LEI DE SAÚDE MENTAL
TRATAMENTO INVOLUNTÁRIO
PRESSUPOSTOS
PARTICIPAÇÃO DO REQUERIDO
Sumário

Sumário:
I – A Lei de Saúde Mental visa permitir a sujeição do doente a um tratamento involuntário, ou seja, contra a sua vontade manifesta.
II - A actual lei consagra o direito de participação do requerido na sessão conjunta, presencialmente ou por meio de equipamento tecnológico. Diferente era o preceito na anterior lei anterior pelo que se mostra manifesta a vontade do legislador de tornar igualmente válida a regra da audição à distância.
III – Conclui-se que a lei actual estabelece um direito especial da pessoa com necessidade de cuidados de saúde mental, no âmbito do processo de tratamento involuntário: o direito de participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito seja presencialmente seja por meio de equipamento tecnológico à distância.
IV – A recusa de sujeição a tratamentos médicos, acompanhada por automedicação, relacionadas com ideação delirante; negligência no autocuidado em termos de alimentação e saúde e ausência de crítica para a doença com recusa de tratamento proposto; são elementos fácticos que traduzem o concreto perigo que o Recorrente representa para si mesmo.
V - É à data da prolação da decisão que terão de verificar-se os pressupostos que justificam a aplicação de alguma medida, nada importando os eventos passados caso na atualidade não continue a manter-se o quadro justificativo invocado.
VI - Há que aferir da necessidade de internamento, pois este apenas pode ser determinado se não for viável prosseguir os fins do processo com uma intervenção ambulatória.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No Juízo Local Criminal de Mafra do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Por todo o exposto, julga-se estarem preenchidos todos os pressupostos legais para o tratamento involuntário de AA, em regime de internamento, determinando-se a sua manutenção, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 20.º, n.º 1, 4, 5 e 7, 21.º, n.º 1 e 2, 22.º, n.º 1, 2 e 3 e 23.º, n.º 1 e 33.º, todos da Lei de Saúde Mental.
Sem prejuízo das alterações de facto que, entretanto, possam ocorrer, a próxima revisão deverá ter lugar nos termos do artigo 25.º, n.º 2, da Lei de Saúde Mental, ou seja, decorridos dois meses sobre o início do tratamento ou sobre a decisão que tiver mantido o tratamento involuntário e, portanto, até ao dia .../.../2025. (…)»
- do recurso -
Inconformado, recorreu o Requerido formulando as seguintes conclusões (resumidas ao que respeita ao caso concreto):
« (…)
p) Ora, em face do que fica exposto e do conteúdo dos relatórios de avaliação clínico-psiquiátrica aceita-se a patologia constante na sentença recorrida;
q) Atento o valor probatório pré-estabelecido nos termos supra explanados;
r) Mas não se aceita, nem se conforma o Internando/Recorrente que constitua um perigo para si ou para os outros, seja na vertente pessoal ou patrimonial,
s) Não se aceita igualmente que o internamento compulsivo fosse/seja necessário ou o único meio adequado para o tratamento, uma vez que se entende que por um lado este podia e devia ser feito em ambulatório e, por outro é aceite pelo Recorrente;
t) Uma vez que o tratamento nunca foi recusado e é aceite pelo Internando, é ilegal e inconstitucional o internamento compulsivo;
u) Aliás, já a manifesta ausência de perigo torna o internamento compulsivo ilegal e inconstitucional,
Mais,
v) Foi negado ao Internando/Recorrente o direito a comparecer pessoalmente na sessão conjunta e de ali ser ouvido pelo Tribunal;
w) Direito esse que o Internando/Recorrente pediu expressamente ao Tribunal a quo;
x) E cuja recusa viola o disposto na alínea e) do Artigo 5º, alíneas b) e c) do nº 3 e e) do nº 4 do Artigo 8º da LSM;
y) E a interpretação de tais disposições legais no sentido de que pode ser recusado ao Internando o pedido deste para comparecer pessoalmente e ser ouvido presencialmente na sessão conjunta é inconstitucional por violação do disposto nos Artigos 13º, 20º, 27º, nºs 1 e 2, 30º, nºs 2 e 5 e 71º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, o que aqui se alega para todos os efeitos legais, nomeadamente para os previstos nos Artigos 16º e 18º da CRP e para os previstos nos Artigos 17º, 18º, 20º, nº 4 e 32º da CRP e artigos 70º nº 1, alíneas b) e f) e 72º, nº 2 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro;
