I – A alínea e) do nº 1 do art. 152º do Cód. Penal, introduzida Lei nº 57/2021 de 16 de agosto, afasta qualquer dúvida no que toca ao facto do menor assumir a qualidade de vítima autónoma no crime de violência doméstica, não apenas quando a conduta criminalmente ilícita visa directamente aquele (enquanto pessoa objeto do crime, cfr. art. 14º nº 1 do Cód. Penal), mas também quando tais condutas criminosas o atingem a título de dolo necessário ou dolo eventual (cfr. art. 14º nºs 2 e 3 do Cód. Penal), nomeadamente quando os maus tratos que visam o/a respetivo/a progenitor/a, alvo directo, são praticados na sua presença.
II – Tal interpretação está em concordância com os textos da subalínea iii) do nº 1 a) do art. 67º-A do CPP, do art. 2º a) e 14º nº 6 da Lei nº 112/2009 de 16 de setembro, resultantes da revisão operada pela Lei nº 57/2021 de 16 de agosto, ao alargarem o conceito de vítima à “A criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica;”
III– Tal entendimento em nada colide com a agravação contida no nº 2 do art. 152º do Cód. Penal, uma vez que esta pretende evidenciar a circunstância da vítima direta sofrer dano acrescido quando é agredida na presença do menor, assim como maior a culpa e juízo de censura em que incorre o agressor (o que ocorre igualmente quando o crime é praticado no domicílio comum ou no domicílio desta, dada a natureza do local, tido por seguro para os seus residentes)
Acordaram, em conferência, o/as Juíz/as Desembargadoras da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO
Por acórdão datado de 21/05/2025 foi proferida o seguinte:
«VII. DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos e vistas as normas legais citadas, decide este Tribunal Colectivo:
A-) Julgar o arguido AA autor material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, al. b) e 2 do Código Penal (perpetrado sobre BB) e, consequentemente, condenar o mesmo na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
B-) Julgar o arguido AA autor material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigo 152º, n.º 1, al. d) e e) e 2 do Código Penal (perpetrado sobre CC) e, consequentemente, condenar o mesmo na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
C-) Em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas em A) e B), condenar o arguido na pena única de 5 (cinco) anos de prisão efectiva.
D) Aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contactos com a denunciante e afastamento da residência da mesma pelo período de 5 anos (artigo 152º, n.º 4 do C.Penal) e obrigatoriedade de frequência de programa de prevenção da violência doméstica(não se determinando a aplicação da pena acessória de inibição das responsabilidades parentais)
E-) Julgar totalmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado por BB, por si e em representação da sua filha menor, CC e, consequentemente, condenar o arguido/demandado a pagar-lhe a quantia de €7500.00 (sete mil e quinhentos euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, quantia essa acrescida de juros de mora legais vencidos desde a prolacção do presente Acórdão e até efectivo e integral pagamento.
F-) Condenar o arguido no pagamento das custas processuais, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça devida (artigo 8.º, nº 9 do RCP, Tabela anexa III e artigos 513.º, 514.º, n.º1 do CPP).
G-) As custas cíveis serão suportadas pelo demandado - artigo 527º do Código de Processo Civil.
H-) Declara-se perdidos a favor do Estado a faca e o produto estupefaciente apreendidos (artigo 109º C.Penal) (…)»
II. Recurso\s da decisão
Inconformados, vieram, quer o arguido AA, quer a Assistente BB, por si e em representação da sua filha menor, CC,, impugnar a decisão recorrida.
II.1 Da Motivação do recurso interposto pelo arguido nos termos sobreditos retiram-se as seguintes conclusões:
“I- O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos que condenou o recorrente pela prática um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152 2 n 1, al. b) e 2 do Código Penal (perpetrado sobre BB) e, consequentemente, condenar o mesmo na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
II- Como autor material e na forma de um crime de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigo 152º, nº 1, al. d) e e) e 2 do Código Penal (perpetrado sobre CC) e, consequentemente, condenar o mesmo na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
III- Em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas em l) e II), condenar o recorrente na pena única de 5 (cinco) anos de prisão efetiva.
IV- Aplicar ao recorrente a pena acessória de proibição de contactos com a denunciante e afastamento da residência da mesma pelo período de 5 anos (artigo 152º, n. º 4 do C. Penal) e obrigatoriedade de frequência de programa de prevenção da violência doméstica (não se determinando a aplicação da pena acessória de inibição das responsabilidades parentais)
V- Julgar totalmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado por BB, por si e em representação da sua filha menor, CC e, consequentemente, condenar o recorrente/demandado a pagarlhe a quantia de €7500.00 (sete mil e quinhentos euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, quantia essa acrescida de juros de mora legais vencidos desde a prolação do presente Acórdão e até efetivo e integral pagamento.
Condenar o recorrente no pagamento das custas processuais, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça devida (artigo 8.º, nº 9 do RCP, Tabela anexa III e artigos 513º, 514.º, n º 1 do CPP).
VII- O tribunal a quo considerou provados que no decurso dessas discussões, nos últimos seis meses, quase diariamente, o arguido dirigiu insultos à vítima, tais como: «PUTA, VACA, MENTIROSA, ALDRABONA, BURRA, SUA FILHA DA PUTA, VAI-TE FODER, VAI PARA O CARALHO, SUA BADALHOCA...».
VIII- Este tipo de situações ocorria a qualquer hora do dia, sempre no interior da residência, muitas das quais na presença da filha menor CC.
IX- O comportamento do arguido e recente maternidade levou a que BB evitasse manter contactos de intimidade com aquele, postura que o levou a criar desconfianças, começando a nutrir por si ciúmes doentios, acusando-a de manter relações extraconjugais com outros homens.
X- Os ciúmes alimentados pelo arguido eram de tal ordem doentios que este passou a contar a quantidade de cuecas sujas que a vítima colocava para lavar, dizendo-lhe várias vezes que as marcas de corrimento «eram de andar a foder com outros...», referindo: «JÁ ANDASTE A FODER LÁ NO TEU TRABALHO. SUA PORCA.».
XI- Além de contar a quantidade de cuecas que a vítima usava, o arguido começou a cheirar a sua farda de trabalho quando chegava a casa, dizendo-lhe: «ISTO NÃO CHEIRA A SUOR. TU NÃO ANDASTE A TRABALHAR...».
XII- No 25/07/2024, encontrava-se BB no seu local de trabalho (Centro Hospitalar ... — serviço de limpeza) quando, cerca das 16H45 (poucos minutos antes do início de turno) o arguido efetuou uma chamada telefónica à mesma, através do n e ...66, o qual lhe exigiu explicações pelo facto de ter levado para o trabalho «duas cuecas limpas».
XIII- BB disse-lhe que tal não correspondia à verdade, ocasião em que o arguido começou a dizer-lhe que era mentirosa e que tinha uma fotografia das cuecas.
XIV- A dada altura, o arguido efetuou um vídeo chamada à companheira, através da rede social WhatsApp, tendo, durante a mesma, lhe exigido que fosse para a casa de banho dos deficientes e que lhe mostrasse a roupa interior que tinha vestida naquele dia.
XV- BB, com receio, acabou por cumprir tal ordem, pois tinha consciência ser a única forma de conseguir acalmar as desconfianças alimentadas pelo arguido e bem assim ter paz para conseguir trabalhar.
XVI- Ainda assim, o arguido continuou a fazer várias chamadas ameaçando-a que iria deslocar-se ao seu local de trabalho e que «entrava com o carro pelas urgências dentro.».
XVII- Temendo seriamente que o arguido fosse provocar um escândalo para o seu local de trabalho, pois acreditava que fosse capaz de o fazer, BB acabou por ligar telefonicamente para a mãe deste, para o nº ...30, a quem explicou o que estava a acontecer pedindo-lhe que tentasse acalmar o filho, o qual se mostrava descontrolado.
XVIII- Já no dia seguinte, o arguido começou novamente a exigir-lhe explicações, voltando a insinuar que tinha amantes e que mantinha relações sexuais no local de trabalho.
XIX- Voltou a acusá-la, tal como o tinha feito no dia anterior, numa das chamadas telefónicas, que andava a combinar encontros com os colegas de trabalho.
XX- Confrontou-a com um manuscrito que havia encontrado na mochila de trabalho da vítima, na qual constava um número de porta e número que identificava o chuveiro, registo que a vítima fez para reportar anomalias no relatório de serviço, mas que o arguido, apesar lhe ser explicado, insistiu em afirmar ser um código que a vítima fez para se encontrar com alguém, acusando-a de «ANDAR A FODER NO TRABALHO.».
XXI- Perante tais comportamentos do arguido, BB deixou de sentir vontade em manter relações de intimidade com o arguido, postura que o fez aumentar a suspeita de que a vítima mantinha relações com outros homens.
XXII- Assim, quando se apercebia que o arguido queria manter relações de intimidade, fingia que estava a dormir, na ânsia que o mesmo não insistisse, contudo, algumas vezes, pelo menos em 20 (vinte) ocasiões, perante a insistência do arguido, o qual passando a mãos nas zonas dos seios e na vagina, ao mesmo tempo que lhe dizia: «estou aqui a tocar-te e tu estás aí seca... não tens vergonha de estar aí seca...estou aqui a tocar-te...», «não queres, mas vais levar comigo.».
XXIII- Apesar de não ter vontade de manter qualquer tipo de intimidade com o arguido, por ter consciência que o mesmo não lhe daria descanso enquanto não consumassem o ato sexual, por querer descansar para ir trabalhar horas depois, BB acabava por consentir o ato em si, sendo que só quando consumado é que o arguido a deixava dormir.
XXIV- No dia 29/07/2024, quando BB chegou a casa, cerca das 12H45, o arguido encontrava-se no corredor, tendo a filha de ambos ao colo.
XXV- Visivelmente alterado, começou a falar-lhe num tom crespo, exigindo explicações para o facto de se ter apercebido que tinha mudado de cuecas antes de sair de casa e ter tentado escondê-las no cesto da roupa suja.
XXVI- BB respondeu-lhe que não fazia sentido do que a estava a acusar, que tinham dormido juntos e ele sabia a roupa interior que tinha vestida, não havendo qualquer razão para tentar começar, mais uma vez, uma discussão.
XXVII- Perante a sua resposta, o arguido começou a revelar-se ainda mais nervoso, dizendo-lhe «NÃO COMECES COM AS TUAS MENTIRAS...», tendo, de seguida agarrado a denunciante pelos cabelos, de forma violenta, puxando-os, forçando que o acompanhasse até à casa de banho localizada no fundo do corredor do lado esquerdo, mantendo a filha de ambos sempre ao seu colo.
XXVIII- Arrastada pelos cabelos até à casa de banho, ali chegados, o arguido libertou-lhe os cabelos e exigiu-lhe que explicasse o porquê de ter escondido as cuecas daquela maneira no cesto.
XXIX- No momento em que a denunciante tentava explicar a forma como tinha colocado as cuecas, o arguido, de forma enérgica, agarrou-a pelo pulso da mão direita e puxou-o num movimento único e forte, fazendo com que sentisse dores em toda a extensão do braço e ombro.
XXX- Em seguida, o arguido voltou a agarrar-lhe os cabelos na zona da orelha e começou a puxar-lhe, ao mesmo tempo que lhe falou alto, dizendo-lhe: «NÃO SEJAS MENTIROSA, PÁ. NÃO SEJAS MENTIROSA, ESTÁS AQUI A DIZER-ME QUE FOSTE TU QUE APANHASTE A ROUPA. ESTÁS A MENTIR, PORQUE FUI EU QUE APANHEI E PUS ASSIM...SUA MENTIROSA.».
XXXI- Em seguida, o arguido acabou por a largar e saíram do interior da casa de banho.
De volta ao corredor, o arguido começou a dizer-lhe: «SE É VERDADE, JURA PELA MORTE DA TUA FILHA QUE FOSTE TU QUE PUSESTE ALI A ROUPA. JURA PELA MORTE DA TUA FILHA.»
XXXII- Após a denunciante ter jurado ter sido quem arrumou a roupa, o arguido ficou de tal ordem enfurecido que a agarrou pela orelha direita e pelo cabelo, forçou o corpo da mesma contra a parede do corredor, fazendo com que o corpo da vítima fosse levantado, ficando em bicos de pés.
XXXIII- A ser pressionada contra a parede e levantada, o ombro esquerdo fez fricção na parede causando escoriação naquela zona corporal, a qual não tendo sagrado, ficou em «carne viva». Não obstante, não recorreu a qualquer unidade de saúde nem contou o sucedido a alguém.
XXXIV- Depois de ferida, o arguido largou a denunciante momentaneamente, continuando a discutir, exigindo explicações por tudo e por nada.
XXXV- A dada altura, descontrolado, o arguido, continuando com a filha CC ao colo, usando uma das mãos, colocando a mão em posição de gancho, encaixou na parte inferior do queixo da denunciante, junto ao pescoço e ao mesmo tempo que a apertou, empurrou o corpo contra a parede do corredor.
XXXVI- No seguimento desta ação, a CC começou a pedir para ir para o chão, tendo o arguido acatado.
XXXVII- Já sem a filha ao colo, com ambas as mãos livres, o arguido agarrou BB na zona das orelhas, agarrando as orelhas e os cabelos, levantando-a em força, dizendo repetidamente: «VAIS TER QUE ME DIZER A VERDADE, VAIS DIZER A VERDADE, SUA MENTIROSA, VAIS, VAIS.... JURA PELA MORTE DA TUA AVÓ... NUNCA VI NINGUÉM COMO TU... TÃO MENTIROSA, TÃO MENTIROSA, SUA MENTIROSA, VAIS TER QUE DIZER A VERDADE»
XXXVIII- O arguido, completamente descontrolado, enfurecido, dizia-lhe: «ESTÁS A ACABAR COMIGO... COMO É QUE És CAPAZ DE MENTIR DESTA MANEIRA... PODES ACABAR COMIGO, MAS TU NÃO VAIS FICAR A RIR. SUA MENTIROSA.».
XXXIX- Entretanto, o arguido acabou por a libertar, assim que a CC lhe começou a pedir colo.
XL- De seguida, o arguido voltou a pegar a filha ao colo e começou a dizer: «TENHO CEM POR CENTO DE CERTEZA QUE ME TRAISTE, SUA BADALHOCA, SUA PORCA...», «SE És CAPAZ DE ME MENTIR DESTA MANEIRA, EU TENHO CEM POR CENTO DE CERTEZA, SUA BADALHOCA.».
XLI- O arguido, irado, voltou a agarrar a denunciante pelos cabelos e empurrou-a, fazendo com que caísse no chão.
XLII- Prostrada no chão de costas voltadas contra este e peito para cima, o arguido colocou o joelho em cima do seu pescoço pressionando-o, levando a que BB se sentisse sufocada. A denunciante tentou libertar-se, começando a esbracejar e espernear.
XLIII- Quando ao fim de alguns segundos conseguiu libertar-se, desesperada, dirigiu-se para o arguido, dizendo-lhe «POR FAVOR, NÃO ME BATAS MAIS, NÃO ME MATES POR FAVOR...», tentando-o sensibilizar com a presença da filha que assistia a todo o conflito.
XLIV- Perante o seu pedido desesperado, o arguido começou a dizer; «também já não te faço mais nada... acabou por aqui. Tu vais-me por tolo.». Com o arguido aparentemente a acalmar-se, a vítima pediu-lhe que a deixasse dar a sopa à filha CC, pedido que o mesmo recusou, dizendo: «NÃO VAIS DAR SOPA NENHUMA, VOU LIGAR À TUA MÃE PARA ELA SABER A FILHA MENTIROSA QUE TEM, PORQUE EU NÃO SOU MALUCO.».
XLV- O arguido acabou por contactar telefonicamente a mãe da vítima (...10), usando o telemóvel da vítima, chamada realizada às 13H20. Na chamada, começou a dizer que a denunciante era uma mentirosa, exigindo à mesma que confirmasse tal facto à sua progenitora.
XLVI- Com receio do arguido, a denunciante acabou por dizer à sua mãe que tinha mentido ao arguido e que ele tinha razão para estar naquele estado. O arguido acabou por desligar a chamada, sem que fosse possível explicar o que estava a acontecer.
XLVII- O arguido acabou por se acalmar e permitiu que a CC comesse a sopa. Já no final da tarde desse dia, estando o arguido mais calmo, disse à denunciante que não a deveria ter agredido, mas que o seu comportamento tinha sido causado pela postura da vítima, culpando-a.
XLVIII- No dia 02/08/2024, já no período da manhã, perto da hora de almoço, encontrando-se o casal em casa, a dada altura, a denunciante apercebeu-se que o arguido tinha trocado SMS com a ex-companheira, situação que a levou a confrontá-lo. O arguido mostrou-se indiferente e não voltaram a conversar.
XLIX- Já cerca das 191-100, o arguido levantou-se da cama, local onde se manteve durante toda a tarde e deslocou-se para a cozinha para jantarem. Ali chegado, quando lhe disse que precisavam de conversar, o mesmo em tom de gozo, disse-lhe: «GOSTASTE, O QUE É QUE SENTISTE QUANDO VISTE AQUILO?!...», referindo-se ao contacto mantido com a ex-companheira.
L- Em resposta, a denunciante disse-lhe que não tinha gostado de saber que o arguido tentou contactar com a ex-companheira, tendo o mesmo em resposta lhe dito: «é para sentires o mesmo que eu». Com vista a evitar mais discussões, a denunciante apelou ao arguido que se mantivesse calmo.
LI - Já cerca das 21H00, encontrando-se na sala da habitação, o arguido abeirou-se da denunciante e começou a fazer-lhe perguntas sobre seguidores das várias redes sociais, vindo mais uma vez a acusá-la de ter relações com outras pessoas.
LII- O arguido começou a exigir que contactasse alguns seguidores com que o mesmo suspeitava que a vítima mantinha relação, obrigando-a a contactar tais pessoas na sua presença, para verificar o grau de proximidade que mantinha no contacto. A denunciante pediu ao arguido que parasse com as suas suspeitas, contudo o arguido continuou a insistir.
LIII- Já pelas 23H00, sempre com o arguido a pressioná-la, BB deslocou-se à cozinha para preparar o leite da CC, vindo posteriormente a deitar-se com a menor para a tentar acalmar e adormecer.
LIV- Pelas 00h10 o arguido entrou no quarto onde a denunciante se encontrava deitada com a filha, alegadamente com o propósito de ir buscar a almofada. Nestas circunstâncias, pegou no telemóvel de BB, que se encontrava debaixo da almofada em cima da cama. Ao aperceber-se que o arguido pegou no telemóvel, a denunciante pediu-lhe que o devolvesse, mas este recusou-se e deslocou-se para a cozinha, trancando-se naquela divisão.
LV - A denunciante insistiu, mas o arguido recusou-se a entregar-lhe o telemóvel, levando com que aquela decidisse voltar para junto da filha menor. Momentos depois, a denunciante saiu do quarto e voltou a pedir ao arguido o telemóvel, tendo este já saído do interior da cozinha. Este assim que viu a CC ainda acordada, começou a mostrar-se nervoso, dizendo-lhe que fosse adormecer a menor.
LVI- Na tentativa de acalmar a situação, BB foi deitar a menor novamente e depois da mesma ter adormecido, tentou novamente reaver o seu telemóvel, o qual continuava na posse do arguido. A denunciante acabou por desistir de reaver o telemóvel e deslocou-se para junto da porta exterior da sala, ali permanecendo a fumar.
