PLATAFORMA DIGITAL
PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE
ILISÃO DA PRESUNÇÃO
Sumário

1 – Existe obscuridade capaz de ferir a sentença de nulidade se a mesma se revela ininteligível.
2 – Não consubstancia falta de fundamentação a circunstância de a sentença não fazer uma análise objetiva e certeira dos factos.
3 – Apenas quando os seus fundamentos conduzam logicamente a conclusão oposta ou diferente da que se veio a obter se pode falar de oposição para efeitos de nulidade da sentença.
4 – A invocação de um certo argumento interpretativo para sustentar uma tese não está vedada ao juiz, não traduzindo uma decisão surpresa.
5 – Para que funcione a presunção de laboralidade ínsita no Art.º 12.º-A do CT é necessário que os autos revelem a materialidade enunciada nas diversas alíneas do n.º 1 deste dispositivo.
6 – A declaração de existência de contrato de trabalho envolvendo uma plataforma digital não dispensa, caso não seja aplicável qualquer presunção de laboralidade, o recurso ao método indiciário ou tipológico para aferir da subordinação jurídica.
7 – A subordinação jurídica continua a ser a principal característica diferenciadora do contrato que envolva prestação de atividade a terceiro.
8 – Da atual noção de contrato de trabalho decorre a inserção do prestador numa certa organização com subordinação a regras que exprimam a autoridade dessa organização.
9 – Reconhecendo-se, embora, algum nível de integração do prestador de atividade na organização do beneficiário, sem que os autos revelem o exercício de poderes de autoridade por este, não se pode concluir pela existência de um contrato de trabalho entre ambos.

Texto Integral

Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Lisboa:

UBER EATS PORTUGAL, UNIPESSOAL, LDA., Ré nos autos acima referenciados, em que é Autor o Ministério Público, notificada da sentença que julgou a ação procedente e, consequentemente, reconheceu a existência de uma relação de trabalho entre a Ré e o prestador de atividade visado, não se conformando com a sentença proferida, vem interpor Recurso de Apelação.
Pede que recurso seja julgado procedente e em consequência:
a) Anular-se a decisão do Tribunal a quo; e
Subsidiariamente;
b) Alterar-se a decisão sobre a matéria de facto nos termos indicados; e
c) Revogar-se a sentença recorrida, não sendo reconhecida a existência de qualquer contrato de trabalho entre a Recorrente e o prestador de atividade visado.
Após convite ao aperfeiçoamento, apresentou, sob o título conclusões:
1. A sentença recorrida julgou a ação procedente, reconhecendo, por consequência, a existência de contrato de trabalho entre a Recorrente e AA, com efeitos reportados a 27 de setembro de 2023.
2. A Recorrente não se conforma com a decisão por considerar que a mesma é nula, porque errou na apreciação da prova, porque julgou incorretamente factos alegados pelas partes, e porque violou e interpretou e aplicou incorretamente os artigos 11.º e 12.º-A do Código do Trabalho.
3. Analisada a sentença recorrida, conclui-se pela verificação das causas de nulidade da sentença previstas no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do CPC.
4. A sentença é nula por obscuridade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, pois a Recorrente não consegue descortinar com clareza os fundamentos e raciocínio logico-jurídico seguido pelo Tribunal a quo na sua decisão.
5. Foi a Ré colocada numa posição de incerteza quanto aos motivos exatos que sustentaram a decisão, o que compromete a sua capacidade de responder de forma eficaz e fundamentada, tornando imprescindível a sua anulação ou, no mínimo, o seu esclarecimento adequado.
6. A sentença é nula por falta de fundamentação, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, pois não faz uma análise objetiva e certeira dos factos que permitem ou não verificar os indícios do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, nem identifica de forma clara os factos que permitiram ao Tribunal a quo concluir pela existência de um contrato de trabalho.
7. A sentença não subsume de forma clara e estruturada os factos alegados provados pelo Recorrido aos indícios de laboralidade previstos na nova presunção, e também não fundamenta a decisão de verificar ou não os indícios perante os factos alegados e provados pela Recorrente para afastar esses mesmos indícios.
8. No final da sentença, o Tribunal a quo conclui que “(..) à luz do art. 342º do Cód. Civil, ficaram demonstrados factos que, devidamente conjugados no aturado exercício de hermenêutica diatópica exposto, caracterizam uma relação laboral”.
9. Sucede que, a “hermenêutica diatópica” exposta pelo Tribunal impede a Recorrente de compreender os fundamentos jurídicos que sustentaram a decisão do Tribunal quanto à existência de uma relação laboral. Esta dificuldade de interpretação resultante da complexidade e da diversidade dos referenciais normativos envolvidos, incluído o recurso a normas que foram revogadas, limita a plena assimilação dos argumentos jurídicos apresentados, tornando impossível tanto a sua contestação quanto a sua aceitação fundamentada.
10. A sentença é nula por oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, na medida em que, no caso sub judice, se verifica que, os poucos fundamentos que conseguimos descortinar, estão “est[ão] em oposição com a decisão (…)”.
11. Qualquer observador razoável, analisando os factos considerados provados na sentença, concluiria, de forma natural e lógica, pela inexistência de um vínculo laboral, no entanto, em manifesta desconexão com essa realidade fática, o Tribunal, guiado por um raciocínio excessivamente abstrato e desligado da realidade concreta dos factos provados nos autos, forçou uma qualificação jurídica incompatível com os elementos factuais provados, reconhecendo a existência de um contrato de trabalho sem um suporte objetivo sólido.
12. A sentença é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, uma vez que se trata de uma decisão surpresa que viola o artigo 3.º, n.º 3 do CPC.
13. O Tribunal a quo entendeu que uma das características essenciais para decidir sobre a existência de um contrato de trabalho é a continuidade da prestação por período superior a 90 dias, interpretado no sentido de “se ficasse demonstrado que um estafeta estava sistematicamente conectado à aplicação apenas alguns minutos ou escassas horas por dia e/ou por semana, a consequência seria a de que não preencheria este pressuposto da prestação ininterrupta por um período não inferior a 90 dias”.
14. Neste caso estamos perante um facto e uma questão de direito suscetíveis de integrar a base da decisão e que as partes não representaram como possível, pelo que era dever do Tribunal ter chamado as partes a exercer o contraditório sobre esta matéria antes de tomar uma decisão. Além disso, este entendimento do douto Tribunal não tem base legal, nem doutrinal, nem jurisprudencial. É um critério novo e construído pela Meritíssima Juiz a quo.
15. Assim, não é razoável esperar que a parte, neste caso a Recorrente, pudesse prever este critério e os factos que a ele foram subsumidos de modo a poder exercer cabalmente o seu direito ao contraditório nesta matéria até ter sido confrontada com a decisão. Trata-se, assim, de uma decisão surpresa, que gera a nulidade da decisão por excesso de pronuncia.
16. Caso assim não se entenda, sempre cumprirá referir que, a sentença recorrida não fez um correto uso dos poderes conferidos ao juiz no âmbito da decisão da matéria de facto, previstos no artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC. Nomeadamente, entende-se que a sentença recorrida, na parte relativa à matéria de facto provada, considerou como provada matéria sobre a qual não foi produzida prova, tal como se irá mais adiante elaborar.
17. Para além disso, entende ainda a Recorrente que a sentença recorrida incorre em erro de julgamento de facto, na medida que o Tribunal a quo pura e simplesmente ignorou muitos dos factos alegados na contestação apresentada pela Recorrente para ilidir a presunção e absteve-se de os avaliar face à prova produzida.
18. O douto Tribunal a quo deu como provados factos não alegados por qualquer das partes, utilizando os mesmos para fundamentar a sentença, sendo que não foi observado o regime previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 72.º do CPT, para que tal facto pudesse ter sido considerado pelo Tribunal recorrido.
19. Diga-se, para começar, e em termos gerais, que para a fundamentação da sentença recorrida foram essencialmente tomados em consideração o depoimento das testemunhas, tendo o Tribunal a quo atribuído particular valor às declarações do senhor AA.
20. No entanto, não pode a Recorrente deixar de notar que aquela testemunha, cujo depoimento foi mediado por um intérprete, nem sempre compreendeu as perguntas que lhe foram colocadas e o seu discurso apresentou-se demasiado lacónico, pouco claro e pouco fundado, demonstrando evidentes dificuldades evidentes na comunicação.
21. Para além disso, e com decisiva importância, o contributo prestado pelo Sr. BB, além de se ter demonstrado seguro e espontâneo, foi convergente com a prova documental carreada para os autos. De acordo com as regras da experiência é evidente que, por inerência das funções que desempenha, tem um conhecimento profundo sobre todos os recursos da empresa, o que in casu inclui a aplicação Uber Eats.
22. Contudo, por a testemunha não exercer funções ao nível da programação, o Tribunal a quo não teve em conta o seu depoimento no sentido da ausência de impacto do feedback na alocação de ofertas de entregas e tomada de qualquer medida quanto a estes (último ponto dos factos não provados), o que a Recorrente não aceita de forma alguma, como se irá demonstrar de seguida.
23. O Ponto 12, o Ponto 86, o Ponto 112, o Ponto 118 dos Factos Provados deverá ser dado como não provado, na medida em que o Recorrido não o provou, nem por documentos, nem por prova testemunhal. Foi inclusivamente apresentada prova em sentido contrário (ficheiro áudio da sessão de julgamento de dia 10.05.2024, disponível no Citius, com início às 11:04 e fim às 13:28).
24. O Ponto 23 dos Factos Provados deve passar a ter o seguinte teor: “AA não negociava os preços ou condições nem com os titulares dos estabelecimentos que preparam as refeições/produtos a entregar nem com os clientes finais.”, pois a parte que se refere à existência ou não de uma organização empresarial própria é um juízo conclusivo que não deve ser carreado para o acervo factual a considerar para efeitos de decisão.
25. O Ponto 26 deve passar a ter o seguinte teor: “Quando o estafeta tem a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação UBER EATS, permite a sua localização na aplicação, informação essa que permanece visível para a Ré e para os clientes.”, pois a parte que se refere ao controlo e interação com estafeta durante o percurso, não ficou provado pelo Recorrido.
26. O Ponto 27 dos Factos Provados deve passar a ter o seguinte teor: “Se os estafetas não tiverem o GPS ligado, a aplicação não funciona, uma vez que é o GPS que permite à plataforma apresentar-lhes propostas de entregas tendo em consideração a sua localização e a proximidade com o ponto de recolha, sendo que se a aplicação não detetar a localização na zona da última entrega, não apresenta novo pedido.”, porquanto não foi alegado nem provado que o cliente tinha que sinalizar na aplicação que a entrega foi concluída.
27. Os Pontos 15, 55 e 98 dos Factos Provados são contraditórios entre si. O Ponto 15, por ser contrário ao Ponto 55 dos Factos Provados, e o Ponto 98, por não ter sido sequer alegado pelas partes, devem ser desconsiderados por este Superior Tribunal como Factos Não Provados.
28. O Ponto 87 dos Factos Provados deverá passar a ter a seguinte redação: “A Ré permite que os parceiros de entregas possam nomear um substituto para prestar serviços de entrega em seu nome, desde que reúnam os mesmos requisitos.”, uma vez que não ficou provado que anteriormente a Recorrente não permita a substituição dos prestadores de serviços, logo deverá ser removida a referência a “passou a permitir” do referido ponto.
29. Os Pontos 109, 110, 111, 124, 128, 129 e 131 devem ser removidos dos Factos Provados pois não foram alegados pelas partes, nem foram objeto de despacho de ampliação dos temas da prova. Deste modo, não foram sujeitos a contraditório.
Além disso, não foram provados, nem pelos depoimentos das testemunhas, nem pelos documentos juntos aos autos.
30. Os factos constantes dos artigos 167.º, 168.º, 194.º, 312.º e 326.º da contestação, devem ser aditados à matéria de facto dada como provada, pois, foram provados pela prova produzida em sede de audiência de julgamento e carretada para os autos.
31. O Ponto 1 deve ser removido dos Factos Não Provados porque o facto invocado pela Recorrido é “A Ré estabelece limites máximos e mínimos para o pagamento do estafeta” e o mesmo não foi provado. Não é o facto negativo que resulta da impugnação da Recorrente que deverá ser dado como não provado, mas sim o facto positivo invocado e não provado pelo Recorrido.
32. Ainda que assim não se entende, foi feita prova em sede de audiência que nos permite dizer que os prestadores de atividade podem alterar livremente o seu valor mínimo quilometro, pelo que o facto deve dar como provado o Facto 1 dos Factos não Provados.
33. O Ponto 2 dos Factos Não Provados deve o ser dado como provado e transferido do acervo factual não provado para os Factos Provados.
34. A Recorrente entende que com base na factualidade provada não se pode
considerar verificada qualquer presunção de contrato de trabalho. Ainda que
assim não se entenda, a Recorrente ilidiu qualquer presunção, na medida em que foram provadas características que evidenciam ausência de subordinação jurídica, à luz do conceito de contrato de trabalho previsto no artigo 11.º do Código do Trabalho em vigor.
35. A sentença faz uma errada interpretação e aplicação do artigo 12.º-A, n.º 1 do Código do Trabalho, quando, atenta a matéria de facto provada, considera verificadas as alíneas a), b), c), d), e) e f) do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.
36. A sentença viola o artigo 11.º do Código do Trabalho quando reconhece a existência de um contrato de trabalho quando in casu ficou provada a ausência de subordinação jurídica, ao ponto do Tribunal a quo se socorrer de um critério de “supremacia jurídica” para qualificar a relação entre o prestador de atividade e a Recorrente como sendo uma relação de trabalho subordinado.
37. A sentença viola os artigos 11.º e 12.º-A, n.º 1 e 2, do Código do Trabalho na medida em que, ao arrepio da definição legal de contrato de trabalho e dos artigos que estabelecem presunções de laboralidade, cria novos critérios para qualificar a relação como de trabalho – nomeadamente, a tal “supremacia jurídica” e a prestação de atividade por mais de 90 dias.
38. À semelhança do que acontece com a presunção do artigo 12.º do CT, para que esteja preenchida a presunção de laboralidade, têm de estar reunidas, pelo menos, duas das características enunciadas naquele preceito – “algumas”.
39. Aquele que invoca a existência de um contrato de trabalho, neste caso o Recorrente, deverá provar (artigo 342.º do Código Civil), no mínimo, dois dos elementos referidos no n.º 1 do artigo 12.º-A do CT, para que beneficie da presunção de existência de contrato de trabalho.
40. Uma vez que esta presunção se trata de uma presunção relativa, a mesma é ilidível (artigo 350.º, n.º 2 do Código Civil), pelo que pode a parte contrária demonstrar que, não obstante a verificação dos elementos apurados, existem factos e contraindícios indicadores de autonomia que permitam afastar aquela presunção, o que inclui também a demonstração de circunstâncias que desvalorizem, total ou parcialmente, o valor probatório dos indícios de subordinação.
41. Os factos base, indiciários ou probatórios podem ser afastados pela realização de contraprova. Se for feita contraprova com êxito, o juiz não pode aceitar a afirmação do facto-base e, em consonância, a presunção como atividade intelectual do julgador não chega a produzir-se. Na dúvida o juiz deve considerar o indício não verificado.
42. No caso concreto, não é possível concluir pela verificação de qualquer uma das características da presunção. Mas sem prejuízo, e sempre sem conceder, adiante-se, desde já, que a Recorrente ilidiu qualquer presunção que se pudesse verificar.
43. Apesar de parecer este também o entendimento do Tribunal a quo, este, por várias vezes referiu, ao longo da sentença, que se encontram verificados os indícios do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, o que sustenta a nulidade da sentença já arguida pela Recorrente. Assim, e por mero dever de patrocínio, iremos demonstrar porque é que as características previstas nas alíneas a), b), c), d), e) e f) desse artigo não se verificam in casu.
44. A alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho não está preenchida, porquanto a plataforma digital não fixa a retribuição do presador de atividade ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela.
45. Entendeu o douto Tribunal a quo que a Recorrente estabelece os limites máximos e mínimos da retribuição do Sr. AA. No entanto, não entende a Recorrente como é que o ponto 131 dos Factos Provados permite verificar este indício.
