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SIGILO BANCÁRIO
LEVANTAMENTO
INVENTÁRIO
CÔNJUGES
Sumário
Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do CPC) 1. Atento o disposto no art.º 417.º n.º 3 al. c) do CPC é legítima a recusa do Banco em fornecer informações relativas a conta(s) bancária(s) titulada pela Requerente, com fundamento no dever de sigilo a que está sujeito, nos termos do art.º 78.º do RGICSF, quando esta não deu consentimento a que fossem prestadas tais informações. 2. No âmbito de um processo especial de inventário com vista à partilha dos bens comuns do casal, torna-se necessário saber quais os valores que integram tal acervo, que se encontravam depositados nas contas bancárias dos ex-cônjuges, à data da cessação dos efeitos patrimoniais do casamento. 3. É adequado e proporcional o levantamento do sigilo bancário quando um dos cônjuges não consegue obter informação sobre tais valores, informação necessária para apurar o património comum do casal sujeito a partilha, o que vai ao encontro do interesse público na boa administração da justiça.
Texto Integral
Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
O presente incidente de levantamento/quebra de sigilo vem suscitado pelo tribunal a quo, no âmbito do processo de inventário intentado por AA contra BB, na sequência do divórcio de ambos e com vista à partilha dos bens comuns do casal.
Foi nomeado cabeça de casal o Requerido, por ser o cônjuge mais velho, que devidamente citado veio requerer prazo para juntar a relação de bens a partilhar.
A 10.03.2025 veio o Requerido juntar aos autos a relação de bens, mais solicitando que “se ordene junto do Banco Santander Totta, que indique qual a conta bancária titulada pela Requerente, com o montante disponível a ordem e em poupança na data do divórcio.”
Foi proferido despacho que determinou: “Oficie ao Banco Santander Totta, que indique qual a conta bancária titulada individualmente ou em conjunto pelos interessados, e o valor do saldo à ordem e em poupança a 11-09-2023 (data a que retroagiram os efeitos do divórcio nas relações patrimoniais entre os ex-cônjuges).”
Notificado, veio o Banco invocar o sigilo bancário, pedindo que lhe fossem enviadas as competentes autorizações para poder dar cumprimento ao solicitado.
O cabeça de casal solicitou ao tribunal que notificasse a Requerente para dar a referida autorização, o que foi feito por mais de uma vez, sem que a mesma tenha dado qualquer resposta.
Foi proferido despacho em que o tribunal reconheceu como legítima a escusa do Banco em prestar as informações requeridas, atento o disposto no art.º 78.º n.º 1 e 2 do DL 298/92 de 31 de dezembro que consagra o dever de segredo que lhe é aplicável, mais constatando que o cabeça de casal não tem forma de obter informação sobre a existência de conta bancária titulada pela interessada, bem como sobre o valor do saldo à ordem e em poupança a 11-09-2023, suscitando junto deste tribunal da Relação, por ser o competente, o incidente com vista ao levantamento do segredo bancário, autorizando que o Banco preste informação sobre a existência de conta bancária titulada individualmente ou em conjunto pelos interessados, e o valor do saldo à ordem e em poupança a 11-09-2023, data a que retroagiram os efeitos do divórcio nas relações patrimoniais entre os ex-cônjuges.
II. Questão a decidir
- da verificação dos pressupostos que permitem o levantamento do sigilo bancário invocado.
III. Fundamentos de facto
A factualidade relevante para a decisão do incidente é aquela que resulta do relatório elaborado.
IV. Razões de Direito - da verificação dos pressupostos que permitem o levantamento do sigilo bancário invocado
Vejamos sumariamente o regime legal a ter em conta, para de seguida se ponderar se deve ou não haver lugar à quebra do sigilo invocado pelo Banco para se escusar a prestar as informações que lhe foram solicitadas, relativas à identificação e saldo de contas bancárias tituladas pela Requerente.
No domínio bancário coloca-se muitas vezes a questão da dispensa ou quebra de segredo, estando esta matéria prevista expressamente nos art.º 78.º e 79.º do DL 298/92, de 31 de dezembro, diploma que contém o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF).
O art.º 78.º dispõe relativamente ao segredo profissional:
“1 - Os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. 2 - Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias. 3 - O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.”