z) Em suma, o facto de se reconhecer que o Internando/Recorrente padece de uma psicose que requer a toma de medicamentos não implica, por si só, que tal psicose determine necessariamente o seu internamento compulsivo, pois que, face à natureza cumulativa dos pressupostos de que depende a decisão do internamento ou do tratamento ambulatório compulsivo, não basta haver uma patologia psiquiátrica, como uma psicose, para se justificar o internamento compulsivo. É sempre necessário que essa patologia determine um risco para o próprio ou para terceiros e que o internando careça de autocrítica para a doença, não aderindo ao tratamento ou recusando a tratar-se;
aa) Ora no caso a patologia do Recorrente não determina um risco para o próprio ou para terceiros, o Recorrente adere ao tratamento que lhe seja prescrito, conforme declarou na sessão conjunta que aceitava o tratamento que lhe fosse prescrito;
bb) Está impedido de fazer prova de que declarou aceitar o tratamento porque as suas declarações não se encontram gravadas; o que não o pode prejudicar por não lhe poder ser imputável;
cc) E quanto à manifesta ausência de risco, diga-se que nem sequer algum, em concreto que lhe apontado, nem nenhum, em concreto consta da sentença recorrida e que na realidade o Recorrente não constitui qualquer risco para si ou para terceiros, como em 75 anos de vida nunca constitui qualquer risco.
dd) A interpretação do pressuposto previsto na alínea c) do nº 1 do Artigo 15º da LSM – “A existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais” – no sentido de que basta a alusão a um perigo em abstracto para se considerar preenchido tal pressuposto do tratamento involuntário, na vertente de internamento compulsivo, é inconstitucional por violação dos Artigos 13º, 20º, 27º, nºs 1 e 2, 30º, nºs 2 e 5 e 71º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, o que aqui se alega para todos os efeitos legais, nomeadamente para os previstos nos Artigos 16º e 18º da CRP e para os previstos nos Artigos 17º, 18º, 20º e 32º da CRP e artigos 70º nº 1, alíneas b) e f) e 72º, nº 2 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro; »
- da resposta -
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo «que a decisão encontra-se devidamente fundamentada e o Tribunal aplicou correctamente a legislação portuguesa, sendo inatacável» entendendo «dever ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, manter-se a decisão recorrida nos seus precisos termos »
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito meramente devolutivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da concordância com os termos da resposta.
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995].
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
- o Recorrente constitui um perigo para si ou para os outros, na vertente pessoal ou patrimonial?
- o internamento compulsivo é necessário e adequado para o tratamento?
- tem o Recorrente o direito a comparecer pessoalmente na sessão conjunta e de ali ser ouvido pelo Tribunal, o qual não pode ser recusado?
- o entendimento de que pode ser recusado ao internando o pedido deste para comparecer pessoalmente e ser ouvido presencialmente na sessão conjunta é inconstitucional?
DA SENTENÇA RECORRIDA
Da sentença recorrida consta a seguinte matéria de facto provada:
« 1) AA nasceu em .../.../1949 e reside sozinho em casa arrendada sita em ....
2) Tem uma irmã, BB, residente em ... que o auxilia economicamente com compras de bens alimentares e de primeira necessidade, como gás.
3) O Internando beneficiou de uma consulta da especialidade de Psiquiatria na ... em .../.../2016, não comparecendo a consultas datadas de .../.../2012, .../.../2018 e .../.../2018.
4) O Internando é seguido na ... desde ... de 2019, pela Médica de Família Dra. CC.
5) Na primeira consulta, em ... de 2020, o Internando referiu padecer de doença psiquiátrica que não soube especificar, tendo sido instituído anti-psicótico (aripiprazol), que não cumpriu.
6) Em .../.../2024 o Internando foi novamente observado em consulta com a Médica de Família, Dra. CC, apresentando relato episódico isolado de maior agitação psico-motora, com atitude verbal alegadamente mais agressiva para com o secretariado clínico, sem agressividade física, culminando com indicação médica para agendamento de consulta de vigilância em psiquiatria.