46. Em todo o caso, a verdade é que a Recorrente provou uma série de contraindícios, a saber: Ponto 38 dos Factos Provados; Ponto 39 dos Factos Provados; Ponto 40 a 42 dos Factos Provados; Ponto 43 dos Factos Provados; Ponto 44 dos Factos Provados; Ponto 46 dos Factos Provados; Ponto 47 dos Factos Provados; Ponto 48 dos Factos Provados; Ponto 49 dos Factos Provados.
47. Mais se refira que, conforme decorre da impugnação da matéria de facto provada, não ficou de forma alguma provado que a Recorrente estabelece os valores mínimos ou máximos para o pagamento ao estafeta.
48. Para se verificar a alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho é necessário que a plataforma digital fixe a retribuição do prestador de atividade, e, caso tal não aconteça, que esta estabeleça os limites máximos e mínimos da referida retribuição.
49. A interpretação corretiva apenas pode ser utilizada quando se verifica que o texto legal contém um lapso de formulação ou de sentido da letra no confronto com o seu espírito, ou seja, que não corresponde ao pensamento e ao fim da norma.
50. Dos Factos Provados 38 a 49 decorre que o prestador de atividade é exclusivamente remunerado em função do resultado da sua atividade, sendo a quantia recebida variável por cada entrega, não dependendo da disponibilidade do prestador de atividade (i.e., o tempo que estão ligados à aplicação), nem do tempo que demoram a concluir a entrega, o que impede a qualificação desta remuneração com retribuição nos termos legalmente definidos no artigo 158.º do CT
51. Por outro lado, o valor estipulado para cada oferta de entrega pode ser ou não aceite pelo prestador de atividade (Facto Provado 24 e 35), ou seja, a remuneração não é fixada pela plataforma.
52. Por outro lado, os prestadores podem livremente definir a sua taxa mínima por quilómetro, ou seja, são os próprios prestadores de atividade que têm a faculdade de definir o preço mínimo a partir do qual aceitam prestar a sua atividade.
53. Dito isto, não pode restar qualquer dúvida de que a Recorrida não fixa a
“retribuição”; esse valor só é fixado quando o prestador de atividade, com total liberdade, aceita a proposta de entrega que lhe é dirigida.
54. Ainda que se admita, por mera hipótese, que o preço se encontra previamente fixado – o que se não concede –, impõe-se concluir que são os próprios estafetas que determinam o montante que, em última instância, irão auferir, em função do número de entregas que, de forma inteiramente livre, optem por realizar e do respetivo valor.
55. Nessa medida, não só a presunção da alínea não se verifica, como também se verifica a situação inversa, ou seja, nada está previamente estabelecido.
56. Acresce que o elemento copulativo “e”, inserido pelo legislador na alínea a), reconduz-nos à convicção de que pretendeu que tal pressuposto se baseasse na inflexibilidade da componente retribuição, ou seja, que esta fosse fixada com a intervenção exclusiva da plataforma, pelo menos em termos de moldura de retribuição, e não numa flexibilidade mitigada, em que o estafeta tem o poder de impor limites mínimos, como sucede nas relações em apreço.
57. Reitere-se que em linha com os pontos 24 e 35 dos Factos Provados, o prestador de atividade tem sempre a possibilidade de recusar as propostas que lhe são apresentadas, o que não seria possível se o mesmo não tivesse qualquer palavra a dizer relativamente ao preço que é proposto.
58. Tal possibilidade não pode deixar de ser vista como uma forma de negociação, na medida em que, com essa recusa, o prestador da atividade não está a aceitar o preço proposto e, assim, está a sinalizar que só faz a entrega por um preço mais elevado, por não concordar com o preço originalmente proposto.
59. A alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho não está preenchida, porquanto a Recorrente não exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade.
60. Mais uma vez, com bastante dificuldade, entendeu a Recorrente que o Tribunal a quo considerou que verificado o indício de laboralidade estabelecido na alínea b), do número 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho – cfr. págs. 118 e 128 da sentença.
61. Sucede que os pouco factos que a Recorrente conseguiu encontrar como
subsumíveis a esta alínea, na verdade, não foram alegados e provados pelo
Recorrido, que era a quem cabia a prova dos mesmos.
62. Deste modo, nenhum destes factos poderá ser subsumido ao referido indício de laboralidade, sem necessidade de mais considerações.
63. Outro dos argumentos utilizados pelo Tribunal a quo para considerar o indício verificado é o facto de o contrato (os Termos e Condições juntos aos autos) não ter sido negociado, nem prever margem de negociação, e conter cláusulas que conferem amplos poderes à Recorrente.
64. Sucede que qualquer utilizador de uma plataforma digital, seja ela qual for, adere a termos e condições. Não foi alegado, nem tão-pouco provado que os termos e condições contêm cláusulas abusivas, não sejam claros, ou compreensíveis pelos seus destinatários, ou que violem quaisquer normas legais, designadamente e com particular importância neste caso o Regime das Cláusulas Contratuais Gerais do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro. O prestador de atividade não estava equivocado ou foi induzido em erro pela Recorrente quando fez o seu registo na plataforma, tomando conhecimento dos seus direitos e obrigações por utilizar a plataforma Uber Eats.
65. A existência de termos e condições que regulam a relação entre as partes, por si só, não indicia qualquer tipo de poder de direção sobre o prestador de atividade.
66. Quanto às cláusulas apontadas pelo Tribunal a quo, a Recorrente não consegue descortinar como é que estas duas cláusulas (15 e 20) permitem concluir que a Recorrente exerce poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade, conforme estabelecido na alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.
67. Não constam dos Factos Provados, nem dos argumentos aduzidos pelo Tribunal a quo, matéria factual que permita preencher o artigo 12.º-A, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho.
68. Fica demonstrado que a Recorrente não determina, direta ou indiretamente, quaisquer regras específicas quanto à forma como a atividade deve ser prestada, nem intervém a cada momento na execução daquela, dando indicações sobre quais os serviços a realizar e o momentos em que os mesmos devem ser realizados (porque existe sempre liberdade total para se aceitar ou recusar as ofertas de entrega e para se ligar e desligar da plataforma), gozando estes da mais ampla autonomia na organização da sua atividade, mormente quando decidem quando, por quanto tempo, porque valor, como, e onde prestam a sua atividade, sem ingerência da Recorrida.
69. Sendo o exercício do poder de direção meramente potencial ou aparente não é possível identificar uma situação de subordinação70. Em todo o caso, com relevância para este ponto ficou provado: Ponto 20 dos Factos Provados; Ponto 24 dos Factos Provados; Ponto 35 dos Factos Provados; Ponto 53 dos Factos Provados; Ponto 56 dos Factos Provados; Ponto 57 dos Factos Provados; Ponto 58 dos Factos Provados; Ponto 70 dos Factos Provados; Ponto 71 dos Factos Provados; Ponto 73 dos Factos Provados; Ponto 74 dos Factos Provados.
71. Ficou provado que o prestador atua com total autonomia, podendo definir o seu horário, ligar-se ou desligar-se da plataforma quando quiser, e aceitar ou recusar entregas livremente, inclusive de determinados clientes e/ou comerciantes sem ter de dar qualquer justificação à Recorrente. Ou seja, não está de modo nenhum sujeito ao poder de direção da Recorrente, nem sequer indiretamente.
72. O Tribunal a quo baseou-se em pressupostos genéricos, não provados nem discutidos em audiência, para desvalorizar a autonomia do prestador, nomeadamente quanto à disponibilidade de mão-de-obra disponível para fazer entregas e que os estafetas vão aceitar inevitavelmente todas as ofertas que recebem. Nada disto é verdade e nada disto está provado, antes pelo contrário.
73. Por tudo o que foi dito, não se alcança como é que os factos indicados na sentença quando interpretados no conjunto de todos os outros provados nos autos, se coadunam com a ideia de poder de direção, de determinação de regras específicas, nomeadamente quanto à prestação da atividade.
74. A alínea c) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho não está preenchida, porquanto a Recorrente não controla e supervisiona a prestação da atividade ou verifica a qualidade da atividade prestada. Parte substancial dos factos apontados pelo Tribunal (incluindo os pontos 131, 34, 110 e 118) para fundamentar a verificação deste indício não foram provados ou são irrelevantes, e mesmo que tivessem sido, não demonstram de forma alguma a existência de controlo e supervisão da prestação da atividade ou verifica a qualidade da atividade prestada75. Merece especial censura, o erro na avaliação e organização dos factos acima indicados, porquanto o Tribunal a quo utiliza os factos, que foram incorretamente dados como provados, para retirar daí conclusões influenciam a decisão da causa.
76. Não ficou, assim, provado o poder de direção e/ou controlo, razão pela qual se terá de concluir pela não verificação destas características, pois a factualidade relevante para este efeito não pode consistir em afirmações genéricas e conclusivas, mas na prova e factos concretos.
77. A alínea d) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho não está preenchida, porquanto a Recorrente não restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente no que respeita à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma.
78. Para que este indício se considerasse verificado, era necessário que o Recorrido tivesse provado que a Recorrente restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho.
79. A norma, sem prejuízo das críticas que são feitas por vários autores, determina que existe restrição aos direitos acima referidos quando do seu exercício possa ser aplicada uma sanção.
80. O ónus da prova da existência destas restrições recai sobre o Recorrido, que não fez prova de qualquer uma delas.
81. A Recorrida, por sua vez, fez prova de todas estes contraindícios, vejam-se os factos provados 35, 20, 56, 75, 76, 78 a 80 e 84.
82. Perante isto, não existem dúvidas que os fatores que, de acordo com lei, indiciam a existência de restrições à forma de organização do prestador de atividade não estão verificados, pelo que a característica prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho não se encontra verificada.
83. A análise deve basear-se em elementos objetivos e verificáveis, que reflitam a forma como a atividade é exercida, considerando a autonomia (ou ausência dela) do prestador de atividade e a ausência ou verificação de controlo típico de uma relação laboral.
84. Não se vislumbra, assim, como é que o Tribunal a quo entende que a Recorrente restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho e, por isso, imperioso se torna concluir que também não se verifica esta característica.
85. A alínea e) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho não está preenchida porquanto a Recorrente não exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta.
86. O doutro Tribunal a quo não fez subsumir qualquer facto a esta alínea, pelo que sempre se deverá considerar não verificada esta característica do n.º 1 do artigo 12.º- A do Código do Trabalho.
87. Assim, a alínea e), apenas se considera verificada se for provada a existência de poder disciplinar e regulamentar, não bastando para o efeito existir a possibilidade de excluir o prestador de futuras atividades na plataforma através da desativação da conta. O poder de exclusão da plataforma poderá indiciar a existência de poder disciplinar, mas não prova a sua existência. Nem tão-pouco prova a existência de poder regulamentar.
88. Não se encontra um único facto que evidencie que a Recorrente, de algum modo, exerce ou exerceu algum tipo de poder disciplinar ou regulamentar sobre o prestador de atividade, no sentido de ter a possibilidade de sancionar um comportamento do mesmo que não respeitasse as suas obrigações/deveres ou os padrões de comportamento que eventualmente fossem determinados pela mesma.
89. A alínea f) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho não está preenchida porquanto os instrumentos de trabalho não pertencem à Recorrente nem são por esta explorados através de contrato de locação.
90. A letra da lei estabelece que para a alínea f) estar verificada será necessário que o instrumento de trabalho em causa seja da propriedade da Recorrente o que, o próprio Tribunal a quo, reconhece não ter sido provado.
91. Ademais, entender que uma aplicação informática (um software) é um instrumento de trabalho é entrar num raciocínio tautológico ou metalinguístico, absorvendo-se a própria plataforma digital no conceito de equipamento ou utensílio de trabalho.
92. A intenção do legislador foi evitar o encobrimento de relações laborais através da mera cedência de bens corpóreos, o que não se verifica no caso dos presentes autos.
93. Interpretação contrária, para além de absolutamente ilógica, terá o seguinte resultado prático: a alínea f) do artigo 12.º-A do Código do Trabalho estará sempre automaticamente verificada, sem necessidade de quaisquer indagações por parte do Tribunal. Neste sentido, pronunciou-se o Acórdão da Relação de Évora no processo n.º 3848/23.4T8PTM.E1., de 12 de setembro de 2024.
94. O legislador distingue claramente entre plataforma digital e instrumento de trabalho. Assim, sendo a Recorrente o sujeito contratual da relação com o prestador, não pode ser, ao mesmo tempo, considerada um mero equipamento ou instrumento de trabalho.
95. Atenta o exposto, nenhuma das características de contrato de trabalho enunciadas no artigo 12.º-A do Código do Trabalho se encontra verificada, pelo que não se pode presumir a existência de contrato de trabalho entre a Recorrente e o prestador de atividade visado no presente recurso.
96. Tanto quanto a Recorrente conseguiu entender da sentença, o douto Tribunal a quo, não analisou expressamente os factos provados pela Recorrente que permitem ilidir a presunção por ter considerado que a mesma não operou.
97. Ainda que se considerasse aplicável a presunção de contrato de trabalho, a Recorrente logrou ilidi-la, demonstrando de forma inequívoca a autonomia do prestador, inexistindo subordinação jurídica ou vínculo laboral.
98. O que se afirma resulta expressa e claramente da análise dos seguintes factos:
• liberdade na adesão e execução: O registo na plataforma não obriga o prestador a realizar entregas, a manter-se ligado, nem a aceitar pedidos. Pode
ainda definir um valor mínimo por quilómetro abaixo do qual não aceita entregas (Factos Provados 20, 24, 35, 38-44, 46-47, 56, 58, 73, 81).
• autonomia na gestão da atividade: O prestador define livremente o seu horário e local de trabalho, sem qualquer imposição da Recorrente quanto à
permanência numa zona ou à aceitação de tarefas (Factos Provados 35, 84, 85). Pode prestar serviços a outras plataformas ou exercer outras atividades
remuneradas, inclusive em simultâneo com a atividade desenvolvida para a
Recorrente (Factos Provados 77-80, 102-104).
• liberdade operacional: O prestador pode escolher as rotas e os sistemas de
navegação que pretende utilizar ou não utilizar nenhum, demonstrando a inexistência de controlo por parte da Recorrente (Factos Provados 25, 65, 67,
69, 133).
• substituição e reatribuição: Existe a possibilidade de designar terceiros para
substituir ou reatribuir o serviço a outro estafeta, evidenciando que o vínculo
não é pessoal (não é intuitu personae), mas centrado no resultado (Factos Provados 75, 76, 87).
• ausência de subordinação: O prestador pode recusar qualquer serviço ou
cliente sem consequências, o que é incompatível com uma relação de trabalho subordinado (Factos Provados 24, 35).
• remuneração por tarefa: A remuneração é variável, por entrega realizada, e
não fixa ou baseada no tempo despendido (Factos Provados 21, 40-42, 85).
• autonomia de imagem e meios: O prestador decide como se apresenta (roupa, equipamento, veículo), podendo inclusive utilizar marcas de concorrentes. Todos os meios utilizados pertencem ao próprio, não à Recorrente (Facto Provado 11, 74).
• autogestão plena: Pode ligar e desligar-se da aplicação livremente, trabalhar
simultaneamente para outras plataformas, escolher entre propostas de diferentes operadores e usar o percurso e veículo da sua preferência (Factos
Provados 20, 69-71, 76-80, 103, 133).
• propriedade dos meios de trabalho: Todos os instrumentos utilizados na prestação da atividade pertencem ao prestador, podendo inclusive conter elementos distintivos de plataformas concorrentes (Factos Provados 11, 74)
99. Este conjunto de elementos apontam no sentido da efetiva autonomia do prestador de atividade e da inexistência de uma relação com carácter de subordinação jurídica, pelo que, nos termos do artigo 12.º-A, n.º 4, do Código do Trabalho e artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil, resulta ilidida qualquer presunção de laboralidade que eventualmente se verificasse.
100. Em particular, importa realçar que a ausência de exclusividade – nomeadamente o facto de a Recorrente permitir o “multiapping” – é um fator determinante do trabalho autónomo, que tem sido recorrentemente identificado não só pelos tribunais nacionais, mas também pelo Tribunal de Justiça da UE.
101. Ao registar-se na plataforma, o prestador não assume qualquer obrigação de prestar atividade em nome da Recorrente, podendo utilizar a plataforma livremente, sem estar vinculado a fazê-lo.