Sobre esta questão importa ainda ter em conta o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ de 13-02-2008 com o n.º 2/2008, publicado no DR de 31/03/2008 inwww.dgsi.pt que fixou jurisprudência nos seguintes termos:
“1. Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário. 2. Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do nº 2 do art. 135º do Código de Processo Penal. 3. Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.”
As exceções ou limites ao dever de segredo bancário são contemplados no art.º 79.º do diploma mencionado que, no seu n.º 1, prevê que a instituição bancária possa fornecer ou revelar os elementos das relações do cliente com a instituição, mediante a autorização daquele. Na falta de tal autorização os factos cobertos pelo segredo apenas podem ser transmitidos às entidades elencadas no n.º 2, entre as quais as autoridades judiciárias no âmbito de um processo penal, na previsão da al. e) ou quando exista disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.
No processo civil, no âmbito da instrução do processo, é o art.º 417.º que rege sobre o dever de cooperação de todas as pessoas para a descoberta da verdade, sejam ou não parte no processo, prevendo que a recusa de colaboração com o tribunal possa ser sancionada com multa- art.º 417.º n.º 1 e 2 do CPC.
Já o n.º 3 deste art.º 417.º estabelece os casos em que a recusa de colaboração com o tribunal é legítima, nos quais se integram, designadamente, de acordo com a previsão da al. c) a violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4, que acrescenta: “Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.”
Remetendo o processo civil para o regime previsto no processo penal, há que ter em conta o art.º 135.º do CPP que, reportando-se ao segredo profissional, começa por prever, no seu n.º 1 que, entre outros, os membros das instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei impuser ou permitir que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre factos por ele abrangidos. De acordo com o n.º 3 deste artigo, o tribunal superior àquele em que o incidente tiver sido suscitado, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.
O direito ao sigilo bancário, tal como o direito ao sigilo de supervisão bancária, não é um direito absoluto. Como se diz no Acórdão do TRP de 10-01-2012 no proc. 5336/10 inwww.dgsi.pt : “Embora protegido constitucionalmente, o direito ao sigilo bancário não é um direito absoluto, cedendo perante outros direitos ou interesses igualmente consignados na lei fundamental, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário.”
A dispensa ou quebra de sigilo bancário é uma situação que judicialmente apenas se coloca quando estamos perante dois interesses em conflito, importando determinar em cada caso qual deles deve prevalecer.
De um lado, temos o segredo bancário que deve ser visto não só na perspetiva de um dever da instituição para com o cliente, numa tutela do princípio da confiança no âmbito da relação estabelecida entre eles e a proteção da vida privada, como também numa perspetiva social, assente em razões de ordem pública e de tutela da confiança no sistema bancário.
Do outro lado, temos também um interesse de ordem pública que se traduz na boa administração a justiça e no alcance da descoberta da verdade material, que impõe a todos o dever de cooperação com o tribunal, conforme decorre dos art.º 7.º e 417.º do CPC, que em regra surge associado ao interesse particular de uma das partes no processo.
Defendendo que o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrados no art.º 20.º da CRP pode prevalecer sobre o segredo bancário, diz-nos o Acórdão do TRL de 09-02-2017 no proc. 19498/16.9T8LSB-A.L1-2 in www.dgsi.pt : “(…) esse direito ao sigilo, embora com cobertura constitucional, não é um direito absoluto, e desde logo por isso que pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas, embora com ele possa manter relação estreita. Podendo assim ter que ceder perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário.”
Para a superação deste conflito de interesses, o art.º 135.º n.º 3 do CPP faz apelo ao princípio do interesse preponderante, devendo levar-se em consideração, de acordo com o disposto nesta norma, com as necessárias adaptações, fatores como a imprescindibilidade dos elementos para a descoberta da verdade e a natureza e âmbito dos bens em discussão.
Importa ainda ter em conta o art.º 335.º do C.Civil que sobre a colisão de direitos iguais ou da mesma espécie estabelece que os titulares devem ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito.
Como nos diz o Acórdão do TRL de 23-09-2021 no proc. 1172/21.6T8AMD.L1-2 inwww.dgsi.pt : “Tendo presente a finalidade e a importância do sigilo bancário, é claro que a quebra do mesmo não poderá ser determinada sem uma criteriosa avaliação da sua necessidade e proporcionalidade, sob pena de se transformar em regra aquilo que deve ser uma exceção. Assim, para que possa ser ordenada a prestação da colaboração (determinada no quadro da administração da justiça) com quebra do dever de sigilo profissional é indispensável que tal se justifique segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, ponderando a imprescindibilidade da colaboração para o apuramento dos factos, a relevância do litígio e a necessidade de proteção de bens jurídicos, conceitos legais que têm sido densificados pela jurisprudência dos tribunais superiores.”