7) Em .../.../2024, .../.../2024, .../.../2024 e .../.../2024 o Internando foi observado em consulta com a Médica de Família, apresentando-se calmo e colaborante, mantendo contacto sintónico, humor eutímico com afetos mobilizáveis, discurso fluente apesar de circunstanciado e apurando-se, em todos os contactos, ideias delirantes de teor persecutório, sempre relacionadas com a Igreja, o Governo e o Exército/Militares, com verbalização nos seguintes termos “andam sempre todos atrás de mim, mas eu já estou a tratar de lhes pôr um processo com a advogada. Estão todos feitos e as vacinas é a mesma coisa”.
8) Em .../.../2025 foi alvo de internamento de urgência no ... em Lisboa e, posteriormente, transferido para o ..., motivado por quadro psicótico de longa duração sem tratamento adequado, com impacto significativo no comportamento e no funcionamento, já com risco para o próprio, assente em recusa de tratamentos médicos e automedicação, em relação com as ideias delirantes, bem como negligência do autocuidado em termos de alimentação e saúde e ausência de crítica para a doença e recusa de tratamento proposto.
9) Durante o internamento o Internando não tem respondido de modo eficaz à medicação, mantendo quadro que motivou o seu internamento, designadamente ideias de conteúdo persecutório, com inclusão o corpo clínico que o acompanha, o qual fará parte da estrutura organizada que o quer prejudicar.
10) À data da sessão conjunta AA mantém o quadro psicótico as ideias de conteúdo persecutório e não apresenta qualquer crítica para a situação a sua situação mórbida e para a necessidade de tratamento, recusando-o.»
DA TRAMITAÇÃO SUBSEQUENTE
Por entendermos que relevará para a decisão que nos ocupa, foi feita consulta via CITIUS do processo principal a fim de conhecer a sua tramitação subsequente à subida em separado deste recurso. Assim, importa referir que em ........2025 foi realizada nova sessão conjunta, na qual o Requerido, ora Recorrente, foi ouvido em declarações, em conformidade com o agendado no despacho que também determinou a admissão deste recurso.
Na sequência das declarações da Médica Psiquiatra foi ordenada a junção do diário clínico do internado, que aconteceu em ........2025, após o que se seguiram tomadas de posição do Ministério Público e do Requerido sendo que nada está disponível desde ........2025.
FUNDAMENTAÇÃO
Tendo em consideração as questões que se colocam, importa ter presente o regime legal que nos estabelece os parâmetros da decisão. Como tal, desde já se aponta a necessidade de seguir o diploma conhecido por Lei de Saúde Mental, a Lei n.º 35/2023, de 21 de Julho.
Tendo em consideração os efeitos que a derrogação de uma exigência procedimental, com violação dos direitos do Requerido, poderá ter, abordaremos em primeiro lugar a matéria da audição do ora Recorrente.
- se tem o Recorrente o direito a comparecer pessoalmente na sessão conjunta e de ali ser ouvido pelo Tribunal, o qual não pode ser recusado
Os passos processuais do procedimento que nos ocupa estão regulados nos art.º 17.º e seguintes da Lei de Saúde Mental. A sessão conjunta (art.º 22.º) merce inclusivamente um artigo dedicado à sua preparação (21.º). Deste último resulta a necessidade de notificação do Requerido sendo que, porém, a sua presença não é obrigatória (22.º/1).
Caso esteja presente, o Requerido tem que ser ouvido (art.º 22.º/3), segundo o qual «Após audição das pessoas notificadas e convocadas», ou seja, apenas após a sua audição deverá o Juiz dar a palavra para alegações.
No que toca ao requerido, mais relevante se torna tal audição porque, se nessa diligência o mesmo aceitar o tratamento e não houver razões para duvidar dessa aceitação, está aberto o caminho para o arquivamento do processo (n.º 4).
Vejamos, pois, o que ocorreu, consultando as actas da sessão conjunta, a primeira de ........2025 e a segunda para a continuação de ........2025.
Na primeira, o Requerido esteve presente via Webex, ou seja, «por meio de equipamento tecnológico», como previsto no art.º 22.º/2 da Lei de Saúde Mental. Conforme resulta da acta, «Prestou declarações, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado
de gravação digital disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal».
Perante este quadro, desde já se adianta que foi garantido o direito de audição do Requerido.
A única questão é a de saber se há alguma diferença na sua audição presencial ou via meio de comunicação à distância com imagem e som.