102. Caso não aceite nenhuma oferta de entrega apresentada na plataforma, o prestador de atividade não está a infringir nenhum dos termos e condições aplicáveis, nem a Recorrente exigirá que o prestador o faça ou tomará quaisquer medidas contra os mesmos.
103. Não se pode afirmar que o prestador integra a organização produtiva da
Recorrente, pois esta não tem controlo nem previsão sobre a disponibilidade dos prestadores ou a aceitação das ofertas. Sem previsibilidade, não há verdadeira organização.
104. Ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, não está provado que a Recorrente saiba quantos prestadores estão ativos, quanto tempo permanecem conectados ou se aceitarão as propostas — trata-se de meras suposições que nem a plataforma nem os seus algoritmos conseguem prever.
105. A douta decisão do Tribunal a quo peca por obscuridade quanto ao funcionamento da presunção e quanto ao método utilizado para decidir sobre a existência de um contrato de trabalho.
106. O Tribunal a quo recorreu ainda ao método indiciário, não ao tradicional, porque de tradicional não tem nada, mas um método indiciário próprio, para, com o devido respeito, forçar o reconhecimento do contrato de trabalho entre o prestador e a Recorrente.
107. A Recorrente logra ainda demonstrar porque não foram provados factos que permitem concluir pela existência de subordinação jurídica à luz do conceito de contrato de trabalho previsto no artigo 11.º do CT atualmente em vigor.
108. O ónus da prova dos indícios da presunção e da existência de um contrato de trabalho cabe ao Autor (neste caso, o Ministério Público/Recorrido), não ao Tribunal.
109. A qualificação de vínculo não pode deixar de perder de vista o conceito de contrato de trabalho. O contrato de trabalho, acentua-se a obrigação de disponibilidade do trabalhador, que se compromete a uma prestação contínua de atividade.
110. O que permite concluir que se o prestador de atividade não está, nem se
comprometeu a estar disponível para prestar a sua atividade, muito menos de
forma contínua, não pode existir contrato de trabalho. A mera possibilidade não é uma obrigação.
111. A relação entre o prestador e a Recorrente não preenche os elementos essenciais do contrato de trabalho, pois falta o compromisso na prestação, o que impede que a atividade seja qualificada como laboral.
112. Nos termos da legislação aplicável, o contrato de trabalho pressupõe subordinação e inserção na organização do empregador (artigo 11.º do CT e artigo 1152.º do CC), ao passo que o contrato de prestação de serviços visa a obtenção de um resultado, com ou sem retribuição (artigo 1154.º do CC).
113. Resulta, assim, que o que distingue o contrato de trabalho do contrato de prestação de serviços é o seu objeto e a subordinação jurídica.
114. Discordamos em absoluto com o entendimento do douto Tribunal a quo da interpretação alegadamente atualista que faz do conceito de contrato de trabalho e de subordinação jurídica, segundo a qual pode existir subordinação jurídica sem poder de direção.
115. Para demonstrar subordinação jurídica sem poder de direção, o Tribunal a quo baseia-se em argumentos como a alegada supremacia jurídica da Recorrente, a inserção do prestador na sua organização, a rutura com o mercado e a atividade ininterrupta por mais de 90 dias.
116. A Recorrente rejeita a ideia de que os 90 dias de atividade ininterrupta sejam essenciais para caracterizar uma relação laboral, pois tal entendimento conduz a resultados absurdos e pode incentivar a fraude. A eliminação desse critério em 2009 demonstra que o legislador optou por valorizar os critérios qualitativos da prestação, que também têm sido seguidos pela jurisprudência.
117. Ou seja, a supremacia jurídica está íntima e necessariamente ligada à posição de superioridade do credor da prestação na execução do contrato que se traduz no poder de emitir ordens, regras, orientações, isto é, no poder de direção, ou de autoridade, se assim se preferir, do empregador.
118. O facto de o prestador ter aceite os termos da plataforma sem possibilidade de negociação não prova, por si só, a existência de subordinação jurídica.
119. Embora existam cláusulas que permitem à Recorrente limitar o acesso à aplicação, o prestador também pode desvincular-se livremente do contrato, sem necessidade de justificação ou aviso prévio.
120. O argumento da rutura com o mercado parece consubstanciar-se no facto de o prestador de atividade não poder escolher os seus clientes ou estes escolhê-lo a si e na alegada celeridade imposta na execução da prestação e dependência económica.
No entanto, este argumento não se coaduna com os factos provados, já que,
conforme o Facto 24, o prestador pode recusar ofertas e bloquear clientes e
estabelecimentos, bem como prestar atividade a plataformas concorrentes, escolhendo livremente para quem presta a atividade.
121. A celeridade imposta pelo próprio setor de atividade de entregas rápidas (que é disso que se tratar) não pode servir como indício de subordinação, pois não ficou sequer provado que a Recorrente impusesse celeridade na execução da prestação.
122. No que diz respeito à dependência económica, não cremos que possa funcionar como critério para aferir a existência de subordinação jurídica pelos motivos que se passam a expor.
123. A própria lei admite o trabalho autónomo, sem subordinação jurídica, economicamente dependente e concedeu-lhe um regime próprio que não é o regime do contrato de trabalho – artigo 10.º e seguintes do Código do Trabalho.
124. Quanto à alegada inserção na organização, entende-se que ela não existe, já que o prestador é totalmente livre para gerir o seu tempo e decidir quando presta a atividade, tornando impossível à Recorrente organizar algo que não pode prever.
125. No entanto, caso se entenda que existe uma inserção na organização em virtude da natureza da atividade que está em causa – trabalho em plataforma, sempre cumprirá dizer o seguinte.
126. Afirmar que a inserção na organização da plataforma basta para provar a existência de contrato de trabalho esvazia a utilidade da presunção.
127. A Recorrente não desconhece a existência de uma corrente doutrinária e jurisprudencial, exaustivamente citada na sentença. No entanto essa organização é inerente ao funcionamento de toda e qualquer plataforma e se esse fosse o critério a determinar a existência de contrato de trabalho, seria inútil sequer criar uma presunção.
128. Não se pode, assim, concluir que a Recorrida disponha de uma coordenação espácio-temporal da prestação de serviços de entrega.
129. Em face dos factos provados, não se pode qualificar a relação como um contrato de trabalho, pois a atividade desenvolvida apresenta características incompatíveis com uma relação laboral nos termos da lei.
130. Nestes termos, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue a ação principal e respetivos apensos totalmente improcedentes, não reconhecendo qualquer contrato de trabalho entre a Recorrente e o Sr. AA.
O MINISTÉRIO PÚBLICO contra-alegou concluindo que a sentença não padece de qualquer vício e que o Tribunal “a quo” fez uma interpretação correta dos elementos probatórios, verificando-se ainda objetivamente preenchidos pelo menos dois dos indícios/ características previstas nas alíneas do nº 1 do art.º 12º-A do Código do Trabalho, sendo que a Ré não logrou ilidir a presunção prevista no n.º 4 do mesmo preceito legal.
*
Apresentamos, seguidamente, um breve resumo dos autos para cabal compreensão:
O Ministério Público veio instaurar ação declarativa de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, com processo especial, contra: UBER EATS, UNIPESSOAL, LDA., peticionando que fosse declarada a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre UBER EATS, UNIPESSOAL, LDA e AA com início reportado a 27 de Setembro de 2023.
Alegou para o efeito e em síntese que a atividade levada a cabo pelo estafeta AA através da plataforma UBER EATS reveste várias das características previstas no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, o que implica que se presuma a existência de um contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital.
Contestou a R. alegando que o Ministério Público não logra provar o preenchimento de, pelo menos, dois dos indícios previstos no artigo 12.º-A do Código do Trabalho e ainda que se venha a considerar que o faz, a presunção deve considerar-se ilidida.
Conclui que (i) se deverá absolver a Ré da instância, por procedência da exceção dilatória atípica derivada da anulabilidade da participação efetuada pela ACT aos Serviços do Ministério Público; (ii) subsidiariamente, se deverá julgar o pedido do Autor improcedente, por não provado; e (iii) subsidiariamente, se deverá julgar o pedido do Autor improcedente, por ilisão da presunção de existência de contrato de trabalho prevista no artigo 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho.
No despacho saneador conheceu-se da exceção, julgando-a improcedente.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento, após o que, para os efeitos do disposto nos artigos 72º, nºs 1 e 2, e 74º, ambos do Código de Processo do Trabalho, o tribunal comunicou que, da prova produzida em audiência, são suscetíveis de ter resultado ainda, entre outros oportunamente alegados, um conjunto de factos que elencou, dando oportunidade às partes para se pronunciarem.
O Ministério Público veio informar que não pretende oferecer prova suplementar, nem complementar as alegações já efetuadas.
A R. apresentou pronunciou-se quanto à ampliação dos temas da prova e um complemento às suas alegações finais.
Foi, então, proferida sentença que julgando totalmente procedente a ação, decide:
.Declarar a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre a Ré, Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda., e o interveniente, AA, desde 27.09.23.
***
As conclusões delimitam o objeto do recurso, o que decorre do que vem disposto nos Art.º 608º/2 e 635º/4 do CPC. Apenas se exceciona desta regra a apreciação das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Nestes termos, considerando a natureza jurídica da matéria visada, são as seguintes as questões a decidir, extraídas das conclusões:
1ª – A sentença é nula?
2ª – O Tribunal errou no julgamento da matéria de facto?
3ª – Não se pode considerar verificada qualquer presunção de contrato de trabalho?
4ª – Ainda que assim não se entenda, a presunção foi ilidida?
5ª – Não há contrato de trabalho?
***
FUNDAMENTAÇÃO:
Argui a Apelante a nulidade da sentença assente em diversas variantes, a saber, obscuridade, falta de fundamentação, oposição entre os fundamentos e a decisão e excesso de pronúncia.
Analisemos, então, cada uma delas!
Diz a Apelante que a sentença é nula por obscuridade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, pois não consegue descortinar com clareza os fundamentos e raciocínio logico-jurídico seguido pelo Tribunal a quo na sua decisão. Foi a Ré colocada numa posição de incerteza quanto aos motivos exatos que sustentaram a decisão, o que compromete a sua capacidade de responder de forma eficaz e fundamentada, tornando imprescindível a sua anulação ou, no mínimo, o seu esclarecimento adequado.
Defende que ao longo de um denso e pouco estruturado texto, o Tribunal a quo ao invés de simplesmente proceder a um exercício simples de subsunção dos factos às alíneas do artigo 12.º-A, n.º 1, perdeu-se num discurso abstrato e teórico sobre o quadro normativo aplicável, teorias doutrinárias nacionais e internacionais, tendências jurisprudências nacionais e estrangeiras, para depois explicar a tese defendida na sentença, como se uma sentença de um texto académico se tratasse.
Concordamos com este modo de ver as coisas!
Mostra-se ferida de obscuridade a decisão que se revele ininteligível, confusa ou de difícil interpretação, de sentido equívoco ou indeterminado, traduzindo-se a ambiguidade na possibilidade de à decisão serem razoavelmente atribuídos dois ou mais sentidos diferentes.
A obscuridade que torne a decisão ininteligível fere a sentença de nulidade (Artº 615º/1-c) do CPC).
Depois de um extenso (mais de 80 páginas!) e prolixo texto onde se dá conta de instrumentos jurídicos nacionais e internacionais, de doutrina nacional e estrangeira e, bem assim, de jurisprudência nacional e estrangeira, encontramos um subtítulo dedicado à subsunção dos factos ao direito (pg. 114).
Neste vem a concluir-se, a final (pg. 139) que “Pelo que fica dito, não sendo a situação líquida e direta - com exceção da alínea f) do nº1 do art. 12º-A do Código do Trabalho, que deflui cristalinamente dos factos demonstrados -, o que implicou a conjugação e interpretação de uma série de factos- indício, cremos que não funcionou a presunção prevista no referido preceito. Pois, entendemos que o caráter minucioso da situação não se coaduna com tamanha simplicidade probatória já que sempre teria de ser milimetricamente analisada a factualidade que a Ré oferece com o desiderato de ilidir tal presunção. O certo é, porém, que, à luz do art. 342º do Cód. Civil, ficaram demonstrados factos que, devidamente conjugados no aturado exercício de hermenêutica diatópica exposto, caracterizam uma relação laboral. Procede, assim, a ação.
Porém, a vários passos, pode ler-se “o acervo fático apurado, globalmente considerado, se subsume à previsão da alínea b) do nº1, do art. 12º-A do CPT” (pg. 118); “Verificam-se assim os índices de qualificação previstos na alínea a) do nº1 do CPT na versão da Lei 99/2003, de 27 de agosto e as alíneas b) e d) do nº1 do art. 12ºA do CPC na redação atual”(pg. 128);Subsumem-se, pois, estas circunstâncias às hipóteses previstas nas alíneas a), parte final e c) do nº1 do art. 12ºA do CPT (pg. 129); “Nesta confluência, concorrem os índices de qualificação previstos na alínea f) do nº1, do art. 12ºA, do CPT (pg. 134).
Perante este arrazoado bem se compreende a argumentação da Recrte. ao afirmar que está comprometida a intelegibilidade do discurso judicial, o que se reflete na adequada reação à sentença, revelando-se difícil, senão mesmo impossível, identificar, com segurança, quais os fundamentos exatos que levaram ao reconhecimento de um vínculo laboral.
Ora, uma sentença deve primar pela clareza e objetividade, expondo o conjunto de factos apurados e subsumindo-os ao Direito (Artº 607º/4 do CPC) de modo apreensível pelo respetivo interlocutor, obedecendo a um formato próprio, muito distinto do de um qualquer artigo de cariz jurídico. Tem, pois, que ser percetível e daí que se mostre ferida de nulidade se contiver ambiguidades ou for obscura (Artº 615º/1-b) do CPC).
A obscuridade e a ambiguidade mencionadas na segunda parte do preceito verificam-se, respetivamente, quando alguma passagem da decisão seja ininteligível ou quando se preste a mais do que um sentido.
Conforme se afirmou no Ac. do STJ de 20/11/2019, Proc.º 62/07.0TBCSC.L3.S1, o discurso decisório tem que encerrar a explicação da razão por que decide de determinada maneira, fundamentação esta que deverá, necessariamente, atender a todas as questões colocadas ao Tribunal, e conduzir, logicamente, ao resultado adotado, devendo, pois, os fundamentos ser congruentes, justificando a decisão acolhida, importando inteligibilidade, sob pena de erro de julgamento.
No caso, o texto acima extratado é bem exemplificativo das dificuldades sustentadas pela Apelante, dada a respetiva obscuridade. Em presença dele ficamos sem saber se, afinal, a ação procede porque se preenchem vários dos factos base da presunção de laboralidade ou se estes (vários) não se preenchem, mas o A. convenceu acerca da existência de contrato de trabalho. São situações diferentes que impõem distinta defesa.
Procede, deste ponto de vista, a questão em apreciação.
Vem também imputada falta de fundamentação, afirmando a Recrte. que a sentença é nula por falta de fundamentação, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, pois não faz uma análise objetiva e certeira dos factos que permitem ou não verificar os indícios do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, nem identifica de forma clara os factos que permitiram ao Tribunal a quo concluir pela existência de um contrato de trabalho.
É certo que a sentença, tal como alegado, não subsume de forma clara e estruturada os factos provados aos indícios de laboralidade.
Porém, tal traduz-se, não em ausência de fundamentação, mas sim num eventual erro de julgamento. Fundamentação é o que não falta na sentença em análise!
Ora a errada fundamentação não fere a sentença de nulidade, conforme vem sendo repetidamente afirmado pelos tribunais superiores. As nulidades afetam a regularidade do silogismo judiciário, assim se diferenciando de erros de julgamento, seja em sede de matéria de facto, seja em sede de cariz eminentemente jurídico.
Improcede, nestes termos, a questão no que tange à invocada falta de fundamentação.
Invoca ainda a Apelante a nulidade da sentença fundada em oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, na medida em que, no caso sub judice, se verifica que, os poucos fundamentos que conseguimos descortinar, estão “est[ão] em oposição com a decisão (…)”.Qualquer observador razoável, analisando os factos considerados provados na sentença, concluiria, de forma natural e lógica, pela inexistência de um vínculo laboral, no entanto, em manifesta desconexão com essa realidade fática, o Tribunal, guiado por um raciocínio excessivamente abstrato e desligado da realidade concreta dos factos provados nos autos, forçou uma qualificação jurídica incompatível com os elementos factuais provados, reconhecendo a existência de um contrato de trabalho sem um suporte objetivo sólido.
