TRIBUNAL ARBITRAL
PRIVAÇÃO DO USO
ACTIVIDADE DE TRANSPORTE
INDEMNIZAÇÃO
Sumário

1. Sendo o veículo pesado de mercadorias da A. utilizado pela mesma na sua actividade comercial de transporte de inertes, e tendo ficado privada dessa utilização desde a data do acidente até ao momento em que o mesmo ficou reparado, por ordem e a expensas da R., a indemnização por essa privação do uso deve considerar todo esse período de imobilização.
2. Não chegando A. e R. a acordo quanto ao montante da indemnização por essa privação do uso e tendo de recorrer a tribunal para a sua determinação, a forma de contagem dos dias de privação do uso e os valores diários dessa privação, que constam do acordo celebrado entre a APS e a ANTRAM, não são vinculativos para o tribunal, constituindo apenas factor de referência para a referida determinação.
3. A simples afirmação de que o aluguer de um veículo com características semelhantes às do veículo imobilizado ascende a determinado montante (diário ou mensal), não conduz directamente à conclusão de que o prejuízo sofrido pelo lesado com a privação do uso do mesmo há-de ser nesse montante.
4. Tratando-se de um veículo pesado de mercadorias com peso bruto máximo superior a 20 toneladas utilizado para transportar inertes, esse tipo de utilização não permite a utilização de outro veículo com características radicalmente distintas, mas antes de um veículo que revele a mesma capacidade de transporte desse tipo de mercadorias que o veículo imobilizado da A. apresentava, pelo que se revela razoável e equitativo que o valor diário da privação ascenda à quantia de € 208,38 constante do referido acordo, quando comparado com valores de aluguer de veículos pesados de mercadorias semelhantes, que ultrapassam largamente o valor diário em questão.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
No tribunal arbitral recorrido S., Ld.ª (A.) veio pedir a condenação de Z. – Sucursal em Portugal (R.) no pagamento da quantia de € 10.002,24, alegando para tanto e em síntese que:
• Ocorreu um embate entre um veículo seguro na R. e o veículo pesado de mercadorias da sua propriedade, por culpa exclusiva do condutor do primeiro;
• Do acidente resultou a paralisação do seu veículo pesado por 48 dias, durante os quais não o utilizou na actividade comercial de transporte de mercadorias a que estava destinado, e sendo o valor devido por cada dia de paralisação de € 208,38.
A R. apresentou resposta à pretensão da A. onde confirma a existência do seguro, o acidente e a sua responsabilidade na reparação dos danos decorrentes do mesmo, impugnando por desconhecimento os danos da privação do uso alegados pela A. e concluindo pelo julgamento da acção mediante a prova a produzir.
Foi realizada audiência de julgamento, tendo de seguida sido proferida decisão final pela qual a R. foi condenada a pagar à A. a quantia de € 6.668,16.
A A. recorre desta decisão final, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1. A apelante não se conforma com a sentença arbitral, na medida em que considera que a Reclamação da Recorrente deveria ter sido julgada totalmente procedente e, consequentemente, deveria ter condenado a Recorrida a pagar o valor de € 10.002,24.
2. Em 12/05/2022 a viatura pesada de mercadorias com a matrícula xx-VS-xx, da marca Mercedes-Benz, modelo Sprinter Diesel, propriedade da Recorrente S., Lda., e conduzida por (…), esteve envolvida num sinistro automóvel, ocorrido mediante culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na companhia de seguros Z., ora Recorrida, e desse acidente rodoviário resultaram vários danos materiais, designadamente: privação do uso da viatura por 48 dias; pagamento da limpeza da via (já pago pela Z.); e pagamento de novos óculos ao motorista (já pago pela Z.).
3. O veículo xx-VS-xx era utilizado Recorrente S., Lda. no exercício da sua actividade comercial, e no dia do sinistro encontrava-se a fazer um transporte de mercadorias.
4. A referida viatura foi entregue para reparação em 12/05/2022, a peritagem foi realizada em 08/06/2022, e apenas em 22/07/2022 o veículo foi devolvida à Recorrente S., Lda..
5. A viatura esteve imobilizada durante 48 dias, pelo que ao abrigo da tabela de paralisação de 2022 – Acordo APS/ANTRAM, a S., Lda. tem direito a receber o valor diário de € 208,38 (veículos pesados superiores a 26 até 40 toneladas), o que corresponde a € 10.002,24.
