DIREITO DE PREFERÊNCIA
COMPRA E VENDA
NULIDADE
Sumário

1. Deve ser suspensa a instância por existência de causa prejudicial quando a decisão a proferir nos autos consiste na apreciação do direito de preferência na venda do locado invocado pela autora na qualidade de locatária e está pendente outra acção em que a locadora formula o pedido de declaração de nulidade da venda do locado.
2. A suspensão da instância não constitui um acto inútil pelo facto de ter sido arguida a excepção de caducidade da acção de preferência, pois o conhecimento dessa excepção seria, esse sim, um acto inútil, tendo em atenção de que na causa prejudicial pode vir a ser declarada a nulidade da venda do locado.

Texto Integral

Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa.

RELATÓRIO.
S… Unipessoal, Lda intentou contra 1) M…, 2) R…, 3) N… e 4) V… Unipessoal, Lda alegando, em síntese, que em 1/8/2008 o seu sócio gerente, celebrou com a primeira ré um contrato de arrendamento para fins não habitacionais, na qualidade, respectivamente, de locatário e de locadora, com início nessa data e com o prazo de cinco anos renovável, sendo o locado uma loja pertencente à locadora primeira ré e tendo o locatário, em 1/3/2010, cedido a sua posição contratual à autora que actualmente é a inquilina, sucedendo que em 25/11/2022 a autora tomou conhecimento de que o imóvel foi vendido, pertencendo agora à quarta ré, tendo esta, em Dezembro de 2022, reclamado da autora o pagamento das rendas, mas reclamando igualmente a primeira ré o pagamento das rendas e comunicando à autora que não vendeu o imóvel, e que iria intentar acção de anulação da venda do imóvel, pelo que a autora, não sabendo quem seria a locadora, passou a depositar as rendas na Caixa Geral de Depósitos.
Mais alegou a autora que não lhe foi comunicada previamente a intenção e o projecto de venda do imóvel e que, na sua qualidade de arrendatária, pretende exercer o seu direito de preferência.
Concluiu pedindo a procedência da acção e que: (1) se reconheça e se dê o direito de preferência à autora, (2) se reconheça e se dê como princípio de pagamento as rendas pagas desde Dezembro de 2022 até à sentença, (3) que se condene as rés a reconhecerem o direito de preferência da autora e (4) e se conceda à autora um prazo nunca inferior a 30 dias, após trânsito em julgado para efectuar o pagamento do valor correspondente ao preço da primeira venda do imóvel.
Juntou documentos, entre os quais o contrato de arrendamento de 2008 e uma escritura de 20/7/2022 em que o segundo réu declarou vender o locado à terceira ré, declarando o segundo réu que o fazia em representação da primeira ré, com quem era casado no regime de separação de bens.
A primeira ré contestou, alegando, em síntese, que foi casada com o segundo réu, de quem se divorciou em 1976, tendo-lhe outorgado, ainda na constância do casamento, uma procuração com poderes para vender bens móveis e imóveis e, tendo-se deteriorado as relações entre os ex-cônjuges após o divórcio, o réu ameaçou retirar-lhe todos os bens de que era proprietária e usou a referida procuração, sem consentimento nem conhecimento da contestante, para tentar vender o seu património, logrando o seu objectivo relativamente à venda em 20/7/2022 à terceira ré do locado objecto dos autos e da qual a contestante só teve conhecimento quando a autora lhe transmitiu que recebera a comunicação da venda e do novo endereço de IBAN para pagamento das rendas e tendo ainda a terceira ré vendido o mesmo imóvel em 3/11/2022 à quarta ré, cuja gerente é a actual companheira do seu ex-marido, ora segundo réu, tendo as duas vendas ocorrido por via do conluio entre os segundo, terceira e quarta réus, contra quem a ora contestante intentou uma acção pedindo a nulidade das mencionadas vendas, participando também criminalmente destes factos.
Mais alegou que as vendas foram outorgadas à sua revelia, pelo que nunca preteriu o direito de preferência da autora e que a acção em que pede a nulidade das vendas do locado constitui causa prejudicial quanto à presente acção.
Concluiu pedindo: (a) suspensão da instância até à prolacção da acção prejudicial e (b) a sua absolvição do pedido formulado pela autora.