Mais uma vez nos parece que a Recrte. confunde forma com substância.
Na verdade, e tal como alega, existe violação das regras necessárias à construção lógica da sentença quando os seus fundamentos conduzam logicamente a conclusão oposta ou diferente da que no mesmo resulta enunciada.
A propósito da nulidade resultante da contradição entre os fundamentos e a decisão, Alberto dos Reis esclarecia que “[n]o caso considerado no n.º 3 do art. 668.º [do CPC de 1961] a contradição não é apenas aparente, é real; o juiz escreveu o que queria escrever; o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”.
Ora, no caso, não vemos que dos fundamentos – entenda-se do subtítulo da subsunção dos factos ao direito1 - emerja algo distinto daquilo que foi a decisão final.
Não é olhando ao conjunto de factos – apenas – que se pode afirmar que o sentido da decisão tem que ser um. É antes, da conjugação desses factos como direito que se tiver por aplicável. A contradição na matéria de facto analisa-se no contexto da impugnação da decisão respetiva, conforme Artº 662º/2-c) do CPC.
Improcede, assim, também neste conspecto, a questão em apreciação.
Por fim, invoca ainda a Recrte. a nulidade da sentença assente em excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, uma vez que se trata de uma decisão surpresa que viola o artigo 3.º, n.º 3 do CPC.
Argumenta que o Tribunal a quo entendeu que uma das características essenciais para decidir sobre a existência de um contrato de trabalho é a continuidade da prestação por período superior a 90 dias, interpretado no sentido de “se ficasse demonstrado que um estafeta estava sistematicamente conectado à aplicação apenas alguns minutos ou escassas horas por dia e/ou por semana, a consequência seria a de que não preencheria este pressuposto da prestação ininterrupta por um período não inferior a 90 dias”. Neste caso estamos perante um facto e uma questão de direito suscetíveis de integrar a base da decisão e que as partes não representaram como possível, pelo que era dever do Tribunal ter chamado as partes a exercer o contraditório sobre esta matéria antes de tomar uma decisão. Além disso, este entendimento do douto Tribunal não tem base legal, nem doutrinal, nem jurisprudencial. É um critério novo e construído pela Meritíssima Juiz a quo.
Que o critério não tem base legal, sufragamos. Que a invocação do mesmo traduza uma decisão surpresa, não nos parece.
Na verdade, usado aquele critério como aferidor da existência de contrato de trabalho mais não se está senão a recorrer a um argumento interpretativo no sentido de sustentar a tese que se pretende defender.
Ora, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante a indagação, interpretação e aplicação de regras de direito (Artº 5º/3 do CPC).
Improcede, pois, também deste ponto de vista, a questão em referência.
***
Deter-nos-emos seguidamente sobre o erro de julgamento da matéria de facto.
Entende a Recorrente que a sentença recorrida, na parte relativa à matéria de facto provada, considerou como provada matéria sobre a qual não foi produzida prova e que a sentença recorrida incorre em erro de julgamento de facto, na medida que o Tribunal a quo pura e simplesmente ignorou muitos dos factos alegados na contestação apresentada pela Recorrente para ilidir a presunção e absteve-se de os avaliar face à prova produzida. E ainda que o Tribunal a quo deu como provados factos não alegados por qualquer das partes, utilizando os mesmos para fundamentar a sentença, sendo que não foi observado o regime previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 72.º do CPT.
Na contra-alegação o Ministério Público não contrapõe com quaisquer provas, limitando-se a afirmar que a Recrte. pretende fazer valer a sua convicção ao arrepio do princípio da livre apreciação da prova, afirmando a correta avaliação efetuada pela sentença.
Antes de avançarmos deixamos explícito que a aquisição fática reportada no relatório acima não contempla nenhuma da factualidade aqui em discussão, designadamente quando se afirma que não foi impulsionado relativamente à matéria objeto da impugnação o mecanismo previsto no Artº 72º do CPT.
Por outro lado, da nossa apreciação, não vemos razões para desconsiderar o depoimento da testemunha BB, o qual fundamenta a quase totalidade da reapreciação.
Vejamos, então!
Incide a impugnação, primeiramente, sobre os pontos 12, 86, 112 e 118 do acervo provado, pretendendo a Apelante que tal matéria seja tida como não provada.
Consta da fundamentação da matéria de facto que o Tribunal se baseou na concatenação dos depoimentos prestados pelo estafeta e pela testemunha da R., bem como termos e condições contratuais e registos de atividade.
O Ponto 12 tem o seguinte teor: “Pelos pagamentos da atividade prestada através da plataforma UBER EATS, AA emitia recibos através do Portal das Finanças em nome da empresa “Uber Eats Portugal Unipessoal., Lda.” contribuinte fiscal n.º 516248022.”.
Tal como afirmado pela Apelante, a prova desta matéria carecia da apresentação de algum recibo, ou, pelo menos, que alguma testemunha o corroborasse o que não se mostra efetuado.
Na verdade, em presença do extratado depoimento (inspetora da ACT), que nega a emissão de recibos pelo próprio, não pode dar-se como provada esta matéria.
Quanto ao ponto 86, é o seguinte o seu teor:
86. A Ré alterou designadamente o seu sistema de agendamento dos horários dos estafetas com vista a permitir-lhes uma maior flexibilidade e autonomia na escolha sobre quando pretendem ou não estar disponíveis para trabalhar.
Defende a Apelante que o facto constante do Ponto 86 não se encontra provado através de documentos, nem de prova testemunhal, tendo, na audiência ficado provado que não existe qualquer tipo de sistema de agendamento de horários na plataforma Uber Eats, nem nunca existiu.
Indica o depoimento da sua testemunha (BB) e o do prestador.
Analisados ambos os depoimentos, não resta senão reconhecer a razão da Apelante porquanto de ambos decorre a inexistência de qualquer imposição ou fixação de horário.
Consideramos, pois, não provada tal matéria.
Os pontos 112 e 118 apresentam a seguinte redação:
112. Nos pagamentos, a Uber desconta 1,85 euros a título de seguro.
118. O valor que o estafeta suporta a título do seguro que a R. lhe impõe não é mencionado nos Termos e Condições.
Relativamente a esta matéria diz a Recrte. que a consideração dos Pontos 112 e 118 como factos provados configura um erro evidente na apreciação da prova, pois não resulta da prova produzida. Pretende que se considerem como não provados, o que, na alegação, estende à parte final do ponto 34.
Vejamos!
A matéria do contrato de seguro foi alegada no Artº 37º da PI, que não contém qualquer referência ao pagamento de uma taxa de utilização.
Sob o ponto 34 deu-se como provado que a Ré mantem um contrato de seguro, cuja apólice de proteção para parceiros de entrega da Uber Eats, junto da Allianz Care, englobava AA, tendo em conta o exercício da sua atividade, o qual é suportado com a taxa de utilização que o último paga.
A testemunha apresentada pela R. (BB) esclareceu que este seguro é complementar ao de acidentes de trabalho – que constitui encargo do prestador – e é pago pela UBER.
Não se vislumbrando qualquer outra prova capaz de suportar a tese do Tribunal recorrido, não resta senão considerar não provados os pontos 112 e 118, bem como a última parte do ponto 34, que, assim, fica com a seguinte redação:
- A Ré mantem um contrato de seguro, cuja apólice de proteção para parceiros de entrega da Uber Eats, junto da Allianz Care, englobava AA, tendo em conta o exercício da sua atividade.
Segue-se um novo conjunto de factos – os pontos 23, 26 e 27 e 87, relativamente aos quais se pretende a modificação da respetiva redação.
É o seguinte o teor destes pontos de facto:
23. AA não dispunha de qualquer organização empresarial própria, não negociava os preços ou condições nem com os titulares dos estabelecimentos que preparam as refeições/produtos a entregar nem com os clientes finais.
26. Quando o estafeta tem a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação UBER EATS, permite a sua localização na aplicação, informação essa que permanece visível para a Ré e para os clientes, podendo estes, desta forma, acompanhar o percurso e até questionar o estafeta acerca do mesmo.
27. Se os estafetas não tiverem o GPS ligado, a aplicação não funciona, uma vez que é o GPS que permite à plataforma apresentar-lhes propostas de entregas tendo em consideração a sua localização e a proximidade com o ponto de recolha, sendo que se a aplicação não detetar a localização na zona da última entrega, não apresenta novo pedido, a não ser que o cliente, na app, sinalize a entrega como concluída.
87. A Ré passou a permitir que os parceiros de entregas pudessem nomear um substituto para prestar serviços de entrega em seu nome, desde que reúnam os mesmos requisitos.
Relativamente ao ponto 23, afirma a Recrte. que se verifica que a matéria em questão reveste natureza genérica e conclusiva, na medida em que a qualificação de determinada atividade como exercida com ou sem organização empresarial própria não corresponde a um facto concreto suscetível de prova direta, mas antes a um juízo jurídico cuja determinação compete ao tribunal na fase de aplicação do direito. E quanto à restante matéria, que não existe uma única passagem nos depoimentos das testemunhas onde tenha sido discutido quem negoceia os preços ou condições com os titulares dos estabelecimentos ou com os clientes finais. Da mesma forma, não existe prova documental nos autos que permita suportar este facto.
No concernente à natureza conclusiva da primeira parte daquela matéria, não podemos senão concordar, por ser a mesma uma evidência. Sabendo-se que o acervo fático deve ser enformado por factos – apenas – a redação em causa não pode subsistir. E, quanto ao mais, não tendo a contraparte invocado prova que sustente tal matéria, como lhe incumbia em presença do disposto no Artº 640º/2-b) do CPC, também nós a não tendo localizado, não resta senão dar razão à Recrte..
Quanto ao ponto 26, a impugnação reporta-se à última parte, defendendo a Apelante que não consegue entender como conseguiu o Tribunal a quo dar este facto como provado nestes termos, uma vez que o mesmo não foi alegado pelas partes, não tendo sido feita qualquer prova sobre o mesmo.
A circunstância de a matéria não ter sido alegada é suficiente para que não possa ser considerada, conforme decorre do disposto no Artº 5º do CPC. Na verdade, compulsada a PI, o que ali se alegou foi que o estafeta deve ter a localização ativa no telemóvel para permitir a sua localização, informação que permanece visível para a R. e para os clientes (Artº 26º). Dir-se-á ainda que a testemunha arrolada pela R. (BB) depôs em sentido oposto ao que veio a dar-se como provado, afirmando a inexistência de interação entre a R. e o prestador.
Modifica-se, pois, o ponto 26 no seguinte sentido:
- Quando o estafeta tem a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação UBER EATS, esta permite a sua localização na aplicação, informação essa que permanece visível para a Ré e para os clientes.
No concernente ao ponto 27 defende a Apelante que o mesmo não foi alegado pelas partes nestes termos, não tendo sido feita qualquer prova sobre o mesmo, muito concretamente no que toca à possibilidade de “a aplicação não detetar a localização na zona da última entrega, não apresenta novo pedido, a não ser que o cliente, na app, sinalize a entrega como concluída”.
A matéria que deu base ao ponto 27 foi alegada sob o Artº 27º da PI do qual emerge que se os estafetas não tiverem o GPS ligado, a aplicação não funciona, uma vez que é o GPS que permite à plataforma apresentar-lhes propostas de entregas tendo em consideração a sua localização e a proximidade com o ponto de recolha.
Nada foi alegado no sentido de se a aplicação não detetar a localização na zona da última entrega, não apresenta novo pedido, a não ser que o cliente, na app, sinalize a entrega como concluída. Acresce que a testemunha ouvida (BB) declarou que o fator determinante para a receção de ofertas de entrega é a proximidade do ponto de recolha. Quem está melhor colocado para fazer essa recolha mais rápida e depois entregar o pedido mais rápido, em teoria, é quem recebe as ofertas.
Procede, assim, neste conspecto a propugnada alteração, ficando o ponto 27 com a seguinte redação:
- Se os estafetas não tiverem o GPS ligado, a aplicação não funciona, uma vez que é o GPS que permite à plataforma apresentar-lhes propostas de entregas tendo em consideração a sua localização e a proximidade com o ponto de recolha.
A impugnação prossegue, agora por reporte à matéria que enforma o ponto 87, para o qual vem proposta nova redação.
A atual é a seguinte: A Ré passou a permitir que os parceiros de entregas pudessem nomear um substituto para prestar serviços de entrega em seu nome, desde que reúnam os mesmos requisitos.
Defende a Apelante que de acordo com a prova produzida não se concluir que a Recorrente “passou a permitir”, antes se conclui que a Recorrente permite aos prestadores de atividade nomear substitutos.
Indica a sua própria testemunha, cujo depoimento vai no sentido do que ora se defende.
O ponto 87 passará, pois, a ter a seguinte redação:
- A Ré permite que os parceiros de entregas possam nomear um substituto para prestar serviços de entrega em seu nome, desde que reúnam os mesmos requisitos.
Segue-se um novo conjunto, enformado pelos pontos 15, 55 e 98.
Quanto a estes invoca-se contradição.
Tais pontos apresentam a seguinte redação:
15 - Para que lhe fossem apresentados tarefas/pedidos na plataforma UBER EATS, AA tinha que aceder ao seu “perfil da conta”, o qual tinha de estar atualizado com a sua foto de perfil, podendo a UBER EATS pedir a apresentação de prova da sua identidade mediante reconhecimento facial efetuado através do telemóvel, o que acontecia uma vez por dia.
55 - A Ré dispõe de soluções de reconhecimento facial que são automática e aleatoriamente despoletadas pela Plataforma.
98 - A app pedia reconhecimento facial, mas só de 24 e 24 horas.
Alega a Recrte. que o Ponto 15 estabelece que o reconhecimento facial era um requisito diário, sendo exigido uma vez por dia como condição necessária para que o estafeta pudesse aceder à plataforma e receber pedidos. Esta afirmação descreve um procedimento fixo, previsível e invariável, que ocorria sempre diariamente, sem exceção ou variação. O Ponto 98 nunca foi sequer alegado pelas partes, pelo que deve ser desconsiderado do acervo factual dado como provado, sendo também redundante, por idêntico ao ponto 15. O Ponto 55, ao afirmar que a Uber Eats dispõe de um sistema de reconhecimento facial acionado de forma automática e aleatória, contradiz em absoluto o facto provado no Ponto 15. Ora, se o reconhecimento facial era aleatório, então não podia ser diário e previsível. Por outro lado, se o reconhecimento facial era obrigatório uma vez por dia, então não podia ser aleatório, pois a aleatoriedade, por definição, pressupõe um intervalo imprevisível na sua ativação.
Regista-se, efetivamente, a assinalada contradição que deve ser resolvida conforme a prova.
Por outro lado, quanto à matéria não alegada, não pode a mesma ser considerada conforme já explicado acima.
Ora a prova apresentada – o depoimento da testemunha da R. (BB) – vai no sentido de quanto se afirma em 55.
Em consequência, consideramos não provada a matéria que enforma o ponto 15 na parte em que se reporta ao reconhecimento fácil diário, eliminada o ponto 98 e mantido o ponto 55.
O ponto 15 fica, então, com a seguinte redação:
- Para que lhe fossem apresentados tarefas/pedidos na plataforma UBER EATS, AA tinha que aceder ao seu “perfil da conta”, o qual tinha de estar atualizado com a sua foto de perfil, podendo a UBER EATS pedir a apresentação de prova da sua identidade mediante reconhecimento facial efetuado através do telemóvel.
Continuamos, agora por referência aos pontos 109 e 110, cuja redação é a seguinte:
- A R. transmitiu-lhe indicação de esperar 10 minutos se o cliente não estiver presente e, caso aquele não chegue, de deixar o produto à porta e tirar uma fotografia.
- Porém, há dois ou três meses, a Uber cancelou a regra dos dez minutos de espera na ausência do cliente.
Afirma a Recrte que tais factos não foram objeto de alegação pelas partes, nem de discussão em sede de audiência de julgamento, e, consequentemente, não foram objeto de qualquer produção de prova.