Cientes das questões relativas ao princípio da imediação, entendemos que estes se mostram particularmente relevantes em sede de prova e poderão, ainda que assim não seja em todos os casos, revelar-se essenciais para apurar a credibilidade do depoente, a veracidade do testemunho, a espontaneidade das suas reacções.
Neste processo o Requerido não é ouvido como testemunha. A sua audição está delimitada por uma condição clínica, cujo juízo médico está subtraído à livre apreciação do Juiz (art.º 20.º/6 da Lei de Saúde Mental), e visa apenas permitir ao decisor aferir da viabilidade de um tratamento voluntário.
O quadro normativo da Lei de Saúde Mental visa permitir a sujeição do doente a um tratamento involuntário, ou seja, contra a sua vontade manifesta. Navegamos em águas de limitação de direitos fundamentais e, por isso, todo o quadro legislativo aplicável se mostra garantístico e desenhado de acordo com um princípio de intervenção mínima. De tal é sintomático o art.º 15.º/4 da Lei de Saúde Mental, segundo o qual « As restrições aos direitos, vontade e preferências das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental decorrentes do tratamento involuntário são as estritamente necessárias e adequadas à efetividade do tratamento, à segurança e à normalidade do funcionamento da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental, nos termos do respetivo regulamento interno».
Mais, estabelece a própria Lei de Saúde Mental um conjunto de direitos e deveres que, no que toca aos primeiros e ao Requerido em processo de tratamento involuntário, consagram expressamente o direito de (art.º 8.º/3 al. b) «Participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito, presencialmente ou por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvido por teleconferência a partir da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental onde se encontre; ».
A actual lei consagra o direito de participação presencial ou por meio de equipamento tecnológico. Diferente era o preceito na anterior lei, Lei n.º 36/98, de 24 de Julho, que no seu art.º 10.º previa o direito «b) Estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito, excepto se o seu estado de saúde o impedir;», ou seja, estabelecendo a regra de presença física do Requerido [Ac. Tribunal da Relação do Porto de 26.06.2029, Desembargador William Themudo Gilman - ECLI:PT:TRP:2019:674.16.0T8OVR.Q.P1.CF].
Contudo, a lei mudou. Operando a leitura comparada dos dois preceitos, mostra-se manifesta a vontade do legislador de tornar igualmente válida a regra da audição à distância, o que fica demonstrado pela utilização do “ou” entre as duas possibilidades [cfr. Ac. Tribunal da Relação do Porto de 13.11.2024, Desembargador Francisco Mota Ribeiro - ECLI:PT:TRP:2024:1164.11.3TBPRT.A.P1.1A];
Assim, consagrada que foi a possibilidade de participação à distância, se no decurso desta o Juiz precisar de maior imediação, poderá sempre lançar mão da interrupção da diligência para a retomar com a presença do Requerido. Não foi esse, manifestamente, o caso.
Mais invoca que manifestou o seu consentimento durante a audição e que o mesmo foi desconsiderado na decisão. Que a ligação à distância foi entrecortada e deficiente, violando o seu direito de participação.
Tal não decorre, porém, do registo da diligência. Representado por defensor, seguramente este teria forçado alguma alteração se tais deficiências se verificassem e o Tribunal as ignorasse, olimpicamente prosseguindo em atropelo ao direito do Requerido a ser ouvido.
Nada consta da acta, nada consta do acto.
Apenas se pode retirar, portanto, que o Requerido não manifestou tal consentimento. Porque, se assim fosse, a discussão com os médicos e peritos passaria a ser a da validade do consentimento cabendo ao defensor assegurar-se que o Tribunal encaminhava os autos para o seu arquivamento, como já apontado.
Por isso, é desprovido de fundamento o ensejo do ora Recorrente.
- se o entendimento de que pode ser recusado ao internando o pedido deste para comparecer pessoalmente e ser ouvido presencialmente na sessão conjunta é inconstitucional
Como vimos no ponto anterior, a Lei de Saúde Mental sofreu uma alteração recente, consagrando um conjunto de alterações nas quais se inclui esta de permitir a audição do Requerido por meios de comunicação à distância. Previu igualmente a audição de quem já está internado ou sujeito a tratamento involuntário aquando das revisões periódicas da medida, permitindo a sua participação pelos mesmos meios.