LVII- Subitamente, o arguido abeirou-se da mesma e começou novamente a exigir-lhe explicações, vindo a desferir-lhe uma chapada de mão aberta junto à zona da fonte, fazendo-a sentir forte dores, já que a atingiu com um anel grosso, que tinha colocado no dedo.
LVIII- Temendo pelo pior, a denunciante começou a implorar que não lhe batesse mais e que se acalmasse, que tivesse em atenção a filha que estava a dormir ao lado. Os apelos da denunciante enfureceram o arguido, o qual voltou a agredi-la com uma chapada de mão aberta na zona traseira da cabeça. Em seguida, o arguido deslocou-se para a cozinha e a denunciante foi para o quarto da filha.
LIX- Volvidos alguns minutos, o arguido chamou a denunciante, dizendo-lhe que não iria dormir junto à filha e que teria de dormir no sofá. Após o arguido disse à denunciante que o acompanhasse para a cozinha, o que acabou por acontecer. Já na cozinha, ordenou-lhe que se sentasse no chão e assim que se sentou este disse-lhe: «AGORA VAIS LIGAR PARA ELE.», referindo-se ao rapaz com quem o arguido a acusava de manter uma relação.
LX- Sentada no chão, pelas 00H48, a denunciante acabou por ceder e tentar contactar, via Messenger, o jovem em questão, id. como «DD». O referido DD acabou por não atender a chamada, tendo BB, na ânsia de acalmar o arguido, lhe dito que poderia ligar para a esposa deste, apesar de não fazer sentido dado o adiantar da hora.
LXI- O arguido acabou por permitir que se levantasse, tendo em seguida encostado o corpo ao seu, ficando a escassos centímetros do seu rosto. Quase encostado a si, o arguido berrou-lhe «ORA MENTE NA MINHA CARA, VÊ-LA SE EU ESTOU MALUQUINHO... DIZ LÁ, DIZ LÁ....». Nestas circunstâncias, o arguido desferiu-lhe uma cabeçada que a atingiu na zona frontal da testa, fazendo-a sentir fortes dores.
LXII- Completamente irado, o arguido continuou a exigir explicações, dirigindo-lhe insultos de forma repetida, tais como: «SUA PUTA, SUA FILHA PUTA, SUA PORCA, SUA BADALHOCA, SUA FILHA DA PUTA... NÃO VAIS TER FUTURO, VAIS SER UMA PUTA PARA A VIDA TODA, SUA GRANDE PUTA... OS HOMENS VÃO ESTAR CONTIGO E DEPOIS VÃO DEITAR-TE FORA, SUA PUTA, SUA BADALHOCA.».
LXIII- Simultaneamente, o arguido voltou a agredir a denunciante, desferindo um estalo que a atingiu na zona do ouvido direito. A denunciante suplicou ao arguido que se acalmasse, sendo que este se mostrava mais nervoso, voltando a agredi-la com novo estalo, desta feita, atingindo-a no ouvido esquerdo. A dada altura, o arguido voltou a ordenar-lhe que se deitasse no chão, gritando lhe colericamente: «ESTÁS-ME A PÔR TOLO...», cerrando os punhos, dizia:
«DOU-TE UM SOCO QUE TE ABRO A BOCA TODA...».
LXIV- Continuando a exigir à denunciante que lhe confessasse que o traía, de repente, o arguido executou o golpe de «mata leão», fazendo com que a esta se sentisse sufocada. Já pelas 01h50, ao verificar que BB tinha no seu registo de chamadas de telefone chamadas com um número não identificado na agenda telefónica (que era de uma antiga colega de trabalho), o arguido ordenou que a contactasse, acabando por o fazer, tendo a chamada sido atendida já pelas 02:02.
LXV- O arguido não ficando satisfeito, começou novamente a dirigir os seguintes impropérios à denunciante: «SUA PUTA, SUA FILHA PUTA, SUA PORCA, SUA BADALHOCA, SUA FILHA DA PUTA... NÃO VAIS TER FUTURO, VAIS SER UMA PUTA PARA A VIDA TODA, SUA GRANDE PUTA... OS HOMENS VÃO ESTAR CONTIGO E DEPOIS VÃO DEITAR-TE FORA, SUA PUTA, SUA BADALHOCA.».
LXVI- Irado, o arguido voltou a fazer-lhe o golpe de mata-leão, fazendo-a novamente sentir-se sufocada. O arguido voltou a ordenar que ligasse para outro contacto, o que acabou por acontecer, apesar da chamada não ser atendida. De seguida, o arguido obrigou a denunciante a sentar-se na cadeira da cozinha, deslocou-se à gaveta do armário da cozinha e retirou do seu interior uma faca de cozinha, com 30 cm de comprimento e 18,5 cm de lâmina.
LXVII- O arguido pegou na faca, colocou-a sobre a mesa e disse: «É AGORA QUE TU ME VAIS DIZER A VERDADE... OU ENTÃO NÃO SAIMOS DAQUI OS DOIS.», fazendo crer à denunciante que a ia matar. O arguido, cada vez mais nervoso, a dada altura levantou-se e pegou na faca com a mão direita, mantendo o gume da faca voltado para trás.
LXVIII- com a mão cerrada, disse-lhe: «ADMITE O TEU ERRO... ADMITE UM QUE SEJA, QUE EU DEIXO-TE EM PAZ... SÓ TENS QUE ADMITIR UM.» Uma vez que a denunciante disse ao arguido que não podia admitir algo que não era verdade, este ficou ainda mais descontrolado, gritando-lhe «NÃO VALE APENA ESTAR Aí A PEDIR PARA FALAR BAIXO... PORQUE QUANDO CHEGAREM AQUI, SE CHEGAREM, JÁ NÃO VÃO CHEGAR A TEMPO.»
LXIX- O arguido momentaneamente afastou-se, ocasião em que a denunciante lhe disse que era melhor irem ver a menina, tendo o arguido dito que seria ele a lá ir. Vendo uma oportunidade para tentar fugir, a denunciante aproximou-se da porta de entrada; contudo, tendo-se o arguido apercebido, voltou atrás e disse-lhe: «PENSAS QUE VAIS A ONDE? VAIS FUGIR?», tendo a denunciante, na tentativa de o acalmar, dito que tencionava apenas ir à casa de banho.
LXX- O arguido regressou novamente para a cozinha, mantendo-se sempre com a faca na mão, continuando a exigir à denunciante que confessasse a traição. Com o pretexto de sentir calor, BB pediu ao arguido que a deixasse abrir a portada da cozinha, o que acabou por acontecer, continuando a insistir que era necessário ir ver a filha menor.
LXXI- Aproveitando o momento em que o arguido foi ao quarto da filha, por recear seriamente pela sua vida e não tendo outra forma de pedir ajuda, a denunciante conseguiu fugir pela janela da cozinha, sendo que assim que fugiu foi pedir ajuda à sua tia, começando a berrar por socorro.
LXXII- O arguido, ao aperceber-se da fuga da denunciante, foi no seu encalço e ainda conseguiu agarrá-la num das pernas, quando esta tentava subir as escadarias de acesso à casa da sua tia EE, tendo sido ajudada a libertar-se pelos seus familiares que, entretanto, se aperceberam da situação.
LXXIII- A tia da denunciante, EE, acionou a patrulha da GNR ..., que se deslocou ao local.
LXXIV- Aí chegados, deslocaram-se junto à porta de entrada da habitação, sendo audível os gritos do arguido, que dizia "estou com a minha filha ao colo e estou com uma faca na mão; vou espetar a faca em mim e na minha filha; não estou a fazer nada de mal, ela é que me anda a trair; não vou abrir a porta a ninguém e estou com a minha filha menor ao colo.
LXXV- Como o arguido não respondeu ao chamamento dos militares da GNR, estes forçaram a entrada em casa, através do arrombamento da porta da entrada principal. Ao aperceber-se da entrada da GNR no domicílio, o arguido trancou-se com a filha menor na casa de banho, tendo sido necessário arrombar também a porta dessa divisão.
LXXVI- Ato contínuo, o militar da GNR conseguiu retirar a criança do colo do arguido. De seguida, foi o arguido encostado à parede e manietado, tendo-se procedido à sua detenção.
LXXVII- Tal convicção assentou na conjugação com as declarações prestadas pelo arguido em interrogatório judicial, em sede de audiência de julgamento, as declarações para memória futura prestadas por BB e os depoimentos das testemunhas FF, GG, HH, II, EE, JJ, KK, LL, MM e NN.
LXXVIII- Acontece que o arguido em audiência de julgamento, negou em parte os factos, que vinha acusado e mesmo quando confrontado com as declarações anteriores, apenas assumiu que apelidou a ofendida de mentirosa e aldrabona em contexto de discussões havidas sobre as suas desconfianças, mas nunca na presença da menor porque esta encontrava-se a dormir.
LXXIX- Parece evidente que as declarações prestadas pelo arguido foram totalmente desvalorizadas no que toca às supostas agressões praticadas por este, fazendo assim um juízo de prognose baseado nas declarações da ofendida, uma vez supostamente estas teriam sido perpetuadas no seio familiar, não sendo visualizadas por terceiros.
LXXX- Assim sendo, relativamente aos epítetos narrados no ponto de facto n.º 5 (No decurso dessas discussões, nos últimos seis meses, quase diariamente, o arguido dirigiu insultos à vítima, tais como: «PUTA, VACA, MENTIROSA, ALDRABONA, BURRA, SUA FILHA DA PUTA, VAI-TE FODER, VAI PARA O CARALHO, SUA BADALHOCA...».), reproduz matéria genérica, desconhecendo-se as circunstâncias de modo, tempo e lugar em que o arguido apelidava a ofendida com tais impropérios, não podendo, por isso ser considerados.
LXXXI- E isto porque, «não se podem considerar como "factos" as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, pois a aceitação dessas afirmações para efeitos penais inviabiliza o direito de defesa e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32º da Constituição. Por isso, essas imputações genéricas não são "factos" suscetíveis de sustentar uma condenação penal» - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Acórdão do STJ de 15-11-2007 - Proc. 07P3236, rel. Cons. Santos Carvalho).
LXXXII- Porém, no acórdão, na matéria de facto provada n.ºs 107º a 113º não consente, por si só, a conclusão que o arguido agiu com o propósito de ferir a sensibilidade da companheira, e de lhe causar um sentimento de insegurança e intranquilidade e de perturbar o seu equilíbrio psicológico, e ainda, de a molestar fisicamente, maltratando-a e, dessa forma, provocar-lhe sofrimento físico e psíquico, afetando-a na sua dignidade enquanto pessoa humana, não, podendo, por isso, ser atendida no enquadramento jurídico-penal.
LXXXIII- Do ponto dos factos n.º 8 º, 18º, 28 º, 29º, 30º, 33º, 38º, 40º, 42º, 71º, 81º, 84º, 87º e 88º resta apenas provado que o arguido, nas situações descritas atuou com o propósito conseguido de ofender a honra, o bom nome e a integridade física da ofendida.
LXXXIV- Quanto aos factos n º 51º a 106º narrados do dia 2/3 de Agosto de 2024 estes são, narrados pela denunciante no entanto a maioria deles não foi, ratificados pelas testemunhas FF, HH, GG, II, EE, JJ e KK, Como não se extrai pelos depoimentos que uniformemente a menor tenha assistido a qualquer dos factos.
LXXXV-
Até porque se não vejamos,
LXXXVI- Pelas declarações prestadas pela Sra. EE em sede de inquérito na GNR, referiu (que nunca ouviu ou viu algum tipo de maus tratos), referindo ainda que em 03/08/2024 a sua sobrinha lhe disse que foi agredida.
LXXXVII- Em sede de audiência de julgamento, a Sra. EE e JJ, respetivamente tia e primo da ofendida, residentes no 1º andar da casa onde, no résdo-chão, residiam o arguido e a ofendida, contam que, neste dia, estavam em casa a dormir, tendo JJ ido alertar a sua mãe que tinha ouvido barulho na parte de baixo e coisas a cair, o que levou EE a sair, descendo ao exterior, onde ouviu o arguido e BB a falar de "telemóveis"
LXXXVIII- Já JJ narrou que ouvia uma discussão a subir de tom, onde eram referidos mensagens e telemóveis e que o arguido apelidava a denunciante de mentirosa", dizendo-lhe anão vales nada"
LXXXIX- Em momento algum estas testemunhas visualizaram qualquer tipo de agressão, entre o casal, aliás ambos referiram ser uma discussão normal aquando foram confrontados pelas questões efetuadas pela Digníssima Sra. Procuradora do Ministério Público.
XC- De qualquer forma e sem prescindir sempre se diga que, no que concerne ao episódio ocorrido no dia 2 de agosto de 2024, mais uma vez o tribunal a quo baseou a sua convicção apenas no depoimento da ofendida, desconsiderando por completo o depoimento das testemunhas do Sr. II que presenciou os fatos relatando o estado emocional alterado do arguido a não perceber que era a GNR que se encontrava a bater há porta, bem como as declarações da Sra. MM que ratifica os mesmos factos aquando o seu filho lhe efetua a chamada telefónica.
XCI- QUANTO AOS FACTOS PROVADOS EM RELACÃO À MENOR
XCII- Relativamente aos imputados crimes de violência doméstica na pessoa da menor, a factualidade apurada a esse respeito não é, em nosso juízo, idónea a terem-se por preenchidos os elementos constitutivos desse tipo de ilícito.
XCIII- Na verdade, nada vem apurado nos presentes autos que consubstancie a prática de qualquer ato pelo arguido diretamente dirigido à menor.
XCIV- Por outro lado, sendo certo que este crime se basta com um só ato, esse ato sempre teria de ser suficientemente grave para por em causa a dignidade humana da vítima; terá de traduzir "um tratamento ofensivo da dignidade pessoal, com a consequente impossibilidade de desenvolvimento da personalidade. (...)". Quer dizer, quando estiver em causa uma única conduta agressiva, é necessário que este ato revista certas características mais danosas para integrar o crime de violência doméstica, ao invés do que sucede com o crime de ofensa à integridade física.
XCV- A previsão da conduta típica de violência doméstica respeita apenas a atos, sejam eles reiterados, sejam isolados, "reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima" (idem), não abrangendo aqueloutros atos que não revelem o "especial desvalor da ação" ou a "particular danosidade social do facto" "que fundamentam a especificidade deste crime"
XCVI- No caso concreto e como já acima enfatizado, nenhuma factualidade se apurou suscetível de se inserir numa situação de violência parental, integrando uma atividade de agressão verbal elou física, de ameaça ou de atemorização da filha menor - em tudo contrárias ao dever de proteção que recai sobre os pais, enquanto responsáveis pelo seu desenvolvimento equilibrado e harmonioso com o consequente comprometimento do livre e saudável desenvolvimento da personalidade da vítima.
XCVII- Daí que se considere não estarem preenchidos os elementos objetivos deste tipo de crime, assim se impondo a absolvição do arguido dos imputados crimes de violência doméstica na pessoa da sua filha menor uma vez que esta nunca presenciou nenhum facto, até porque, a tenra idade, (19 meses) não lhe permite compreender o alcance dos eventos em causa, anulando assim o impacto que possa ser gerado pelos comportamentos do arguido.
XCVIII- Até porque o certo é, que não vêm demonstrados factos suscetíveis de considerar esta menor como vítima direta da conduta do arguido, não se tendo apurado que o mesmo tenha, de modo voluntário e consciente, agredido física ou psicologicamente a sua filha.
XCIX- Destarte, nesta matéria, entendemos que se a presença da menor é considerada pelo legislador como uma circunstância agravante da punibilidade da conduta do agente é porque não considera a presença da criança como um crime autónomo merecedor de um juízo de censura autonomizável.
C- O legislador pune apenas a conduta que tem como vítima direta a pessoa menor da idade, mas apenas quando esta vítima é o alvo direto visado pela ação do agente. E, no nosso caso, face à factualidade que se apurou, não se pode considerar que a menor foi vítima diretas da ação do arguido, pelo que a conduta deste apenas preenche a circunstância qualificativa prevista na alínea a) do nº 2 do artigo 152º do Código Penal, não sendo, pois, autonomizável.
CI- Veja-se, ademais, que as propostas legislativas que visavam criminalizar, como tipo de ilícito autónomo, a exposição dos menores à violência doméstica, não obtiveram acolhimento, como se pode ver pelos Projetos de Lei nº 1I/XIV/1ª e 76/XV/1ª.
CII- Mais um argumento, parece-nos, para se entender que, face ao direito constituído, a mera exposição da menor à violência doméstica exercida entre os progenitores não constitui um ilícito autónomo, mas sim uma circunstância qualificativa agravante.
CIII- Posto isto
CIV- O tribunal a quo ao dar como provados os factos ocorridos no dia 2 de agosto de 2024, nas versões que constam da fundamentação da sentença, violou entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do CPP.
CV- Assim sendo importa aferir se a conduta do arguido resultantes dos factos ora provados é suscetível de integrar a prática do crime de violência doméstica pelo qual foi condenado.
CVI- DA INEXISTÊNCIA DA PRÁTICA DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CVII- Sem prescindir e admitindo por mera hipótese académica como provados os factos em que assentou a sentença objeto de recurso, constatamos, claramente,
CVIII- ASSIM SENDO
CIX- Dispõe o artigo 152º, nº 1, al. b), do Código Penal:
CX- Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos,
incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
CXI- Esta pena é elevada de dois a cinco anos, quando o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima (n e 2, do mesmo artigo 152º).
CXII- O que é relevante para a caracterização dos maus-tratos psíquicos é que estejam associados à posição de controlo ou de dominação que o agressor pretenda exercer sobre a vítima, de que decorre uma maior vulnerabilidade desta.
CXIII- Sobre este tipo de crime, a jurisprudência tem vindo a pronunciar-se, da qual destacamos, a Relação de Coimbra, no Acórdão de 29 de janeiro de 2014 (www.dgsi.pt) – que chamando à colação dois arestos anteriores — proferidos nos processos nºs 3827/2002 e 256/05.2GCAVR.C1 -recordou que:
CXIV- «Não são os simples atos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.que o recorrente não praticou o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º do C.P.
CXV- No elenco dos factos do dia 2 de agosto de 2024, que, ora, resultaram provados, inexistem dúvidas que o arguido tenha praticado os mesmos da forma descrita porque estes são baseados só nas declarações da ofendida, não tendo sido carreadas provas suscetíveis de ter verificado danos psicológicos, nomeadamente através de acompanhamento psicológico na ofendida que sustentem o P.I.C.
CXVI- No entanto, pode-se verificar, na confissão do arguido não existência de dúvidas que este chamou à ofendida os impropérios de badalhoca e mentirosa.
CXVII- Como não existem dúvidas que o arguido ofendeu a integridade física, a honra e consideração da arguida.
CXVIII- Contudo, não se encontra demonstrado nos autos, que as agressões físicas e as expressões utilizadas pelo arguido constituam o conceito de maus-tratos, no sentido apontado pelo citado artigo 152º do CP, a factualidade apurada não evidencia, à luz da experiência comum, a existência de maus-tratos infligidos pelo arguido à ofendida: que aquele, ao insultar e agredir esta, tenha agido com humilhação, desprezo ou especial desconsideração da mulher.