A quarta ré contestou, arguindo a excepção de caducidade da acção, por a autora não ter depositado os valores exigidos legalmente para a acção de preferência e por ter tido conhecimento do projecto de venda do locado de 20/7/2022, que lhe foi comunicado antes dessa a venda e mais de seis meses antes da propositura da acção; por impugnação, impugnou os factos alegados pela autora, alegando que a autora actua em conluio com a primeira ré e impugnando os depósitos efectuados pela autora.
Concluiu pedindo a improcedência da acção e a absolvição do pedido.
O segundo réu contestou, arguindo também a excepção da caducidade da acção e impugnando os depósitos efectuados pela autora, nos mesmos termos da contestação da quarta ré e impugnou o alegado na petição inicial, alegando que o prédio lhe pertencia a si e não à primeira ré, sua ex-cônjuge e que comunicou à autora com antecedência todos os elementos da venda do locado.
Concluiu pedindo a improcedência da acção e a absolvição do pedido.
Após os articulados foi proferido despacho que convidou a autora a responder à excepção de caducidade da acção.
A autora não se pronunciou sobre a excepção e foi proferido despacho onde se consignava que o Tribunal pretendia conhecer do mérito da acção e marcando-se data para a audiência prévia.
No seguimento deste despacho foi requerida a alteração da data da diligência por impedimento do mandatário da quarta ré.
Foi ainda apresentado pela autora requerimento pedindo a suspensão da instância por existência de causa prejudicial e juntando certidão que atesta a pendência da acção nº79/23.7 T8LRS, intentada em 4/1/2023, na qual é autora a ora primeira ré e são réus os ora segundo, terceira e quarta réus e em que é formulado o pedido de declaração de nulidade das duas escrituras de compra e venda de 20/7/2022 e de 3/11/2022, mostrando-se juntos, nesse processo, as duas referidas escrituras, cuja nulidade se peticiona; juntou ainda a autora o acórdão proferido da RL, 8ª secção, de 4/4/2024, do processo 6023/23.4 T8LRS, que confirma a decisão da 1ª instância, no sentido em que, nessa acção de despejo por falta de pagamento de rendas, relativa ao locado dos autos e intentada pela ora quarta ré contra a ora autora e contra a fiadora desta, deve ser suspensa a instância, por se entender que a acção 79/23.7 T8LRS e a presente acção são ambas causa prejudicial do despejo pretendido.
Foi então dada sem efeito a data designada para a audiência prévia e foi proferido novo despacho convidando as partes a pronunciar-se sobre a suspensão da instância, já requerida na contestação da primeira ré e agora requerida também pela autora.
O segundo réu pronunciou-se, opondo-se
Designada nova data para o efeito, teve lugar a audiência prévia, na qual foi proferido despacho que decidiu suspender a instância com fundamento de que a acção em que se discute a anulação da venda do locado é prejudicial relativamente à presente acção em que a autora invoca o direito de preferência nessa venda.
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Inconformado, o segundo réu interpôs recurso e alegou, formulando as seguintes conclusões:
A. A decisão recorrida, que se pronuncia pela suspensão da presente acção de preferência, com fundamento na existência de causa prejudicial, decorrente da existência de outra acção em que se aprecia a validade do negócio subjacente à preferência, é um acto inútil e nulo nos termos do artº 130º do CPC, se o autor da acção de preferência não procedeu ao depósito do preço nos termos do nº1 do artº 1410º do CC.
B. Pois que o depósito do preço nos termos do nº1 do artº 1410º do CC constitui condição sine qua non da procedibilidade da acção e é condição substancial do exercício do direito.
C. A falta do depósito do preço no prazo de 15 (quinze) dias após a propositura da acção determina a caducidade do exercício do direito, facto que é de conhecimento oficioso e imediato, sem que seja necessária a arguição de tal excepção em sede de contestação.