6. A privação de uso de um veículo automóvel durante certo lapso de tempo, em consequência dos danos sofridos em acidente de trânsito, constitui, só por si, um dano indemnizável.
7. O dano patrimonial resultante da privação do uso está na ausência de liberdade de dispor do bem, pois a propriedade atribui a liberdade de usar ou não usar o bem. É um dano patrimonial efectivo e deve ser indemnizado.
8. Todos os factos supra descritos foram dados como provados na Sentença ora trazida a lume, designadamente no ponto 7 da Sentença consta que a Reclamante e ora Recorrente se viu privada do seu veículo desde o dia do acidente até 22/07/2022.
9. A Reclamada e ora Recorrida assumiu a Responsabilidade pela ocorrência do sinistro, pelo que está obrigada a proceder à reparação integral dos danos sofridos pela Reclamante/Recorrente (artigo 562.º do Código Civil), o que passa pela indemnização da privação do uso desde a data do acidente até à data de entrega da viatura devidamente reparada, o que ocorreu em 22/07/2022, conforme consta dos factos dados como provados na sentença.
10. Foi dado como provado no ponto 7 da sentença que a Recorrente ficou privada do uso da sua viatura desde a data do acidente (12/05/2022) até 22/07/2022, como resulta do documento n.º 4, junto com a Reclamação apresentada no CIMPAS e que não foi impugnado.
11. De acordo com o disposto no Acordo ANTRAM e a APS, artigo 3.º, n.º 2 e n.º 7, a indemnização pela privação do uso é contada desde o dia do acidente até ao dia proposto pela Seguradora para a realização da peritagem, aos quais acrescem o dia da peritagem e o período estritamente necessário à reparação dos danos, tal como indicado no relatório de peritagem.
12. Já o artigo 7.º do citado Acordo prevê que: “Qualquer demora imputável ao lesado, centro de inspecção e/ou autoridades oficiais, não vencerá, no período correspondente, direito a indemnização por paralisação.
13. Ora, apesar de o relatório de peritagem prever apenas 11 dias para reparação da viatura pesada de mercadorias da Recorrente, o certo é que a reparação dessa viatura demorou muito mais do que 11 dias, sem culpa da Recorrente, e só em 22/07/2022 é que a viatura foi entregue à Recorrente.
14. Assim, a sentença deveria ter condenado a Recorrida a pagar à Recorrente o valor peticionado na Reclamação, € 10.002,24, a título de indemnização pela privação do uso da viatura desde a data do acidente, 12/05/2022, até à data da entrega da viatura reparada, 22/07/2022.
15. A sentença ora impugnada foi proferida em clara violação da prova carreada para os autos, quer documental quer testemunhal, e que impunha a condenação da Reclamada/Recorrida no pedido formulado pela Reclamante/Recorrente.
16. Estamos perante um caso óbvio de nulidade da sentença, conforme preceitua o artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c), e d), do CPC – falta de fundamentação, oposição dos factos provados apresentados com a decisão, em face da prova produzida nos autos, quer documental quer testemunhal, e falta de pronúncia sobre questões que devia apreciar, tudo o que aqui se invoca.
17. Pelas razões supra expostas deve ser dado provimento ao presente recurso, e consequentemente, deve ser anulada a decisão proferida e substituída por outra que julgue totalmente procedente a Reclamação formulada pela Reclamante/Recorrente contra a Reclamada/Recorrida.
Não foi apresentada alegação de resposta pela R.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem‑se com:
a. A nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação, oposição entre a fundamentação e a decisão e omissão de pronúncia;
b. A determinação da indemnização relativa ao dano da privação do uso do veículo da A.
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Na decisão arbitral recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto:
1. No dia 12/05/2022, pelas 07h00m, na Estrada Nacional 378, ocorreu um acidente entre o veículo com a matrícula ..-VS-.., propriedade da A. e o veículo com a matrícula xx-XV-xx, cuja responsabilidade se encontrava transferida para a R. pela apólice de seguros de responsabilidade civil automóvel nº (…).
2. A R. assumiu a responsabilidade pela ocorrência do acidente.
3. Em consequência do acidente o veículo da A. ficou impedido de circular.
4. O prazo para reparação do veículo da A. era de 11 dias.
5. A peritagem ficou definitiva a 08/06/2022.
6. A reparação iniciou-se a 13/06/2022.
7. A A. viu-se privada do seu veículo desde o dia do acidente até ao dia 22/07/2022.
8. O Acordo celebrado entre a APS e a ANTRAM prevê um valor diário de paralisação de € 208,38 para veículos pesados superiores a 20 toneladas e até 40 toneladas.