Não se contradizendo esta afirmação, e não tendo nós constatado o contrário, não resta senão eliminar a matéria do acervo fático ao abrigo do princípio que emerge do disposto no Artº 5º do CPC.
Também relativamente ao ponto 111 se afirma não ter a respetiva matéria sido alegada.
O ponto 111 apresenta a seguinte redação:
- Antes, o feedback do cliente dava pontos também, mas a Uber cancelou há algum tempo essa possibilidade.
Alegou-se na petição inicial que os utilizadores clientes finais são convidados a dar feedback relativamente à forma como o estafeta realizou o seu trabalho, para além de que podem reportar problemas com os pedidos de entrega no caso de violações dos termos e condições. (Artº 30º). Por sua vez, na contestação, consta que a Ré não faz uso do feedback dado pelos clientes e restaurantes para efeitos de avaliação da performance dos prestadores de atividade. (Artº 221º)
A matéria alegada não é conforme àquela que veio a ser tida como provada.
Do depoimento da testemunha (BB) apresentada pela R. quanto às avaliações efetuadas pelos clientes não foi em momento algum suscitada qualquer questão relativa à atribuição de pontos, nem tão-pouco se discutiu a eventual remoção de tal funcionalidade por parte da Uber.
Tem-se, pois, tal matéria como não provada.
Quanto aos pontos 124 e 128, é a seguinte a sua redação:
- Pelo menos até 19.01.24, era pedido o certificado do registo criminal na lista de documentos exigidos aos estafetas para se qualificarem.
- A tendência tem sido a do número de estafetas registados aumentar.
Afirma a Recrte. que nenhum destes factos foi alegado por nenhuma das partes, nem foi objeto de despacho de ampliação dos temas da prova. Logo, não foram objeto de discussão na audiência de julgamento, consequentemente, não se encontram provados, nem pelos depoimentos das testemunhas, nem pelos documentos juntos aos autos, devendo ser eliminados.
Considerando que a matéria não foi alegada ou carreada para os autos ao abrigo do disposto no Artº 72º do CPT, elimina-se a mesma do acervo, também aqui relevando o disposto no Artº 5º do CPC.
Relativamente aos pontos 129 e 131, cuja redação é a seguinte:
- A partir do momento em que recebe um pedido, o estafeta dispõe apenas de um ou dois minutos para decidir se aceita ou não.
- O programa permite à R. obter o registo das circunstâncias de tempo de todos os pedidos recusados.
Alega a Apelante que nenhum destes factos foi alegado pelas partes, nem faz parte da ampliação dos temas da prova. E mesmo que assim não fosse, não foram sequer objeto de discussão na audiência de julgamento. Da mesma forma, não se encontram sustentados na prova documental junta aos autos.
Rege aqui a mesma razão acima invocada, pelo que se elimina tal matéria do conjunto de factos provados.
No prosseguimento da impugnação, apresenta-se agora um pedido para que se adite ao acervo fático provado um conjunto de matérias, muito concretamente as alegadas sob os Artº 167.º, 168.º, 194.º, 312.º e 326.º da contestação.
Alegou-se ali:
Artº 167º - A mochila não é uma regra específica da plataforma;
Artº 168º - É uma regra de boas práticas de higiene e segurança alimentar, transversal a qualquer serviço de entrega, seja ele prestado através da plataforma UBER Eats, ou de qualquer outra, de forma autónoma e ou dependente.
Artº 194º - Quem decide ou não a entrega é o prestador da atividade, que pode livremente aceitar ou rejeitar as ofertas de entrega que lhe surjam na plataforma, sem qualquer consequência.
Artº 312º - Os prestadores de atividade, incluindo o Prestador de Atividade, que prestam atividade através da plataforma dispõe de total autonomia relativamente à forma como organizam e prestam atividade. Nomeadamente são livres de:
a)…
c) decidir onde vão realizar a sua atividade, determinar onde querem desenvolver a sua atividade, desde que a área de atividade escolhida esteja coberta pela plataforma;
d) optar por não receber propostas de entrega de determinados clientes e/ou comerciantes…
f)…
Artº 326º - Os prestadores de atividade podem aceder à plataforma enquanto estão sentados no sofá das suas casas, sem qualquer intenção de completar entregas e apenas para consultar se existem ofertas de entrega disponíveis naquele momento.
Antes de avançarmos na apreciação da prova ora indicada, desde já se constata que a matéria que integra o Artº 194º - a decisão sobre trabalhar – já integra o decidido sob o ponto 56. Nada mais há, pois, a acrescentar.
Quanto ao que consta do Artº 168º, a matéria tem-se como conclusiva, pelo que sobre a mesma não pode incidir um juízo probatório.
Ficam, pois, pendentes de apreciação os Artº 167º, 312º e 326º relativamente aos quais não vemos que a sentença se tivesse pronunciado.
Relativamente aos Artº 312º e 326º indica-se a testemunha ouvida em audiência (BB), que foi claro ao afirmar que não dão indicações sobre o local de exercício da atividade, mas nada diz quanto ao acesso à plataforma e intenções. Por sua vez, já afirma que os estafetas são livres de bloquear retalhistas, restaurantes e clientes e explica porquê.
Consideramos, assim, provado que o Prestador de Atividade é livre de decidir onde vai realizar a sua atividade, desde que a área de atividade escolhida esteja coberta pela plataforma, bem como de optar por não receber propostas de entrega de determinados clientes e/ou comerciantes.
E não provado o Artº 326º.
No concernente à mochila, a mesma testemunha asseverou que a entrega ao domicílio de produtos alimentares está regulada a diversos níveis europeus, nacionais, a boas práticas da indústria da restauração, não sendo uma prática apenas da UBER, mas também das demais plataformas.
Consideramos, assim, provado que a mochila não é uma regra específica da plataforma.
Continua a impugnação da decisão que contém a matéria de facto, agora centrando-se no acervo não provado.
Pretende-se a inversão da decisão quanto aos pontos 1 e 2, cuja redação é a seguinte:
- A R. não estabelece limites máximos e mínimos para o pagamento do estafeta;
- A R. não faz uso do feedback dado pelos clientes e restaurantes quanto ao desempenho do estafeta e quanto à experiência com a aplicação.
Relativamente ao ponto 1, defende a Recrte. que não alegou tal facto negativo. O que foi alegado pelo A. foi o facto positivo no Artº 54º) a da PI.
Em presença da PI verificamos que foi ali alegado que a retribuição é fixada pela plataforma, que determina os limites máximos e mínimos.
Compulsada a contestação, constatamos que no Artº 149º a R. alegou que não é verdade o alegado pelo A. quando afirma que a plataforma apresenta ao prestador o valor mínimo que irá receber se aceitar aquele pedido/tarefa. O que lhe é apresentado é um valor final. Ou seja, impugnou a matéria alegada pelo A..
Em presença dos articulados, a decisão terá que incidir sobre o facto (positivo) alegado. A falta de prova do mesmo não o pode converter em facto negativo não provado.
Note-se, aliás, que sob os pontos 38 e ss. deu-se como provada a matéria relativa à fixação da remuneração.
Elimina-se, pois, do acervo fático não provado o ponto 1.
Quanto ao ponto 2, a pretensão da Apelante é no sentido da inversão da decisão.
A testemunha indicada asseverou que não utilizam as avaliações dos clientes, exceto quando é reportado que o prestador não é o revelado pela plataforma. As demais avaliações pedidas fazem parte da plataforma, que é comum a vários países, mas que não tem, nesta matéria, aplicação em Portugal.
Parece-nos que faz sentido o assim asseverado, pelo que consideramos provado que a R. não faz uso do feedback dado pelos clientes e restaurantes quanto ao desempenho do estafeta e quanto à experiência com a aplicação.
Resumindo:
Consideramos não provada a matéria que enformou os pontos 12, 86, 112, 118, 23 (em parte), 111 e Artº 326º da Contestação;
Consideramos alterados os pontos 34, 26, 27, 87, 15;
Eliminam-se do acervo fático os pontos 98, 109, 110, 124, 128, 129, 131, e 1 do acervo não provado;
Mantém-se o ponto 55;
Tem-se por conclusiva a matéria que consta do Artº 168º da contestação,
Consideramos provada a matéria que integra os Artº 167º, 312º (este na redação enunciada) da contestação e 2 do acervo não provado.
A reapreciação efetuada, bem como o teor do ponto 1332 dos factos provados no confronto com aqueles que menciona ínsitos no acervo não provado – o 2 (agora tido como provado) e o 43- impelem-nos a uma nova redação daquele, visto a presente se revelar algo ininteligível quando refere “sem prejuízo de…”
Modifica-se a redação daquele ponto de facto retirando dali a 1ª parte da afirmação.
As alterações resultantes da apreciação efetuada integrar-se-ão no acervo fático que infra exporemos.
***
OS FACTOS:
1. A Ré é uma sociedade que tem como objeto social a prestação de serviços de geração de potenciais clientes a pedido, gestão de pagamentos; atividades relacionadas com a organização e gestão de sites, aplicações on-line e plataformas digitais, processamento de pagamentos e outros serviços relacionados com restauração; consultoria, conceção e produção de publicidade e marketing; aquisição de serviços de entrega a parceiros de entrega e venda de serviços de entrega a clientes finais.
2. Para a execução das referidas atividades, a Ré explora uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet –, faculta a entrega dos produtos encomendados.
3. Para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a Ré utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para esse efeito.
4. Na terminologia da Ré, são utilizadores da plataforma:
• Os utilizadores parceiros (estabelecimentos comerciais, como restaurantes, por exemplo);
• Os utilizadores estafetas que a R. designa “parceiro de entregas independente”); e
• Os utilizadores clientes. 5. A atividade da Ré inclui, entre o mais:
• A intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos comerciais e do pagamento dos produtos encomendados através da plataforma; e
• A intermediação entre a venda dos produtos e a respetiva recolha, transporte e entrega aos utilizadores que efetuaram as encomendas.
6. A “Uber Portier, B.V.”, com sede em Mr. Treublaan 7, 1097 DP, Amesterdão, Países Baixos), é a única sócia da Ré “Uber Eats Portugal Unipessoal, Lda.” e é a entidade que fornece o acesso à aplicação (App) UBER EATS e ao software, aos websites bem como aos vários serviços de suporte da plataforma UBER EATS, mostrando-se junta a fls 145 e seguintes uma análise certificada do funcionamento da aplicação na ótica do estafeta, cujo teor ora se dá por integralmente reproduzido.
7. AA, natural da República Islâmica do Paquistão, contribuinte nº ..., portador do Título de Residência n.º ..., titular do endereço eletrónico ..., com residência na Rua 1, 1350-202 Lisboa com o n.º de telefone ..., prestou a referida atividade de estafeta para a plataforma UBER EATS.
8. AA realizou a referida atividade de estafeta, entregando refeições e outros produtos, conforme pedidos/tarefas que lhe eram apresentados - e que ele aceitava -, através da plataforma UBER EATS, na qual se encontrava registado com a referida conta de email, e à qual acedia através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone.
9. Observando os termos e condições de utilização da plataforma UBER EATS para estafetas que constam do documento nº7 junto aos autos pela Ré com a Contestação (“Contrato de Parceiro de Entregas Independente”), cujo teor ora se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos.
10. Para iniciar a prestação do serviço na plataforma UBER EATS, AA teve que se registar e criar uma conta completa naquela plataforma, comprometendo-se a mantê-la atualizada e ativa, declarando reunir as obrigações estabelecidas e previstas no designado “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, tendo, designadamente, que preencher os requisitos previstos na cláusula 5ª dos Termos e Condições que tem a epígrafe “As suas obrigações”).
11. De acordo com o documento referido em 9., para se poder registar e exercer as referidas funções de estafeta para a Ré, AA tinha que ter atividade iniciada na Administração Tributária, ter veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), bem como possuir um telemóvel (smartphone) e uma mochila para transporte dos bens.
12. (não provado)
13. No dia 04 de outubro de 2023, pelas 11h47m, AA encontrava-se no acesso ao restaurante McDonald’s, sito no Jardim da Parada, em Lisboa.
14. AA encontrava-se equipado com uma mochila necessária ao transporte de refeições (caixa térmica de transporte de refeições), tinha veículo próprio para transportar as encomendas e tinha a aplicação (App) da plataforma UBER EATS instalada e ativa no seu smartphone.
15. Para que lhe fossem apresentados tarefas/pedidos na plataforma UBER EATS, AA tinha que aceder ao seu “perfil da conta”, o qual tinha de estar atualizado com a sua foto de perfil, podendo a UBER EATS pedir a apresentação de prova da sua identidade mediante reconhecimento facial efetuado através do telemóvel.
16. Só quando o estafeta efetua o login na plataforma é que lhe são apresentados pedidos à razão de um de cada vez.
17. A atividade desempenhada pelo estafeta consiste na recolha dos bens nos estabelecimentos aderentes (restaurantes, supermercados, lojas, etc.), e no transporte desses produtos até ao cliente final.
18. O estabelecimento, o tipo de pedido, o valor do serviço, o cliente final e a morada de entrega são indicados ao estafeta pela plataforma UBER EATS através da referida aplicação que deve consultar no telemóvel.
19. AA prestava atividade todos os dias da semana, iniciando o serviço com login na aplicação da UBER EATS, distribuindo refeições de almoço, de jantar e outras.
20. A decisão de fazer login ou logout na aplicação compete ao estafeta.
21. AA recebia como contrapartida da sua atividade um valor por cada pedido/entrega efetuada, não recebendo qualquer valor pelo tempo de espera entre a conclusão de uma entrega e a aceitação de novo pedido.
22. Quando aceita uma proposta de entrega da UBER EATS, o estafeta concorda em prestar aquele serviço de entrega em troca do pagamento da taxa de entrega proposta na aplicação, ainda que, por virtude de sinistro ou por outra razão, tiver, afinal, de percorrer mais quilómetros do que aqueles que a aplicação considerou.
23. (não provado)
24. Sendo que podia recusar pedidos e bloquear tanto estabelecimentos como clientes.
25. A localização exata do estafeta é conhecida pela plataforma UBER EATS através do sistema de geolocalização, sendo, porém, que o primeiro pode desligá-lo quando quiser.
26. Quando o estafeta tem a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação UBER EATS, esta permite a sua localização na aplicação, informação essa que permanece visível para a Ré e para os clientes.
27. Se os estafetas não tiverem o GPS ligado, a aplicação não funciona, uma vez que é o GPS que permite à plataforma apresentar-lhes propostas de entregas tendo em consideração a sua localização e a proximidade com o ponto de recolha.
28. O estafeta e o estabelecimento que prepara o pedido vão, assim, introduzindo dados na aplicação sobre a recolha, transporte e entrega.
29. A atribuição/distribuição dos pedidos aos estafetas é determinada em função do critério da distância entre aquele, o estabelecimento e o consumidor, ou o tempo de preparação da encomenda pelo parceiro.
30. Os utilizadores clientes finais são convidados a dar feedback relativamente à forma como o estafeta realizou a entrega, para além de que podem reportar problemas com os pedidos de entrega, designadamente, no caso de violações dos termos e condições.
31. Para os estafetas que aderem ao “Uber Eats Pro”, a Ré mantém ainda uma classificação dos estafetas com base no número de entregas efetuado através da plataforma, classificando-os como parceiros “Green”, “Gold”, “Platinium” ou “Diamond”, o que lhes permite poderem participar no referido programa “Uber Eats Pro” e, em função do número de pontos atingidos por mês, desbloquear algumas recompensas que entidades parceiras da UBER EATS oferecem (por exemplo, a Galp e a Wear Your Brand).
32. Nos referidos Termos e Condições estão previstas várias situações que podem determinar a desativação temporária ou permanente da conta do estafeta, designadamente nas situações enumeradas na alínea b) do ponto 11 dos «Termos e Condições» (“Acesso à App”): “no caso de uma alegada violação das obrigações do Parceiro de Entregas Independente (Cláusula 5. supra). Incluindo quando recebemos uma reclamação de segurança ou potencial incumprimento das leis e regulamentos aplicáveis, bem como dos costumes locais e boas práticas, ou sempre que necessário para a proteção de terceiros, ou cumprimento da legislação aplicável, ou decorrente de ordem judicial ou administrativa, temos o direito de restringir o Seu acesso à, e utilização da App. Se o fizermos, será notificado por escrito das razões para tal restrição. (…)”.
