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MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Sumário
Impõe-se a rejeição, por manifesta improcedência, do recurso de facto que nos seus próprios termos pretende apenas sobrepor a visão própria e interessada do recorrente, sendo patente que as provas que invoca são insusceptíveis de impôr deliberação diversa. No crime de violência doméstica, tal como em qualquer outro evidenciando enormes necessidades de reprovação e prevenção, a aplicação de pena de substituição será ponderadamente equacionada e deve ser afastada se apta a colocar em risco aquelas.
Texto Integral
Acordam em conferência na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
* AA foi condenado (além do mais) na pena única de quatro anos e seis meses de prisão, resultante de cúmulo de duas penas a que na ocasião foi condenado, de três e dois anos e quatro meses de prisão, pela prática de dois crimes de violência doméstica pp. e pp. pelo artº 152º, nº 1, alíneas d) e e) e nº 2, alínea a) do Código Penal.
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Interpôs o arguido o presente recurso concluindo em síntese:
“(...) O arguido considera que os pontos 86, 87, 92 devem ser dados como não provados (...) Os factos 94, 95, 109 dos factos provados deverão ter outraredação (...) Deverá constar como provado (...) o facto 117 (...) A pena única em que foi condenado o arguido/recorrente (4 anos e seis meses de prisão efetiva) deveria ter sido mais harmoniosa e proporcional ao caso em apreço (...) adouta decisão violou os normativos correspondentes à determinação do quantum da medida das penas individuais aplicadas (...) O arguido/recorrente foi sempre colaborante com a justiça, prestando declarações em todos os momentos em que esteve perante a(s) MM Juiz(s), confessou os fatos que efectivamente cometeu e contrariamente ao considerado pelo Tribunal Recorrido mostrou arrependimento, relatando que, por conta de uma depressão, voltou a consumir cocaína e álcool, os quais despoletaram os seus comportamentos para com os ofendidos, tendo agora no seu período de reclusão refletido nas consequências e que está abstinente desde a entrada no EP (...) O Tribunal a quo afasta a aplicação da suspensão da pena de prisão porém não a fundamenta com base nos factos provados e não provados que seguramente alcançariam um juízo de prognose favorável, violando o disposto no Art. 50º do CP. Q. O arguido encontra-se inserido socialmente, possui emprego fixo, residência estável e revelou desde o início intenção clara de colaborar com a justiça e de alterar os padrões de comportamento que motivaram os ilícitos praticados R. As medidas acessórias em que o Arguido/Recorrente foi condenado a serem executadas em liberdade, cumprem as finalidades da punição e permitem, de forma proporcional, atingir o objetivo da reinserção social, evitando o efeito nefasto da prisão efetiva, que neste caso não se revela necessária (...) FF. Deverá o Tribunal suspender a pena aplicada na sua execução pelo mesmo período, com sujeição a regime de prova e às sanções acessórias já decretadas, determinando-se ainda o acompanhamento do arguido/recorrente após relatório para a sua adição ao álcool e estupefacientes junto do SICAD da sua área de residência.”
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O Ministério Público junto da primeira instância pugnou fosse negado provimento ao recurso e mantido o acórdão recorrido, concluindo a propósito:
“(...) o recurso, na parte em que incide sobre a decisão de facto, deve ser rejeitado por manifesta improcedência nos termos conjugados do disposto nos arts. 412.º n.ºs 3 e 4, 420.º n.º 1 al. a), e 431.º do C.P.P.; IV - A decisão proferida sobre a matéria de facto deve permanecer inalterada por se encontrar exemplarmente fundamentada, ser compatível com as regras da lógica, da experiência comum e da normalidade da vida, e refletir a justa valoração dos diversos meios probatórios produzidos (...) ao invocar os vícios previstos nas als. c), do n.º 2, do art.º 410.º, do C.P.P., o Recorrente está na verdade apenas a exprimir a sua divergência relativamente à apreciação da prova efetuada pelo tribunal a quo, pretendendo sobrepor a sua visão pessoal sobre aquilo que se provou à convicção que o tribunal formou no uso do poder de livre apreciação da prova conferido pelo art.º 127.º, do C.P.P.. Não padece, pois, o acórdão recorrido, do vício do erro notório na apreciação da prova (...) As penas concretamente cominadas para cada um dos ilícitos em causa superam em muito pouco o limite mínimo das molduras abstratas respetivas – deixando transparecer que na sua determinação foram valoradas todas as circunstâncias suscetíveis de beneficiar o Recorrente –, mostrando-se também equilibrada e justa a pena única fixada, situada ainda aquém do ponto médio da moldura aplicável ao concurso de crimes (...) Perante as circunstâncias do crime cometido e a personalidade assim revelada – e na falta de qualquer outra circunstância que possa valorada em benefício do Recorrente – é de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão nunca satisfariam adequada nem suficientemente as prementes exigências de proteção do bem jurídico violado e as sensíveis necessidades de reintegração do agente na sociedade (...)”
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Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Corridos os vistos, foram os autos à conferência.
-- // -- // -- Fundamentação.
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O acórdão recorrido estabeleceu como factos provados:
“1. O arguido AA e a BB conheceram-se e iniciaram uma relação de namoro no ....
2. Ainda durante o período de namoro, no ..., por razões relacionadas com ciúmes, o arguido agarrou violentamente BB pelos cabelos e arrastou-a para fora da cama.
3. Na sequência deste desentendimento, estiveram separados durante cerca de uma semana, após o que reataram o namoro.
4. Em 2007, emigraram para Portugal e fixaram residência no ....
5. Deste relacionamento, nasceram AA, CC e DD, respetivamente, em .../.../2008, .../.../2015 e .../.../2012.
6. O arguido tinha hábitos de consumo excessivo de álcool e ainda de produtos estupefacientes.
7. Tornaram-se frequentes as discussões entre o arguido e a ofendida BB, no decurso das quais, em diversas ocasiões, o arguido lhe chamou: “puta”, “ladra”, “piranha do caralho”, “vagabunda”, “ladrona”.