9. A reparação dos danos no veículo da A. ascende a € 58.106,96.
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Das nulidades
Segundo a al. b) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Do mesmo modo, e segundo a al. c) do mesmo nº 1, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. E segundo a al. d) do mesmo nº 1 a sentença é ainda nula quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.
Como explica Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221), a sentença com fundamentação escassa ou deficiente não é nula, já que “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (artº 208º nº 1 do CRP; artº 158º nº 1)”. E mais refere que “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (…) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (…); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”.
Relativamente a eventual oposição entre os fundamentos e a decisão, é sabido que tal vício ocorre quando a construção da sentença (ou despacho) “é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, Coimbra Editora, reimpressão, 1981, pág. 141). Ou seja, o vício em questão corresponde ao erro lógico da argumentação jurídica, surgindo quando o resultado do silogismo judiciário aponta num sentido e a decisão aponta no sentido oposto. Na expressão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/12/2017 (relatado por Tomé Gomes e disponível em www.dgsi.pt), trata-se de um vício que “requer uma relação de exclusão recíproca – um dizer e desdizer – entre aqueles dois termos da equação discursiva”. Do mesmo modo, na expressão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/7/2021 (relatado por Fernando Baptista e disponível em www.dgsi.pt), tal vício “distingue-se do erro de julgamento em virtude de neste não existir qualquer vício de raciocínio do julgador, mas apenas um erróneo julgamento da matéria de facto, por a prova produzida não consentir esse julgamento de facto, mas antes outro (error facti) ou por o juiz ter incorrido numa incorrecta aplicação das normas ao caso concreto, que demandava a aplicação de outras, ou ter incorrido na errónea interpretação das aplicáveis (error iuris)”.
Já sobre a questão da nulidade da sentença por omissão de pronúncia, explica Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, volume II) que “devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe estão submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe caiba conhecer (art 660º/2), o não conhecimento do pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade (…)”.
Por outro lado, e como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 737), existe “uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso”.
Regressando ao caso concreto, torna-se patente que a decisão arbitral recorrida não padece de algum dos três vícios que lhe são imputados pela A.
Com efeito, consta da decisão arbitral recorrida a fundamentação de facto e a aplicação à factualidade em questão das normas jurídicas que, num percurso lógico, permitem verificar, não só que a decisão condenatória foi fundamentada, como igualmente que essa fundamentação está “em linha” com a decisão condenatória, não se verificando o referido “dizer e desdizer”. Do mesmo modo, apreciou-se e decidiu-se a pretensão indemnizatória formulada pela A., pelo que não se pode falar em omissão de pronúncia.
Pode, é certo, a fundamentação apresentada estar incompleta, ou mesmo errada. E, nessa medida, conduzir a uma decisão errada e a carecer de ser alterada. Só que tal circunstância não corresponde ao vício da nulidade, em qualquer uma das vertentes suscitadas pela A., mas antes representa um erro de julgamento, que não determina a nulidade da decisão, mas a (eventual) modificação do que aí foi decidido, com recurso a fundamentação distinta da utilizada pelo tribunal recorrido.
O que equivale a concluir, sem necessidade de ulteriores considerações, pela improcedência da arguição de nulidades em questão.
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Da indemnização pela privação do uso
Na decisão arbitral recorrida ficou assim fundamentada a valorização do dano em questão no montante de € 6.668,16:
A Reclamada assumiu a responsabilidade pela ocorrência do sinistro pelo que está obrigada a proceder à reparação integral dos danos sofridos pelo Reclamante (art.º 562º do Código Civil), o que passa pela reparação da privação do uso do veículo desde a data do acidente até ao momento em que o pagamento da indemnização pela reparação ou pela perda total do veículo deveria ter sido satisfeito. Essa indemnização, a fixar equitativamente, nos termos do nº 3 do art.º 566º do mesmo diploma legal, não deve atingir um valor desproporcionado face às circunstâncias concretas, nomeadamente, como tem vindo a ser decidido pela jurisprudência, não pode ser superior ao valor da indemnização decorrente da perda total do veículo, sob pena de violação do princípio da equidade. A Reclamante veio peticionar o valor diário constante do acordo celebrado entre a ANTRAM e a APS, pelo que também têm que se aplicar as restantes regras constante desse acordo.