33. Tal como resulta do ponto 16. (“Cessação”) do referido “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, a Ré pode “resolver o contrato com o estafeta a qualquer momento, mediante notificação prévia, por escrito, com 30 (trinta) dias de antecedência, salvo nas seguintes situações, nas quais, este período de aviso prévio não se aplica: (i) se estivermos sujeitos a uma obrigação legal ou regulamentar que nos obrigue a terminar a sua utilização da App ou dos nossos serviços em prazo inferior a 30 (trinta) dias; (ii) se o Parceiro de Entregas Independente tiver infringido o presente Contrato; ou (iii) mediante denúncia de que o Parceiro de Entregas independente tenha agido de forma não segura ou violou este Contrato ou legislação em conexão com a prestação de serviços de entrega; (iv) teve um comportamento fraudulento (atividade fraudulenta pode incluir, mas não está limitada a, as seguintes ações: partilhar sua conta com terceiros não autorizados; aceitar propostas sem intenção de as entregar; induzir utilizadores a cancelar os Seus pedidos; criar contas falsas para fins fraudulentos; solicitar reembolso de taxas não geradas; solicitar, executar ou confirmar intencionalmente a disponibilidade de propostas fraudulentas; interromper o funcionamento das aplicações e do GPS da Uber, como alterar as configurações do telefone; fazer uso indevido de promoções ou para fins diferentes dos pretendidos; contestar cobranças por motivos fraudulentos ou ilegítimos; criar contas duplicadas; fornecer informações falsas ou documentos falsificados); ou (iv) se estivermos a exercer um direito de resolução por um motivo imperativo nos termos da lei aplicável, que pode incluir situações em que o Parceiro de Entregas Independente já não se qualifique, nos termos deste Contrato, da lei e regulamentos aplicáveis ou das normas e políticas da Uber Eats e das suas Afiliadas, para prestar Serviços de Entrega ou para operar o Seu Meio de Transporte”.
34. A Ré mantem um contrato de seguro, cuja apólice de proteção para parceiros de entrega da Uber Eats, junto da Allianz Care, englobava AA, tendo em conta o exercício da sua atividade.
35. A Ré não impõe horários nem fixa por escrito consequências para a recusa de pedidos.
36. AA já exerceu a sua atividade na Plataforma Uber Eats através de um intermediário.
37. Os estafetas podem desenvolver a sua atividade na Plataforma diretamente ou através de um intermediário.
38. Nos termos da cláusula 6ª dos Termos e Condições aplicáveis, “O Estafeta Independente pode determinar livremente a sua taxa mínima por quilómetro, indicando na App o limite de taxa por quilómetro abaixo do qual este não deseja receber propostas de Serviços de Entrega (“Taxa Mínima por Quilómetro”).
39. Ao escolher este limite – no universo disponível na app -, o estafeta receberá apenas propostas de Serviços de entrega para as quais a taxa por quilómetro seja igual ou superior à taxa Mínima por Quilómetro que este escolheu.
40. Cada proposta de Serviços de Entrega exibida ao estafeta na App incluirá uma taxa proposta (incluindo IVA ou qualquer outro imposto sobre vendas) (a “Taxa de Entrega”), que nunca deverá considerar uma taxa por quilómetro inferior à sua Taxa Mínima por Quilómetro.
41. A taxa por quilómetro será calculada dividindo o valor da Taxa de Entrega pelo número de quilómetros a serem percorridos desde o ponto de levantamento do pedido até ao ponto de entrega do mesmo, que será indicado na proposta de Serviços de Entrega, conforme determinado por serviços de localização.
42. A Taxa de Entrega, por seu turno, será o resultado da taxa oferecida no momento da receção da proposta de Serviços de Entrega, considerando a Taxa Mínima por Quilómetro, multiplicada pelos quilómetros que distarem entre o ponto de levantamento e o ponto de entrega constantes na proposta de Serviços de Entrega (conforme determinado pela Uber Eats usando serviços de localização), e ainda incentivos relativos a cada viagem que possam ser aplicáveis em dado momento e/ou local onde o Serviço de Entrega é prestado (o "Cálculo da Taxa de Entrega")”.
43. Quando escolhe o Preço Mínimo por Quilómetro, o estafeta decide que propostas quer receber na Plataforma e quais não são do seu interesse.
44. Quando apresenta a oferta de entrega, a Plataforma apresenta-lhe o valor final que irá receber caso aceite o pedido.
45. Não existe a ferramenta “multiplicador” na Plataforma Uber Eats.
46. Na Plataforma da R., os estafetas dispõem de uma ferramenta que lhes permite visualizar outras ofertas de entrega disponíveis na sua área e que são pagas abaixo da sua Taxa Mínima por Quilómetro, sem necessidade de alterarem a Taxa Mínima por Quilómetro que anteriormente escolheram, e selecioná-las para entrega, se assim o desejarem, através da ferramenta “Radar de Viagens”.
47. Desta forma, os estafetas podem ajustar o seu preço por quilómetro sempre que quiserem sem baixá-lo e assim não perder qualquer oferta de entrega que possa surgir na Plataforma.
48. Os estafetas escolhem quando são pagos através da ferramenta Flex Pay.
49. Apenas no caso de não optarem por recolher os rendimentos através do Flex Pay é que os mesmos são pagos semanalmente.
50. O Estafeta AA aderiu à Plataforma e concordou com os seus termos e condições.
51. O estafeta iniciou atividade na Autoridade Tributária para exercer uma atividade por conta própria por esta inscrição constituir uma condição de inscrição na plataforma.
52. O telemóvel é necessário para o funcionamento da Plataforma/aplicação.
53. Os clientes da Ré também têm obrigatoriamente de se registar na Plataforma previamente para poder encomendar produtos.
54. A partilha de contas, por motivos de segurança, não é permitida na Plataforma, conforme decorre da cláusula 5.n. dos termos e condições aplicáveis.
55. A Ré dispõe de soluções de reconhecimento facial que são automática e aleatoriamente despoletadas pela Plataforma.
56. É o estafeta que escolhe quando quer aceitar pedidos, decidindo quando se liga e desliga da Plataforma e durante quanto tempo permanece ligado.
57. A Ré não consegue saber quantos estafetas estarão com sessão iniciada na Plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as ofertas de entrega disponibilizadas.
58. O Estafeta pode passar dias, semanas, meses sem se ligar à Plataforma, sendo que a sua conta continua ativa.
59. O Uber Eats Pro é um programa de pontos voluntário.
60. Os estafetas decidem livremente se querem aderir ou não ao dito programa para receberem pontos que podem dar acesso a ofertas de parceiros.
61. Os pontos Uber Eats Pro estão associados ao critério consistente no número de entregas efetuadas através da Plataforma Uber Eats, critério este que depende inteiramente de cada estafeta.
62. O GPS é uma ferramenta necessária para o funcionamento da Plataforma e para a apresentação de ofertas de entrega aos estafetas.
63. A localização é um dos fatores relevantes para a apresentação de ofertas de entrega aos estafetas.
64. O GPS permite aos clientes acompanhar a sua encomenda a partir do momento em que o Estafeta a recolhe.
65. No entanto, a Plataforma não faz qualquer controlo sobre a rota que o estafeta faz para concluir essa entrega.
66. Nos termos da cláusula 4.k. dos termos e condições aplicáveis, o Estafeta “é livre para escolher o sistema de GPS da sua preferência na App (entre Waze, Google Maps ou Uber GPS) ou usar qualquer outro sistema de GPS que não seja integrado na App da Uber, ou não usar nenhum sistema de GPS.
67. Tal permite que o estafeta escolha a sua rota livremente.
68. O GPS serve para apresentar propostas de entrega aos estafetas que estão mais bem posicionados para recolher a encomenda.
69. Após a aceitação de cada entrega, o sistema de navegação escolhido pelo Estafeta mostrará a rota a seguir em vez do sistema de navegação disponibilizado na Plataforma.
70. Também podem escolher não utilizar qualquer sistema de navegação GPS,
71. sem qualquer consequência por si só.
72. Os estafetas escolhem onde querem desenvolver a sua atividade.
73. Ainda que rejeite ou ignore as propostas de entrega, e enquanto se mantiver ligado, o estafeta continuará a receber novas propostas na Plataforma.
74. São livres na forma como se apresentam, nomeadamente a roupa e o equipamento que querem usar (incluindo utilizar a marca de concorrentes) e o veículo (mota ou bicicleta) que utilizam para efetuar as entregas.
75. Podem substituir-se por outro estafeta no exercício da sua atividade, o qual deve preencher os mesmos requisitos de inscrição e sujeitar-se a reconhecimento facial, sendo que os rendimentos são negociados entre o substituído e o substituto.
76. Os substituídos e os substitutos podem interromper a substituição a qualquer momento.
77. O estafeta pode prestar atividade a terceiros, incluindo via outra plataforma.
78. Os estafetas podem ter a sua própria clientela e atendê-la com liberdade e sem necessidade de comunicar isso à Uber Eats.
79. Também podem usar outras plataformas concorrentes, incluindo ao mesmo tempo que estão a prestar a sua atividade na Plataforma.
80. Não estão adstritos a qualquer obrigação de exclusividade, podendo livremente escolher prestar a sua atividade através de outras plataformas digitais ou qualquer outro meio que escolham, sem necessidade de consentimento ou de dar conhecimento à Uber Eats.
81. O período de tempo que um estafeta permanece com a sessão iniciada na aplicação pode não corresponder a prestação efetiva de atividade, uma vez que os estafetas são livres de aceitar e rejeitar propostas de entrega.
82. A utilização de algoritmos na Plataforma visa torná-la mais eficiente.
83. Os requisitos legais e de segurança de registo na Plataforma são os seguintes: idade mínima de 18 anos; certificado de residência, se for cidadão de um país não pertencente à União Europeia; carta de condução, se conduzir uma mota; seguro, se conduzir uma mota; e, até há cerca de três meses atrás, ausência de antecedentes criminais, requisito que foi entretanto abolido.
84. A Ré não exige que os estafetas estejam disponíveis durante uma determinada hora do dia, que estejam ligados à Plataforma, que cumpram um determinado número de entregas ou que trabalhem durante um determinado número de horas.
85. Os estafetas são remunerados pela entrega do produto do comerciante ao cliente e não pelo tempo que demoram a concluir a entrega nem pelo tempo que se encontram ligados na Plataforma.
86. (não provado)
87. A Ré permite que os parceiros de entregas possam nomear um substituto para prestar serviços de entrega em seu nome, desde que reúnam os mesmos requisitos.
88. A Ré removeu também da plataforma a classificação dos estafetas com base na taxa de satisfação, retirando da aplicação a apresentação das métricas relativas à taxa de satisfação, à taxa de aceitação (de pedidos) e à taxa de cancelamento.
89. Os termos e condições de utilização da plataforma UBER EATS para os estafetas foram e estão predefinidos pela Ré;
90. A referida aplicação informática e o website da UBER EATS, que os estafetas usam na sua atividade, estão na posse da Ré, a qual mantém aquelas ferramentas informáticas nos seus servidores, onde guarda as bases de dados e o software necessários para o seu funcionamento, assumindo também a Ré a responsabilidade pelo suporte, desenvolvimento, manutenção e divulgação das referidas aplicação e página web.
91. AA desempenhou atividade de estafeta no âmbito da plataforma da Ré durante cerca cinco meses, entre Setembro de 2023 e Fevereiro de 2024, sendo que, durante esse período, trabalhava para aquela sete dias por semana, 6 a 7 horas por dia, e não mais por quase não receber pedidos fora do horário das refeições.
92. Com as entregas, obtinha em média, semanalmente, entre 150 a 200 euros.
93. Suporta o valor de 200 € por mês a título de renda de casa.
94. Procurou, mas não encontrou trabalho com contrato.
95. Procurava executar a sua atividade sempre como via descrito na aplicação.
96. As normas dos Termos e Condições estavam em Língua Portuguesa, mas depois o estafeta fez a tradução.
97. Completou o 10º ano.
98. (eliminado)
99. Chegou a ver descrito com cores, na app, como era a prestação dele.
100. Seguia sempre o mapa disponibilizado porque era a melhor opção e porque, quando tem um pedido novo, recebe o pedido se estiver naquela zona ou área.
101. Até Dezembro de 2023, trabalhou em exclusivo para a Uber, não dispondo de qualquer outra fonte de rendimento.
102. Entre Dezembro de 2023 e Fevereiro de 2024, trabalhou também para a Glovo.
103. Quando recebia pedidos da Glovo, desligava da Uber.
104. A partir de Fevereiro de 2024, passou a prestar atividade exclusivamente para a Glovo por entender que esta pagava mais.
105. Desconhecia a funcionalidade da Uber Eats que lhe permitia escolher ser pago com mais ou com menos.
106. Se tinha mais do que um pedido e ficava na mesma trajetória, aceitava.
107. Como a grande maioria dos pedidos são refeições, caem sobretudo durante a hora de almoço e de jantar.
108. Quando tem um pedido novo, só recebe o pedido se estiver naquela zona ou área do pedido anterior se tiver aceite há pouco.
109. (eliminado)
110. (eliminado)
111. (não provado)
112. (não provado)
113. Durante o fim-de-semana há mais pedidos.
114. A necessidade de localização do estafeta para além do momento de aceitação de pedidos está prevista cláusula 4, al. m, dos Termos e Condições do Contrato.
115. Apenas quanto ao estafeta existe uma cláusula somente destinada a consagrar «as suas obrigações».
116. Para além dessas, outras estão previstas ao longo do restante clausulado: por exemplo, na cláusula 9ª, impõe-se que o estafeta não partilhe com ninguém o seu dispositivo nem entre na app a partir de outro.
117. Na al. 15-g), prevê-se a possibilidade de Uber manter um seguro relacionado com a prestação de serviços de entrega pelo estafeta, «tal como venha a determinar discricionariamente».
118. (não provado)
119. Na cláusula 20ª dos Termos e Condições, prevê-se que a R. possa fazer alterações ao contrato, disso avisando o estafeta co antecedência de 15 dias, mas não estabelece as matérias sobre as quais tais alterações poderão vir a incidir.
120. A cláusula 21º dos Termos e Condições consagra a ajuda a que o estafeta pode recorrer em caso de problemas ou reclamações, estabelecendo que darão resposta em prazo razoável, podendo os estafetas conversar com a ajuda em tempo real.
121. No Menu «Ajuda» da app, existe um separador «Ajuda com a minha viagem» e a opção «Problemas com cliente de entrega».
122. O estafeta pode visualizar no separador «Uber Eats Pro de quantos pontos dispõe, de quais as recompensas, como sendo aulas de idiomas, descontos em combustível entre outros.
123. O preço por quilómetro a pagar ao estafeta varia entre dez cêntimos e noventa e nove euros.
124. (eliminado)
125. Na cláusula 5º, nº1, al. J), dos Termos e Condições, estabelece-se que, com exceção das portagens, qualquer outro custo decorrente da viagem corre por conta do estafeta.
126. Na opção registo de parceiro de frota independente, estabelece-se o pressuposto de atividade aberta nas finanças.
127. Não é pressuposto de qualificação o domínio de qualquer idioma.
128. (eliminado)
129. (eliminado)
130. O primeiro critério de escolha de estafeta para apresentação de pedido que o programa da app faz é a distância do ponto de recolha, ainda que combinado com outros critérios, como sendo a distância do ponto de entrega e sem prejuízo de outras variáveis não apuradas (pontos 2 e 4 dos factos não provados).
131. (eliminado)
132. Se os estafetas optarem por não aderir ao Uber Eats Pro, a não adesão não tem qualquer impacto na sua relação com a Ré ou na sua experiência ao utilizar a Plataforma.
133. A Ré não premeia nem penaliza a forma como o Estafeta completa encomendas, especialmente no que toca às rotas seguidas pelos mesmos e à forma como interagem como os clientes.
134. A Plataforma/aplicação/website da Uber Eats não são propriedade da Ré nem é esta que faz a sua manutenção.
135. O Prestador de Atividade é livre de decidir onde vai realizar a sua atividade, desde que a área de atividade escolhida esteja coberta pela plataforma, bem como de optar por não receber propostas de entrega de determinados clientes e/ou comerciantes.