8. Numa ocasião, o arguido atirou o telemóvel da ofendida BB contra a testa da mesma, provocando-lhe um corte profundo junto do olho e sangramento abundante.
9. Em data situada no início do ano de 2008, no interior da residência do casal, quando a ofendida BB se encontrava grávida do filho mais velho, o arguido agarrou-a violentamente pelo pescoço e sacudiu-a, enquanto lhe dizia que era uma vagabunda e acusou-a de o estar a trair.
10. O arguido e a ofendida casaram um com o outro em 2011.
11. Em 2012, estando BB grávida de cinco meses do seu segundo filho (DD), no interior da residência do casal, o arguido agarrou BB violentamente pelo cabelo e arrastou-a para fora do quarto.
12. E chamou-lhe vagabunda e puta.
13. O arguido praticou estes factos na presença de um filho da ofendida, de 14 anos de idade, de uma anterior relação, entretanto falecido, que lhe pediu que não fizesse mal à sua mãe.
14. Em data situada no ano de ..., no interior da residência do casal, o arguido envolveu-se uma vez mais em discussão com BB por razões relacionadas com dinheiro e disse-lhe por diversas vezes que a ia matar, que ia acabar com ela, pelo que a ofendida se trancou no quarto com as crianças e chamou a polícia.
15. No dia .../.../2022, no interior da residência do casal, sita na ..., o arguido, uma vez mais, discutiu com a ofendida BB por motivos relacionados com dinheiro.
16. Na sequência da referida discussão, o arguido empurrou várias vezes a BB.
17. Nesse momento, o filho mais velho do casal, AA, colocou-se entre os dois, para fazer cessar a descrita agressão.
18. O arguido agarrou numa cadeira e fez menção de a atirar na direção do filho AA.
19. BB e os três filhos, que presenciaram a situação, refugiaram-se no interior do quarto, onde se trancaram até à chegada da polícia.
20. Com vista à reconciliação do casal, o arguido prometeu à ofendida BB submeter-se a tratamento e efetivamente iniciou tratamento, com internamento, numa clínica de reabilitação de toxicodependência no ....
21. Porém, o arguido abandonou a referida clínica, em ... de 2022, um mês depois, sem concluir o tratamento e voltou a residir com a ofendida.
22. No dia .../.../2022, no interior da residência do casal, na sequência de uma nova discussão por motivos relacionados com dinheiro, o arguido dirigindo-se a BB disse: “Vou acabar com a tua cara”, “Não vai ficar com o meu dinheiro, não” (…) és uma vagabunda, não vales nada.
23. O arguido praticou estes factos na presença do filho mais velho, EE.
24. No dia .../.../2022, cerca das 08h20, no interior da residência do casal, sita na ..., após mais uma discussão sobre dinheiro, o arguido apertou o pescoço da ofendida BB, desferiu uma bofetada no lado direito da face desta e dois pontapés que a atingiram na perna direita.
25. Assustados com o comportamento do arguido, os dois filhos mais novos (CC e DD), começaram a empurrar o arguido, para tentar fazê-lo cessar as descritas agressões.
26. Na mesma ocasião, o arguido dirigindo-se à ofendida BB, disse-lhe: “Estás louca?” e “Sua piranha do caralho”, puta, vagabunda.
27. Em consequência do comportamento do arguido, a BB apresentava uma marca vermelha no lado direito do pescoço, com a configuração dos dedos do arguido.
28. BB dirigiu-se à esquadra da PSP com os dois filhos e, quando lá se encontrava, o arguido enviou-lhe diversas mensagens, dizendo-lhe que ela era uma puta, uma vagabunda, e que ia ser uma pastora quenga.
29. Na sequência deste acontecimento, BB saiu da residência do casal com os seus três filhos, passando a pernoitar em casa da sua cunhada e, noutra ocasião, por razões idênticas, ficou em casa de uma amiga.
30. Posteriormente, o arguido fez diversos telefonemas para BB, dizendo: “Vou matar a tua família”, “Não queres vir para casa porque estás com outros machos”, “puta”, “vagabunda”, “Um dia corto-te o pescoço” e “Ladra roubas o dinheiro todo”.
31. Entretanto, o arguido ausentou-se para trabalhar na ..., pelo que a ofendida BB voltou a residir com os filhos na residência comum do casal.
32. Apesar de estar a viver na ..., no dia .../.../2023, o arguido enviou diversas mensagens para o telemóvel da ofendida BB com o seguinte teor: “Só te falo de uma coisa, não queira ter problema comigo”, “Não brinca comigo”, “Eu te aviso”, “Pensa nos nossos filhos, eu não tenho nada a perder”, “Você vai virar uma pastora kenga”, “Você uma puta”, “Polícia não vai resolver nada”, “Vai na polícia mas pensa nos meus filhos que vão ficar sem mãe” e “Não tenho medo de ninguém”, “Não brincas comigo que eu entro na casa e coloco fogo em ti e nas crianças”, “Eu corto-te a cabeça”.
33. No dia .../.../2023, o arguido enviou mensagens à ofendida BB através da aplicação Whatsapp, com imagens (emojis) de caixões, dizendo que eram para ele e para a ofendida.
34. No dia .../.../2023, o arguido enviou mensagens à ofendida através do Whatsapp, com o seguinte teor: “Pode ser autimA Coisa K faco. Mas vou fa,er. Por se vacabunda. Cobaia, Tudo Isso. K vc não vai sesafa. Ok. Brinca. Pode copiar. Vc vai ser mina cr. C K eu preso. Vc e uma puta”.