Assim, o valor diário a considerar, tratando-se o veículo da Reclamante de um pesado de mercadorias com um peso entre as 20 e as 40 toneladas é o constante da tabela do acordo celebrado entre a APS e a ANTRAM - € 208,38. Não restam dúvidas quanto ao facto do veículo da Reclamante ter impossibilitado de circular já que o relatório de peritagem junto aos autos o refere expressamente. Quanto ao prazo da privação de uso, nos termos da Cláusula 3ª nº 6 do referido acordo, é contado desde o dia do acidente (12/05/2022) até ao dia da peritagem (08/06/2022 inclusive) acrescido dos dias previstos no relatório de peritagem para a reparação (11 dias). Ora a reparação iniciou-se a 13/06/2022 pelo que o período a contabilizar decorre desde o dia do acidente até ao dia 28/06/2022 (descontados os fins de semana e feriados - os dias 10 e 16 de Junho foram feriados) o que perfaz 32 dias. Deste modo, é a Reclamada responsável pelo pagamento da quantia de € 6.668,16. Sendo o valor da reparação do veículo quase dez vezes superior ao valor desta indemnização, tal quantia, não ofende o princípio da equidade”.
A discordância da A. assenta na circunstância de não se ter considerado que, não obstante terem sido previstos no relatório de peritagem 11 dias para a reparação, a reparação iniciou-se em 13/6/2022 e a A. esteve privada do seu veículo até 22/7/2022. Pelo que, como o número de dias da reparação ultrapassou os referidos 11 dias, a privação do uso do veículo decorrente do acidente é superior à prevista no relatório de peritagem e é nessa medida que a A. deve ser ressarcida patrimonialmente de tal privação, considerando que o valor diário da indemnização ascende a € 208,38, no que respeita a um veículo com as características do da A.
Em face da factualidade apurada resulta incontrovertido que em consequência do acidente a A. se viu privada de utilizar o seu veículo pesado de mercadorias, desde a data do referido acidente (12/5/2022) até 22/7/2022. Ou seja, durante o período em questão a A. deixou de poder exercer todos os poderes de proprietária sobre o mesmo veículo (desde logo, usá-lo para a função a que se destina, de meio de transporte de inertes no âmbito da sua actividade comercial).
Como ficou afirmado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/11/2011 (relatado por Moreira Alves e disponível em www.dgsi.pt), “quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel danificado num acidente, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usava e usaria normalmente (o que, na generalidade das situações concretas, constituirá facto notório ou resultará de presunções naturais a retirar da factualidade provada), para que possa exigir-se do lesante uma indemnização autónoma a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos quantificados, como, por exemplo, que deixou de fazer determinada viagem ou que teve de utilizar outros meios de transporte, com o custo correspondente”. Mais ficou afirmado que “se puder ter‑se por provado que o proprietário lesado utilizava, na sua vida corrente e normal, o veículo sinistrado, ficando privado desse uso ordinário em consequência dos danos sofridos pela viatura, provado está o dano indemnizável durante o período de privação ou, tratando-se de inutilização total, enquanto não for indemnizado da sua perda, nos termos gerais”. E ficou ainda afirmado que “se o lesado pede uma indemnização autónoma pela privação do uso do veículo nas circunstâncias referidas (isto é, alegando e provando que usava normalmente a coisa e que ficou privado desse uso em consequência de acto ilícito do lesante), sem alegar e provar outros danos concretos, dificilmente (será, mesmo, impossível) se poderá fixar o valor exacto do dano, impondo-se, por isso, recorrer à equidade nos termos do n.º 3 do Art.º 566º do C.C.”, afirmando-se depois que “a destruição e perda total do veículo e a correspondente obrigação de indemnizar o A. em dinheiro, não contende com a obrigação de indemnizar pela privação do uso.
É que essa privação mantém-se enquanto o responsável não reparar o veículo, quando for caso disso, ou não indemnizar o lesado pelo respectivo valor (como é o caso dos autos)”.