Ou seja, a lei em causa estabelece como direito especial da pessoa com necessidade de cuidados de saúde mental, no âmbito deste processo de tratamento involuntário, o direito de participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito seja presencialmente seja por meio de equipamento tecnológico, à distância. Aliás, como escrito no Ac. Tribunal da Relação do Porto de 13.11.2024 citado «No tocante à audição em presença da pessoa necessitada de cuidados de saúde mental, a opção legislativa assim plasmada na nova Lei da Saúde Mental dá ainda cumprimento à Recomendação 818 (1977), da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, dirigida ao Comité de Ministros, no seu ponto 17. iii., na qual se recomenda o convite aos governos dos Estados membros no sentido de diligenciarem para que as decisões dos tribunais não sejam tomadas com base apenas em relatórios médicos, mas que a pessoa doente, como qualquer outra pessoa, tenha o direito efetivo de ser ouvida. »
Assim, ainda que o Requerido tenha pedido para que a sua audição seja presencial, não tem o Tribunal, sequer, que justificar a opção por ouvi-lo à distância posto que a lei não distingue ambas. O que se exige é a garantia de um verdadeiro direito de audição (de viva voz) e não apenas um direito de pronúncia, mediante notificação para se fazer chegar aos autos a sua posição.
Constata-se igualmente que a invocação de inconstitucionalidade aponta, sem qualquer fundamentação, para diversos direitos fundamentais que julga violados. Não se vê como. Não se vislumbra como este regime possa pôr em causa o princípio da igualdade (art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa) se nenhuma situação análoga comparável é invocada com solução mais garantística. O mesmo se diga para o direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional que não vislumbra limitado à luz do consagrado neste diploma e à sua amplitude desenhada no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa. De igual forma se sustenta o respeito pelo princípio da liberdade, tal como consagrado no art.º 27.º da Constituição da República Portuguesa.
Invoca ainda o Recorrente violações a dois princípios que não são tocados pela lei em causa, na medida em que os mesmos se destinam a pessoas que não têm cabimento no caso que nos ocupa. O Requerido não está sujeito a uma condenação em pena ou a uma medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade (art.º 30.º da Constituição da República Portuguesa) nem é cidadão portador de deficiência mental (art.º 71.º da Constituição da República Portuguesa).
Destarte, não se vislumbra a inconstitucionalidade invocada, razão pela qual se subscreve o entendimento explanado no ponto anterior.
- se o Recorrente constitui um perigo para si ou para os outros, na vertente pessoal ou patrimonial
Decorre da argumentação recursiva que o Recorrente entende que no quadro provado estamos perante uma situação de manifesta ausência de risco. Para tanto, invoca que dos factos não resulta qualquer facto concreto que lhe possa ser apontado, do qual se retire que constitui risco para si ou para terceiros. Aliás, argumenta que nunca constitui qualquer risco, pelo que nada permite concluir que agora assim seja.
Olhando a factualidade acima transcrita, são os factos 8 e 10 que traduzem tal perigo, in casu para o próprio, não estando demostrada qualquer conduta que represente perigo para terceiros. Com efeito, provou-se que o Recorrente foi internado de urgência, em ........2025, no ... em Lisboa apresentando quadro psicótico de longa duração sem tratamento adequado, com impacto significativo no comportamento e no funcionamento, já com risco para o próprio.
Tal condição surge como resultado de uma recusa de sujeição a tratamentos médicos, acompanhada por automedicação, relacionadas com ideação delirante. Simultaneamente, o Recorrente evidenciava negligência no autocuidado em termos de alimentação e saúde e ausência de crítica para a doença com recusa de tratamento proposto, elementos fácticos que traduzem o concreto perigo que representa para si mesmo.
Mais se provou que, não obstante o tempo decorrido, aquando da sessão conjunta manteve o quadro psicótico as ideias de conteúdo persecutório e não apresentou qualquer crítica para a situação a sua situação mórbida e para a necessidade de tratamento, recusando-o. Conforme apontado na sentença recorrida, é à data da prolação da decisão que terão de verificar-se os pressupostos que justificam a aplicação de alguma medida, nada importando os eventos passados caso na atualidade não continue a manter-se o quadro justificativo invocado.
Assim, foi claramente definido no art.º 14.º da Lei de Saúde Mental que «O tratamento involuntário é orientado para a recuperação integral da pessoa, mediante intervenção terapêutica e reabilitação psicossocial».