35. O arguido regressou a Portugal no dia ... de ... de 2023.
36. Entre ... e ... de 2023, o arguido enviou diversas mensagens em formato áudio à ofendida BB, com o seguinte teor: “Vai arrumar outro otário…peguei no seu filho até virar homem…Agora você pegou um homem para tratar dos meus filhos…arranco sua cabeça fora sua desgraçada”; “Agora eu te falo minha filha, não brinca comigo que eu arranco a sua cabeça…A sua eu arranco…Você vai ficar sem cabeça”, “Você é vagabunda puta do caralho…você é a pior espécie puta do caralho”; “Oi você está pensando…eu dou um tiro na sua cabeça… Além de dar um tiro na sua cabeça… Dou um tiro na cabeça da sua mãe e na cabeça do FF…Você me conhece muito bem não brinca não…Não tenho medo de entrar na sua casa…Você vai para o Inferno”; “Quando a gente casa é para toda a vida…Você já tem a cona toda aberta…Ninguém quer foder com você puta do caralho”; “Vou descobrir…não vou pensar duas vezes em dar um tiro na cabeça dele…e a sua vai ser depois…Não adiante vir com conversa não…Eu já expliquei…se foi ele e a vagabunda da sua mãe vai ver o que vai acontecer”; Vou te dizer eu posso pegar um dia, um ano, não tem problema…Posso ter 50 filhos contigo…Pode gravar ai e entregar na mão da polícia…eu vou onde você estiver e vou arrancar a sua cabeça…So vou avisar isso mais nada”; “Eu te dou um tiro no meio da cabeça e não vai demorar… Eu não tou brincando…Se você tivesse aqui na minha frente eu cortava a sua cabeça…você está a foder a minha cabeça todinha”; “Pode gravas aí ó…grava aí ó…E entrega para a polícia…Eu arranco a sua cabeça e o EE arranco também…Não duvida não…Eu arranco a sua cabeça para te provar que sou homem… Pode mostrar para quem você quiser”; “Bem gostoso gozar na boca dela…Você gozou na minha boca”; “Vai à procura de um pau para lhe dar prazer…Mas você também pode ter prazer no meu pai…Chupar no meu”; “Não vou aceitar mulher nenhuma brincar com a minha cara…Não tenho nada a perder não…Não brinca”.
37. Desde a separação do casal, o arguido quando fala com o seu filho EE, diz-lhe para não ficar do lado da sua mãe pois quem come com porco, porco é, e que se o apanhar na rua sozinho lhe bate.
38. No dia .../.../2023, o arguido telefonou diversas vezes à ofendida BB, recusando-se esta a falar com ele, pelo que o arguido disse que iria lá a casa.
39. Decorridos cerca de 40 minutos, o arguido chegou à residência da ofendida BB, sita na ..., e dirigiu-se a uma janela, levantou o estore e partiu o vidro.
40. O ofendido EE, ouvindo o vidro a partir-se, dirigiu-se ao quarto e viu o rosto do arguido através da abertura no vidro partido e aquele, vendo-o, disse-lhe: “Abre a porta filho da puta que eu quero falar com a tua mãe”, o que o ofendido recusou.
41. Quando viu a ofendida BB entrar no referido quarto, o arguido disse-lhe: “Não queres falar comigo…Vou partir-te o carro”.
42. Receando que o arguido entrasse na residência, BB trancou-se no seu quarto com os filhos e chamou a polícia.
43. Enquanto isso, o arguido dizia: “Agora tenho a mão toda fodida, ainda te vou matar e partir o carro todo”.
44. Não conseguindo aceder ao interior da residência, o arguido dirigiu-se ao veículo da BB, com a matrícula ..-CN-.. e, com uma pedra, partiu diversos vidros do mesmo.
45. No dia .../.../2023, o arguido dirigiu-se novamente à residência da ofendida, exigindo que a mesma lhe entregasse documentação respeitante aos bens comuns do casal.
46. Nessa ocasião, o arguido disse à ofendida BB que a ia matar, que lhe dava um tiro na cara e que lhe cortava o pescoço.
47. No dia .../.../2023, o arguido enviou uma mensagem à BB, dizendo-lhe que ela estava à procura de macho e que quando fosse ter relações sexuais tinha de colocar uma camisinha pois tinha sida.
48. Na sequência da factualidade descrita, o arguido, no dia .../.../2023, foi ouvido em interrogatório judicial de arguido detido, ficando sujeito às medidas de coação de proibição de contactar por qualquer meio BB e proibição de se aproximar a menos de 50 metros de residência, do local de trabalho ou de quaisquer lugares/espaços onde esta se encontre, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
49. Porém, logo na mesma data, após o interrogatório, depois de sair do edifício do Palácio da Justiça do Barreiro, o arguido contactou BB por telefone e exigiu-lhe que lhe enviasse dinheiro, pelo que, aquela lhe transferiu entre 20,00 € e 30,00 €.
50. Por receio do arguido, a ofendida, todos os dias lhe transferiu a mesma quantia.
51. Não obstante estar sujeito a medida de coação de proibição de contactos, o arguido telefonava todos os dias à ofendida BB, inúmeras vezes, especialmente à tarde, depois de acordar.
52. Quando a ofendida não atendia o telemóvel, o arguido enviava-lhe mensagens, exigindo-lhe sempre que ela lhe enviasse dinheiro e de teor semelhante às transcritas acima.
53. Dois ou três dias após o interrogatório judicial, o arguido contactou novamente a ofendida BB por telefone, dizendo: “Tens que me transferir mais dinheiro, caso contrário vou aí e logo vês o que te faço sua puta, sua vagabunda, desgraçada, pastora quenga, louca”, pelo que ela, atemorizada, fez-lhe outra transferência.