CXIX- Os atos praticados pelo arguido não revelam, ao nível do desvalor da ação e resultado, uma intensidade tal que seja suficiente para lesar o bem jurídico, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
CXX- Desaparece, assim, o elemento especial e caracterizador do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º do Código Penal em relação aos crimes de injúrias ofensa à integridade física.
CXXI- A conduta do arguido integra, assim, os elementos objetivos e subjetivos de um crime de injúrias previstos e punidos pelo artigo 181º, nº 1 e um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo 143º, nº 1, ambos do Código Penal e não já o do crime de violência doméstica.
CXXII- Não restam, assim dúvidas que o recorrente não praticou os crimes de violência doméstica em que foi condenado.
CXXIII- Pelo que, o tribunal não interpretou, corretamente o artigo 152º do CP.
CXXIV- PEDIDO DE INDEMINIZAÇÃO CIVIL
Nos termos do supra alegado e não tendo o recorrente praticado os crimes em que foi condenado, deve o mesmo ser absolvido do pedido de indeminização civil deduzido contra si, uma vez que não existem nos autos prova sustentável dos danos causados à ofendida.
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA E, EM CONSEQUÊNCIA, SER O RECORRENTE ABSOLVIDO DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM QUE FOI CONDENADO, BEM COMO DO RESPETIVO PEDIDO DE INDEMINIZAÇÃO CIVIL.”
«««»»»
Da Motivação do recurso interposto pela assistente, por si e em representação da sua filha menor, CC, retiram-se as seguintes
« CONCLUSÕES:
I. Por Douto Acórdão proferido nos presentes autos, foi o Arguido AA foi condenado, em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, na pena única de 5 (cinco) anos (…).
II. A matéria de facto dada como provada nos presentes autos, corresponde à totalidade da matéria de facto elencada na Acusação, ou seja, não houve qualquer alteração dos factos, designadamente:
Dos Factos Provados:
(…)
2º- Da relação, em ../../2022 nasceu a única filha que têm em comum: CC.
7º- No decurso dessas discussões, nos últimos seis meses, quase diariamente, o arguido dirigiu insultos à vítima, tais como: «PUTA, VACA, MENTIROSA, ALDRABONA, BURRA, SUA FILHA DA PUTA, VAI-TE FODER, VAI PARA O CARALHO, SUA BADALHOCA
8º- Este tipo de situações ocorria a qualquer hora do dia, sempre no interior da residência, muitas das quais na presença da filha menor CC.
24ºº- No dia 29/07/2024, quando BB chegou a casa, cerca das 12H45, o arguido encontrava-se no corredor, tendo a filha de ambos ao colo.
25º- Visivelmente alterado, começou a falar-lhe num tom crespo, exigindo explicações para o facto de se ter apercebido que tinha mudado de cuecas antes de sair de casa e ter tentado escondê-las no cesto da roupa suja.
27º- Perante a sua resposta, o arguido começou a revelar-se ainda mais nervoso, dizendo-lhe «NÃO COMECES COM AS TUAS MENTIRAS…», tendo, de seguida agarrado a denunciante pelos cabelos, de forma violenta, puxando-os, forçando que o acompanhasse até à casa de banho localizada no fundo do corredor do lado esquerdo, mantendo a filha de ambos sempre ao seu colo.
28º- Arrastada pelos cabelos até à casa de banho, ali chegados, o arguido libertou-lhe os cabelos e exigiu-lhe que explicasse o porquê de ter escondido as cuecas daquela maneira no cesto.
29º- No momento em que a denunciante tentava explicar a forma como tinha colocado as cuecas, o arguido, de forma enérgica, agarrou-a pelo pulso da mão direita e puxou-o num movimento único e forte, fazendo com que sentisse dores em toda a extensão do braço e ombro.
30º- Em seguida, o arguido voltou a agarrar-lhe os cabelos na zona da orelha e começou a puxar-lhe, ao mesmo tempo que lhe falou alto, dizendo-lhe: «NÃO SEJAS MENTIROSA, PÁ. NÃO SEJAS MENTIROSA, ESTÁS AQUI A DIZER-ME QUE FOSTE TU QUE APANHASTE A ROUPA. ESTÁS A MENTIR, PORQUE FUI EU QUE APANHEI E PUS ASSIM… SUA MENTIROSA.».
32º- De volta ao corredor, o arguido começou a dizer-lhe: «SE É VERDADE, JURA PELA MORTE DA TUA FILHA QUE FOSTE TU QUE PUSESTE ALI A ROUPA. JURA PELA MORTE DA TUA FILHA.»
33º- Após a denunciante ter jurado ter sido quem arrumou a roupa, o arguido ficou de tal ordem enfurecido que a agarrou pela orelha direita e pelo cabelo, forçou o corpo da mesma contra a parede do corredor, fazendo com que o corpo da vítima fosse levantado, ficando em bicos de pés.
34º- A ser pressionada contra a parede e levantada, o ombro esquerdo fez fricção na parede causando escoriação naquela zona corporal, a qual não tendo sagrado, ficou em «carne viva».
36º- Depois de ferida, o arguido largou a denunciante momentaneamente, continuando a discutir, exigindo explicações por tudo e por nada.
37º- A dada altura, descontrolado, o arguido, continuando com a filha CC ao colo, usando uma das mãos, colocando a mão em posição de gancho, encaixou na parte inferior do queixo da denunciante, junto ao pescoço e ao mesmo tempo que a apertou, empurrou o corpo contra a parede do corredor.
38º- No seguimento desta ação, a CC começou a pedir para ir para o chão, tendo o arguido acatado.
39º- Já sem a filha ao colo, com ambas as mãos livres, o arguido agarrou BB na zona das orelhas, agarrando as orelhas e os cabelos, levantando-a em força, dizendo repetidamente: «VAIS TER QUE ME DIZER A VERDADE, VAIS DIZER A VERDADE, SUA MENTIROSA, VAIS, VAIS…. JURA PELA MORTE DA TUA AVÓ… NUNCA VI NINGUÉM COMO TU… TÃO MENTIROSA, TÃO MENTIROSA, SUA MENTIROSA, VAIS TER QUE DIZER A VERDADE.»
40º- O arguido, completamente descontrolado, enfurecido, dizia-lhe: «ESTÁS A ACABAR COMIGO… COMO É QUE ÉS CAPAZ DE MENTIR DESTA MANEIRA… PODES ACABAR COMIGO, MAS TU NÃO VAIS FICAR A RIR. SUA MENTIROSA.».
41º- Entretanto, o arguido acabou por a libertar, assim que a CC lhe começou a pedir colo.
42º- De seguida, o arguido voltou a pegar a filha ao colo e começou a dizer: «TENHO CEM POR CENTO DE CERTEZA QUE ME TRAISTE, SUA BADALHOCA, SUA PORCA…», «SE ÉS CAPAZ DE ME MENTIR DESTA MANEIRA, EU TENHO CEM POR CENTO DE CERTEZA, SUA BADALHOCA.».
43º- O arguido, irado, voltou a agarrar a denunciante pelos cabelos e empurrou-a, fazendo com que caísse no chão.
44º- Prostrada no chão de costas voltadas contra este e peito para cima, o arguido colocou o joelho em cima do seu pescoço pressionando-o, levando a que BB se sentisse sufocada.
45º- A denunciante tentou libertar-se, começando a esbracejar e espernear.
46º- Quando ao fim de alguns segundos conseguiu libertar-se, desesperada, dirigiu-se para o arguido, dizendo-lhe «POR FAVOR, NÃO ME BATAS MAIS, NÃO ME MATES POR FAVOR…», tentando-o sensibilizar com a presença da filha que assistia a todo o conflito.
48º- Com o arguido aparentemente a acalmar-se, a vítima pediu-lhe que a deixasse dar a sopa à filha CC, pedido que o mesmo recusou, dizendo: «NÃO VAIS DAR SOPA NENHUMA, VOU LIGAR À TUA MÃE PARA ELA SABER A FILHA MENTIROSA QUE TEM, PORQUE EU NÃO SOU MALUCO.».
53º- O arguido acabou por se acalmar e permitiu que a CC comesse a sopa.
70º- Este assim que viu a CC ainda acordada, começou a mostrar-se nervoso, dizendo-lhe que fosse adormecer a menor.
73º- Subitamente, o arguido abeirou-se da mesma e começou novamente a exigir-lhe explicações, vindo a desferir-lhe uma chapada de mão aberta junto à zona da fonte, fazendo-a sentir forte dores, já que a atingiu com um anel grosso, que tinha colocado no dedo.
74º- Temendo pelo pior, a denunciante começou a implorar que não lhe batesse mais e que se acalmasse, que tivesse em atenção a filha que estava a dormir ao lado.
75º- Os apelos da denunciante enfureceram o arguido, o qual voltou a agredi-la com uma chapada de mão aberta na zona traseira da cabeça.
77º- Volvidos alguns minutos, o arguido chamou a denunciante, dizendo-lhe que não iria dormir junto à filha e que teria de dormir no sofá.
106º- Aí chegados, deslocaram-se junto à porta de entrada da habitação, sendo audível os gritos do arguido, que dizia “estou com a minha filha ao colo e estou com uma faca na mão; vou espetar a faca em mim e na minha filha; não estou a fazer nada de mal, ela é que me anda a trair; não vou abrir a porta a ninguém e estou com a minha filha menor ao colo.“.
107º-. Como o arguido não respondeu ao chamamento dos militares da GNR, estes forçaram a entrada em casa, através do arrombamento da porta da entrada principal.
108º-. Ao aperceber-se da entrada da GNR no domicílio, o arguido trancou-se com a filha menor na casa de banho, tendo sido necessário arrombar também a porta dessa divisão.
109º-. Acto contínuo, o militar da GNR conseguiu retirar a criança do colo do arguido.
110º-. De seguida, foi o arguido encostado à parede e manietado, tendo- se procedido à sua detenção.
121º- O arguido praticou os referidos actos na privacidade da residência comum e na presença da sua filha menor de idade.
122- Ao praticar os referidos actos de violência física e verbal visando diretamente a companheira, na presença da filha menor, não pode o arguido deixar de, pelo menos, admitir que um tal comportamento é suscetível de causar relevante sofrimento psicológico na sua filha, afetando o são desenvolvimento psicológico, afetivo e emocional, quem sabe de forma irreparável, resultado com o qual o arguido necessariamente se conformou.
123- Desta forma, violou grosseiramente os deveres de respeito e solidariedade que se lhe impunha observar enquanto pai, violando, outrossim, o dever de proteção à sua filha menor, enquanto responsável pela sua guarda e educação, não atentando, desta forma, aos interesses daquela.” - (negrito nosso).
VI. O Douto Acórdão, designadamente nesta parte, não merece qualquer reparo, que valorou de foram acertada toda a prova produzida em julgamento, pelo que deve ser mantido.
VII. Contudo, no que diz respeito à pena acessória relativamente ao crime praticado sobre a menor CC, outra teria que ser a decisão do Tribunal a quo.
VIII. Sendo dessa parte da decisão do douto Acórdão que ora se recorre, por se entender que a prova constante dos autos e a que foi produzida em audiência de julgamento, teria de levar à condenação do Arguido, nos precisos termos em que vinha acusado, isto é, condenado também na aplicação da pena acessória de inibição das responsabilidades parentais.
IX. Não existem dúvidas que o Arguido apresenta um carácter violento, com total desrespeito pela dignidade das vítimas (sejam elas adultas ou menores), com um permanente desejo de prevalência, dominação e controlo das mesmas.
X. E, reitera-se, não obstante o Tribunal a quo ter condenado o Arguido pela prática do crime de violência doméstica, na pessoa da sua filha menor CC, p.e.p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas d) e e) do C. Penal, com o devido respeito, não se compreende, contudo, como afastou a aplicação da pena acessória de inibição das responsabilidades parentais, e tal decisão viola o artigo 152.º, n.º 6 do C. Penal.
XI. Ficou provado nos presentes autos que durante quase 2 anos, de forma recorrente e quase diária, o Arguido agrediu (de forma verbal e física) a Assistente e Mãe, tendo-o feito na maioria das vezes, na presença da filha menor do casal.
XII. A menor foi forçada a presenciar tais episódios de violência praticados pelo Arguido contra a sua mãe e contra si.
XIII. Resultou provado que o Arguido agrediu de forma violenta a Assistente, tendo a filha de ambos ao colo, agarrando aquela, puxando-lhe os cabelos, atirando-a contra a parede, até a mesma ficar em bicos de pés; sempre com a menor ao colo, usou uma das mãos em posição de gancho, encaixando-a na parte inferior do queixo da Assistente, junto ao pescoço, ao mesmo tempo que o apertou, momento em que a menor começou a pedir para ir para o chão; quando a menor lhe pede novamente colo, o Arguido pega na mesma e prossegue com as agressões, já com a menor ao colo, puxando a Assistente pelos cabelos e empurrando-a, fazendo-a com que caísse no chão, colocando o joelho em cima do pescoço desta e pressionando.
XIV. Ficou também provado que o Arguido, após novas agressões à Assistente, se barricou dentro da casa de banho, com a filha menor, gritando e ameaçando que se matava a si e à menor, se alguém tentasse ali entrar, repetindo várias vezes.
XV. Com efeito, a ora Recorrente entende que deveria a pena principal deveria ter sido acompanhada da pena acessória, entendendo que deveria ter ser sido proferida decisão diversa relativamente à pena acessória de inibição das responsabilidade parentais (cfr. prevista no n.º 6 do artigo 152.º do C. Penal).
XVI. Encontram-se verificados, de forma expressa e nítida, o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos dos crimes pelos quais foi o Arguido condenado, nomeadamente quanto ao crime de violência doméstica perpetrado sobre a menor CC.
XVII. Dispõe o n.º 6, do artigo 152.º do C. Penal que quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos.
XVIII. Ora, as responsabilidades parentais, reguladas nos artigos 1878.º e ss do Código Civil, assentam nos princípios gerais de que compete aos pais e progenitores a obrigação e responsabilidade de respeitarem os deveres de velar pela segurança e saúde dos filhos, de prover o seu sustento, de dirigir a sua educação, de representá-los, ainda que nascituros, e de administrar os seus bens.
XIX. Acresce que, o artigo 1913.º, n.º 1, alínea a) do C. Civil prevê que se consideram de pleno direito inibidos do exercício das responsabilidades parentais “Os condenados definitivamente por crime a que a lei atribua esse efeito.”.
XX. Nos presentes autos, o Arguido foi, efetivamente, condenado pela prática do crime de violência doméstica, p.e.p. artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e e) do C. Penal, perpetrado sobre a menor CC.
XXI. Resultou provada factualidade que revela a exposição da menor a diversos contextos e episódios de violência e agressões, que para além da sua gravidade indiscutível, provou que foi praticado um crime diretamente sobre a menor, designadamente no momento em que o Arguido se barrica na divisão da casa-de-banho com a mesma, e repete a ameaça de tirar-lhe a vida.
XXII. Pelo que, in casu, e salvo o devido respeito, apurou-se factualidade, suficiente e necessária, susceptível de se inserir numa situação de violência parental, integrando uma atividade de agressão sobre a filha menor, em tudo contrárias ao dever de proteção que recai sobre os pais, enquanto responsáveis pelo seu desenvolvimento equilibrado e harmonioso, com o consequente comprometimento do livre e saudável desenvolvimento da personalidade da vítima, como aliás é referido expressamente da motivação no próprio Acórdão: « Se o arguido não exerce sobre a menor, directamente, actos de violência física, sujeita-a, expõe a mesma àqueles, às ameaças dirigidas à mãe, cerceando o seu crescecimento saudável e harmonioso, infligindo-lhes, por essa razão, maus tratos psíquicos.».
XXIII. Com o elevado respeito, o Tribunal a quo ao decidir não aplicar a pena acessória prevista no n.º 6 do arrigo 152.º do C. Penal – crime pelo qual foi efetivamente o Arguido condenado -, entende a ora Recorrente que o Tribunal não atendeu às necessidades de prevenção que o Direito tem de prosseguir.
XXIV. Resulta evidente que se mostra justificada a aplicação da pena acessória de inibição das responsabilidades parentais, pelo menos, por período igual ao da pena de acessória aplicada em relação à Assistente BB, que incluiu a proibição de contactos e afastamento do arguido da residência daquela, isto é, pelo período de 5 (cinco) anos.
XXV. Impunha-se um juízo diverso quanto à pena acessória, que deveria ter sido aplicada a inibição total do exercício das responsabilidades parentais do Arguido relativamente à sua filha menor, CC, o que resultou na violação do artigo 152.º, n.º 6 do C. Penal e do artigo 20.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.
XXVI. No caso concreto dos presentes autos, revela-se imprescindível para os direitos da (s) vítima (s), para a sua eficaz e plena proteção (cfr. é consagrado no artigo 20.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro), um juízo no sentido da determinação da total inibição das responsabilidades parentais, pela própria personalidade do Arguido e comportamento inconstante, obsessivo e manipulador.
XXVII. A que acresce o facto do Arguido nunca se ter mostrado arrependido das condutas adotadas para com a Assistente e para com a filha menor, tendo até negado os factos em audiência de julgamento, não obstante ter confessado os mesmos em sede de 1.º interrogatório judicial, o que por si só é revelador da falta de juízo critico de autocensura.
XXVIII. Se as responsabilidades parentais não forem totalmente inibidas, implicará, a título de exemplo, que num regime de visitas à filha menor de ambos, levará a que o Arguido tenha conhecimento privilegiado de factos da vida da Assistente, e a que haja, necessariamente, contacto entre as partes.
XXIX. Atento o elevado desvalor de cada uma das condutas adotadas pelo Arguido, a ausência de arrependimento e a falta de juízo crítico de autocensura, e salvo o devido respeito por opinião contrária, é justo, adequado, proporcional e necessário condenar e aplicar ao Arguido a pena acessória de inibição das responsabilidades parentais, prevista no artigo 152.º, n.º 6 do C. Penal.
XXX. Por conseguinte, o Tribunal a quo violou, entre outros, o artigo 152.º, n.º 6 e artigo 67.º-A, n.º 1, alínea a), iii), ambos do CPP; o artigo 20.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.
Nestes termos e nos melhores de direito que doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente Recurso de Apelação, devendo o mesmo ser julgado procedente e, por via dele, ser parcialmente revogada a decisão sub judice, e substituída por outra que:
a) Determine, em relação à menor CC, a aplicação da pena acessória de inibição das responsabilidades parentais, acompanhando, assim, a pena principal aplicada ao Arguido pelo crime de violência doméstica, p.e.p. artigo 152.º, n.º 1, alíneas d) e e) e n.º 2, alínea a) do C. Penal, perpetrado sobre a menor CC, nos termos do disposto no artigo 152.º, n.º 6 do C. Penal, pelo menos, por período igual ao da pena de acessória aplicada em relação à Assistente BB, que incluiu a proibição de contactos e afastamento do arguido da residência daquela, isto é, pelo período de 5 (cinco) anos.
Assim se fazendo a inteira e sã Justiça! (…) »
O Ministério Público deduziu Respostas aos recursos interpostos retirando-se daquelas as seguintes conclusões e, em suma, concluiu que os mesmos devem ser julgados totalmente improcedentes, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Conclusões retiradas relativamente ao recurso interposto pelo arguido –
“IV - CONCLUSÕES:
1. Por Douto Acórdão proferido nestes autos, foi decidido o arguido AA Julgar o arguido autor material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, al. b) e 2 do Código Penal (perpetrado sobre BB) e, consequentemente, condenar o mesmo na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
Julgar o arguido autor material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigo 152º, n.º 1, al. d) e e) e 2 do Código Penal (perpetrado sobre CC) e, consequentemente, condenar o mesmo na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, condenar o arguido na pena única de 5 (cinco) anos de prisão efectiva.