Do mesmo modo, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5/7/2018 (relatado por Abrantes Geraldes, igualmente referido pelo A. e disponível em www.dgsi.pt) conclui-se que “o facto de o veículo sinistrado ser usado pelo lesado no seu quotidiano profissional e na sua vida particular não pode deixar de determinar a atribuição daquela indemnização respeitante ao período em que perdurou a privação do uso da viatura”. Mais se refere aí que, para efeitos de atribuição e quantificação de uma indemnização, há lugar à ponderação, para além do mais, das “circunstâncias atinentes ao uso que efectivamente era dado pelo lesado ao seu veículo e ao que seria razoavelmente necessário para que a perda do veículo pudesse ser superada através de um veículo com semelhante funcionalidade, ainda que não necessariamente com as mesmas características”. E ainda se refere que a questão da ressarcibilidade do dano da privação do uso há muito se encontra ultrapassada pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que “passou a reconhecer, sem qualquer espécie de hesitação, o direito de indemnização relativamente a situações (…) em que o veículo é usado habitualmente para deslocações, sem necessidade de o lesado alegar e provar que a falta do veículo sinistrado foi causa de despesas acrescidas”, não se deixando de fazer apelo à tese que “encontra também na jurisprudência bastas adesões, no sentido de fazer corresponder à privação do uso uma indemnização autónoma, independentemente da prova de uma utilização quotidiana do veículo, ainda que com recurso à equidade e ponderação das precisas circunstâncias que rodeiam cada situação”.
Do mesmo modo, ainda, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/6/2025 (relatado por Eugénia Cunha e disponível em www.dgsi.pt), afirma-se que “a privação de uso do veículo sinistrado configura um dano autónomo a ser ressarcido com fundamento em responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação, provado que se encontre ter o lesado ficado privado do gozo do veículo por efeito do sinistro e que o mesmo o usava”, concluindo-se que “o direito indemnizatório do lesado por tal dano autónomo não pode deixar de ir, sendo pedido, até à data em que lhe for disponibilizado pela Ré Seguradora o montante necessário à reparação”.
Ou seja, apresenta-se como pacífico que, na medida em que a A. utilizava o seu veículo pesado de mercadorias na sua actividade comercial e ficou privada dessa utilização desde a data do acidente até ao momento em que o mesmo ficou reparado, por ordem e a expensas da R., a indemnização por essa privação do uso deve considerar todo esse período, e não apenas o período fixado pela R. como necessário ao apuramento dos danos e à sua reparação, nos termos do referido acordo celebrado entre a Associação Portuguesa de Seguradores (APS) e a Associação Nacional de Transportadores Públicos Rodoviários de Mercadorias (ANTRAM).
Nesse mesmo sentido, é de afastar a referência constante da decisão arbitral recorrida à necessidade de se aplicar as regras constantes do acordo em questão, no que respeita à determinação dos dias a considerar para a indemnização do dano da privação do uso.
Com efeito, ainda que o acordo em questão possa vincular a A. (na medida em que seja associada da ANTRAM) e a R. (na medida em que seja associada da APS), o mesmo não se apresenta como fonte do direito que o tribunal deve aplicar, no que respeita ao modo de determinação da indemnização em questão.
É que, como ficou referido pelo Tribunal da Relação de Coimbra no acórdão de 7/11/2023 (relatado por Luís Cravo e disponível em www.dgsi.pt), os valores previstos na tabela anexa ao acordo em questão não podem ser aplicados “tout court” para efeitos de compensar a paralisação dos veículos dos associados da ANTRAM, “antes e apenas como mero referencial a considerar no juízo de equidade a fazer nos termos do nº 3 do art. 566º do Código Civil”.
Do mesmo modo, ficou referido pelo Tribunal da Relação de Coimbra no acórdão de 5/3/2024 (relatado por Maria João Areias e disponível em www.dgsi.pt) que, “quanto ao “Acordo de paralisação Antram/APS, em vigor entre as partes, as respectivas cláusulas configuram regras válidas para a fixação de uma indemnização por acordo entre as partes”, apresentando-se como “meios de promover e agilizar a fixação amigável da indemnização, prescindindo do recurso aos tribunais, mediante o estabelecimento de critérios objectivos de cálculo, quer relativamente ao tempo de paralisação a considerar, quer ao montante diário da compensação”. Todavia, “não chegando as partes a acordo e recorrendo à via judicial para determinação da responsabilidade e montante da indemnização, as regras constantes desse Acordo poderão constituir, quanto muito, meros factores de referência – pelo facto de terem sido considerados adequados por ambas as partes –, mas que se afiguram não vinculativos para o tribunal”.