54. Persistiu o arguido nessa conduta e sempre, receosa, a ofendida fazia transferências de dinheiro.
55. Nesses telefonemas, o arguido dizia-lhe: “Se não me dás dinheiro; Entro aí em casa e parto isso tudo; Acabo contigo; Não tenho nada a perder…És uma puta…Vagabunda. Estás fodida nas minhas mãos. Vai tomar no cú. Vai-se foder desgraçada; Vais pagar por tudo; És a culpada da situação do nosso filho. Vais levar um banho (expressão utilizada no ... para descrever banho de sangue), que não brincasse com a cara dele, que lhe cortava a cabeça, que entrava para dentro de casa e matava a ela e às crianças, que não era para brincar.
56. Perante os constantes telefonemas do arguido, a ofendida BB, à noite, colocava o telemóvel no modo de silêncio para conseguir descansar pois, apesar de ter bloqueado o número do arguido, este telefonava-lhe constantemente, usando o telemóvel de outras pessoas.
57. Numa dessas ocasiões, o arguido enviou uma mensagem à ofendida BB, dizendo que não era para brincar com ele, que era para tirar aquela merda e que ia lá a casa pois tinha certeza que esta tinha macho na cama.
58. Quando BB não atendia o telemóvel, o arguido contactava o filho mais velho de ambos, EE e a mãe da ofendida que reside no ..., com o objetivo, conseguido, de a pressionar a atender-lhe os telefonemas.
59. Perante os constantes telefonemas do seu pai, para falar com a sua mãe, EE, à noite, passou a colocar o seu telemóvel no modo de silêncio.
60. E, numa dessas ocasiões, o ofendido EE desligou o telemóvel a meio do telefonema do arguido e este, no dia seguinte, telefonou-lhe e disse-lhe que não era para brincar com ele, que ele ia passar o camião na cabeça na sua mãe e que passava na cabeça dele também.
61. Nas chamadas telefónicas que o arguido fez para a BB, ele, reiteradamente, dizia-lhe que um dia ia a casa dela e que iria matar todas as pessoas que se colocassem à sua frente.
62. No dia .../.../2024, pelas 18h21, o arguido enviou à ofendida BB uma mensagem áudio com o seguinte teor: “Porra você ta ficando louca…o lixo que você compra desgraça…você pensa que esse dinheiro dá para fazer quantos dias de comida…você pensa que esse dinheiro dá para fazer quantos dias de comida…liga para ele…ele é testemunha minha ele vai apresentar contra você.”
63. No mesmo dia, pelas 18h38, o arguido enviou à ofendida BB uma mensagem áudio com o seguinte teor: “BB você vai pagar seus pecados…vai pagar mais ainda porque você é ruim…você vai ter uma conversa comigo ainda…vou-te pegar minha filha…vou-te dar um banho…pode ficar tranquila….você vai lembrar desse dia”.
64. No mesmo dia, às 18h39, o arguido enviou à BB outra mensagem áudio com o seguinte teor: “vou-te pagar tudo o que você me fez de ruim…sabe como te vou pagar? Do jeito que te tou falando…não se brinca com Deus…Você já brincou muito lembra bem desse dia…você brincou demais”.
65. No dia .../.../2024, pelas 06h59, o arguido enviou mensagens à ofendida BB com o seguinte teor: “Eu nunca pensei que ia ser humilhado como eu tou seno… Mas eu te falo tudo e passageiro eu to com Deus ele desse mim ter fé…E eu tenho vai ficar bem ele desse e ele não engana temos k ser fiel e ele por mim…Eu não tenho ninguém…Vx já viu…Não tenho ninguém…”.
66. No dia .../.../2024, pelas 05h14, o arguido enviou mensagens à BB com o seguinte teor: “Hoje esperei meus filhos hoje mim sentei o pelho pai do mundo não tenho ninguém eu nunca pensei isso nunca emportei comigo dei ok pude p meus filhos hoje vei k não sou um pai amado…Eu trabalhei tanto p ver…Eu tou destruído…Eu nunca fui mau p VC e nem p sua família nunca de respeitei sua mãe nem seus irmãos e nem seu filho nunca descutei…Hoje VC mim trata como um cachorro eu nunca fiz mau p mim de vcs”.
67. Em data situada em... de 2024, o arguido telefonou para o ex-marido de GG, que estava a viver em casa da ofendida, dizendo que só estava esperando para ter a certeza que a BB tivesse outro homem que entrava lá em casa e matava todo o mundo, assim como que a ia matar.
68. O arguido fez este telefonema sabendo que estas frases seriam transmitidas à ofendida BB e que a aterrorizariam conforme aconteceu e era pretendido pelo mesmo.
69. Assim, no dia .../.../2024, o ex-marido de GG telefonou-lhe e disse: “Tem cuidado que ele vai entrar aí em casa e aí fazer merda, quem tiver no meio também vai à frente”, atemorizando GG e BB.
70. Em consequência do comportamento do arguido, a ofendida BB sentiu muito medo, vivendo com receio pela sua integridade física e vida, assim como pela dos seus filhos, saindo de casa apenas para trabalhar e levando sempre consigo o aparelho de teleassistência.
71. De igual modo, em consequência do comportamento do arguido, o ofendido EE sentiu muito medo e receava que ele lhe fizesse mal, chegando a regressar a casa a correr depois de ter lido uma mensagem que o pai lhe enviou, cujo conteúdo o deixou assustado.
72. Por tal razão, o ofendido EE necessitou de acompanhamento médico, no ....
73. O arguido quis humilhar, intimidar, ofender o corpo e a saúde e a honra e bom nome da vítima BB, causando-lhe medo, fazendo-a temer pela sua vida e pela sua integridade física, causando-lhe temor e inquietação e restringindo a sua liberdade de movimentação, garantindo, deste modo, a sua superioridade e domínio sobre ela, sujeitando-a à sua vontade, o que conseguiu.