2. A prova é basta e decorre essencialmente das declarações para memória futura recolhidas a BB e das declarações prestadas pelo arguido em primeiro interrogatório judicial, bem como da prova testemunhal produzida, nomeadamente os depoimentos dos familiares da ofendida.
3. A reiteração e gravidade dos factos impõe necessariamente de tal factualidade no crime de violência doméstica e nunca autonomizar em crime de injúria e crime de ofensa à integridade física.
4. Por outro lado, determina que se impute ao arguido a prática de dois crimes de violência doméstica, um na pessoa na ofendida BB e outro na pessoa da menor, filha de ambos, CC que foi exposta à violência desde que nasceu.
5. Pelas razões expostas, concordamos, na íntegra com o Douto Acórdão recorrido, sendo quer as penas parcelares, quer a pena única, justas, adequadas, proporcionais.
Razões pelas quais entendemos dever ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, manter-se o Douto Acórdão recorrido nos seus precisos termos, com o que V/ Exc.ªs farão a costumada JUSTIÇA!”
“1. Por Douto Acórdão proferido nestes autos, foi decidido condenar o arguido AA como autor material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, al. b) e 2 do Código Penal (perpetrado sobre BB) e, consequentemente, condenar o mesmo na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
-como autor material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigo 152º, n.º 1, al. d) e e) e 2 do Código Penal (perpetrado sobre CC) condenar o mesmo na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, condenar o arguido na pena única de 5 (cinco) anos de prisão efectiva.
2. Entendeu-se não ser de aplicar a pena acessória de Inibição do exercício das Responsabilidades Parentais.
3. Com efeito, apesar de o arguido ter sido condenado pelo crime de violência doméstica, também na pessoa da menor CC, o certo que a mesma é vítima por ter presenciado os factos.
4. Cumpre notar que a menor, à data dos factos, ainda não tinha dois anos de idade.
5. Por outro lado, o arguido nunca agrediu ou violentou a menor.
6. A presença do pai no crescimento da menor é essencial a um crescimento saudável e equilibrado.
7. Para aplicação de tal pena acessória ao arguido deve ser manifesta a sua falta de preparação para, face aos deveres a que particularmente estava obrigado, manter uma conduta respeitadora dos valores que no seio da família se impõem, tendo em vista a protecção e o são desenvolvimento de uma criança.
8. Deste modo, afigura-se desproporcionada a aplicação de tal pena acessória, penalizadora não só para o arguido em termos desadequados, como para a menor.
9. Pelas razões expostas, concordamos, na íntegra com o Douto Acórdão recorrido, nomeadamente com a não aplicação, no caso concreto da Pena Acessória de Inibição do exercício das Responsabilidades Parentais.
Razões pelas quais entendemos dever ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, manter-se o Douto Acórdão recorrido nos seus precisos termos, com o que V/ Exc.ªs farão a costumada JUSTIÇA!”
Subidos os autos a este Tribunal da Relação, em sede de parecer a que alude o art.º 416°, do CPP, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto acompanhou a resposta da Exma. Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância à motivação apresentada em cada um dos recursos interpostos, quer pelo arguido, quer pela assistente, emitindo parecer no sentido de que sejam julgados improcedentes, confirmando-se o acórdão proferido pelo Tribunal a quo.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. A delimitação do objeto do recurso
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, n.º 2, ou 379º, n.º 1, ambos do CPP (cfr. art.º 412º, n.º 1, e 417º, n.º 3, ambos do CPP), conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
Diga-se, em jeito de esclarecimento inicial, que apesar de se constatar que as conclusões apresentadas pelo recorrente AA padecem, notoriamente, do vício da prolixidade no quadro da impugnação da matéria de facto que visa alcançar, certo é que, como infra se explanará, a evidente violação do ónus de impugnação previsto no art.º412 n. º3 do C.P.P. que resultará na rejeição parcial do recurso, retira efeito útil a um eventual despacho que determinasse a correção das ditas conclusões. E sopesando a circunstância dos presentes autos revestirem natureza urgente, quer pela natureza do ilícito em análise - violência doméstica,- quer pelo facto do arguido se encontrar em prisão preventiva –, sob a égide do principio da celeridade processual e face à desnecessidade da prática de actos inúteis, opta-se por não se determinar tal correção.
II.1.1 Da análise das conclusões do recorrente AA extraímos as seguintes questões que importam apreciar e decidir:
A - Erro de julgamento com impugnação alargada da matéria de facto no que se reporta à factualidade assente sob os n. ºs 5 a 107, com violação dos princípios da livre apreciação da prova - artigos 127. º do C.P.Penal;
B – Da imputação de factos genéricos e com indefinição temporal (5. º)
C- Erro de julgamento na matéria de Direito:
- da errada imputação de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, al. d) e e) e 2 do Código Penal perpetrado sobre CC;
- da errada imputação de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, al. b) e 2 do Código Penal perpetrado sobre BB; da convolação do mesmo para a prática de um crime de ofensas à integridade física simples p. e p. pelo art.º 143 n. º1 do C. Penal e de um crime de injúrias p. e p. pelo art. º181 do C.Penal.
- da necessidade da aplicação da pena acessória de inibição das responsabilidades parentais em relação à filha menor CC, prevista no n.º 6 do artigo 152.º do C. Penal.
II.2 A Decisão Recorrida:
A decisão recorrida tem o seguinte teor:
« (…)II – Fundamentação
II.1 – Factos provados
Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:
1º- BB manteve com o arguido uma relação análoga à dos conjugues durante cerca de 6 anos.
2º- Da relação, em ../../2022 nasceu a única filha que têm em comum: CC.
3º- À data dos factos, o arguido encontrava-se a ser acompanhado no CRI ... - Porto, por consumo de haxixe e cocaína.
4º- Durante os primeiros 2 (dois) anos de relacionamento, o casal vivia na localidade de ..., vindo posteriormente a fixar residência na localidade de ..., partilhando habitação com os pais da vítima, sita na Rua ... – ... e há sensivelmente dois anos passaram a viver em habitação arrendada localizada na Rua ..., ..., ..., ....
5º- Desde o início da relação que o casal discutiu com grande frequência, aumentando de intensidade já quando o casal fixou residência na habitação sita na Rua ..., ..., ..., indo para ali residir em agosto de 2022, encontrando-se a vítima, na ocasião, grávida da filha CC.
6º- Já a viver em ..., as discussões começaram a agudizar-se pelo facto de o arguido sair muitas vezes de casa e chegar a casa a horas tardias, não lhe dando justificações cabais para tais comportamentos.
7º- No decurso dessas discussões, nos últimos seis meses, quase diariamente, o arguido dirigiu insultos à vítima, tais como: «PUTA, VACA, MENTIROSA, ALDRABONA, BURRA, SUA FILHA DA PUTA, VAI-TE FODER, VAI PARA O CARALHO, SUA BADALHOCA…».
8º- Este tipo de situações ocorria a qualquer hora do dia, sempre no interior da residência, muitas das quais na presença da filha menor CC.
9º- O comportamento do arguido e recente maternidade levou a que BB evitasse manter contactos de intimidade com aquele, postura que o levou a criar desconfianças, começando a nutrir por si ciúmes doentios, acusando-a de manter relações extraconjugais com outros homens.
10º- Os ciúmes alimentados pelo arguido eram de tal ordem doentios que este passou a contar a quantidade de cuecas sujas que a vítima colocava para lavar, dizendo-lhe várias vezes que as marcas de corrimento «eram de andar a foder com outros…», referindo: «JÁ ANDASTE A FODER LÁ NO TEU TRABALHO. SUA PORCA.».
11º- Além de contar a quantidade de cuecas que a vítima usava, o arguido começou a cheirar a sua farda de trabalho quando chegava a casa, dizendo-lhe: «ISTO NÃO CHEIRA A SUOR. TU NÃO ANDASTE A TRABALHAR…».
12º- No 25/07/2024, encontrava-se BB no seu local de trabalho (Centro Hospitalar ... – serviço de limpeza) quando, cerca das 16H45 (poucos minutos antes do início de turno) o arguido efetuou uma chamada telefónica à mesma, através do nº ...66, o qual lhe exigiu explicações pelo facto de ter levado para o trabalho «duas cuecas limpas».
13º- BB disse-lhe que tal não correspondia à verdade, ocasião em que o arguido começou a dizer-lhe que era mentirosa e que tinha uma fotografia das cuecas.
14º- A dada altura, o arguido efetuou um vídeo chamada à companheira, através da rede social WhatsApp, tendo, durante a mesma, lhe exigido que fosse para a casa de banho dos deficientes e que lhe mostrasse a roupa interior que tinha vestida naquele dia.
15º- BB, com receio, acabou por cumprir tal ordem, pois tinha consciência ser a única forma de conseguir acalmar as desconfianças alimentadas pelo arguido e bem assim ter paz para conseguir trabalhar.
16º- Ainda assim, o arguido continuou a fazer várias chamadas ameaçando-a que iria deslocar-se ao seu local de trabalho e que «entrava com o carro pelas urgências dentro.».
17º- Temendo seriamente que o arguido fosse provocar um escândalo para o seu local de trabalho, pois acreditava que fosse capaz de o fazer, BB acabou por ligar telefonicamente para a mãe deste, para o nº ...30, a quem explicou o que estava a acontecer pedindo-lhe que tentasse acalmar o filho, o qual se mostrava descontrolado.
18º- Já no dia seguinte, o arguido começou novamente a exigir-lhe explicações, voltando a insinuar que tinha amantes e que mantinha relações sexuais no local de trabalho.
19º- Voltou a acusá-la, tal como o tinha feito no dia anterior, numa das chamadas telefónicas, que andava a combinar encontros com os colegas de trabalho.
20º- Confrontou-a com um manuscrito que havia encontrado na mochila de trabalho da vítima, na qual constava um número de porta e número que identificava o chuveiro, registo que a vítima fez para reportar anomalias no relatório de serviço, mas que o arguido, apesar de lhe ser explicado, insistiu em afirmar ser um código que a vítima fez para se encontrar com alguém, acusando-a de «ANDAR A FODER NO TRABALHO.».
21º- Perante tais comportamentos do arguido, BB deixou de sentir vontade em manter relações de intimidade com o arguido, postura que o fez aumentar a suspeita de que a vítima mantinha relações com outros homens.
22º- Assim, quando se apercebia que o arguido queria manter relações de intimidade, fingia que estava a dormir, na ânsia que o mesmo não insistisse, contudo, algumas vezes, pelo menos em 20 (vinte) ocasiões, perante a insistência do arguido, o qual passando a mãos nas zonas dos seios e na vagina, ao mesmo tempo que lhe dizia: «estou aqui a tocar-te e tu estás aí seca… não tens vergonha de estar aí seca…estou aqui a tocar-te…», «não queres, mas vais levar comigo.».
23º- Apesar de não ter vontade de manter qualquer tipo de intimidade com o arguido, por ter consciência que o mesmo não lhe daria descanso enquanto não consumassem o ato sexual, por querer descansar para ir trabalhar horas depois, BB acabava por consentir o acto em si, sendo que só quando consumado é que o arguido a deixava dormir.
24ºº- No dia 29/07/2024, quando BB chegou a casa, cerca das 12H45, o arguido encontrava-se no corredor, tendo a filha de ambos ao colo.
25º- Visivelmente alterado, começou a falar-lhe num tom crespo, exigindo explicações para o facto de se ter apercebido que tinha mudado de cuecas antes de sair de casa e ter tentado escondê-las no cesto da roupa suja.
26º- BB respondeu-lhe que não fazia sentido do que a estava a acusar, que tinham dormido juntos e ele sabia a roupa interior que tinha vestida, não havendo qualquer razão para tentar começar, mais uma vez, uma discussão.
27º- Perante a sua resposta, o arguido começou a revelar-se ainda mais nervoso, dizendo-lhe «NÃO COMECES COM AS TUAS MENTIRAS…», tendo, de seguida agarrado a denunciante pelos cabelos, de forma violenta, puxando-os, forçando que o acompanhasse até à casa de banho localizada no fundo do corredor do lado esquerdo, mantendo a filha de ambos sempre ao seu colo.
28º- Arrastada pelos cabelos até à casa de banho, ali chegados, o arguido libertou-lhe os cabelos e exigiu-lhe que explicasse o porquê de ter escondido as cuecas daquela maneira no cesto.
29º- No momento em que a denunciante tentava explicar a forma como tinha colocado as cuecas, o arguido, de forma enérgica, agarrou-a pelo pulso da mão direita e puxou-o num movimento único e forte, fazendo com que sentisse dores em toda a extensão do braço e ombro.
30º- Em seguida, o arguido voltou a agarrar-lhe os cabelos na zona da orelha e começou a puxar-lhe, ao mesmo tempo que lhe falou alto, dizendo-lhe: «NÃO SEJAS MENTIROSA, PÁ. NÃO SEJAS MENTIROSA, ESTÁS AQUI A DIZER-ME QUE FOSTE TU QUE APANHASTE A ROUPA. ESTÁS A MENTIR, PORQUE FUI EU QUE APANHEI E PUS ASSIM… SUA MENTIROSA.».
31º- Em seguida, o arguido acabou por a largar e saíram do interior da casa de banho.
32º- De volta ao corredor, o arguido começou a dizer-lhe: «SE É VERDADE, JURA PELA MORTE DA TUA FILHA QUE FOSTE TU QUE PUSESTE ALI A ROUPA. JURA PELA MORTE DA TUA FILHA.»
33º- Após a denunciante ter jurado ter sido quem arrumou a roupa, o arguido ficou de tal ordem enfurecido que a agarrou pela orelha direita e pelo cabelo, forçou o corpo da mesma contra a parede do corredor, fazendo com que o corpo da vítima fosse levantado, ficando em bicos de pés.
34º- A ser pressionada contra a parede e levantada, o ombro esquerdo fez fricção na parede causando escoriação naquela zona corporal, a qual não tendo sagrado, ficou em «carne viva».
35º- Não obstante, não recorreu a qualquer unidade de saúde nem contou o sucedido a alguém.
36º- Depois de ferida, o arguido largou a denunciante momentaneamente, continuando a discutir, exigindo explicações por tudo e por nada.
37º- A dada altura, descontrolado, o arguido, continuando com a filha CC ao colo, usando uma das mãos, colocando a mão em posição de gancho, encaixou na parte inferior do queixo da denunciante, junto ao pescoço e ao mesmo tempo que a apertou, empurrou o corpo contra a parede do corredor.
38º- No seguimento desta ação, a CC começou a pedir para ir para o chão, tendo o arguido acatado.
39º- Já sem a filha ao colo, com ambas as mãos livres, o arguido agarrou BB na zona das orelhas, agarrando as orelhas e os cabelos, levantando-a em força, dizendo repetidamente: «VAIS TER QUE ME DIZER A VERDADE, VAIS DIZER A VERDADE, SUA MENTIROSA, VAIS, VAIS…. JURA PELA MORTE DA TUA AVÓ… NUNCA VI NINGUÉM COMO TU… TÃO MENTIROSA, TÃO MENTIROSA, SUA MENTIROSA, VAIS TER QUE DIZER A VERDADE.»
40º- O arguido, completamente descontrolado, enfurecido, dizia-lhe: «ESTÁS A ACABAR COMIGO… COMO É QUE ÉS CAPAZ DE MENTIR DESTA MANEIRA… PODES ACABAR COMIGO, MAS TU NÃO VAIS FICAR A RIR. SUA MENTIROSA.».
41º- Entretanto, o arguido acabou por a libertar, assim que a CC lhe começou a pedir colo.
42º- De seguida, o arguido voltou a pegar a filha ao colo e começou a dizer: «TENHO CEM POR CENTO DE CERTEZA QUE ME TRAISTE, SUA BADALHOCA, SUA PORCA…», «SE ÉS CAPAZ DE ME MENTIR DESTA MANEIRA, EU TENHO CEM POR CENTO DE CERTEZA, SUA BADALHOCA.».
43º- O arguido, irado, voltou a agarrar a denunciante pelos cabelos e empurrou-a, fazendo com que caísse no chão.
44º- Prostrada no chão de costas voltadas contra este e peito para cima, o arguido colocou o joelho em cima do seu pescoço pressionando-o, levando a que BB se sentisse sufocada.
45º- A denunciante tentou libertar-se, começando a esbracejar e espernear.
46º- Quando ao fim de alguns segundos conseguiu libertar-se, desesperada, dirigiu-se para o arguido, dizendo-lhe «POR FAVOR, NÃO ME BATAS MAIS, NÃO ME MATES POR FAVOR…», tentando-o sensibilizar com a presença da filha que assistia a todo o conflito.
47º- Perante o seu pedido desesperado, o arguido começou a dizer; «também já não te faço mais nada… acabou por aqui. Tu vais-me por tolo.».
48º- Com o arguido aparentemente a acalmar-se, a vítima pediu-lhe que a deixasse dar a sopa à filha CC, pedido que o mesmo recusou, dizendo: «NÃO VAIS DAR SOPA NENHUMA, VOU LIGAR À TUA MÃE PARA ELA SABER A FILHA MENTIROSA QUE TEM, PORQUE EU NÃO SOU MALUCO.».
49º- O arguido acabou por contactar telefonicamente a mãe da vítima (...10), usando o telemóvel da vítima, chamada realizada às 13H20.
50º- Na chamada, começou a dizer que a denunciante era uma mentirosa, exigindo à mesma que confirmasse tal facto à sua progenitora.
51º- Com receio do arguido, a denunciante acabou por dizer à sua mãe que tinha mentido ao arguido e que ele tinha razão para estar naquele estado.
52º- O arguido acabou por desligar a chamada, sem que fosse possível explicar o que estava a acontecer.
53º- O arguido acabou por se acalmar e permitiu que a CC comesse a sopa.
54º- Já no final da tarde desse dia, estando o arguido mais calmo, disse à denunciante que não a deveria ter agredido, mas que o seu comportamento tinha sido causado pela postura da vítima, culpando-a.
55º- No dia 02/08/2024, já no período da manhã, perto da hora de almoço, encontrando-se o casal em casa, a dada altura, a denunciante apercebeu-se que o arguido tinha trocado SMS com a ex-companheira, situação que a levou a confrontá-lo.
56º- O arguido mostrou-se indiferente e não voltaram a conversar.
57º- Já cerca das 19H00, o arguido levantou-se da cama, local onde se manteve durante toda a tarde e deslocou-se para a cozinha para jantarem.
58º- Ali chegado, quando lhe disse que precisavam de conversar, o mesmo em tom de gozo, disse-lhe: «GOSTASTE, O QUE É QUE SENTISTE QUANDO VISTE AQUILO?!…», referindo-se ao contacto mantido com a ex-companheira.
59º- Em resposta, a denunciante disse-lhe que não tinha gostado de saber que o arguido tentou contactar com a ex-companheira, tendo o mesmo em resposta lhe dito: «é para sentires o mesmo que eu».
60º- Com vista a evitar mais discussões, a denunciante apelou ao arguido que se
mantivesse calmo.