Do mesmo modo, ainda, e como ficou referido no acórdão de 4/2/2025 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por Paulo Ramos de Faria e disponível em www.dgsi.pt), o referido acordo celebrado entre a APS e a ANTRAM “não é fonte de direito, não sendo, ainda, um negócio jurídico celebrado entre as partes”, e não se podendo adoptar a “tabela de liquidação do dano prevista em tal suposto acordo como critério a seguir na fixação equitativa do valor da indemnização (art.º 566.º, n.º 3, do Cód. Civil)”.
Em síntese, porque a regra relativa à forma de contagem dos dias de privação de uso que consta do acordo em questão (rectius, que constará, já que da factualidade provada nem sequer resulta o seu teor) não é de aplicar à fixação do valor indemnizatório por essa privação do uso do veículo da A., entre 12/5/2022 e 22/7/2022, não pode manter-se o afirmado na decisão arbitral recorrida, no sentido de haver que considerar 32 dias úteis de privação de uso, e antes havendo que considerar, como bem observa a A., 48 dias úteis de privação do uso do veículo pesado de mercadorias da A.
Quanto ao montante da indemnização a fixar por esses 48 dias úteis em que a A. não logrou utilizar o veículo na sua actividade comercial de transporte de inertes, resulta do acima exposto que é segundo critérios de equidade que tal montante deve ser determinado.
O que significa, desde logo, que só se deve recorrer ao valor diário constante do ponto 8 na medida em que represente o valor necessário para prover à substituição do veículo sinistrado, em cada um dos dias em que a A. não o pôde utilizar.
Não se pode perder de vista que, como vem concluindo a jurisprudência, a simples afirmação de que o aluguer de um veículo com características semelhantes às do veículo imobilizado ascende a determinado montante (diário ou mensal), não conduz directamente à conclusão de que o prejuízo sofrido pelo lesado há-de ser nesse montante. Mas tratando-se de um veículo pesado de mercadorias, ou seja, de um veículo com uma específica e diária utilização, no âmbito da actividade de comércio e transporte de inertes, esse tipo de utilização não permite a utilização de outro veículo com características radicalmente distintas, mas antes de um veículo que revele a mesma capacidade de transporte desse tipo de mercadorias que o veículo imobilizado da A. apresentava.
Ou seja, estando em causa a utilização de um veículo pesado de mercadorias com peso bruto máximo entre 20 e 40 toneladas e que sirva para transportar inertes (designadamente areia), o que pressupõe que esteja dotado de uma caixa de carga basculante, apresenta‑se como razoável e equitativo que o valor diário de aluguer de veículo idêntico ascenda aos referidos € 208,38, quando comparado com o valor do aluguer de veículos ligeiros de mercadorias ou mesmo de passageiros, este nunca inferior a € 50,00 diários.
Por outro lado, uma simples consulta ao site https://www.europa-camioes.com torna patente que o valor diário de aluguer de veículos pesados de mercadorias com peso bruto máximo superior a 20 toneladas ultrapassa largamente os referidos € 208,38, ascendendo, em alguns casos, a valores próximos dos € 400,00, embora com referência ao presente momento (Setembro de 2025), e não com referência ao período em apreço (Maio a Julho de 2022).
É certo que no referido acórdão de 5/3/2024 do Tribunal da Relação de Coimbra se afirmou que, “tendo em consideração os valores que vêm sendo fixados pelos nossos tribunais, dentro de um juízo de equidade, entende-se por adequado a fixação de tal dano [da privação do uso] num valor diário de € 110,00”. E as restantes decisões desse mesmo Tribunal da Relação de Coimbra aí referidas apontam para valores diários de € 100,00. Mas torna-se patente, à face do juízo de comparação acima realizado, que a equidade demanda a fixação do referido montante diário na quantia de € 208,38 constante do invocado acordo, em vez de um valor diário próximo de € 100,00, que se entende desadequado para ressarcir a privação do uso do veículo pesado de mercadorias da A., no que respeita aos 48 dias úteis acima referidos (de 12/5/2022 a 22/7/2022).
Assim sendo, e na procedência das conclusões do recurso da A., importa revogar a decisão arbitral recorrida e condenar a R. a pagar à A. a quantia global peticionada de € 10.002,24.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se procedente o recurso e revoga-se a decisão arbitral recorrida, que se substitui por esta outra em que se julga totalmente procedente a pretensão da A. e se condena a R. a pagar à A. a quantia de € 10.002,24 (dez mil e dois euros e vinte e quatro cêntimos).
Custas do recurso pela recorrida.

25 de Setembro de 2025
António Moreira
Arlindo Crua
Rute Sobral