74. O arguido quis e conseguiu humilhar e atingir o filho EE na sua integridade psíquica, causando-lhe angústia e medo, sabendo que lhe devia especiais cuidados, atenção e respeito e que a idade lhe conferia especial vulnerabilidade.
75. Praticou os factos descritos na presença dos filhos AA, CC e DD, sujeitando-os a situações recorrentes de violência física, verbal e psicológica para a sua mãe, fazendo-os temer pela sua vida e saúde, comprometendo o seu desenvolvimento psíquico e a sua saúde mental, bem sabendo que enquanto pai dos mesmos tinha o dever acrescido em agir em conformidade com o seu bem estar.
76. Sabia o arguido que violava os particulares deveres de respeito a que se encontrava sujeito mercê do relacionamento que mantinha com a ofendida e por terem três filhos em comum, sendo um deles ofendido.
77. O arguido não se coibiu de praticar tais factos no interior da residência dos ofendidos, onde estes se deveriam sentir protegidos e onde ninguém as podia auxiliar, bem sabendo que as suas condutas eram especialmente gravosas e censuráveis.
78. O arguido, molestando fisicamente BB, da forma como o fez, atuou com o intuito de lhe causar sofrimento e medo, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar tal resultado.
79. O arguido, ao dirigir-se às vítimas BB e EE, ameaçando-as, fê-lo com o propósito de, com o anúncio daquele mal provocar, direta e necessariamente, medo naqueles, que receiam que arguido venha a concretizar a suas ameaças.
80. Dirigindo-lhe expressões ofensivas, o arguido pretendeu ofender a honra e a consideração que são devidas aos ofendidos BB e EE, afetando-lhes deste modo o bem estar psíquico e humilhando-os.
81. Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas pela lei penal.
82. Do certificado de registo criminal do arguido consta condenação, por sentença de .../.../2025, transitada em julgado em .../.../2025, processo 47/24.1GAMTA, do juízo local criminal do ..., juiz 1, por um crime de desobediência, praticado em .../.../2024, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de 5,00 € e pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados com a duração de 3 meses e 15 dias.
83. HH (45 anos), à data dos factos, residia com a ofendida no atual processo, BB (47 anos), e com os 3 filhos em comum, EE (16 anos), DD (12 anos) e CC (9 anos).
84. A dinâmica familiar seria negativamente marcada pelo conflito entre o arguido e a ofendida, ao qual os filhos menores seriam expostos.
85. (…) O filho mais velho do arguido, procurou aquando do seu crescimento defender a ofendida, o que despoletaria uma maior tensão no agregado.
86. (…) O arguido era perspectivado pelos filhos como uma pessoa fria, negligente e distante.
87. O arguido, por outro lado, procurou veicular uma imagem negativa da ofendida, sem qualquer reconhecimento da sua responsabilidade na dinâmica familiar disfuncional que existia.
88. A família residia no ..., ... ...), em apartamento com 3 quartos, cuja titularidade de arrendamento estava em nome do arguido.
89. A habitação foi descrita como apresentando adequadas condições de acomodação.
90. Em ... de 2022, após uma curta permanência em comunidade terapêutica no ..., o arguido emigrou para a ..., tendo regressado em ... de 2023.
91. Atendendo ao término da relação, o arguido foi viver para uma casa da qual afirmou ser proprietário, uma habitação térrea, em ... que tem, no seu entender, boas condições de acomodação.
92. Relativamente aos filhos, e na sequência do divórcio, terá existido um corte relacional, o qual ainda se mantém, evidenciando no arguido sentimentos de revolta face à ofendida, culpando-a pela separação dos filhos, não conseguindo identificar, em si, condutas que pudessem ter promovido esse afastamento.
93. Em .../.../2024, AA passou a estar em cumprimento da Obrigação de Permanência na Habitação com Vigilância Eletrónica (OPHVE), tendo sido detido preventivamente em .../.../2024, por ter incumprido as medidas inerentes à medida de coação OPHVE.
94. Em contexto prisional, o arguido recebe visitas, pontuais, de alguns amigos.
95. O arguido referiu que quando regressar a meio livre pretende regressar ao mesmo enquadramento residencial.
96. Quanto ao seu percurso de vida, o arguido referiu que cresceu em ... no agregado monoparental materno, tendo referido que a mãe foi a sua figura de referência, enquanto o pai foi, em seu entender uma figura distante.
97. O arguido veio do ... em 2007, tendo ficado a residir em casa de um tio no .... A ofendida viria pouco tempo depois, tendo o casal conseguido autonomizar-se, pouco tempo, depois.
98. À data dos factos, AA afirmou que trabalhava na área da construção civil, executando remodelações, sendo que essa atividade estaria registada na Autoridade Tributária, apesar de não dispormos de fontes documentais.
99. O arguido afirmou não se recordar da remuneração obtida desses trabalhos, não obstante, considerou que vivenciava um quadro financeiro muito satisfatório, tendo afirmado que lhe permitiu adquirir 5 imóveis, sendo que 4 deles estão arrendados, facto que não nos foi possível confirmar.
100. Neste enquadramento, o arguido afirmou que recebia cerca de 3300 euros de rendas, que seriam devidamente tributadas.
101. A ofendida trabalhava nas limpezas, em casa particulares, e recebia mensalmente o valor aproximado de 600 euros.
102. Quanto ao percurso escolar e laboral anterior, AA afirmou ter concluído, no país de origem, o 12º ano de escolaridade do curso de administrativo.
103. O arguido afirmou ter começado a trabalhar ainda durante a sua adolescência devido ao frágil quadro financeiro da família e desta forma contribuir para o orçamento familiar.
104. Ainda sobre o percurso laboral do arguido, no ..., este referiu ter exercido atividades, maioritariamente sujeitas a contrato de trabalho, como administrativo na empresa ... e como “comercial do jogo do bicho” (sic.).