136. A mochila não é uma regra específica da plataforma.
137. A R. não faz uso do feedback dado pelos clientes e restaurantes quanto ao desempenho do estafeta e quanto à experiência com a aplicação.
***
O DIREITO:
Conforme supra decidido a sentença recorrida revela-se obscura na concatenação que efetuou entre os factos e o direito, pelo que sofre de nulidade.
A nulidade da sentença, no caso concreto, não obsta ao conhecimento do objeto da apelação, designadamente no que concerne às questões de cariz eminentemente jurídico que elencámos.
Passamos, pois, a conhecer delas, tal como permitido pelo que se dispõe no Artº 665º/1 do CPC.
A primeira dessas questões, que tomou o 3º lugar no elenco, reporta-se à não verificação da presunção de laboralidade no caso concreto.
A sentença teve como aplicável o CT/2009 na redação introduzida pela Lei 13/2023 de 3/04 que vigora desde 1/05/2023, o que não merece reparo, dado que o prestador desempenhou a sua atividade entre Setembro de 2023 e Fevereiro de 2024.
A propósito da fundamentação jurídica da sentença diz a Apelante que se deparou com francas dificuldades interpretativas, propondo-se, no entanto, demonstrar a razão pela qual não se pode ter como considerada verificada qualquer presunção. E, pegando na presunção que enforma o Artº 12ºA do CT, faz todo um percurso do qual emerge não estar preenchida a respetiva fattispecie.
O contrato de trabalho é definido no Código do Trabalho de 2009 como aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob autoridade destas (Artº 11º).
As dificuldades de demonstração de existência de um contrato de trabalho são conhecidas dada a presença neste e em contratos de prestação de serviços de elementos coincidentes, mas, não obstante, também de outros distintivos, elegendo-se como elemento diferenciador a subordinação jurídica.
Ocorre, porém, que esta, também não é, bastas vezes, facilmente apreensível, muito especialmente quando se perspetive o exercício de profissões com elevado grau de autonomia. E, como no caso, quando o modelo contratual, desenvolvido através de uma plataforma digital, apresenta características distintivas designadamente porque o trabalho se apresenta como radicalmente distinto na forma como é organizado e realizado. Um modelo de trabalho em que, em regra, os algoritmos “desempenham um papel crucial no processamento e rastreio de grandes quantidades de dados, o que é fundamental para as plataformas, que dependem de uma correlação eficiente entre a oferta e a procura”4.
Ciente das dificuldades atinentes à qualificação de uma relação como de trabalho subordinado, o legislador consagrou no Artº 12º do CT, uma presunção de contrato de trabalho, o que resulta na dispensa do encargo do ónus da prova que recairia sobre o trabalhador de todos os elementos que caracterizam o contrato de trabalho tal como ele é definido no Artº 11º do CT.
Efetivamente, quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (Artº 350º/1 do CC).
Como ensina José Lebre de Freitas, a parte que beneficia da presunção (a que invoca o direito, quando o facto é constitutivo; aquela contra a qual a invocação é feita, quando o facto é impeditivo, modificativo ou extintivo) não tem de provar por outro meio o facto presumido, cabendo à outra parte provar, por qualquer meio, o facto contrário para que o resultado probatório obtido com a presunção seja afastado (Artº 347º), dizendo-se então ilidida a presunção legal5.
Assim, por força de tal presunção, a quem alegue a existência de um contrato de trabalho, basta agora evidenciar algumas das características ali enunciadas – os denominados factos base-, ficando o beneficiário da prestação com o ónus de demonstrar a situação de autonomia ou, melhor dizendo, de não subordinação jurídica. É que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, exceto nos casos em que a lei o proibir (Artº 350º/2 do CC).
Nas palavras de Maria do Rosário Palma Ramalho, “a qualificação laboral do negócio pode ser afastada se o empregador provar a autonomia do trabalhador ou a falta de outro elemento essencial do contrato de trabalho6”, a saber, a atividade, a retribuição, a subordinação.
E, assim, agora pode concluir-se estar-se em presença de um contrato de trabalho se se demonstrarem alguns dos índices legais. E sem que cumpra ajuizar da maior ou menor relevância dos mesmos, pois se a inferência é efetuada pelo legislador, ao aplicador cumpre apenas verificar da evidência do elemento que integra a presunção. A relevância de determinado facto está na consagração legal, não nas mãos do aplicador.
Na verdade, “legal ou judicial, baseia-se numa regra de experiência, que estabelece a ligação entre o facto conhecido que está na base da ilação e o facto desconhecido que dele é derivado: atendendo ao elevado grau de probabilidade ou verosimilhança da ligação concreta entre o facto que constitui base da presunção e o facto presumido, este é dado como assente quando o primeiro é provado”. A presunção legal baseia-se em regras da experiência, “que o legislador tem em conta quando cria a regra da ligação entre o facto base da presunção e o facto presumido7”.
Contudo, a contraparte pode convencer que a atividade prestada, apesar da ocorrência daquelas circunstâncias que integram a presunção, configura uma relação que não é uma relação de trabalho subordinado.
O Ac. do STJ de 2/07/2015 é explícito nesta matéria. Aqui se explica, com clareza a distinção imposta pelo novo regime na apreciação do acervo fático de modo a concluir pela caracterização do contrato como de trabalho.
Consignou-se ali que “A técnica da presunção da existência de contrato de trabalho, consagrada no artigo 12.º do Código do Trabalho, embora seja inspirada no modelo indiciário tradicional, altera radicalmente o cenário da prova dos elementos integrativos do contrato de trabalho. Na verdade, ao contrário do modelo indiciário, que apelava a uma ponderação global dos elementos caracterizadores da concreta relação estabelecida entre partes, destacando nos mesmos aqueles que apontam para a subordinação jurídica, a sopesar com os que apontem no sentido da autonomia, de forma a encontrar o sentido global caracterizador da relação, a demonstração da existência de contrato de trabalho vai ficar agora dependente, e apenas, da demonstração de «alguns» dos índices consagrados nas alíneas do n.º 1 do artigo 12.º” (Proc.º 182/14.4TTGRD, www.dgsi.pt).
Centremo-nos, então, na estatuição que nos ocupa.
É o seguinte o teor do novel Artº 12ºA:

Artigo 12.º-A
Presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;
b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;
c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;
d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;
e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;
f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.
2 - Para efeitos do número anterior, entende-se por plataforma digital a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios.
3 - O disposto no n.º 1 aplica-se independentemente da denominação que as partes tenham atribuído ao respetivo vínculo jurídico.
4 - A presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata.
5 - A plataforma digital pode, igualmente, invocar que a atividade é prestada perante pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores.
6 - No caso previsto no número anterior, ou caso o prestador de atividade alegue que é trabalhador subordinado do intermediário da plataforma digital, aplica-se igualmente, com as necessárias adaptações, a presunção a que se refere o n.º 1, bem como o disposto no n.º 3, cabendo ao tribunal determinar quem é a entidade empregadora.
7 - A plataforma digital não pode estabelecer termos e condições de acesso à prestação de atividade, incluindo na gestão algorítmica, mais desfavoráveis ou de natureza discriminatória para os prestadores de atividade que estabeleçam uma relação direta com a plataforma, comparativamente com as regras e condições definidas para as pessoas singulares ou coletivas que atuem como intermediários da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores.
8 - A plataforma digital e a pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores, bem como os respetivos gerentes, administradores ou diretores, assim como as sociedades que com estas se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, são solidariamente responsáveis pelos créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, celebrado entre o trabalhador e a pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital, pelos encargos sociais correspondentes e pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contraordenação laboral relativos aos últimos três anos.
9 - Nos casos em que se considere a existência de contrato de trabalho, aplicam-se as normas previstas no presente Código que sejam compatíveis com a natureza da atividade desempenhada, nomeadamente o disposto em matéria de acidentes de trabalho, cessação do contrato, proibição do despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias, limites do período normal de trabalho, igualdade e não discriminação.
10 - Constitui contraordenação muito grave imputável ao empregador, seja ele a plataforma digital ou pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores que nela opere, a contratação da prestação de atividade, de forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado.
11 - Em caso de reincidência, são ainda aplicadas ao empregador as seguintes sanções acessórias:
a) Privação do direito a apoio, subsídio ou benefício outorgado por entidade ou serviço público, designadamente de natureza fiscal ou contributiva ou proveniente de fundos europeus, por período até dois anos;
b) Privação do direito de participar em arrematações ou concursos públicos, por um período até dois anos.
12 - A presunção prevista no n.º 1 aplica-se às atividades de plataformas digitais, designadamente as que estão reguladas por legislação específica relativa a transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica.
Vejamos, pois!
Não sem que antes manifestemos que na estatuição assim efetuada se recorre a um conjunto de conceitos de direito que muito dificultam a tarefa do intérprete/aplicador do direito.
Analisemos ponto por ponto, desde já se afirmando, como também vem sendo uniformemente decidido, que basta o preenchimento de dois deles para que se presuma a existência de contrato de trabalho.
a)A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela
Em matéria remuneratória do trabalho prestado temos os pontos 21 e 38 a 44, dos quais emerge que o prestador recebia, como contrapartida da sua atividade, um valor por cada pedido/entrega efetuada expresso naquilo que nos pontos 38 e ss. se denomina taxa de entrega, ao que acrescia a taxa por quilómetro. Pode determinar a sua taxa mínima por quilómetro, o que vai determinar as propostas de serviço que vai receber. A taxa de entrega é-lhe proposta, sendo a taxa por quilómetro calculada tendo por base a taxa de entrega e o número de quilómetros. Mais se prova que pode ajustar o seu preço por quilómetro sempre que queira baixá-lo.
Não vemos, pois, como se tenha este facto base como verificado, porquanto não há indícios de fixação de uma retribuição pela plataforma – retribuição é, para efeitos do disposto no Artº 258º do CT, a contrapartida pela atividade prestada, uma prestação regular e periódica-, nem de estabelecimento de limites máximos e mínimos – o prestador recebe uma taxa consoante o resultado da sua atividade, taxa essa que pode determinar.
b)A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade
Os factos não revelam o exercício de poderes de direção por parte da Apelante.
O poder de direção exprime-se pela faculdade de determinação e orientação da atividade de terceiro, traduzindo-se na imposição de regras através de ordens e instruções concretas no exercício da atividade.
Os factos revelam, antes, um elevado grau de autonomia expresso nos pontos 24, 35, 56, 67,74, 75, 77, 78, 79, 80, 81, 84.
c)A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica
Sobre este facto índice o acervo fático não elucida. Na verdade, não há nenhum elemento no acervo fático que nos permita concluir por este controlo e supervisão. Bem pelo contrário, os autos evidenciam liberdade no exercício da atividade, seja em matéria de horário (ponto 35), seja de decisão de trabalhar ou não (ponto 20, 58), seja ainda na possibilidade de recusa de pedidos (ponto 24, 56), seja pela ausência de controlo de rota (ponto 65, 67).
d)A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma
Não encontramos no acervo fático qualquer respaldo desta realidade. O que já resulta evidenciado a propósito do que acima expusemos.
e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através da desativação da conta
Reportar-se-á esta alínea aos poderes disciplinar e regulamentar, pois, o poder diretivo já se contém nas precedentes alíneas b) e c). Poder de sancionar e de emitir regulamentos internos sobre a organização e disciplina do trabalho, pois! Especificamente quanto ao poder disciplinar, o mesmo pressupõe a existência de ordens e instruções vinculativas, um controlo permanente do cumprimento do contrato em toda a sua dimensão e, bem assim, um conjunto de sanções a aplicar consoante a gravidade da conduta. Será por reporte a esta dimensão que deve interpretar-se esta alínea quando reporta à exclusão de futuras atividades na plataforma, que, é claro, se conexiona com o exercício de poderes de direção.
Também quanto a esta matéria não vislumbramos no acervo fático algum laivo dela.
f)Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação
Sobre pertença de equipamentos nada revelam os autos. O único equipamento explorado pela R. é a aplicação móvel (ponto 2) da qual depende a exploração da plataforma tecnológica. Mesmo assim, consideramos duvidoso, tal como diz a Apelante, que a aplicação se possa ter como equipamento ou instrumento de trabalho, pois a mesma é um software e este não pode ter-se como um utensílio nos mesmos moldes que um hardware8. Não parecendo curial que, visto que a atividade em causa não pode ser exercida senão através de aplicação informática, então este indício se teria, à partida, e desde sempre, como preenchido. Daí que tendamos a considerar, como proposto aliás em pareceres juntos aos autos9, que o que está aqui em causa são bens corpóreos10.
Concluímos, deste modo, que nenhum dos factos base desta presunção se mostra preenchido.
E que dizer da presunção de laboralidade ínsita no Artº 12º11?
Dispõe o Artº 12º:
1 - Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:
a. A atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;
b. Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade;
c. O prestador de atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;
d. Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma;
e. O prestador de atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.
Compulsado o acervo fático verificamos que nenhum destes factos base se preenche, sendo dispensável repetir quanto acima já deixámos explicado.
Na verdade, o prestador realiza a atividade de distribuição de refeições conforme os pedidos que aceita, efetuando as entregas nos locais que decide aceitar. Sem que utilize equipamentos próprios da contratante, e sem que observe qualquer horário previamente estabelecido ou lhe seja paga alguma quantia certa pela atividade desenvolvida, também não desempenhando funções de chefia ou direção.
Não se preenchem, pois, nenhum dos factos que indiciam uma situação de laboralidade.
Procede, deste modo, a questão em análise.
*
A procedência desta questão tem como consequência ficar prejudicada a análise da 4ª questão – a ilisão da presunção.
*
Subsiste, porém, a 5ª – a não existência de contrato de trabalho.
Afirmou-se na conclusão final da sentença que “à luz do art. 342º do Cód. Civil, ficaram demonstrados factos que, devidamente conjugados no aturado exercício de hermenêutica diatópica exposto, caracterizam uma relação laboral.
Alega a Apelante que tendo, aparentemente, decidido que a presunção não operou, o Tribunal a quo recorreu ao método indiciário, não ao tradicional, mas um método indiciário próprio, desenvolvendo uma tese que recorre a factos e a características que estão longe de ter respaldo legal, e mesmo até doutrinal e jurisprudencial. Quando não se verifica a presunção, como poderá ser aqui o caso, cabe ao Tribunal avaliar a factualidade provada e não provada, concluindo, a final, pela existência ou inexistência de subordinação jurídica através do método indiciário tradicional. A qualificação de vínculo não pode deixar de perder de vista o conceito de contrato de trabalho Afirma, após, que inexiste uma atividade laboral, bem como inexiste subordinação jurídica.
No capítulo titulado por subsunção dos factos ao direito, a sentença contrapôs a argumentos que denominou de contraindícios – liberdade de escolha de horário, titularidade dos instrumentos de trabalho por parte do prestador, ausência de ordens, falta de remuneração fixa, ausência de poderes disciplinares, não exclusividade, autonomia do estafeta12
De notar que muita da factualidade relevada pela sentença desapareceu após a decisão que incidiu sobre a impugnação da matéria de facto. Mas também que a sentença partiu de pressupostos não evidenciados. E sobretudo revelou uma preocupação algo inusitada – em vez de subsumir os factos ao direito, deteve-se abundantemente em contrariar argumentos doutrinais e jurisprudenciais!
Apreciando, tendo em vista a resposta à questão em análise!
O contrato de trabalho caracteriza-se essencialmente pelo estado de dependência jurídica em que o trabalhador se coloca face à entidade empregadora, sendo que o laço de subordinação jurídica resulta da circunstância do trabalhador se encontrar submetido à autoridade e direção do empregador que lhe dá ordens, enquanto na prestação de serviço não se verifica essa subordinação, considerando-se apenas o resultado da atividade.
A subordinação jurídica consiste numa relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem.
Daí que desde sempre se venha entendendo que para que se conclua por uma situação de subordinação jurídica, o empregador deve ter efetivo poder determinativo da função, poder conformativo da prestação e poder na elaboração de horário de trabalho13.
É sabida a dificuldade existente na concretização desta figura. Daí que, quer a Doutrina, quer a Jurisprudência venham apelando ao recurso a indícios reveladores da existência de subordinação jurídica, que é o elemento por excelência caracterizador do contrato de trabalho. Significa isto que a subordinação se há-de determinar “por um conjunto de características que podem surgir combinadas, nos casos concretos, de muitas maneiras”14. Fala-se, pois, de um método tipológico ao qual os tribunais devem recorrer para decidir os casos concretos, método que parte da avaliação de indícios vários. Indícios que, admitimos, merecem distinta leitura à luz da realidade emergente da denominada era digital.