Nessa medida, o artigo seguinte define os pressupostos dessa intervenção, sendo um deles a existência de perigo par bens jurídicos pessoais, nomeadamente do próprio quando este exiba doença mental e, em razão desta e da recusa de tratamento, tal se revele um perigo para si mesmo.
Assim, com base nos apontados factos provados, cuja impugnação não ocorreu (o Recorrido limita-se a dizer que não constitui perigo), decidiu o Tribunal a quo « (…) da factualidade provada ressalta a verificação, in casu, de todos os pressupostos para o tratamento involuntário, como a doença mental de que padece o Internado, a necessidade do tratamento para prevenir ou eliminar o perigo para bens jurídicos pessoais, maxime do próprio, causado pela recusa de tratamento adequado para a sua condição clínica, a recusa do tratamento medicamente prescrito, bem como a ausência de discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance de consentimento.
É também claro que a intervenção terapêutica nos termos prescritos se destina à recuperação do Internado.» .
Com efeito, perante o quadro de factos provados apontado, outro entendimento não é sustentável. Pelo exposto, está reconhecido o perigo justificativo para a decisão proferida, sendo improcedente a objecção do Recorrente.
- se o internamento compulsivo é necessário e adequado para o tratamento
De igual modo, questiona o Recorrente que o internamento não era uma medida necessária, pois estava disposto a aceitar prosseguir com o mesmo em regime de ambulatório o que seria, desde logo, determinante para que a decisão não pudesse trilhar o caminho seguido.
A Lei de Saúde Mental visa permitir a sujeição do doente a um tratamento involuntário, ou seja, contra a sua vontade manifesta. Navegamos em águas de limitação de direitos fundamentais e, por isso, todo o quadro legislativo aplicável se mostra garantístico e desenhado de acordo com um princípio de intervenção mínima.
São duas as modalidades previstas para tal tratamento involuntário: o tratamento em ambulatório, a regra, e o internamento, a excepção de ultima ratio (art.º 15.º/3). Nessa medida, é particularmente importante aferir da necessidade de internamento, pois este apenas pode ser determinado se não for viável prosseguir os fins do processo com uma intervenção ambulatória.
Sumariamente consta da sentença «Na verdade, o tratamento involuntário em regime de internamento continua a apresentar-se, no presente caso, como a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, sendo adequado a prevenir a existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais do próprio e/ou de terceiros, sendo proporcional à gravidade da doença diagnosticada, ao grau do perigo e à relevância do bem jurídico, razão por que será de manter referido tratamento nos mesmos termos.».
Atentemos, mais uma vez, aos factos para aferir se tal conclusão neles encontra respaldo.
Provou-se que em ... de 2020 foi o ora Recorrente medicado com anti-psicótico (aripiprazol), mas não cumpriu os termos da sua toma. Em 2024 foi consultado quatro vezes pela sua médica de família mantendo sintomas da sua perturbação mental. Certo é que, quando finalmente internado em ... de 2025 evidenciava agravamento do quadro sintomático assente em recusa de tratamentos médicos e automedicação. Ora, mesmo internado, o Recorrente não tem respondido de modo eficaz à medicação, pelo que, na data da sessão conjunta mantinha o quadro psicótico, as ideias de conteúdo persecutório e não apresentava qualquer auto crítica para a sua situação mórbida e para a necessidade de tratamento, recusando-o.
Neste quadro, torna-se manifesto que o tratamento em ambulatório não se mostra a solução eficaz para prosseguir com a intervenção determinada nestes autos. Primeiro terá o internamento e a medicação que nele vier a ser apurada, tornar-se eficiente e permitir ao Recorrente tomar consciência da sua situação e da necessidade de prosseguir com tal abordagem química para, então, ser minimamente viável a possibilidade de, em ambulatório, prosseguir com o tratamento.
Tal é matéria que cabe no âmbito da revisão periódica da medida ou, a todo o tempo, se devidamente comunicada ao Tribunal onde corre termos o processo.
Até então, mostra-se devidamente fundamentada, sustentada, a decisão recorrida.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso, mantendo inalterada a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 3 UC a respectiva taxa de justiça.

Lisboa, 23.09.2025
Rui Coelho
Ana Cristina Cardoso
Manuel Advínculo Sequeira