105. Em Portugal, o arguido terá trabalhado na área da construção civil.
106. À data dos fatos, o quotidiano do arguido assentava no desempenho das funções laborais e no convívio com colegas de trabalho.
107. A rede social era constituída, de acordo com o arguido, por pares da zona de residência, os quais, descreveu de forma positiva.
108. II, amigo do arguido, descreveu-o de forma positiva, contudo, salientou que o problema aditivo deste tem condicionado negativamente as suas vivências pessoais e sociais.
109. Neste contexto, AA referiu que, na altura dos factos, mantinha consumos de cocaína e álcool de forma abusiva. O arguido assumiu a existência de problema aditivo, tendo considerado que os consumos terão tido um impacto negativo no seu quotidiano.
110. O arguido referiu estar abstinente desde a sua entrada em Estabelecimento Prisional, não tendo tido acompanhamento especializado, tendo, o arguido admitido, sentir necessidade de um apoio médico/terapêutico a esse nível.
111. O arguido afirmou ter iniciado o consumo de cocaína aos 19 anos, ainda no ..., em contexto de grupo.
112. AA afirmou que a sua atual medida de coação teve como impacto negativo a privação da sua liberdade, e na impossibilidade de aceder aos seus bens pessoais e financeiros.
113. Relativamente à alteração da medida da coação para prisão preventiva, na sequência de incumprimentos, o arguido considerou injusta essa decisão, minimizando a sua responsabilidade.
114. De acordo com a informação prestada pela PSP, para além do processo em causa existem 8 registos policiais entre 2013 a 2023, nos quais o arguido terá sido suspeito/constituído arguido, em vários crimes contra a integridade física e crimes contra a propriedade.
115. O arguido contextualizou os registos policiais com a fase ativa de consumo de estupefacientes e conflituosidade com a ofendida.
116. De acordo com o Dr. JJ, do ..., o arguido tem mantido uma conduta adequada às normas institucionais. O arguido tem beneficiado de apoio psicológico mensal.”
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E como motivação para a fixação factual relevante, explanou o colectivo como segue:
“(...) O arguido prestou declarações, quer em sede de primeiros interrogatórios judiciais, quer em audiência de julgamento.
No primeiro dos interrogatórios, em dezembro de ... o arguido apresentou um discurso confuso e evasivo, negando todas as agressões físicas, insistindo na autovitimização e na imputação de responsabilidades à ofendida BB, o que constitui, aliás, o comportamento‑padrão do agressor de violência doméstica.
Admitiu, porém, ter proferido muitas das expressões ofensivas e as ameaças, não deixando, no entanto, de procurar justificar tal atitude com o seu sentimento de raiva perante o que qualificou de histeria por parte da ofendida.
E quando questionado diretamente sobre factos concretos, respondeu sempre de forma vaga, evasiva e imprecisa.
No segundo dos interrogatórios, na sequência do incumprimento das medidas de coação a que ficara sujeito, o arguido apresentou discurso já claramente marcado por forte ira e exaltação extrema, mostrando-se as suas declarações, mais uma vez, confusas, evasivas e pouco coerentes.
Persistiu na postura de negação, admitindo apenas que enviou algumas mensagens à ofendida, justificando o incumprimento da proibição de contactos com a necessidade de dinheiro e a violação, por parte da ofendida, de um acordo financeiro anterior; ainda adiantou que a iniciativa dos contactos terá partido da própria ofendida.
Em audiência de julgamento, manteve o arguido o registo anterior de impugnação dos factos imputados, vitimização e atribuição de responsabilidades à ofendida, admitindo apenas as expressões proferidas, nomeadamente em contexto de mensagens de texto ou áudio, que estão claramente demonstradas nos prints juntos a folhas 238 a 241 e no auto de transcrição de mensagens áudio junto a folhas 361 e seguintes, conjugado com a prova pericial consubstanciada no relatório de exame e extração de dados do telemóvel da ofendida BB, junto a folhas 641 a 645, realizado pela Unidade de Perícia Tecnológica e Informática da polícia judiciária, de que resulta, além do mais, por banda do arguido, uma atitude altiva e controladora em relação à vida da ofendida BB, mesmo após a separação de facto do casal.
De referir que do conteúdo das mensagens, especialmente da versão áudio resulta à saciedade que o arguido se dirigia à ofendida, mãe dos seus filhos, aos gritos, extremamente exaltado, expressando raiva incontida, isto é, pura violência, consolidando a efetividade e seriedade das ameaças proferidas.
Na verdade, fácil é concluir que o arguido só admitiu a prática dos factos que não podia negar. E, em relação a esses, chegou a expressar arrependimento e vergonha.
Porém, a mera admissão da prática dos factos não determina necessariamente a verificação de arrependimento e a sua demonstração não depende apenas da correspondente expressão verbal (...) mas sim, além do mais, do conteúdo dessa declaração, concretamente na medida em que evidencia interiorização do desvalor da conduta e o claro propósito de não repetir as práticas delituosas.
Este juízo cabe, em nosso entender, ao julgador, no âmbito da livre apreciação da prova (artigo 127º do Código de Processo Penal), sendo que, no caso em apreço, o arguido não convenceu o tribunal, pois tais sentimentos contrastam com o sentido global das suas declarações.
Assim, perdem credibilidade as declarações do arguido perante o conjunto da prova produzida, sendo que algumas das suas afirmações, nomeadamente quando disse que a ofendida se trancava no quarto por nada. por nenhuma razão, são inaceitáveis à luz das regras de experiência comum, ou quase pueris, como no caso em que afirma que mandava mensagens à ofendida durante a noite no quadro de um sonho que tivera (...)
As testemunha arroladas pela defesa, KK, LL, MM e NN, amigos do arguido, depondo embora com muita dignidade, revelaram desconhecer o lado mais sombrio daquele, o que não é assim tão invulgar entre amigos, sendo que alguns revelaram notória surpresa quando confrontados com o teor de algumas mensagens transcritas nos autos, enviadas pelo arguido aos ofendidos.