61º- Já cerca das 21H00, encontrando-se na sala da habitação, o arguido abeirou-se da denunciante e começou a fazer-lhe perguntas sobre seguidores das várias redes sociais, vindo mais uma vez a acusá-la de ter relações com outras pessoas.
62º- O arguido começou a exigir que contactasse alguns seguidores com que o mesmo suspeitava que a vítima mantinha relação, obrigando-a a contactar tais pessoas na sua presença, para verificar o grau de proximidade que mantinha no contacto.
63º- A denunciante pediu ao arguido que parasse com as suas suspeitas, contudo o arguido continuou a insistir.
64º- Já pelas 23H00, sempre com o arguido a pressioná-la, BB deslocou-se à cozinha para preparar o leite da CC, vindo posteriormente a deitar-se com a menor para a tentar acalmar e adormecer.
65º- Pelas 00H10, o arguido entrou no quarto onde a denunciante se encontrava deitada com a filha, alegadamente com o propósito de ir buscar a almofada.
66º- Nestas circunstâncias, pegou no telemóvel de BB, que se encontrava debaixo da almofada em cima da cama.
67º- Ao aperceber-se que o arguido pegou no telemóvel, a denunciante pediu-lhe que o devolvesse, mas este recusou-se e deslocou-se para a cozinha, trancando-se naquela divisão.
68º- A denunciante insistiu, mas o arguido recusou-se a entregar-lhe o telemóvel, levando com que aquela decidisse voltar para junto da filha menor.
69º-. Momentos depois, a denunciante saiu do quarto e voltou a pedir ao arguido o telemóvel, tendo este já saído do interior da cozinha.
70º- Este assim que viu a CC ainda acordada, começou a mostrar-se nervoso, dizendo-lhe que fosse adormecer a menor.
71º- Na tentativa de acalmar a situação, BB foi deitar a menor novamente e depois da mesma ter adormecido, tentou novamente reaver o seu telemóvel, o qual continuava na posse do arguido.
72º- A denunciante acabou por desistir de reaver o telemóvel e deslocou-se para junto da porta exterior da sala, ali permanecendo a fumar.
73º- Subitamente, o arguido abeirou-se da mesma e começou novamente a exigir-lhe explicações, vindo a desferir-lhe uma chapada de mão aberta junto à zona da fonte, fazendo-a sentir forte dores, já que a atingiu com um anel grosso, que tinha colocado no dedo.
74º- Temendo pelo pior, a denunciante começou a implorar que não lhe batesse mais e que se acalmasse, que tivesse em atenção a filha que estava a dormir ao lado.
75º- Os apelos da denunciante enfureceram o arguido, o qual voltou a agredi-la com uma chapada de mão aberta na zona traseira da cabeça.
76º- Em seguida, o arguido deslocou-se para a cozinha e a denunciante foi para o
quarto da filha.
77º. Volvidos alguns minutos, o arguido chamou a denunciante, dizendo-lhe que não iria dormir junto à filha e que teria de dormir no sofá.
78º- Após, o arguido disse à denunciante que o acompanhasse para a cozinha, o que acabou por acontecer.
79º-. Já na cozinha, ordenou-lhe que se sentasse no chão e assim que se sentou este disse-lhe: «AGORA VAIS LIGAR PARA ELE.», referindo-se ao rapaz com quem o arguido a acusava de manter uma relação.
80º-. Sentada no chão, pelas 00H48, a denunciante acabou por ceder e tentar contactar, via Messenger, o jovem em questão, id. como «DD».
81º- O referido DD acabou por não atender a chamada, tendo BB, na ânsia de acalmar o arguido, lhe dito que poderia ligar para a esposa deste, apesar de não fazer sentido dado o adiantar da hora.
82º- O arguido acabou por permitir que se levantasse, tendo em seguida encostado o corpo ao seu, ficando a escassos centímetros do seu rosto.
83º- Quase encostado a si, o arguido berrou-lhe «ORA MENTE NA MINHA CARA, VÊ-LA SE EU ESTOU MALUQUINHO… DIZ LÁ, DIZ LÁ….».
84º-. Nestas circunstâncias, o arguido desferiu-lhe uma cabeçada que a atingiu na zona frontal da testa, fazendo-a sentir fortes dores.
85º- Completamente irado, o arguido continuou a exigir explicações, dirigindo-lhe insultos de forma repetida, tais como: «SUA PUTA, SUA FILHA PUTA, SUA PORCA, SUA BADALHOCA, SUA FILHA DA PUTA… NÃO VAIS TER FUTURO, VAIS SER UMA PUTA PARA A VIDA TODA, SUA GRANDE PUTA… OS HOMENS VÃO ESTAR CONTIGO E DEPOIS VÃO DEITAR-TE FORA, SUA PUTA, SUA BADALHOCA.».
86º- Simultaneamente, o arguido voltou a agredir a denunciante, desferindo um estalo que a atingiu na zona do ouvido direito.
87º- A denunciante suplicou ao arguido que se acalmasse, sendo que este se mostrava mais nervoso, voltando a agredi-la com novo estalo, desta feita, atingindo-a no ouvido esquerdo.
88º- A dada altura, o arguido voltou a ordenar-lhe que se deitasse no chão, gritando-lhe colericamente: «ESTÁS-ME A PÔR TOLO…», cerrando os punhos, dizia: «DOU-TE UM SOCO QUE TE ABRO A BOCA TODA…».
89º-. Continuando a exigir à denunciante que lhe confessasse que o traía, de repente, o arguido executou o golpe de «mata leão», fazendo com que a esta se sentisse sufocada.
90º- Já pelas 01H50, ao verificar que BB tinha no seu registo de chamadas de telefone chamadas com um número não identificado na agenda telefónica (que era de uma antiga colega de trabalho), o arguido ordenou que a contactasse, acabando por o fazer, tendo a chamada sido atendida já pelas 02:02.
91º-. O arguido não ficando satisfeito, começou novamente a dirigir os seguintes impropérios à denunciante: «SUA PUTA, SUA FILHA PUTA, SUA PORCA, SUA BADALHOCA, SUA FILHA DA PUTA… NÃO VAIS TER FUTURO, VAIS SER UMA PUTA PARA A VIDA TODA, SUA GRANDE PUTA… OS HOMENS VÃO ESTAR CONTIGO E DEPOIS VÃO DEITAR-TE FORA, SUA PUTA, SUA BADALHOCA.».
92º- Irado, o arguido voltou a fazer-lhe o golpe de mata-leão, fazendo-a novamente sentir-se sufocada.
93º- O arguido voltou a ordenar que ligasse para outro contacto, o que acabou por acontecer, apesar da chamada não ser atendida.
94º-. De seguida, o arguido obrigou a denunciante a sentar-se na cadeira da cozinha, deslocou-se à gaveta do armário da cozinha e retirou do seu interior uma faca de cozinha, com 30 cm de comprimento e 18,5 cm de lâmina.
95º- O arguido pegou na faca, colocou-a sobre a mesa e disse: «É AGORA QUE TU ME VAIS DIZER A VERDADE… OU ENTÃO NÃO SAIMOS DAQUI OS DOIS.», fazendo crer à denunciante que a ia matar.
96º- O arguido, cada vez mais nervoso, a dada altura levantou-se e pegou na faca com a mão direita, mantendo o gume da faca voltado para trás.
97º- Com a mão cerrada, disse-lhe: «ADMITE O TEU ERRO… ADMITE UM QUE SEJA, QUE EU DEIXO-TE EM PAZ… SÓ TENS QUE ADMITIR UM.»
98º- Uma vez que a denunciante disse ao arguido que não podia admitir algo que não era verdade, este ficou ainda mais descontrolado, gritando-lhe «NÃO VALE APENA ESTAR AÍ A PEDIR PARA FALAR BAIXO… PORQUE QUANDO CHEGAREM AQUI, SE CHEGAREM, JÁ NÃO VÃO CHEGAR A TEMPO.»
99º-. O arguido momentaneamente afastou-se, ocasião em que a denunciante lhe disse que era melhor irem ver a menina, tendo o arguido dito que seria ele a lá ir.
100º- Vendo uma oportunidade para tentar fugir, a denunciante aproximou-se da porta de entrada; contudo, tendo-se o arguido apercebido, voltou atrás e disse-lhe: «PENSAS QUE VAIS A ONDE? VAIS FUGIR?», tendo a denunciante, na tentativa de o acalmar, dito que tencionava apenas ir à casa de banho.
101º- O arguido regressou novamente para a cozinha, mantendo-se sempre com a faca na mão, continuando a exigir à denunciante que confessasse a traição.
102º-. Com o pretexto de sentir calor, BB pediu ao arguido que a deixasse abrir a portada da cozinha, o que acabou por acontecer, continuando a insistir que era necessário ir ver a filha menor.
103º-. Aproveitando o momento em que o arguido foi ao quarto da filha, por recear seriamente pela sua vida e não tendo outra forma de pedir ajuda, a denunciante conseguiu fugir pela janela da cozinha, sendo que assim que fugiu foi pedir ajuda à sua tia, começando a berrar por socorro.
104º- O arguido, ao aperceber-se da fuga da denunciante, foi no seu encalço e ainda conseguiu agarrá-la num das pernas, quando esta tentava subir as escadarias de acesso à casa da sua tia EE, tendo sido ajudada a libertar-se pelos seus familiares que, entretanto, se aperceberam da situação.
105º- A tia da denunciante, EE, accionou a patrulha da GNR ..., que se deslocou ao local.
106º- Aí chegados, deslocaram-se junto à porta de entrada da habitação, sendo audível os gritos do arguido, que dizia “estou com a minha filha ao colo e estou com uma faca na mão; vou espetar a faca em mim e na minha filha; não estou a fazer nada de mal, ela é que me anda a trair; não vou abrir a porta a ninguém e estou com a minha filha menor ao colo. “.
107º-. Como o arguido não respondeu ao chamamento dos militares da GNR, estes forçaram a entrada em casa, através do arrombamento da porta da entrada principal.
108º-. Ao aperceber-se da entrada da GNR no domicílio, o arguido trancou-se com a filha menor na casa de banho, tendo sido necessário arrombar também a porta dessa divisão.
109º-. Acto contínuo, o militar da GNR conseguiu retirar a criança do colo do arguido.
110º-. De seguida, foi o arguido encostado à parede e manietado, tendo-se procedido à sua detenção.
111º-. Como consequência necessária e direta da conduta do arguido, resultaram para a denunciante as seguintes lesões, para além de dores:
-no pescoço: escoriação na face posterior, com 2 cm de comprimento; no membro superior direito: na face póstero-interna do terço proximal do braço, equimose arroxeada com 0,5 cm de diâmetro; no membro superior esquerdo: escoriação na face posterior do ombro esquerdo, com 0,5 cm de diâmetro; na face posterior do braço, equimose esverdeada com 0,5 cm de diâmetro; no membro inferior direito: equimose esverdeada na face anterior do terço médio da perna, com 3 cm de diâmetro e no membro inferior esquerdo: escoriações na face anterior do tornozelo que lhe determinaram 8 dias para a cura sem quaisquer consequências permanentes.
112º-. Como consequência ainda das agressões infligidas pelo arguido, a denunciante evidencia sinais de instabilidade afetiva e emocional com repercussões negativas na sua vida social e de trabalho e do seu estado de saúde psicológico.
113º- Com as condutas adoptadas, quis o arguido causar inquietação à denunciante, sua companheira e mãe da sua filha, pretendendo que a mesma se sentisse menorizada, humilhada e psicologicamente desgastada, perturbando-a assim de forma reiterada no seu bem-estar e sossego, atingindo-a psíquica e emocionalmente, o que conseguiu, bem sabendo que a afectava na sua saúde física e psíquica, querendo ainda atingi-la na sua dignidade enquanto ser humano, o que conseguiu.
114º-. Tinha ainda o arguido a perfeita noção de que dirigia à denunciante expressões que a humilhavam e diminuíam na sua dignidade pessoal – o que quis e conseguiu.
115º- O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito, aliás concretizado, de ferir fisicamente a denunciante, atingindo-a, da forma como o fez, bem sabendo que o meio utilizado era apto a ferir e molestar o corpo e a saúde daquela e a causar-lhe as dores verificadas.
116º- Dada a forma como os anúncios descritos foram proferidos e o tom neles empregue, a denunciante sentiu um profundo e justificado receio pela sua vida e integridade física, receando que o arguido concretizasse os males que expressamente lhe anunciou.
117º- Ao proferir tais expressões, agiu o arguido, livre e conscientemente, com o propósito, aliás concretizado, de provocar medo e inquietação àquela.
118º-. O arguido sabia ainda que os seus actos feriam gravemente a liberdade sexual da denunciante e ainda assim decidiu cometê-los, com o propósito concretizado de satisfazer os seus apetites sexuais.
119º-. Logrou, dessa forma, subjugar a vítima, humilhá-la, coisificá-la, intimidá-la e vexá-la, diminuindo-a e afectando a sua dignidade, enquanto pessoa, tudo com o objetivo de manter a sua companheira sob o seu domínio, na medida em que, num contexto de tensão e violência iminente, esta acabou por viver submergida pela ansiedade e pelo medo daquilo que o arguido lhe pudesse fazer a si e à sua filha menor.
120º- Com as condutas descritas, o arguido provocou danos na integridade psicológica e emocional da denunciante e restringiu a sua liberdade de locomoção, ficando psicologicamente afectada pelos actos de que foi vítima, sentindo-se angustiada, vivendo privação de sono, excitação e irritabilidade permanentes e sentimentos de sujeição aos humores do arguido.
121º- O arguido praticou os referidos actos na privacidade da residência comum e na presença da sua filha menor de idade.
122-Ao praticar os referidos actos de violência física e verbal visando diretamente a companheira, na presença da filha menor, não pode o arguido deixar de, pelo menos, admitir que um tal comportamento é suscetível de causar relevante sofrimento psicológico na sua filha, afetando o são desenvolvimento psicológico, afetivo e emocional, quem sabe de forma irreparável, resultado com o qual o arguido necessariamente se conformou.
123- Desta forma, violou grosseiramente os deveres de respeito e solidariedade que se lhe impunha observar enquanto pai, violando, outrossim, o dever de proteção à sua filha menor, enquanto responsável pela sua guarda e educação, não atentando, desta forma, aos interesses daquela.
124º- Agiu assim o arguido livre, deliberada e conscientemente e com a perfeita noção de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, não obstante não se absteve de actuar como descrito.
Do Pedido de Indemnização Civil:
Como consequência directa e necessária das condutas do arguido, a demandante sentiu-se vexada na sua honra e consideração, com vergonha pela forma como foi tratada pelo arguido.
Sentiu-se com medo e insegura, temendo pela sua integridade física e pela sua vida, receando, ainda, que o arguido fizesse mal à filha menor de ambos.
Viveu um mau estar e nervosismo constante, andando triste, envergonhada e angustiada, o que ainda hoje sucede.
Teve que abandonar a casa para fugir do arguido e ainda hoje sente receio e medo, temendo que o arguido saia em liberdade.
Das Condições Pessoais e Económicas do arguido:
À data dos factos pelos quais se encontra acusado no presente processo, AA vivia com a ex-companheira (denunciante nos presentes autos) e com a filha do casal, em habitação arrendada, onde o casal residia sensivelmente desde agosto de 2022.
O arguido cresceu num ambiente familiar de humildes recursos económicos, em que o pai desenvolvia a atividade de bombeiro e a mãe era operária numa unidade fabril, com uma dinâmica relacional marcada pela agressividade da figura paterna, que faleceu aos 57 anos, vítima de doença oncológica.
Habilitou-se com o 7º ano de escolaridade, altura em que passou a evidenciar desmotivação, desadaptação e absentismo e consequente insucesso escolar, abandonando o sistema educativo aos 16 anos. Nesta fase, começou a registar comportamentos inadequados, potenciados pelo consumo de estupefacientes, cujo início se reporta sensivelmente aos 18 anos, em contexto de grupos de pares conotados com condutas desviantes.
O percurso laboral que se seguiu ficou marcado pela ausência de hábitos de trabalho, desinvestimento e irregularidade. Após os primeiros contactos judiciais, o arguido foi progressivamente registando algumas alterações comportamentais positivas, tais como o afastamento gradual de pares negativamente conotados, passando a vivenciar experiências de trabalho em áreas laborais diversas, como serralharia, soldadura, jardinagem, tendo frequentado cursos de formação profissional no âmbito dos quais concluiu o 9º ano de escolaridade.
Em meio prisional, o arguido mantém acompanhamento clínico na área da Psicologia e Psiquiatria. Durante o período de permanência em meio prisional, tem mantido um comportamento adaptado ao normativo institucional, sem registo de infrações disciplinares.
De modo a viabilizar uma ocupação útil do tempo, foi colocado na cozinha em 09/04/2025.
Os familiares do arguido constituem-se como os seus principais elementos de suporte, estando disponíveis para o receber e apoiar.
A reclusão do arguido teve como principal impacto o afastamento da sua filha, com quem mantém vínculos afetivos.
O processo de promoção e proteção da filha do casal foi arquivado, por não se justificar a sua manutenção.
Dos Antecedentes Criminais do Arguido:
O arguido tem averbadas, no seu certificado de registo criminal, as seguintes condenações:
- no processo n.º ... d 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia pela prática, em 25-10-2004, de um crime de furto qualificado, na pena de 5 meses de prisão, substituídos por 150 dias de multa à taxa diária de € 5.00, por sentença proferida m 30-05-2006, transitada em julgado em 10-07-2006; por despacho proferido em 9-02-2007, foi determinado o cumprimento da pena de prisão, tendo a pena sido declarada extinta em 11-03-2008;
- no processo n.º ... da 1º Vara Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia pela prática, em 25-06-2006, de um crime de furto qualificado, na pena de anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, por Acórdão proferido em 7-11-2007, transitado em julgado em 7-01-2008;
- no processo n.º ... da 2ª Vara Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia pela prática, em 9-12-2004, de um crime de furto simples, na pena de 3 meses de prisão, substituída por 90 dias de multa à taxa diária de € 5.00, por Acórdão proferido em 22- 11-2007, transitado em julgado em 12-12-2007; a pena foi declarada extinta, pelo pagamento, em 11-11-2008.
- no processo n.º ... do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Gondomar pela prática, em 19-09-2006, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova, por Acórdão proferido em 13-06-2008, transitado em julgado em 3-07-2008;
- no processo n.º ... do 4º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia pela prática, em 18-11-2006, de um crime de furto simples, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, por sentença proferida em 30-06-2008, transitada em julgado em 21-07-2008;
- no processo n.º... do 4º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia pela prática, em 19-04-2007, de um crime de falsidade de depoimento ou declaração, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com regime de prova, por sentença proferida em 12-12-2008, transitada em julgado em 14-01-2009;
- no processo n.º ... do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia pela prática, em 26-10-2006, de um crime de furto, na pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, por sentença proferida em 2-10-2008, transitada em julgado em 20-11-2008;
- no processo n.º ... do 2º Juízo, 1ª Secção do Juízo Criminal do Porto pela prática, em 23-12-2006, de um crime de falsas declarações, na pena de 6 meses de prisão, substituída por 180 dias de multa à taxa diária de € 4.00, por sentença proferida em 3-12-2009, transitada em julgado em 18-01-2010;
- no processo n.º ... da 1ª Vara Criminal do Porto pela prática, em 29-07-2009, de um crime de tráfico de menor gravidade, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com acompanhamento pela DGRSP, por Acórdão proferido em 12-05-2010, transitado em julgado em 8-10-2010;
- no processo n.º ... do Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia- Juiz 2 pela prática, em 24-10-2011, de um crime de consumo de estupefacientes, na pena de 8 meses de prisão, substituída por 240 dias de multa à taxa diária de € 8.00, por sentença proferida em 3-07-2014, transitada em julgado em 18-09-2014;
- no processo n.º ... do Juízo Local Criminal de Gondomar- Juiz 2 pela prática, em 10-05-2017, de um crime de violência doméstica, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo subordinada à obrigação do arguido frequentar o programa para agressor de violência doméstica sob supervisão da DGRSP; a pena foi declarada extinta em 27-08-2022;
Ali resultou como provado que:
1. A ofendida OO iniciou uma relação análoga à dos cônjuges com o arguido no ano de 2009, tendo o casal, no decurso da mesma, fixado residência na Rua ..., ..., em ....