D. Constitui um dever do juiz do processo, logo que verificado o facto e determinado o contraditório, proferir decisão a declarar a caducidade do direito e a determinar a improcedência da acção, obstando assim à prática de actos processuais nulos por inutilidade, como é o caso da decisão recorrida.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis que mui doutamente serão supridos deve o presente recurso ser dado como procedente por provado e, em consequência, deve o despacho ser revogado e substituído por douto acórdão que declare a presente acção improcedente por força da caducidade do direito, decorrente do não cumprimento do dispost no nº1 do art.º 1410º do CC quanto ao depósito do preço.
Assim decidindo, farão como sempre V. Exas inteira JUSTIÇA!
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Não foram apresentadas contra-alegações e o recurso foi admitido como apelação com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.
A questão a decidir é a de saber se deverá ser suspensa a instância por pendência de causa prejudicial.
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FACTOS.
Os factos a atender são os descritos no relatório que antecede, destacando-se, os seguintes, com base nos documentos juntos aos autos e mencionados no mesmo relatório:
O contrato de arrendamento em que a autora alega ser inquilina foi celebrado em 5/8/2008, nela figurando como locadora a primeira ré M… e incide sobre a loja que constitui a fracção B do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob o nº… e inscrito na matriz sob o artigo … e sita na Rua … em Odivelas.
Em 20/7/2022 foi celebrada escritura pública em que o segundo réu, R…, declarou que, em representação da primeira ré, M…, casados sob o regime de separação de bens e no uso de procuração por esta outorgada, vende o imóvel acima identificado à terceira ré, N…, representada por C…, que declarou aceitar a venda.
Em 3/11/2022 foi celebrada escritura pública em que a terceira ré, N… declara vender o mesmo imóvel à quarta ré, V… Unipessoal, Lda, representada por E…, que declarou aceitar a venda.
Corre termos no Tribunal de Lisboa Norte, Juízo Central Cível de Loures, J3, a acção nº79/23.7T8LRS, em que é autora a ora primeira ré M… e são réus os ora réus R…, N… e V… Unipessoal, Lda e em que o pedido consiste na declaração de nulidade das referidas escrituras de 20/7/2022 e de 3/11/2022 e de cancelamento dos registos delas resultantes.
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
O artigo 272º nº1 do CPC estatui o seguinte: “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.
Nestes autos está em causa o primeiro fundamento previsto nesta disposição legal, que é o da dependência do julgamento de outra causa já proposta.
Trata-se da existência de uma causa prejudicial, que se caracteriza pelo facto de a pendência da outra causa ter como objecto uma decisão que irá influenciar a decisão a proferir na primeira causa, podendo mesmo definir a situação jurídica de que depende o direito invocado nesta primeira causa.
A suspensão da instância na causa cuja decisão está dependente do julgamento da outra causa justifica-se como forma de evitar a prática de actos inúteis e eventuais decisões contraditórias, mas não terá lugar nos casos previstos no nº2 do artigo 272º, ou seja, quando houver fundadas razões que a causa prejudicial foi intentada unicamente para se obter a suspensão, ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão suprem as respectivas vantagens, situações estas que manifestamente não se verificam nestes autos.
E no caso em apreço é também manifesto que existe a relação de prejudicialidade entre a causa da acção nº79/23.7T8LRS e a decisão a proferir nestes autos, pois o direito de preferência invocado pela autora, na qualidade de arrendatária e relativamente à venda do locado e previsto no artigo 1091º do CC, só poderá eventualmente existir se for decidido na referida acção 79/23.7 que as vendas do locado são válidas, mas já não existirá se, pelo contrário, for decidido que tais vendas são nulas.
Alega o apelante que a suspensão da instância é um acto inútil e nulo nos termos do artigo 130º do CPC, pois já existem elementos nos autos para decidir e julgar procedente a excepção de caducidade da presente acção.
Mas não lhe assiste razão, pois a apreciação de tal excepção é que constituiria um acto inútil caso viesse a ser decidido na outra acção que as vendas do locado são nulas, sendo certo que, caso venha a ser decidido na outra acção que as vendas são válidas, será então apreciada a referida excepção nesta acção, bem como todos os restantes pressupostos do direito invocado pela autora.
Improcedem, pois, as alegações de recurso, devendo manter-se a suspensão da instância decretada na 1ª instância.
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DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se o despacho recorrido.
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Custas pelo apelante.
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2025-09-25
Maria Teresa Pardal
João Brasão
Elsa Melo