Assim, não lograram estes depoimentos abalar a versão emergente da demais prova produzida (...)
Releva o certificado de registo criminal do arguido junto aos autos relativamente à condenação anterior registada (...)
A factualidade assente relativamente às condições pessoais do arguido resulta do teor do relatório social junto a folhas 789 e seguintes, conjugado, em parte, com os depoimentos dos próprios ofendidos (...)”
-- // -- // -- Cumpre apreciar.
*
Atendendo às conclusões apresentadas são questões a resolver:
Erro de julgamento;
Medida das penas; e
Suspensão da execução da pena única.
* Erro de julgamento.
A factualidade impugnada prende-se exclusivamente com as condições pessoais do arguido.
Assim, na visão do recurso, os pontos 86, 87 e 92 devem ser dados como não provados face a ausência de prova que os confirme.
Ora, nos termos do que foi decidido pelo colectivo de juízes, tais factos foram demonstrados pelo teor do relatório social, pelo que é manifesta a falta de fundamentação da pretensão recursiva ao nível da obrigatória invocação probatória a impôr decisão diversa.
Bem pelo contrário, já que o que fica claro é que o arguido não concorda com o relatório social, mas essa é prerrogativa sua, nesta não cabendo direito a impor a sua visão/interesse à do tribunal colectivo, menos ainda ao presente.
As restantes pretensões de alteração factual também relativamente à mesma fonte de prova têm que ver com pequenas modificações favoráveis ao arguido, todas elas provenientes de declarações do próprio, que, como se viu, muito pouco crédito mereceu ao tribunal colectivo.
Certo é que, de novo manifestamente, a prova indicada, nos próprios termos em que é apresentada, é insusceptível de se impôr à que foi produzida, segundo as regras da livre apreciação.
Ou seja, o recurso de facto, pelo que se vem de apontar, é manifestamente improcedente, o que impõe a respectiva rejeição - alínea a) do nº 1 do artº 420º do Código de Processo Penal.
* Medida das penas.
Sobre esta questão discorreu o colectivo de juízes:
“Agiu o arguido com dolo direto, uma vez que representou a ilicitude das suas condutas e, não obstante, quis empreendê-las (artigo 14º, nº1 do Código Penal).
Atenta a reflexão necessária ao empreendimento da ação, a intensidade do dolo é muito elevada.
O ilícito assume intensidade acima da mediania, atenta a gravidade das ofensas, o período temporal, o grau de violência e o modo de execução, maior no caso da ofendida BB.
Ações desta natureza integram um quadro de maus tratos que assume crescente expressão e consubstancia violação de direitos fundamentais da pessoa humana, pondo em causa valores em que assenta a vida em sociedade, mormente a igualdade entre homem e mulher e a proteção dos menores, constitucionalmente assegurada, acentuando-se as exigências de prevenção geral, sendo socialmente intolerável que o núcleo afetivo, possa ser, em alguns casos, um lugar perigoso (...)
Não obstante a Constituição da República Portuguesa e as leis decorrentes da mesma declararem como fundamental, entre outros direitos de igual importância, a igualdade entre homens e mulheres, a realidade tem-se afastado largamente desses princípios.
A violência doméstica é um fenómeno social muito grave que afronta o desenvolvimento democrático de uma sociedade, com evidente violação do princípio constitucional da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa e dos direitos humanos das vítimas, a começar pela dignidade inerente à condição humana, e que deve merecer uma reposta veemente e eficaz do Direito Penal, na prevenção, combate e repressão deste tipo de criminalidade.
São, pois, gritantemente elevadas as exigências de prevenção geral.
Não resulta da factualidade assente qualquer fundamento atendível de atenuação da culpa, sendo especialmente elevada a censura ético-jurídica da conduta, sendo que a condição de toxicodependência do arguido não se mostra, no caso em apreço, relevante, certo que aquele, embora ciente dos efeitos do consumo de estupefacientes e álcool no seu comportamento, abandonou o tratamento.
A confissão parcial e restritiva não assume relevo atenuativo significativo, por não ter sido acompanhada de arrependimento consistente; efetivamente, não revelou o arguido sentido crítico, autocensura ou arrependimento atendíveis, pelo contrário.
Tem registada uma única condenação anterior, por crime de natureza diversa, praticado no período temporal a que se reporta a acusação, numa pena de multa; porém, as exigências de prevenção especial revestem elevada intensidade, tendo em conta a persistência dos comportamentos mesmo após o primeiro interrogatório judicial de ...de 2023, com violação das medidas de coação impostas, impondo-se ainda não perder de vista a proximidade das vivências, concretamente a existência de filhos em comum e a pendência de resolução de questões patrimoniais.
A favor do arguido, apenas o bom comportamento em meio prisional e o apoio por parte de amigos (...)
Considerando os elementos de ilicitude e culpabilidade, o restante circunstancialismo apurado e o disposto nos citados artigos 40º, 41º, nº1, e 71º do Código Penal, julga-se adequado cominar ao arguido, pela prática de dois crimes de violência doméstica agravados, previsto no artigo 152º, nº1, a), c), d) e e) e nº2, a) do Código Penal:
Na pena de 3 anos de prisão (ofendida BB); e
Na pena de 2 anos e 4 meses de prisão (ofendido AA) (...)
Do cúmulo de penas:
Estamos perante a prática de dois crimes, em concurso real e efetivo, pelo que há que proceder a cúmulo jurídico das penas de prisão, nos termos e para os efeitos do regime consagrado no artigo 77º do Código Penal (...)
A moldura penal abstrata aplicável é de 3 anos de prisão (pena parcelar mais elevada) a 5 anos e 4 meses de prisão (soma das penas concretas).