2. Com o casal residia uma filha da ofendida, PP, nascida a ../../2006.
3. O arguido ingeria bebidas alcoólicas de forma excessiva e consumia regularmente haxixe.
4. Em data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2014, durante uma discussão, o arguido empurrou a ofendida com força, desse modo provocando a sua queda, tendo esta batido com a cabeça na perna da mesa da sala e fraturado o nariz.
5. Pelo facto de a ofendida suspeitar que o arguido mantinha relacionamentos com outras mulheres, havia frequentes discussões entre o casal.
6. No final do ano de 2016, a ofendida confrontou o arguido com tal facto e disse-lhe que caso este procurasse outras mulheres iria colocar termo à relação.
7. O arguido reagiu dizendo à ofendida para ir para a puta que a pariu, para ir para o caralho e chamando-lhe maluca.
8. Quando a ofendida decidiu colocar termo à relação o arguido ameaçou destruir o mobiliário ou chegar fogo à casa, se esta o obrigasse a sair daquela habitação.
9. Na madrugada do dia 10 de maio de 2017, cerca das 3h00m, a ofendida, aproveitando o facto de o arguido estar a dormir, resolveu aceder ao conteúdo do seu telemóvel, verificando a existência de fotos de uma outra mulher.
10. Resolveu, então, acordar o arguido e confrontá-lo com essa situação, tendo-lhe este de imediato arrancado o telemóvel das mãos e desferido uma bofetada.
11. O arguido partiu ainda o telemóvel da filha da ofendida, que, na altura, estava a si emprestado, pensando que era da ofendida, bem como a chave da viatura usada por si usada, assim como a chave da residência, que se encontrava no canhão da porta de entrada, impedindo-a, assim, de abandonar a habitação.
12. Nessa ocasião a ofendida resolveu telefonar para a Guarda Nacional Republicana a solicitar auxilio.
13. Após tais factos a ofendida foi buscar os seus pertences e foi residir com a progenitora, mas tal afastamento do casal apenas durou cerca de um mês.
14. Na madrugada do dia seguinte às festas de S. João no Porto (24 de Junho de 2017), a ofendida chegou a casa cerca das 2h00m e deparou-se com a porta da habitação trancada.
15. O arguido veio abri-la e agrediu-a com estalos na cara e puxões de cabelo, causando a sua queda no solo, onde embateu com a cabeça.
16. A ofendida solicitou a presença da Guarda Nacional Republicana, mas o arguido recusou-se a abrir a porta, tendo a ofendida sido aconselhada a passar a noite em casa de familiares ou pedir apoio à LNES-144, o que esta recusou.
17. Quando os elementos da autoridade abandonaram o local, a ofendida voltou a bater na porta, insistindo em entrar. Nessa ocasião o arguido deslocou-se ao exterior da habitação e, em plena via pública, agrediu novamente a ofendida com estalos e puxões de cabelo, pressionando-a de encontro ao chão, enquanto lhe chamava “puta” e “vaca”.
18. Após a ocorrência de tais factos a ofendida decidiu colocar termo à relação, mudou a fechadura da porta da residência e deu conhecimento desse facto ao arguido, tendo este ido residir para ..., em ....
19. O casal esteve separado entre Junho a Novembro de 2017, voltando a viver juntos após essa data.
20. No dia 14 de Fevereiro de 2018, cerca das 22h00m, o arguido enviou à ofendida um vídeo onde exibia roupa desta e da filha espalhadas pela casa e pátio exterior, afirmando que a mesma iria dormir no pátio.
21. Com receio do arguido, a ofendida pediu apoio à Guarda Nacional Republicana para a acompanhar à residência a fim de recolher alguma roupa, tendo ido de seguida para casa de uma amiga.
22. Entre os dias 14 e 16 de Fevereiro de 2018 o arguido enviou várias mensagens à ofendida, ameaçando-a de morte e exigindo que esta fosse ter com ele a casa.
23. No dia 16 de Fevereiro de 2018, na parte da manhã, supondo que o arguido estivesse a trabalhar, a ofendida voltou à residência com o intuito de ir buscar mais roupa para si e para a filha, quando foi surpreendida pela presença do arguido.
24. Assim, mal a ofendida entrou na residência, o arguido desferiu-lhe uma bofetada que causou a sua queda. Quando estava prostrada no chão o arguido continuou a agredi-la com pontapés e murros, que a atingiram em diversas partes do corpo, dizendo que a “ia matar”. De seguida, o arguido exigiu à ofendida que desbloqueasse o telemóvel, colocando-lhe o braço em volta do pescoço apertando-o, vulgo “mata-leão”, tendo a ofendida desmaiado.
25. Quando a ofendida recuperou os sentidos encontrava-se deitada no chão da cozinha e o arguido puxava-lhe os cabelos, tentando levantá-la.
26. A determinada altura a ofendida conseguiu escapar do arguido, fugiu para o pátio da residência, tirou a chave da porta da cozinha e fechou-a por fora e, através do pátio do andar superior, entrou num armazém sito nas traseiras da habitação, tendo para o efeito partido o vidro da porta, a fim de procurar um telefone para pedir ajuda.
27. O arguido saiu da residência através da janela do quarto e foi no encalço da ofendida, de forma descontrolada, agarrando-a mal esta conseguiu entrar no referido armazém, tendo-a puxado de rastos para o exterior, pegou nela às costas e levou-a para dentro de casa, tendo para o efeito partido o vidro da porta.
28. Dentro de casa sentou a ofendida no sofá e exibindo uma faca, cuja lâmina encostou ao pescoço da ofendida, afirmou que a matava se esta não desbloqueasse o telemóvel.
29. De seguida desferiu-lhe um murro na face, vários estalos e um murro no ventre, com o intuito de a coagir a desbloquear o referido telemóvel.
30. A certa altura o arguido manifestou intenção de vomitar, tendo-se deslocado a outra divisória da casa para o efeito, pelo que a ofendida, com a réstia das forças que possuía, saiu de casa, entrou na sua viatura de foi ao posto da Guarda Nacional Republicana de ... relatar o sucedido.
31. A ofendida voltou à residência na companhia da Guarda Nacional Republicana a fim de recolher alguns objetos pessoais e foi residir com a mãe, com receio do que o arguido lhe pudesse fazer.
32. Desde essa data que o arguido telefona para a ofendida e envia-lhe mensagens dizendo que está arrependido e que tem saudades dela.
33. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido no dia 16.02.2018, a ofendida sofreu no crânio: na região parietal direita três equimoses avermelhadas, de limites mal definidos, a maior com 4 cm por 2 cm de maiores dimensões. Na região frontal direita apresenta uma equimose avermelhada, de forma oval, com 4 cm por 3 cm de maiores dimensões; na face: na pálpebra superior direita apresenta uma equimose avermelhada, de limites mal definidos, com 3 cm por 0,5 de maiores dimensões; na região infraorbitária esquerda, apresenta uma equimose esverdeada, obliqua de concavidade voltada superiormente, com 2 cm por 0,8 cm de maiores dimensões. No dorso do nariz apresenta uma equimose avermelhada, de forma oval, com 2 cm por 1 cm de maiores dimensões. Na região geniana direita apresenta uma escoriação com crosta hemática, dirigida inferolateralmente, com 4 cm por 2 cm de maiores dimensões; Na região mandibular direita apresenta uma equimose avermelhada, de forma oval, com 5 cm por 3 cm de maiores dimensões; No pescoço:na região submandibular apresenta uma escoriação com crosta hemática, de forma oval, com 3 cm por 0,5 cm de maiores dimensões; Na região anterior do pescoço apresenta uma área de 6 cm por 5 cm com múltiplas equimoses avermelhadas, de forma oval, a maior de 2 por 0,6 cm de maiores dimensões. Na face lateral direita do pescoço apresenta uma escoriação linear com crosta hemática, dirigida inferolateralmente, com 3 cm de comprimento; No membro superior esquerdo, na face palmar da mão, na pele sobre a articulação metacarpofalângica, apresenta uma área de perda de substância, de bordos regulares, ligeiramente deprimida, circular, com 0,5 cm de diâmetro. Na face palmar da mão, distalmente à articulação interfalângica, apresenta uma solução de continuidade de bordos regulares, dirigida inferiormente, com 0,5 cm de comprimento; No membro inferior direito: na face anterior do terço médio da perna apresenta uma escoriação sem crosta hemática, de forma oval, com 6 cm por 3 cm de maiores dimensões. No dorso do pé apresenta uma escoriação sem crosta hemática, de forma oval, com 3 cm por 1,5 cm de maiores dimensões; No membro inferior esquerdo, na face anterior do terço médio da perna apresenta uma escoriação sem crosta hemática, de forma oval, com 4 cm por 3 cm de maiores dimensões.
34. Tais lesões acarretaram para a ofendida 8 dias de doença, com igual período de afetação parcial da capacidade de trabalho geral e trabalho formativo.
35. Ao agir do modo acabado de descrever, o arguido previu e quis, agredir física e psicologicamente a sua companheira OO, tratando-a de modo desumano, maldoso e humilhante, de forma reiterada e habitual, sem existir motivo para tal, o que fez.
36. Agiu o denunciado de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e penalmente punidas.
(…)
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, inexistindo factos não provados.
A convicção do Tribunal ancorou-se na apreciação global da prova produzida em sede de audiência de julgamento, avaliada à luz do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, lida partindo da premissa essencial de que “ o facto só interessa se perspectivado como desvalor” (Eduardo Correia, in Direito Criminal, I, Pág. 231-237).
Coligiu e concatenou o Tribunal:
Prova documental:
- assento de nascimento da menor CC a fls. 17 do Apenso C;
- auto de notícia de fls. 3 a 5, auto de apreensão de fls. 23, relatório fotográfico a fls.24 e auto de exame directo de fls. 25 (tudo reportado ao dia 3.08.2024);
- relatório fotográfico de fls. 43 a 47, auto de apreensão de fls. 48, auto de diligência externa de fls 244 a 248, auto de análise de fls. 456, 457, 461 e 464 e relatório de extracção de fls. 458 a 460 e 462/463;
- relatório social a fls. 691 a 694 e certificado de registo criminal de fls. 679 a 689.
Tudo conjugado com as declarações prestadas pelo arguido em 1º interrogatório judicial, em sede de audiência de julgamento, as declarações para memória futura prestadas por BB e os depoimentos das testemunhas FF, GG, HH, II, EE, JJ, KK, LL, MM e NN.
Concretizando:
A relação análoga à dos cônjuges e sua duração encontram sustentação nas declarações do arguido prestadas em 1º interrogatório judicial e nas declarações para memória futura de denunciante BB (onde também esclarece a sucessão de residências do casal) e o nascimento da menor CC no assento de nascimento de fls. 17 do Apenso C.
No que à dinâmica relacional entre o arguido e denunciante concerne, cumpre sublinhar que o arguido, em sede de 1º interrogatório judicial (tendo sido devidamente advertido nos termos e para os efeitos do artigo 141º do C.P.Penal) declarou ser “verdade, tudo verdade”- cfr- fls. 226 da transcrição de tais declarações- “justificando” as condutas ali descritas com o facto de notar comportamentos estranhos na denunciante desde o nascimento da filha comum, aludindo a alegadas traições da mesma das quais afirmou estar certo terem acontecido.
Em audiência de julgamento, negou tais factos, mesmo quando confrontado com as declarações anteriores, apenas assumindo que apelidou a denunciante de mentirosa e aldrabona em contexto de discussões havidas sobre as suas desconfianças.
Revisitadas as declarações para memória futura prestadas pela denunciante, conclui-se que as mesmas se revelam absolutamente credíveis e consistentes.
Depois de esclarecer a cronologia das residências do casal, explica que “as coisas começam a piorar depois de eu ter a CC”, contextualizando que, em virtude da recente maternidade, não estava disponível para manter relações sexuais com o arguido, o que gerava neste sentimentos de insegurança e que este saía à noite de casa, regressando tarde, o que gerava discussões entre o casal.
O regresso da denunciante ao trabalho agudizou as discussões entre o casal o exacerbamento dos ciúmes deste, que lhe dirigia as expressões descritas, insinuando que mantinha relações com outras pessoas no seu local de trabalho, insultando-a com os epítetos descritos e contando as cuecas que a denunciante colocava para lavar, acusando-a de mudar de roupa interior para disfarçar os seus comportamentos e atribuindo marcas de corrimento a outras relações mantidas no seu local de trabalho.
BB narra o episódio reportado a 25 de Julho de 2024, quando se encontrava no seu local de trabalho, tendo o arguido lhe exigido que fizesse uma videochamada para lhe mostrar a roupa interior que trazia vestida depois de a acusar de ter levado dois pares de cuecas limpas para tal local, o que a denunciante acabou por aceder fazer com receio do arguido, ligando, de seguida, para a mãe do arguido a pedir que esta o acalmasse. MM, mãe do arguido confirmou que recebeu a chamada em causa da denunciante e que esta lhe fez tal pedido, depois de lhe descrever o sucedido, quando esta se encontrava no seu local de trabalho.
A denunciante descreve, também, o sucedido no dia seguinte, num episódio relacionado com um manuscrito que trazia na mochila de trabalho e que gerou, mais uma vez, os insultos dirigidos pelo arguido e bem assim o seu afastamento físico do arguido, em face de tais comportamentos, o que, para além de avolumar os ciúmes deste, a levaram a “consentir” em relações sexuais a fim de conseguir, após, descansar.
As agressões físicas são também narradas pela denunciante, de forma impressiva, contextualizadas em discussões sempre motivadas por ciúmes do arguido e acusações de traições.
Os factos reportados ao dia 2/3 de Agosto de 2024 e a escalada de violência ali descrita são, igualmente, contados pela denunciante e, em parte, ratificados pelas testemunhas FF, HH, GG, II, EE, JJ e KK.
KK, colega de trabalho de BB, refere que recebeu uma chamada desta por volta das 2h da madrugada em Agosto de 2024, ouvindo a voz da denunciante a perguntar-lhe se lhe havia ligado, num tom de voz que percebeu muito amedrontado, ouvindo de seguida uma voz masculina a dizer “sua puta, sua vaca”, ao que a denunciante respondeu “ó mor”, pedindo desculpa a KK de seguida e desligando.
EE e JJ, respectivamente tia e primo da denunciante, residentes no 1º andar da casa onde, no rés-do-chão, residiam o arguido e denunciante, contam que, neste dia, estavam em casa a dormir, tendo JJ ido alertar a sua mãe que tinha ouvido barulho na parte de baixo e coisas a cair, o que levou EE a sair, descendo ao exterior, onde ouviu o arguido e BB a falar de “telemóveis”; Já JJ narrou que ouvia uma discussão a subir de tom, onde eram referidos mensagens e telemóveis e que o arguido apelidava a denunciante de “mentirosa”, dizendo-lhe “não vales nada”. Mais tarde, na mesma noite, ouvem BB gritar por socorro, saindo novamente e vendo-a a subir as escadas exteriores que dão acesso à casa dos depoentes (cfr. fls. 247); o arguido seguia-a, agarrando-a pelas pernas, o que levou JJ a interpor-se entre os dois, acabando o arguido por regressar a casa, depois de EE lhe dizer para assim fazer.
EE leva a denunciante para o interior da sua casa, descrevendo que esta estava em pânico, a tremer por todo o lado, dizendo que o arguido tinha uma faca, ali permanecendo ambas até à chegada da GNR, nada mais tendo ouvido.
Já JJ conta que, chegada a GNR, o arguido gritava do interior da casa que se tentassem entrar se matava e matava a filha, o que igualmente recontaram os militares da GNR FF e HH que se deslocaram ao local; uma vez que o arguido se recusava a abrir a porta, foi a mesma arrombada, tendo sido encontrada uma faca no corredor que dá acesso à casa de banho (onde o arguido estava fechado, com a filha), faca essa que veio a ser apreendida- cfr. auto de apreensão de fls. 23, relatório fotográfico de fls. 24 e auto de exame directo à mesma faca a fls. 25.); o arguido repetia que se ia matar e que ia matar a filha, levando os militares da GNR a retirar a porta da casa de banho, detendo o arguido e entregando a menor a II, vizinho do arguido que acompanhou os militares e que sufragou a sucessão de acontecimentos descrita.
Para prova de tais factos valorou, ainda, o Tribunal o auto de notícia de fls. 3 a 5.
GG, militar da GNR em funções no NIAVE ...,
relatou que se deslocou ao posto de ... na sequência de comunicação de uma situação de urgência de violência doméstica, tendo estado com a denunciante. Descreve que esta estava completamente transtornada, tendo mesmo que insistir com a mesma para entrar no posto garantindo-lhe que havia condições de segurança para o efeito; mais confirma que os registos fotográficos de fls. 43 a 45 (onde são visíveis as lesões na denunciante) foram documentados no dia da detenção do arguido. Confirmou, ainda, o auto de diligência externa de fls. 244 a 248, que elaborou.
Os depoimentos das testemunhas LL, MM (para além do que supra se referiu) e de NN, respectivamente amigo, mãe e avó do arguido, em nada infirmaram a prova produzida.
De facto, LL nenhum conhecimento directo dos factos denotou ter, apenas tendo referido que, no dia em que o arguido foi detido, este lhe telefonou, a chorar, dizendo-lhe que tinha descoberto que a BB o andava a trair, que se ia matar e, numa expressão elucidativa, lhe terá dito que “ela nem cara tem para levar um estalo”; depois dessa chamada, não mais falou com ele, apenas lhe tendo enviado sms dizendo-lhe para se acalmar, só tendo tido conhecimento que estava preso cerca de um mês depois, apesar de, nas suas palavras, serem amigos desde os 11 anos de idade e do arguido lhe ter referido que ia por termo à vida.
MM, mãe do arguido, relatou que o filho lhe ligou no dia 3 de Agosto de 2024, a dizer que lhe estavam a arrombar a porta de casa para o assaltar e que o iam matar; perguntado onde estava a companheira, o arguido terá dito que estava no exterior da casa. Acto contínuo, ligou para os pais de BB: questionada porque razão, perante aquele cenário, não ligou para a GNR ou à própria BB para pedir ajuda, a testemunha não soube explicar, o que deixa perceber que percebeu o contexto dos acontecimentos, pois só isso explica que a sua opção tivesse sido ligar aos pais da denunciante, eventualmente na tentativa de a convencer a não apresentar qualquer denúncia.
