médicos legistas (médicos da carreira médica de medicina legal) e de outros médicos peritos, e outras dirigidas a profissionais que trabalham nas áreas do Direito, da Justiça e da Saúde.
O nº4 do mesmo normativo apresenta uma norma relativa à possibilidade de intervirem, na prova pericial, outras entidades, mas por delegação daqueles serviços oficiais.
A Lei nº 45/2004 de 19 de Agosto, que Estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses, reproduz este regime no seu art. 2º:
Artigo 2.o
Realização de perícias
1 — As perícias médico-legais são realizadas, obrigatoriamente, nas delegações e nos gabinetes médico- -legais do Instituto Nacional de Medicina Legal, adiante designado por Instituto, nos termos dos respectivos estatutos.
2 — Excepcionalmente, perante manifesta impossibilidade dos serviços, as perícias referidas no número anterior poderão ser realizadas por entidades terceiras, públicas ou privadas, contratadas ou indicadas para o efeito pelo Instituto.
3 — Nas comarcas não compreendidas na área de actuação das delegações e dos gabinetes médico-legais em funcionamento, as perícias médico-legais podem ser realizadas por médicos a contratar pelo Instituto nos termos dos artigos 28.o , 29.o e 31.o da presente lei.
4 — As perícias médico-legais solicitadas ao Instituto em que se verifique a necessidade de formação médica especializada noutros domínios e que não possam ser realizadas nas delegações do Instituto ou nos gabinetes médico-legais, por aí não existirem peritos com a formação requerida ou condições materiais para a sua realização, poderão ser efectuadas, por indicação do Instituto, em serviço universitário ou de saúde público ou privado.
5 — Sempre que necessário, as perícias médico-legais e forenses de natureza laboratorial poderão ser realizadas por entidades terceiras, públicas ou privadas, contratadas ou indicadas pelo Instituto.
6 — Quando se verifiquem os casos previstos nos n.os 2, 4 e 5 será dada preferência, em circunstâncias equivalentes, a serviços públicos ou integrados no Serviço Nacional de Saúde.
E, porque a competência, para a realização do requerido exame psicológico está atribuída, por força do diploma legal referido, ao INMLCF, I.P., não se vislumbra fundamento para a junção daquela perícia pela Ordem dos Psicólogos – sem prejuízo de posterior indicação pelo referido Instituto de entidade terceira idónea.
Daí a procedência da apelação, resultando prejudicada a apreciação da alegada nulidade do despacho recorrido.
*
V. A decisão
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em, na procedência da apelação, revogar a decisão recorrida e determinar seja solicitado ao Laboratório de Polícia Científica, junto da Polícia Judiciária e ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. a realização das perícias requeridas pelo autor, com o objecto delimitado na petição inicial e no articulado de resposta às excepções, após obtenção da documentação de suporte oportunamente requerida.
Custas pelo recorrido.
*
Lisboa e Tribunal da Relação, 25 de Setembro de 2025
Nuno Lopes Ribeiro
João Brasão
Gabriela de Fátima Marques