Operando o cúmulo jurídico, de harmonia com o disposto no artigo 77º do Código Penal, ponderando conjuntamente a factualidade assente e a personalidade evidenciada pelo arguido, que flui dos factos provados, julga-se adequado fixar a pena única global de 4 anos e 6 meses de prisão.”
A operação de fixação das penas singulares não padece de nenhum erro, tendo as mesmas sido encontradas em intervalo perfeitamente harmónico com a factualidade apurada a tal propósito e tomando em conta todas as circunstâncias concorrentes para o efeito.
O mesmo se diga quanto à pena única, acrescentando-se a tonalidade de carregada ilicitude do quadro geral denunciado pela totalidade dos factos demonstrados, a sua duração, evolução e tenacidade da energia criminosa do arguido.
Improcede, pois, esta parte do recurso.
* Suspensão da pena.
Também sobre este aspecto do recurso houve pronúncia do tribunal colectivo:
“Uma vez que a pena a aplicar não ultrapassa os 5 anos de prisão, cumpre aferir se há razões para suspender a execução da mesma, ou seja, verificado o pressuposto formal para a suspensão há que averiguar se também o pressuposto material se mostra preenchido
No caso em apreço, o grau de ilícito e de culpa, a gravidade dos factos, a ausência de autocensura, a postura desculpabilizante (atitude típica do agressor em violência domestica), não sendo despiciendo considerar a possibilidade de uma decisão condenatória exacerbar o sentimento de injustiça/vitimização do arguido e originar um menor controlo das emoções e comportamentos e a circunstância de ter o arguido violado as obrigações decorrentes da medida de coação de proibição de contactos com a ofendida, determinam elevado grau de exigências de prevenção especial incompatíveis com um juízo de prognose favorável, resultando inverificados os pressupostos estabelecidos no artigo 50º do Código Penal, mostrando-se a execução da pena indispensável à boa realização das finalidades da punição concretamente para corresponder a exigências mínimas de tutela dos bens jurídicos e de confiança da comunidade na validade e na vigência das normas jurídicas atingidas (...)
Mais se consigna que, nos termos do Relatório Anual de Segurança Interna de 2019 (...) o número de ocorrências associadas com violência doméstica registado em 2019 foi de 29.498, mais 3.015 casos do que em 2018 e o maior número registado desde 2010, com uma variação de 11,4%, sendo que em 84% dos casos, as vítimas são cônjuges ou parceiros íntimos, 76% das vítimas são mulheres e 82% dos agressores são do sexo masculino.
E das estatísticas do Observatório de Mulheres Assassinadas (OMA), da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), resulta a verificação da morte de 31 mulheres e 30 tentativas de homicídio em contextos de violência doméstica, no decurso do ano de 2019, sendo registadas, nos últimos quinze anos, a morte de 531 mulheres e a tentativa de homicídio de outras 618 no mesmo contexto de violência doméstica (...)
Assim, é imperioso não perder de vista a extrema gravidade da violência doméstica e os elevadíssimos custos pessoais e sociais que lhe estão associados, enquanto ilícito criminal e fenómeno social, sendo muito claro o propósito do legislador de especial proteção da vítima e tutela reforçada do bem jurídico que as diversas medidas legislativas espelham, com destaque para a Lei 112/2009, de 16 de Setembro, a qualificação como crime grave e as suas vítimas como especialmente vulneráveis (...)
De referir ainda que, de acordo com os dados do Relatório Anual de Monitorização da Violência Doméstica referente ao ano 2019 (...) do total de decisões penais transitadas em julgado em Portugal, durante o ano de 2019, de que resultaram condenações por crimes de violência doméstica, 58% aplicaram pena de prisão suspensa na sua execução acompanhadas de regime de prova; 12% pena de prisão suspensa na execução subordinada ao cumprimento de deveres e regras de conduta e 10% em pena de prisão suspensa na sua execução simples.
Assim, a escolha e determinação da penas aplicáveis, neste contexto de grave fenómeno social e das suas trágicas consequências para as vítimas, deve atender à gravidade dos factos e o grau de culpa do agente, sendo que, na maior parte dos casos, as fortíssimas exigências de prevenção geral desaconselham a suspensão da execução das penas de prisão, como resulta da jurisprudência o TEDH que tem até equiparado as formas mais gravosas de violência doméstica à tortura, proibida pelo artigo 3º da Convenção Europeia dos direitos humanos (...)
Assim, impõe-se a interpretação da lei portuguesa de acordo com os valores da CEDH e da Convenção de Istambul (artigos 45º a 49º desta Convenção) e as recomendações do Grevio ao Estado português, a propósito da compreensão da violência doméstica como uma questão de direitos humanos e de violência de género e da necessidade de as penas serem compatíveis com a gravidade dos factos, exaradas sob os nºs 191 e 200, no Relatório Grevio Baseline Evaluation Report Portugal GREVIO (...)”
Naturalmente que com a evidência atinente à postura e conduta do arguido perante os factos, não podemos deixar de concordar com as judiciosas observações.
Por outro lado, “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável (que aqui não existe) - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial e socialização - a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime, pois estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade, que ilumina o instituto em análise” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, p. 344).
“Nenhum ordenamento jurídico suporta pôr-se em causa a si mesmo, sob pena de deixar de existir enquanto tal. A sociedade tolera uma certa «perda» de efeito preventivo geral – isto é conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição. Já não tolera a sua ineficácia.” (Prof. Costa Andrade, RLJ, 134º, p. 76).
Consequentemente, improcede o recurso também quanto a esta questão.
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Pelo exposto, acordam em rejeitar o recurso de facto, no mais negando provimento ao recurso e confirmando o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três UC.
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Lisboa, 23 de Setembro de 2025
Manuel Advínculo Sequeira
Pedro José Esteves de Brito
Rui Coelho