O próprio arguido, em declarações prestadas em audiência, referiu que quando os militares da GNR bateram à sua porta o ameaçaram que lhe iriam bater, de onde se retira que o arguido percebeu quem estava à sua porta. Também questionado porque razão, naquela noite, BB saiu pela janela da cozinha, a explicação do arguido reconduziu-se ao facto de esta estar na cozinha.
Já NN, avó do arguido, apenas pode atestar que ambos viveram ao seu lado antes do nascimento da filha de ambos, nunca tendo presenciado qualquer discussão.
O elemento subjectivo do tipo legal, esse, é repristinado nas regras da experiência comum e da normalidade, lidos os factos objectivos provados.
De facto, dificilmente a formação da vontade interna do agente resulta de prova directa (na ausência, como é o caso, de confissão integral do arguido).
Há-de a mesma ser extraída lançando mão de prova indirecta, lida a partir do comportamento exterior do agente, dos factos objectivos provados e perceber como, em face dos mesmos, o agente se determinou.
Ora, é indubitável que, relidos os factos objectivos provados, o arguido, ao actuar da forma descrita, apenas podia prosseguir os intentos descritos, pois que ao insultar, agredir, ameaçar e agredir a denunciante, o arguido apenas podia ter como objectivo humilhar a mesma, atemorizá-la, ofendê-la na sua integridade física, bem sabendo que as suas condutas são criminalmente punidas. Resultam os mesmos de ausência de prova cabal que os sustente.
E o mesmo se diga quanto aos factos provados relativos à menor e atinentes ao elemento subjectivo.
O facto da mesma contar com muita tenra idade, o que não lhe permite compreender o alcance dos eventos em causa, não anula o impacto gerado pelas comportamentos do arguido.
Não perceber não significa não sentir, não experienciar emoções como stress, medo, insegurança, sentimentos esses contrários ao pretendido num espaço de segurança como se quer numa família, que o arguido devia, enquanto pai, garantir, o que não fez.
Não obsta a tal conclusão o facto dos militares da GNR que acudiram ao local no dia 3 de Agosto de 2024 e a testemunha II terem relatado que a menor se encontrava sem chorar no momento em que foi retirada do interior de casa., apenas o tendo feito quando foi colocada no colo da mãe. As crianças reagem de forma diferente a situações traumáticas e a ausência de choro no momento não significa ausência de emoção.
Já os factos atinentes ao pedido de indemnização civil são validados pelas declarações para memória futura prestadas pela denunciante, pelos depoimentos de EE e JJ, que os atestaram e bem assim pelas regras da normalidade e da experiência comum, sendo seguro concluir que as vivências descritas são susceptíveis de imprimir na denunciante os sentimentos descritos.
As condições pessoais e económicas e o seu percurso de vida sustentam-se no relatório social a fls. 692/694 e os seus antecedentes criminais no certificado de registo criminal de fls. 680 a 689 dos autos.
Do Crime de Violência Doméstica
Vem o arguido acusado da prática, em autoria material e em concurso real, de dois crimes de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152, n.º 1, alínea b), d) e) e n.º 2, al. al a), todos do Código Penal.
Dispõe o art.º 152 do Código Penal:
“1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges ainda que sem coabitação;
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica que com ele coabite
e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a),b) e c), ainda que com ele não coabite
é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos de prisão.
Prevendo o n.º 2 que os factos tiverem lugar dentro do domicílio da vítima, ou na presença de menor, o limite mínimo da pena é elevado para dois anos, mantendo-se o limite máximo de 5 anos.
Tal infracção destina-se a tutelar o bem jurídico saúde da pessoa individual, bem como a sua dignidade humana, revelando-se um crime específico, na medida em que se exige uma relação especial entre o agente e a vítima - in casu, o facto do arguido e denunciante viverem em união de facto.
Este tipo legal foi criado na sequência da consciencialização de que no seio da família existem frequentemente situações violentas, ao arrepio dos valores inerentes a tal instituição num Estado de Direito - cfr. art.ºs 13 e 67, da Constituição da República Portuguesa e art.º1671, do Código Civil.
Nas palavras de Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, página 330, a incriminação destas condutas foi o “resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos e de que a família, a escola, e a fábrica não mais podiam constituir feudos sagrados, onde o Direito Penal se tinha de abster de intervir”.
Constituem elementos objectivos deste tipo legal de crime, quando estejam em causa maus tratos físicos, a produção de uma acção que, por qualquer modo, cause uma ofensa no corpo ou na saúde de outrem, ou de algum modo perturbe, modifique ou altere desfavoravelmente o estado de equilíbrio psicossomático da pessoa. Para além disso, a acção típica poderá ainda traduzir uma ofensa ao equilíbrio psíquico da vítima.
Já o elemento subjectivo deste tipo-de-ilícito se restringe ao conhecimento dos elementos objectivos típicos e a vontade de agir por forma a preenchê-los (dolo genérico).
No entanto, para que este tipo-de-ilícito esteja preenchido não bastam situações isoladas de agressão, exigindo-se uma reiteração, activa ou omissiva, de maus tratos. – neste sentido, veja-se a posição de Taipa de Carvalho, in ob.cit., página 334., Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado”, 2ª edição, Vol. II, página 182 e ainda, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto de 22-03-95, in C.J., 1995, Tomo II, página 229 ou, ainda que um acto isolado, assume gravidade suficiente e idónea em ordem a ser subsumido ao crime de violência doméstica.
Tendo presente que o contexto circunstancial do crime de violência doméstica convoca um “padrão de assumpta supremacia e/ou poder de sujeição sobre a sua pessoa, associado a arrebatado sentimento de referente ascendência de autoridade de género, sexual, física e psicológico-emocional, potencialmente condicionante e/ou compressor da correspectiva, integridade e liberdade”- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 27-02-2013, disponível em www.dgsi.pt., somos a concluir que as circunstâncias relacionais que foram trazidas e que resultaram como provadas se reconhecem nesse padrão ou sequência de condutas achincalhantes, de ascendência ou poder de sujeição do outro.
Na verdade, ressaltando uma situação de domínio emocional de um em face do outro, é atingido e ferido o intenso desvalor que o crime de violência doméstica visa acolher e tutelar.
Olhemos, agora, para as alíneas d) e) do n.º 1 do artigo 152º do Código Penal.
Ali se prevê que incorre no mesmo crime de violência doméstica quem infligir maus tratos, físicos ou psíquicos a pessoa particularmente indefesa nomeadamente (para o que aqui nos ocupa) em razão da idade e/ou a menor que seja seu descendente.
O artigo 2º, al. al. a) da Lei n.º 112/2009 passou a consagrar, com a Lei n.º 57/2021, como vítima “a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152º do Código Penal, incluindo as crianças ou os jovens até aos 18 anos que sofreram maus tratos relacionados com exposição a contextos de violência doméstica; “.
Também o artigo 67º-A, nº 1 a) do Código de Processo Penal conheceu aditamento da subalínea iii), ali se prescrevendo que os menores são considerados vítimas de crime, sejam eles vítimas diretas (primeira parte) quer sejam apenas suas vítimas indiretas:“incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica”.
As mencionadas alterações legislativas visaram colocar sob o escudo do bem jurídico do crime de violência doméstica as crianças e jovens expostas a violência física ou psicológica em contexto de família, ainda que sem coabitação com o agressor.
“Violência essa contra menor, que não tem que a ter como alvo preferencial da conduta do agressor, ou seja, tê-lo como alvo direto (enquanto pessoa objeto do crime na modalidade de dolo direto, cfr. art. 14º nº 1 do Cód. Penal), mas que a/o atinge a título de dolo necessário ou, pelo menos, a título de dolo eventual (cfr. art. 14º nºs 2 e 3 do Cód.Penal) quando os maus tratos sobre o/a respetivo/a progenitor/a, este/a sim, alvo preferencial do agente, são praticados na sua presença, sendo esta por causa disso, como supra se disse, ainda vítima direta da conduta do agente.
Coloca-se a questão de saber se face a esta interpretação, não ficaria esvaziada a agravação contida no nº 2 do art. 152º do Cód. Penal consubstanciada na perpetração de condutas descritas no corpo do nº 1 «na presença de menor».
Crê-se que assim não sucede, porque como consta do Parecer do CSMP de
12/04/2021, essa agravação “se liga diretamente à outra vítima ou à vítima inicial, do mesmo modo que se ocorrer no domicílio comum ou no domicílio desta . (…) Na verdade, como também se disse supra em nota de rodapé, a agravação (do limite mínimo da moldura penal) que no caso opera (art. 152º nº 2 a) do Cód. Penal) realça, no que ao presente caso interessa, não a perspetiva da/o menor, mas sim a da vítima preferencial ou a título de dolo direto e a do próprio arguido. Explicando: para uma mãe, sofrer o tipo de maus tratos que aqui estão em causa em frente à filha menor de 2 anos e 2 meses de idade, é infinitamente mais doloroso, pela humilhação suprema de ser tratada como lixo em frente à filha e até pelo receio de que a violência possa alastrar para a criança e o horror da impotência de nada poder fazer. Uma vítima nessa circunstância sofre as mesmas dores físicas e psicológicas de outra que não é maltratada à frente da/o filha/o, mas sofre ainda esse acréscimo, incomensurável, de dor e aflição, que justifica a agravação, que tem como reverso a insensibilidade do arguido que foi indiferente a esse acréscimo de sofrimento. A/o filha/o não é ela/e mesma/o, equação nessa agravação.”- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-09-2024, disponível em www.dgsi.pt, relatado pela Exma. Sra. Desembargadora Lígia Trovão.
Percorridos os factos provados resulta que o arguido dirigiu, durante quase 2 anos, de forma recorrente, à denunciante, com quem vivia em união de facto, palavras ofensivas (tais como puta, vaca, mentirosa, aldrabona, burra, badalhoca), que exerceu sobre a mesma um apertado controlo (contabilizando a frequência com que mudava a roupa interior e chegando mesmo a exigir-lhe que a exibisse em videochamada do seu local de trabalho) e que a agrediu, em mais do que uma ocasião, num crescendo de violência.
Fê-lo, as mais das vezes, no interior do domicílio comum do casal e em algumas das situações, na presença da filha menor do casal.
Assumiu, assim, para com a denunciante um comportamento intimidatório, para além de profundamente desrespeitoso, humilhando-a e rebaixando-a.
Fê-lo em ocasiões distintas, de forma censurável e reiterada, numa postura de domínio e controlo da denunciante, acabando por provocar na mesma uma tensão permanente e constante, diminuindo-a e fragilizando-a, forçando-a mesmo a sair da habitação.
Donde: as condutas apuradas assumem, de facto, a relevância mais do que suficiente em ordem a ser subsumíveis ao crime de violência doméstica previsto no artigo 152º, n.º 1, al.b) do C.Penal e 2, uma vez que tiveram lugar no domicílio comum do casal e na presença da filha menor.
E o que dizer quanto ao mesmo ilícito penal, previsto nas alíneas d) e e)?
Resulta como provado que em 29 de Julho de 2024 o arguido, tendo a filha de ambos ao colo, agarrou a denunciante pelos cabelos, puxando-os para que a o acompanhasse até à casa de banho (a fim de, mais uma vez, lhe pedir explicações sobre a roupa interior), arrastou-a até lá, agarra-a pelo pulso e puxa-o num movimento forte, volta a agarra-lhe os cabelos junto da orelha, puxando-o, forçou o corpo da denunciante contra a parede, fazendo com que a denunciante ficasse em bicos de pés; sempre com a menor ao colo, usou uma das mãos em posição de gancho, encaixando-o na parte inferior do queixo da denunciante, junto ao pescoço ao mesmo tempo que o apertou, momento em que a menor começou a pedir para ir para o chão. Largando a menor, quando esta lhe pede, de novo, colo, pega na mesma e prossegue as agressões, agarrando a denunciante pelos cabelos e empurrando-a, fazendo com que caísse no chão, colocando o joelho em cima do se pescoço, pressionando-o.
Do mesmo modo, na noite de 2 para 3 de Agosto de 2024, depois de novamente insultar a denunciante e de agredir, exibindo uma faca, o arguido barrica-se dentro da casa de banho após esta conseguir fugir, com a filha menor, ameaçando que se matava a si e à menor.
É inquestionável que os factos têm lugar numa idade muito precoce da menor.
Nascida em Dezembro de 2022, os factos ocorrem até Agosto do ano de 2024, quando a mesma não havia completado 2 anos de idade.
Contudo, não pode escamotear-se o facto de para uma criança, ainda que de tão tenra idade, viver numa casa em que são praticados actos de violência por uma das suas figuras de referência sobre outra dessas figuras de referência é assustador, causando-lhe mau estar e sofrimento. A família, que deveria ser o espaço de segurança e protecção, é percepcionada como um lugar de conflito e de medo.
Não se exige que a criança perceba o real alcance do que vê acontecer; basta que
esteja, como esteve a menor CC, exposta a situações de conflito extremo, geradoras de stress e mau estar, comprometedoras do seu são desenvolvimento.
O espaço da família, que deveria ser a âncora de segurança para a menor, torna-se um sítio desarmonioso, de gritos, de agressões, de temor.
Se o arguido não exerce sobre a menor, directamente, actos de violência física, sujeita-a, expõe a mesma àqueles, às ameaças dirigidas à mãe, cerceando o seu crescimento saudável e harmonioso, infligindo-lhes, por essa razão, maus tratos psíquicos.
E as crianças em idade precoce encontram-se, por esse facto, numa situação particularmente vulnerável.
Os factos são, ainda, subsumíveis ao n.º 2 do artigo 152º, por terem tido lugar, na sua grande maioria, no domicílio da vítima.
Assim, o arguido será condenado também pelo crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, als. d) e e) do C.Penal..
(…)
Ora, dúvidas não restam que o agente comete tantos crimes quantas as vítimas atingidas, atento o bem jurídico pluriofensivo protegido pela incriminação, perpetrado diretamente contra a denunciante (art. 152º nº 1 b) do CP), companheira do arguido, agravado por ter sido praticado na presença da filha menor de ambos e ainda no domicílio comum (nº 2 a) do art. 152º) e um outro crime de violência doméstica na vertente de maus tratos psíquicos, de que é vítima autónoma CC (art. 152º nº 1 d) e e) do CP), igualmente agravado por ter sido praticados no domicílio comum (nº 2 a) do art. 152º).
Prevê o artigo 152º/1, al. a), d) e e) e 2 do Código Penal que pena para o crime de violência doméstica em causa se baliza entre 2 anos e 5 anos de prisão, não deixando, assim, quanto a este ilícito penal, opção quanto à pena em causa.
A aplicação de uma pena visa essencialmente a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; resultam tais finalidades nomeadamente dos arts. 1º, 13º/1, 18º/2 e 25º/1 da Constituição do art. 40º do C. Penal.
A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (art. 71º, n.º 1 ). Dá-se assim tradução “à exigência de que a vertente pessoal do crime –ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção“ e “à necessidade comunitária da punição do caso concreto e consequentemente à realização in casu das finalidades da pena” (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 251 ).
No que diz respeito ao juízo sobre a culpa, o Tribunal não se pode furtar “a uma compreensão da personalidade do delinquente, a fim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a sua conformação em face da personalidade suposta pela ordem jurídico-penal. A medida desta desconformação constituirá a medida da censura pessoal que ao delinquente deve ser feita e, assim, o critério essencial da medida da pena” (cfr. Professor Jorge Figueiredo Dias, in “Liberdade, Culpa, Direito Penal”, pág. 184 ).
As exigências de prevenção geral são muito elevadas, tendo em consideração a frequência com que ocorre o crime de violência doméstica, o alarme social que gera, o sentimento de alguma impunidade e o silêncio, tantas vezes, guardados pelas vítimas durante anos, tolhidas pelo medo, receio e pelo estigma social.
As exigências de prevenção especial revelam-se elevadas, uma vez que o arguido tem um vasto elenco de antecedentes criminais, sendo um deles pela prática do mesmo crime, sobre uma anterior companheira, tendo iniciado a prática dos factos destes autos poucos meses após ter terminado o período de suspensão de execução da pena ali aplicado. Relidos os factos de tal condenação, também em contexto de uma relação análoga à dos cônjuges, verificamos que o arguido insultou e agrediu aquela sua companheira com estalos, puxões de cabelos, apertando-lhe o pescoço depois de colocar o braço à volta do mesmo, vulgo mata-leão e exibiu-lhe uma faca (cuja lâmina encostou ao pescoço da ali ofendida), num padrão de comportamento em tudo idêntico aos destes autos e que a suspensão de execução da pena não foi capaz de refrear.
In casu, contra o arguido milita a gravidade do dolo com que agiu em todos os ilícitos penais, o qual se manifestou na sua forma mais grave: dolo directo.
No que se reporta ao modo de execução, importa considerar que o arguido leva a cabo as suas condutas durante quase dois anos, essencialmente após o nascimento da filha de ambos. Tais condutas compreendem um vasto leque de maus tratos: desde insultos, a um controlo desmesurado dos vários momentos do dia-a-dia da denunciante (contabilizando a roupa interior que usava, perturbando-a durante o seu horário de trabalho, vigiando o seu telemóvel, obrigando-a a ligar para números que não conhecia a fim de se certificar que não eram “amantes” da companheira), a agressões físicas violentas, que incluem chapadas no rosto, puxões de cabelo, apertões no pescoço, chegando a colocar o joelho em cima do pescoço da denunciante, pressionando-o, levando a que a denunciante se sentisse a sufocar e exibindo-lhe uma faca a fim de que a mesma confessasse que tinha amantes, fazendo crer que a ia matar.
Só a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva foi capaz de travar as condutas do arguido.
As consequências da gravidade da sua conduta, para além das dores físicas que as agressões provocaram na denunciante são especialmente graves em termos de lesões psíquicas, deixando cicatrizes de vida de terror que, apesar de não visíveis, seguramente marcam a denunciante e a filha, tendo vivido receando pela sua vida e integridade física.
O arguido, apesar de ter reconhecido os factos em 1º interrogatório, pouco ou nada assumiu em audiência de julgamento, conservando um discurso vitimizador de traições por parte da denunciante.
Em face do exposto e tudo ponderado, julgamos adequadas as penas de:
- 4 (quatro) anos de prisão pela prática do crime do crime de violência doméstica perpetrado sobre BB;
- 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica perpetrado sobre CC.
Por força do art. 77.º, n.º 1, do Código Penal, "quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer um deles é condenado numa pena única (...)", tendo a pena aplicável como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas ao arguido – n.º 2 do referido preceito legal.
O n.º 1 do aludido art. 77º do Código Penal determina que na medida da pena sejam considerados os factos e personalidade do agente.
Considerando a moldura penal do concurso- que conhece o limite mínimo de 4 anos e máximo de 6 anos e 6 meses, coligido tudo quanto ficou supra exposto e que aqui vale inteiramente, a personalidade do arguido espelhada nestes factos, entendemos justo e adequado fixar a pena única de 5 (cinco) anos de prisão.
Importa, agora, ponderar das virtualidades da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, pois que, nos termos do art. 50.º do Código Penal, o tribunal suspende a execução da pena aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às circunstâncias da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, podendo, se o julgar conveniente e adequado à realização de tais finalidades, subordinar a suspensão da execução da pena de prisão nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, sendo que semelhantes deveres e regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
Na decisão sobre que ora nos debruçamos, deveremos ter presente razões ligadas às finalidades preventivas desta punição, quer as que se reportam à prevenção geral positiva, quer as que se referem à prevenção especial de socialização, estas marcadamente relevantes para o funcionamento deste instituto.