Tais indícios prendem-se (tradicionalmente) com a existência de horário de trabalho, a prestação da atividade em local previamente definido pelo empregador, a existência de controlo no exercício da atividade, a utilização de bens do beneficiário da atividade, a sujeição a poder disciplinar, a modalidade de retribuição, a atribuição de categoria profissional, o não recurso, pelo executante, a colaboradores externos, a repartição do risco, ou mesmo a observância de um ou outro regime fiscal e de segurança social, enfim, impõe-se que recorramos a elementos próprios de uma organização laboral. Há, ainda, indícios externos ao próprio contrato que podem elucidar, como por exemplo, a prestação da mesma atividade para outrem.
Não é, contudo, imperativo que todos os indícios se verifiquem em cada caso, assumindo cada um deles valor relativo, devendo fazer-se um juízo de globalidade em relação à situação concreta evidenciada no acervo fático. Imperativo é, porém, que dos indícios presentes se possa, sem dúvidas razoáveis, concluir pela existência de contrato de trabalho por estar presente a característica que o define, a saber, a subordinação jurídica.
Ora, como bem nota Pedro Romano Martinez, “os tradicionais indícios desatualizaram-se com a evolução tecnológica, com diferentes modos de organização do trabalho”15.
Não despicienda é também a reflexão de Maria do Rosário Palma Ramalho que ensina que “o reconhecimento tradicional do poder diretivo como critério qualificativo por excelência do contrato de trabalho, enquanto reverso da subordinação do trabalhador merece ser reponderado, porque corresponde a uma visão excessivamente estreita da própria subordinação e porque o poder de direção é pouco saliente como marca distintiva do contrato de trabalho”16. Propõe, por isso, uma visão integrada dos dois poderes laborais como critério decisivo para a qualificação do contrato: o poder diretivo e o poder disciplinar, porquanto o vigor daquele é assegurado pela existência deste.
O poder disciplinar, contudo, estando pressuposto sempre que exista contrato de trabalho, nem sempre é visível, palpável, pressupondo apenas a hipótese de ver sancionada uma determinada conduta.
A tudo acresce a especificidade do trabalho em plataforma digital.
Na verdade, “hoje, através da gestão algorítmica de uma multidão de prestadores de atividade disponíveis para trabalhar (daí o termo crowdwork), estas empresas conseguem desenvolver o seu negócio e usufruir da respetiva mão-de-obra sem necessidade de recorrer a esses institutos tradicionais do Direito do Trabalho, provindos da era industrial17”. Sinalizando-se que, em conformidade com o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, “a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital”.
Cumprirá, então, definir o que é subordinação jurídica neste contexto.
Já há muito que os autores vêm afirmando que “a subordinação jurídica é uma noção de geometria variável, comportando uma extensa escala gradativa18”. Desse modo, o peso dos tradicionais indícios não será agora o mesmo, o que se admite dadas as novas possibilidades de execução de contrato de trabalho, nomeadamente em teletrabalho ou mediante isenção de horário. O CT terá mesmo evoluído no sentido da valorização da inserção numa organização em detrimento da precedente noção acoplada ao poder diretivo. É assim que no Artº 11º se define contrato de trabalho como aquele em que uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra no âmbito de organização e sob autoridade desta. E assim será a inserção numa organização alheia, com submissão à respetiva autoridade, o elemento distintivo19. Ou seja, o “elemento chave de identificação do trabalho subordinado há-de, pois, encontrar-se no facto de o trabalhador não agir no seio de uma organização própria, antes se integrar numa organização de trabalho alheia, dirigida à obtenção de fins igualmente alheios…, o que implica, da sua parte, a submissão às regras que exprimem o poder de organização do empregador”20.
Recentemente o STJ afirmou que a inserção estável e duradoura na organização da contraparte contratual, a exclusividade, a utilização de meios de produção disponibilizados pela contraparte, as instruções concretas para o exercício das funções são indícios que, avaliados no seu conjunto, levam à conclusão da existência de uma relação de trabalho subordinado21.
Numa abordagem à questão do trabalho em plataforma digital, em que, contrariamente ao que se passa no caso presente, se preenchiam vários dos factos base da presunção de laboralidade, o STJ concluiu22:
II. Sendo certo que a qualificação de determinada situação jurídica exige sempre uma abordagem holística, em que todos os factos e circunstâncias relevantes são tidos na devida conta, a favor de uma relação de trabalho subordinado, há a considerar, desde logo, uma forte inserção do estafeta na organização algorítmica da R., encontrando-se o mesmo, inclusivamente, enquanto elemento do respetivo serviço de entregas, abrangido por um seguro de acidentes pessoais.
IV. Conexamente com este elemento organizacional, também assume especial relevo a circunstância de pertencerem e serem geridas/exploradas pela R. a plataforma digital e aplicações a ela associadas (App), as quais – enquanto intermediário tecnológico no processo de transmissão dos dados relativos aos pedidos formulados pelo utilizador-cliente – são os instrumentos de trabalho essenciais do estafeta.
V. Toda a sua atividade está condicionada pela efetiva ligação/conexão a estas ferramentas digitais, pelo que, neste contexto, não assume relevo decisivo o facto de o estafeta escolher a área em que trabalha, poder recusar serviços e conectar-se/desconectar-se da aplicação sempre que o entenda, sem ter de cumprir qualquer horário predefinido, nem de cumprir qualquer limite mínimo de tempo de disponibilidade.
VI. O estafeta encontrava-se na dependência económica da ré e trabalhou regularmente, em regra, diariamente. A existência de um horário de trabalho não é elemento essencial do contrato de trabalho, tal como nada obsta a que o trabalhador seja pago “à peça”, sendo que esta forma de cálculo da retribuição se reconduz, no fundo, a uma forma modificada do salário por tempo. Também não é de valorizar a circunstância de o estafeta poder alterar o valor base dos serviços mediante a aplicação de um multiplicador, uma vez que esta ferramenta era disponibilizada pela própria ré e dentro dos limites por esta fixados.
VII. Independentemente da margem de liberdade reconhecida ao estafeta no exercício da sua atividade, é indiscutível que esta é desenvolvida num quadro de regras específicas definidas pela empresa, a qual – nos termos que tem por adequados e consentâneos com a prossecução do seu modelo de negócio – também controla e supervisiona a atuação da contraparte, tal como tem a possibilidade de exercer o poder disciplinar, mediante a suspensão ou desativação da respetiva conta.
VIII. Tudo a sugerir, pois, que o estafeta igualmente se encontrava sujeito à autoridade da R., sendo certo que a subordinação pode ser meramente potencial, não sendo necessário que se traduza em atos de autoridade e direção efetiva.
E a RG proclamou que no que respeita à relação entre estafeta e plataforma, o conceito de “subordinação” deve ser visto à luz da nova realidade, sendo de relevar a inserção do estafeta na estrutura económica da ré, na organização produtiva encarnada pela plataforma, e a inexistência de uma estrutura organizada por parte do estafeta e a sua dependência dessa organização, quer quanto ao trabalho, quer económica23. O que, verdadeiramente, reduz a subordinação jurídica à inserção num certo modelo organizacional, situação da qual discordamos, pois, para além da inserção organizacional, continua a exigir-se um certo grau de submissão capaz de traduzir os poderes associados à posição de empregador – submissão a regras que exprimam o poder de organização24.
Tendo por base estes novos parâmetros, revelarão os autos fortes indícios de subordinação jurídica?
A resposta é negativa.
A prestação desenvolvia-se, é claro, através de uma plataforma digital que é uma especificidade da atividade em equação. O acesso a tal plataforma pressupõe o cumprimento de um conjunto de regras próprias, o que não difere do exercício de atividade no âmbito de qualquer outra empresa, seja em regime de contrato de trabalho, seja em regime de contrato de prestação de serviços. Muito concretamente o registo e acesso mediante cumprimento de alguns critérios (pontos 2, 3, 9, 10, 11, 15, 53). Estando também evidenciada a contratualização de um seguro por parte da R. (ponto 34) e a necessidade de localização mediante GPS. Porém, não como forma de controle, mas apenas como modo de apresentação de ofertas de entrega (ponto 62, 63, 64).
O equipamento utilizado pelo prestador – mochila e veículo- pertencia-lhe, recorrendo ele, é claro, à APP da plataforma instalada no seu smartphone.
A decisão de aceder a esta cabia-lhe (ponto 20), não havendo, pois, qualquer compromisso prévio para o exercício de atividade com a R., revelando mesmo os factos que exerceu a mesma atividade em simultâneo para duas plataformas digitais (ponto 102). Podia recusar pedidos e bloquear estabelecimentos e clientes (pontos 24, 73), não obedecia a qualquer horário imposto (ponto 35) e pode mesmo recorrer a intermediários, o que fez (pontos 36, 37), fazer-se substituir (pontos 75, 87) ou escolher o local da atividade (ponto 72).
Era pago pelo resultado da sua prestação (pontos 21, 38, 44, 85), escolhendo o momento em que deverá ser pago (ponto 48), bem como quando quer aceitar pedidos (ponto 56).
A plataforma não faz qualquer controlo sobre a rota escolhida (pontos 65, 67, 70).
Expressiva é também a circunstância de poder passar dias, semanas, meses sem se ligar à plataforma, mantendo a conta ativa, ou seja, não sofrendo consequências (ponto 58). E, bem assim, a ausência da circunstância de a R. não premiar ou penalizar a forma como se desenvolve a atividade (pontos 133, 137).
Isto posto, voltemos às características que enformam o contrato de trabalho. Um contrato intuitus personae no qual relevam as características pessoais do trabalhador, algo não presente no caso concreto, pois, como se provou, é mesmo permitida a substituição entre estafetas. Claro que tal substituição pressupõe o registo na plataforma. Porém, essa é uma questão de segurança dos utilizadores e de garantia do cumprimento dos requisitos para o exercício da atividade. Do nosso ponto de vista, esta possibilidade de substituição revela que à ré não interessa a atividade daquele concreto prestador; antes o seu interesse reside no resultado.
Também os poderes associados ao contrato de trabalho estão ausentes ou muito mitigados. Do poder de direção, que se manifesta pela transmissão de ordens ou instruções no exercício da atividade, não vemos rasto. O mesmo se dizendo do poder disciplinar, sendo uma evidência que os prestadores podem até recusar trabalho sem que daí emerjam consequências. Não releva para efeito de aferição de potencial poder disciplinar o clausulado transcrito no acervo fático, que não se prende com a imposição de alguma sanção disciplinar. Antes traduz a regulamentação inerente ao exercício da atividade.
Relativamente à retribuição, característica fundamental no contrato em referência, encontramos um sistema de pagamento à peça/quilómetro percorrido. Como é sabido, a retribuição para efeitos de laboralidade, pressupõe a remuneração do tempo de trabalho25.
Também estão ausentes obrigações de assiduidade ou de cumprimento da atividade contratada ou de disponibilidade da força de trabalho. Ora, conforme alegado pela Apelante, no contrato de trabalho, acentua-se a obrigação de disponibilidade do trabalhador, que se compromete a uma prestação contínua de atividade.
A circunstância de o prestador não ter a possibilidade de negociar os termos do contrato, tida como supremacia de uma das partes perante a outra, o que, dir-se-á, não é próprio do trabalho autónomo que, por princípio, obedece a uma negociação paritária entre as partes, traduz um argumento que não colhe, pois são inúmeros os contratos de adesão, não sendo tal característica que permite qualificar a subordinação.
Com o devido respeito não podemos retirar dessa circunstância alguma conclusão acerca da natureza do contrato. Esta afere-se pela prática inerente à subsequente contratação.
Enfim, tudo ponderado não vemos no conjunto de factos cuja prova se obteve indícios de contrato de trabalho, não obstante se admitir a inserção numa certa organização, porém sem que os autos evidenciem o exercício de poderes de autoridade conformes à disciplina laboral (Artº 11º do CT).
Procede a apelação.
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Não há lugar a custas, visto o A. (vencido), delas estar isento.
*
Em conformidade com o exposto, acorda-se em declarar nula a sentença, modificar o acervo fático conforme sobredito e julgar a apelação procedente, absolvendo a R. do pedido.
Notifique.
Lisboa, 24/09/2025
MANUELA FIALHO
LEOPOLDO SOARES
MARIA JOSÉ COSTA PINTO
(Não acompanho na sua integralidade os fundamentos do acórdão na medida em que entendo poderem considerar-se preenchidas as hipóteses das alíneas a) e e), do n.º 1, do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, face à factualidade apurada, o que determina que opere a presunção de laboralidade prevista neste preceito.
Todavia, voto a decisão porquanto considero que os factos que no texto do acórdão se ponderam globalmente com vista à qualificação jurídica das relações contratuais em presença, são suficientemente demonstrativos da autonomia do prestador quando desenvolve a atividade de estafeta, pelo que consideraria ilidida a indicada presunção.)
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1. Pois é nesta sede que se pode perspetivar a invocada contradição
2. De cuja redação consta: “Sem prejuízo dos pontos 2 e 4 dos factos não provados quanto ao eventual impacto de feedback negativo dos clientes, a R. não premeia…”
3. Não provado que a R. não utiliza algoritmos para controlar, nem para supervisionar, nem para verificar a qualidade da atividade dos estafetas, como também não os utiliza para aplicar qualquer tipo de medidas
4. João Leal Amado e Teresa Coelho Moreira, PLATAFORMAS DIGITAIS, QUALIFICAÇÃO DO CONTRATO E SUBSTITUIÇÃO DE ESTAFETAS: A “BALA DE PRATA”?, RIDT, Ano IV, Junho 2024, Nº 6, 137
5. Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, Vol. I, Almedina, 435
6. Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, Almedina, 51
7. José Lebre de Freitas, ob. cit., 434
8. É expressivo o exemplo disponibilizado: o equipamento de trabalho é o telemóvel onde é instalada a aplicação informática e não esta. Da mesma forma que o instrumento de trabalho de uma secretária é o computador que utiliza, e não o softwareword”, o “outlook” ou o “excel” que utiliza no exercício das suas funções
9. Subscritos por Joana Vasconcelos e Pedro Madeira de Brito
10. Neste sentido também os Ac. da RE de 12-09-2024 (proc. n.º 3842/23.5T8PTM e 3848/23.4T8PTM
11. Sobre esta não se pronuncia o recurso. Porém, é livre a indagação do juiz quanto ao direito aplicável
12. Sendo neste âmbito que avança com o seguinte argumento “em sede de apreciação casuística, se não ficar demonstrada em concreto a estabilidade e continuidade superior a 90 dias de acordo com o elenco de critérios que selecionámos fica, aí sim, comprometida a qualificação da relação como laboral.”
13. Neste sentido o Parecer publicado na R.D.E.S. – Ano XXIX, n.º 1 – Jan./Mar. de 1987, págs. 57 a 8, da autoria de Fernando Ribeiro Lopes
14. António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 22ª Ed., Almedina, 147
15. Direito do Trabalho, Almedina, 5ª Ed., 336
16. Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, Situações Laborais Individuais, 6ª Ed., Almedina,56
17. João Leal Amado, Teresa Coelho Moreira, As plataformas digitais, a presunção de laboralidade e a respetiva ilisão: nótula sobre o Acórdão da Relação de Évora, de 12/09/2024
https://observatorio.almedina.net/index.php/2024/10/08/as-plataformas-digitais-a-presuncao/
18. João Leal Amado, Contrato de Trabalho, Coimbra Editora, 69
19. Neste sentido, António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 18.ª ed., Almedina, 133-134
20. António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 22ª Ed., Almedina, 140
21. Ac. de 25/09/2024, Proc.º 12510/19.1T8SNT
22. Ac. de 28/005/2025, Proc.º 29923/23.7T8LSB.L1.S1
23. Ac. de 17/10/2024, Proc.º 2793/23.8T8VRL.G1
24. Neste sentido parece ir também o parecer junto aos autos, subscrito por Pedro Madeira de Brito (conclusões 6ª e 12ª)
25. Ac. do STJ de 9/09/ 2015, Proc.º. 3292/13.1TTLSB