Ensina Lopes do Rego, in Código de Processo Civil Anotado, pág. 363: “cumpre ao Tribunal actuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, “máxime” o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão.”
Passando ao caso concreto, constata-se que o Banco fundamentou a sua recusa em prestar as informações pedidas pelo tribunal, no dever de segredo a que está sujeito, nos termos do art.º 78.º do RGICSF e no art.º 417.º n.º 3 al. c) do CPC, não havendo dúvidas, atento o disposto nestas normas, em considerar legítima a sua recusa em prestar os elementos bancários requeridos.
Na situação em presença temos de um lado o direito ao sigilo bancário e do outro lado o interesse público na boa administração da justiça e o direito das partes a uma tutela jurisdicional efetiva, impondo-se então saber se aquele deve prevalecer ou não perante estes, sendo em função do caso concreto e da ponderação dos direitos e dos interesses em confronto que vai resultar a resposta a tal questão.
A informação solicitada pelo cabeça de casal tem em vista uma finalidade legítima que corresponde à averiguação e determinação do património comum do casal que deve ser objeto da partilha, suscetível de ser influenciado com os valores que possam existir nas contas bancárias de cada um dos cônjuges, não correspondendo a uma mera intenção de devassa da vida privada, mas ao apuramento da verdade, não se vislumbrando que exista outra forma de obter tais elementos atenta a falta de autorização da Requerente para o efeito, apresentando-se por isso como adequado e proporcional a quebra do sigilo.
De considerar ainda que tendo o sigilo bancário também como finalidade a proteção da privacidade dos titulares dos direitos, neste caso a questão nem se coloca ao nível de tal proteção, uma vez que os elementos pedidos se referem a um período de tempo certo, na constância do casamento entre as partes, reportando-se a invocados bens comuns do casal, ainda que possam estar apenas na titularidade formal de um dos cônjuges – vd. neste sentido, Acórdão do TRE de 11 de outubro de 2012 no proc. 78/11-1-H inwww.dgsi.pt
Estamos no âmbito de um processo judicial de inventário que visa a partilha do património comum do casal, na sequência da cessação do seu casamento por divórcio, partilha que tem como pressuposto a correta determinação do seu património comum, pelo que para a boa decisão da causa importa saber quais os montantes das contas bancárias tituladas pelos ex-cônjuges, à data da cessação das relações patrimoniais do seu casamento, quando tais valores são suscetíveis de integrar o património comum do casal, com vista sua partilha judicial requerida.
As circunstâncias referidas e a situação avaliada em concreto, impõem a conclusão de que não obstante as informações pedidas ao Banco se encontrem abrangidas pelo segredo bancário, se assumem não só como importantes mas como necessárias para a defesa dos direitos e interesses legítimos de ambos os cônjuges no processo de inventário, pelo correto apuramento do património comum, com influência na sua determinação, a par da relevância para o interesse público numa boa administração da justiça, pelo que se têm como verificados os pressupostos legais que podem determinar a quebra do segredo bancário invocado.
Desta forma, consideram-se verificados os pressupostos legais que admitem a quebra do segredo bancário, por proporcional e adequado na ponderação dos vários interesses em presença, devendo ser levantado o sigilo bancário invocado pelo Banco, o que se determina, de modo a que possam ser prestados os elementos/informações solicitados pelo tribunal.
V. Decisão:
Em face do exposto, julga-se procedente o incidente suscitado, considerando-se justificado o levantamento do sigilo bancário invocado pelo Banco Santander, que se dispensa, devendo prestar ao tribunal as informações solicitadas, relativamente às contas bancárias tituladas individualmente ou em conjunto pelos interessados e o valor do seu saldo à ordem e em poupança a 11-09-2023.
Custas do incidente pela Requerente – art.º 527.º n.º 1 CPC.
Notifique.
*
Lisboa, 25 de setembro de 2025
Inês Moura
Rute Sobral
João Paulo Raposo