O instituto de suspensão de execução da pena tem, como pressupostos materiais, a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta anterior e posterior ao facto punível e as circunstâncias que o rodearam, se e quando for possível concluir que a simples censura do facto e ameaça da pena bastarão para o impedir de praticar outras condutas ilícitas e satisfarão as necessidades de reprovação e prevenção do crime (art.º 50, n.º 1, do Código Penal).
É preciso ter presente que, como refere Maia Gonçalves, in Código Penal Português Anotado, 13º Edição, pág. 206, este instituto “é uma medida penal de conteúdo reeducativo e pedagógico (...)”, acrescentando que se “trata de um poder dever, ou seja, de um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verificarem os apontados pressupostos.”
Convocando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/06/03, disponível em www.dgsi.pt), diremos que “constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as necessidades de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do Direito, através da advertência da condenação e da injunção que esta impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores inscritos nas normas”.
Não obstante, a suspensão da execução da pena de prisão não pode colidir com as finalidades da punição. Se numa perspectiva de prevenção especial, terá que promover favorecer a reinserção social do condenado, na perspectiva da prevenção geral não pode transmitir a ideia de impunidade, subtraindo a confiança no sistema penal.
O instituto de suspensão de execução da pena como ensina o Prof. Figueiredo Dias poderá traduzir-se da seguinte forma: “A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes (…). Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».” (Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 343).
Assentando o juízo de prognose a realizar pelo tribunal nas circunstâncias do caso concreto – das condições de vida e conduta anterior e posterior do agente, conjugadas e relacionadas com a sua revelada personalidade – para se concluir pela suspensão ter-se-á que concluir que a condenação criminal fará o arguido integrá-la como uma solene advertência, prevenindo a reincidência.
No caso em apreço, as necessidades de prevenção geral recomendam o cumprimento da pena efectiva de prisão, sendo que, no mesmo sentido, concorrem as exigências de prevenção especial.
Na verdade, o arguido foi já condenado pela prática do crime de violência doméstica, perpetrado sobre uma outra companheira, numa pena de 3 anos e 6 meses de prisão, transitada em julgado em 27-02-2019, cujo período de suspensão, por igual período de tempo, terminou em Agosto de 2022; a filha do casal nasce em Dezembro desse mesmo ano e é a partir de então que começam as discussões entre o casal num crescendo de violência até à detenção do arguido. Daqui se extrai, com segurança, que o arguido, então ciente do instituto de suspensão de execução da pena, terá adequado os seus comportamentos durante a vigência da mesma; mas fê-lo apenas para evitar o cumprimento de uma pena de prisão, já não porque interiorizou o desvalor e gravidade das suas condutas, pois que as repete com a denunciante dos autos num padrão de comportamento em que apenas muda a vítima.
Tal conclusão compromete qualquer juízo de prognose favorável a uma eventual suspensão de execução da pena.
A pena de prisão será, assim, cumprida em termos efectivos.
Da Pena acessória de proibição de contacto com a vítima com afastamento da residência:
(…)***
Da Pena Acessória de Inibição do exercício das Responsabilidades Parentais:
O n.º 6 do artigo 152º do Código Penal prescreve que “Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos”.
A aplicação da pena acessória de inibição do exercício das Responsabilidades Parentais, também ela facultativa, reclama a ponderação geral da sua necessidade, proporcionalidade e a dimensão da culpa do agente e o interesse superior da criança, que, com a aplicação da tal pena, vê rompidos os laços parentais durante um determinado período de tempo, tantas das vezes irrecuperáveis.
“É pressuposto que os tribunais procedem com o cuidado necessário ao determinar a medida da pena acessória de inibição das responsabilidades parentais de modo proporcional à gravidade da infração, às exigências de prevenção do caso e, mormente, ao interesse do menor (Maria Elisabete Ferreira, Julgar Online, março de 2018, p. 8 e ss). (…) Em matéria de interdição do exercício das responsabilidades parentais a decisão do Tribunal deve ser sempre norteada pelo interesse do menor, atendendo às circunstâncias concretas do momento em que é proferida. Tal interesse passa necessariamente pela garantia de condições materiais, sociais, morais e psicológicas que possibilitem à criança/jovem um desenvolvimento afectivo integral, estável e harmonioso.”-Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-12-2022, disponível em www.dgsi.pt.
Os factos provados trazem-nos um cenário de gravidade indiscutível, com impacto sobre a menor, embora sobre ela não tenham sido directamente praticados (o que não excluiu a tutela penal, como supra se analisou).
Revelam uma violação grosseira dos deveres de respeito e de protecção que ao arguido incumbiam na qualidade de pai.
Contudo, de tais factos não resulta que o arguido tenha, em alguma circunstância, usado a menor para controlar a vítima (vg. Usando-a como justificação para o seu descontrolo ou afastando-a da mãe) ou instrumentalizado a sua presença para manipular ou constranger a denunciante. A presença da menor nos actos ilícitos é fruto dessas circunstâncias e não condição ou consequência dos mesmos.
Por outro lado, o arguido beneficia de suporte familiar, disponíveis para o apoiar.
Surge-nos, assim, como desproporcionada a aplicação de tal pena acessória, penalizadora não só para o arguido em termos desadequados, como para a menor.
Não se aplicará, então, a pena acessória em causa, sem prejuízo de se determinar que seja comunicado presente Acórdão do Tribunal de Família e Menores competente a fim de que sejam reguladas as responsabilidades parentais da menor CC com salvaguarda da pena acessória de proibição de contactos e afastamento da residência da denunciante supra fixada.
(…) »
Fim de transcrição parcial.
II.3. Apreciação do recurso interposto pelo Arguido AA
II.3.1.
A - Erro de julgamento com impugnação alargada da matéria de facto no que se reporta – seguindo a ordem pela qual o arguido a enumera - à factualidade assente sob os n. ºs 5, n.ºs 107º a 113º do ponto dos factos n.º 8 º, 18º, 28 º, 29º, 30º, 33º, 38º, 40º, 42º, 71º, 81º, 84º, 87º e 88º., quanto aos factos n º 51º a 106º.
Vejamos
O artigo 412º, n.º 3 do CPP dispõe que “Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”
E, o seu n.º 4 estabelece que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Refira-se, «a priori», que a impugnação da matéria de facto alicerçada na alegada incorrecta apreciação da prova produzida em julgamento pelo tribunal a quo não é identificável ou coincidente com a discordância com a apreciação da prova realizada pelo julgador no quadro do princípio da livre apreciação da prova vertido no artigo 127º do CPP. Tal princípio de processo penal vem afirmar, por um lado, que o julgador não está amarrado a critérios legais pré-determinados no que toca ao valor a atribuir à prova, não deixando, porém, de indicar limites que obstam a que aquela apreciação da prova mais não seja do que um exercício discricionário ou arbitrário. Limites esse que assentam em
em critérios objectivos a atender pelo julgador, sendo este o braço material e visível do ius puniendi do Estado, e logo, cingido ao dever de prossecução da verdade material. É a obediência a este principio basilar do processo penal que garante que a valoração da prova é realizada segundo a convicção do tribunal, a qual tem, necessariamente, que ser objectivável porque só deste modo será possível garantir a sua transparência e, consequentemente, permitir a adesão da comunidade ao já aludido ius puniendi do Estado, poder este que apenas poderá garantir a sua eficácia quando legitimado pela comunidade.
Isto dito, a convicção judiciária no que toca à da verdade dos factos tem que assentar, nomeadamente, em regras técnicas, científicas ou resultantes da experiência comum, e revelar-se, com base nestas mesmas regras, uma convicção que afasta toda a dúvida razoável (cfr. Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra Editora, 1981, págs. 198-207). E é igualmente por se atender ao primado deste principio da livre apreciação da prova plasmado no art. º127 do C.P.P. que a jurisprudência tem vindo a entender que a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso, quando a mesma resultar da violação daquelas regras, afrontando ostensivamente as regras de experiência comum ou o princípio in dubio pro reo, ou assentar em provas ilegais ou proibidas, ou firmada em sentido contrário àquele que a força probatória plena de certos meios de prova impõe[1].
Vejamos em que se traduz a impugnação da matéria de facto prevista no citado artigo 412º, n.º 3 do CPP., competindo, a este propósito, chamar à colação o teor do acórdão do TRL de 29.03.2011, relatado por Jorge Gonçalves (acessível in www.dgsi). A impugnação a que ora fazemos alusão consiste numa “… apreciação que não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412º do C.P.Penal. A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso de matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se o permitirem [al. b) do n.º 3 do citado artigo 412º.”
Numa tentativa de explicitar o que traduz uma imposição no acerto da factualidade encontramos várias decisões jurisprudenciais, a saber:
- no acórdão do STJ de 15.12.2005, relatado por Simas Santos refere-se que “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstrem esses erros” (cfr., neste sentido, acórdão do STJ de 09.03.2006, relatado pelo mesmo relator, ambos acessíveis in www.dgsi.pt).
Na perspectiva do recorrente, o Tribunal a quo não poderia ter dado como provados os fatos acima descriminados, uma vez que a convicção que aquele retira dos meios de prova não coincide com a do julgador, donde resulta que o juiz “a quo” fez uma errada interpretação da prova que lhe foi oferecida e violou, designadamente, o Princípio da Livre Apreciação da Prova (artigo 127º do C. P. P.). Desenvolvendo tal tese vem o arguido sustentar que o tribunal preferiu desvalorizar as declarações do arguido, assentando a sua convicção, em sede de audiência de julgamento, nas declarações para memória futura prestadas por BB e nos depoimentos das testemunhas FF, GG, HH, II, EE, JJ, KK, LL, MM e NN.
Ora, da argumentação do recorrente resulta claro que o mesmo visou apenas impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo, pretendendo substituir essa convicção pela sua, assente esta na sua própria interpretação pessoal da prova produzida. Nesta sede chamamos à colação alguma jurisprudência, a qual maioritária, e que repudia tal tipo de argumentação em sede recursiva; é o caso dos seguintes arestos:
- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004 de 24.03.2004, DR, II S, de 02.06.2004: “…a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”;
- Acórdão do T.R.L. - Tribunal da Relação de Lisboa de 08/02/2023 in www.dgsi.pt: «I - Não é de admitir uma impugnação ampla da matéria de facto quando o que se com ela pretende é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que o recorrente entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida».
Concomitantemente, verificamos ainda que o recorrente não cumpriu minimamente os ónus de impugnação acima referidos, o que não permite que se proceda à apreciação da pretensão recursiva nesta parte.
Revertendo a nossa atenção para o campo da impugnação alargada da matéria de facto cumpre dizer que, nos termos do artigo 428.º, n.º 1 do Código Processo Penal, as Relações conhecem de facto e de direito, sendo que, de acordo com o artigo 431.ºdo mesmo diploma legal, “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou
c) Se tiver havido renovação da prova.”
Por outro lado, dispõe o artigo 412.º, n.º 3 do C.P.P. que “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”.
E, no seu n.º 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Cabe ainda referir que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efetuado, detectando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso (Ac. STJ de 16.06.2005).
Assim, deve concluir-se que o recurso sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à sentença recorrida, mas apenas e tão-só a reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente – Ac. do STJ de 10.01.2007 (www.dgsi).
O nosso Código de Processo Penal consagra no artigo 127.º o princípio da livre apreciação da prova segundo o qual o tribunal é livre na formação da sua convicção, mas encontra-se vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que estão subtraídas a essa livre convicção, sendo esta motivada, e estando ainda o tribunal sujeito aos princípios do processo penal, como o da legalidade das provas e do «in dubio pro reo».
O princípio «in dubio pro reo», emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova (artigo 32.º, n.º 2 Constituição), constitui um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.
Postas estas considerações, cabe concluir que, assim e para além da violação das provas subtraídas à livre apreciação do julgador, ou da violação dos referidos princípios, o juízo decisório da matéria de facto só é suscetível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objetivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida, impondo-se uma decisão diversa.
No quadro de tal princípio basilar - Princípio da Livre Apreciação da Prova - veio o Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Editora, págs. 233 e 234) salientar que só os princípios da imediação e da oralidade “… permitem … avaliar o mais corretamente possível a credibilidade das declarações pelos participantes processuais”.
Sublinhando a prevalência da apreciação realizada pelo julgador em primeira instância quis o legislador realçar que tal juízo apenas pode ser afastado perante “…concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” - artigo 412.º, n.º 3, al. b) do CPP. Assim, e para respeitarmos estes princípios, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso. É o que resulta do teor do acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de 2002, relatado por Santos Cabral (in C.J., ano XXVII, Tomo II, página 44) segundo o qual "quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum".
Como se retira da motivação do Acórdão recorrido e acima transcrito, o tribunal a quo narrou de forma lógica, objectiva e adequada as razões pelas quais decidiu conferir credibilidade aos depoimentos da vítima e das demais testemunhas face ao depoimento do arguido e demais prova testemunhal. Certo é que nada impede, pois, o tribunal de credibilizar determinado depoimento em detrimento de outros, inexistindo também qualquer norma ou critério legal, com parâmetros pré-estabelecidos, que permitam considerar que certos e determinados depoimentos, consoante o sujeito que os presta ou mediante as circunstâncias em que são prestados, sejam credibilizados em detrimento de outros. Neste sentido encontramos o teor do acórdão do TRC de 18.02.2009[2], “Na tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tendo em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática e processualmente válida –, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas”. E não será a circunstância, normal nas lides judiciais de se contraporem, pela prova pessoal (declarações e testemunhos), versões distintas, a impor que o julgador seja conduzido, irremediavelmente, a uma situação de dúvida insuperável. A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os depoimentos prestados, não lhe é imposto ter de aceitar ou recusar cada um deles na globalidade, cumprindo-lhe antes a missão de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece ou não crédito e em que termos”.
Nos termos já anteriormente sublinhado, para que o tribunal de recurso conclua pela verificação de erro de julgamento em sede de matéria de facto é necessário que as provas invocadas pela recorrente imponham decisão diversa da recorrida.
Ora, não é o caso.
O recorrente não evidencia variáveis que contrariem as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência na apreciação da prova por parte do julgador. O que o recorrente apresenta, como já vimos, é a sua convicção, subjectiva, relativamente à apreciação daqueles meios de prova que, naturalmente, não constitui argumento impugnativo válido.
Por todo o exposto, não vislumbramos, pois, qualquer erro de julgamento na apreciação da prova produzida.
Nestes termos, a decisão do tribunal a quo é inatacável por ter sido proferida de acordo com a sua livre convicção nos termos do artigo 127º do CPP e em absoluto respeito dos dispositivos legais aplicáveis, não tendo violado qualquer regra da experiência ou da ciência, pelo que, mantêm-se integralmente os factos dados como provados no acórdão recorrido.
Dito isto, haverá de se considerar, desde logo, que o recorrente ainda que especifique na sua peça recursiva, como lhe era imposto pelo artigo 412.º, n.º 3, do CPP, os pontos de facto que considera incorretamente julgados, já não cumpre o referido ónus na medida em que não indica, facto a facto, as provas que impõem decisão diversa da recorrida relativamente a cada um desses factos, assim como não faz qualquer referência às concretas passagens das gravações dos respectivos depoimentos e declarações a que alude, tudo nos termos do art. 412º, nºs 3 e 4 do C. P. Penal. O recorrente não cumpre com tais deveres de particularização, não indica nem transcreve as concretas passagens dos depoimentos a que faz alusão e em que assenta a sua impugnação.
Ora, tais omissões, comuns à motivação e às respectivas conclusões do recurso, impedem o Tribunal ad quem de apreciar a decisão proferida sobre a matéria de facto, razão pela qual, ao abrigo do preceituado no art. 420 do C.P.P. se determina a rejeição do recurso, neste segmento.
Ainda a este propósito, chama-se à colação o teor do Acórdão da Relação de Guimarães de 6/02/2006, relatado por Ricardo Silva (in www.dgsi), segundo o qual “Como se escreveu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 140/2004 (() De 10 de Março de 2004, publicado no Diário da República, II Série, n.º 91, de 17 de Abril de 2004.), destacando as contra-alegações do Exm.º PGA, naquele Tribunal, «as menções a que aludem as alíneas a), b) e c) do n.º 3 e o n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal não traduzem um ónus de natureza puramente secundária ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto». O recorrente buscou uma reapreciação da prova, sem especificação das provas concretas que impõem decisão diversa, o que não se compadece com o regime legal de recurso em matéria de facto traçado no artigo 412.º do CPP. A possibilidade de formular convite ao recorrente para correcção das deficiências apontadas não tem, no caso, cabimento. Está em causa uma deficiência substancial da própria motivação que necessariamente se reflecte em deficiência substancial das conclusões. A motivação não expressa os motivos da impugnação através da especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Estando-se perante deficiências relativas não apenas à formulação das conclusões, mas substanciais da própria motivação, os princípios constitucionais do acesso ao direito e do direito ao recurso em matéria penal – este último, aliás, enfocado na figura do arguido e já não na do assistente – não implicam que ao recorrente seja facultada oportunidade para aperfeiçoar em termos substanciais a motivação do recurso quanto à matéria de facto. Tal equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.(…)”
Concluindo-se pela rejeição do recurso no que concerne à impugnação alargada nos termos acima evidenciados, verificamos também que no campo da «revista alargada» não se verificam qualquer dos vícios previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, os quais têm de resultar da leitura do texto da decisão recorrida e que são do conhecimento oficioso.
Não podemos, porém, de abordar a questão suscitada pelo arguido no que toca ao facto provado que o mesmo identifica como o n.º 5. Segundo o mesmo, “relativamente aos epítetos narrados no ponto de facto n.º 5 (No decurso dessas discussões, nos últimos seis meses, quase diariamente, o arguido dirigiu insultos à vítima, tais como: «PUTA, VACA, MENTIROSA, ALDRABONA, BURRA, SUA FILHA DA PUTA, VAI-TE FODER, VAI PARA O CARALHO, SUA BADALHOCA...».), reproduz matéria genérica, desconhecendo-se as circunstâncias de modo, tempo e lugar em que o arguido apelidava a ofendida com tais impropérios, não podendo, por isso ser considerados.(…) E isto porque, «não se podem considerar como "factos" as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, pois a aceitação dessas afirmações para efeitos penais inviabiliza o direito de defesa e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32º da Constituição.
Certamente por lapso o recorrente identifica o artigo 5 dos factos provados. Este apresenta a seguinte redacção: “5º- Desde o início da relação que o casal discutiu com grande frequência, aumentando de intensidade já quando o casal fixou residência na habitação sita na Rua ..., ..., ..., indo para ali residir em agosto de 2022, encontrando-se a vítima, na ocasião, grávida da filha CC.”
Ora, o facto a que alude o recorrente é o facto provado n.º 7 o qual se traduz na factualidade que o recorrente pretende afastar: “7º- No decurso dessas discussões, nos últimos seis meses, quase diariamente, o arguido dirigiu insultos à vítima, tais como: «PUTA, VACA, MENTIROSA, ALDRABONA, BURRA, SUA FILHA DA PUTA, VAI-TE FODER, VAI PARA O CARALHO, SUA BADALHOCA…».
Facto este que deve ser complementado pelo facto n. º5 acima transcrito, o qual permite localizar temporalmente o início da conduta em agosto de 2022, assim como pelo facto n. º8: “ 8º- Este tipo de situações ocorria a qualquer hora do dia, sempre no interior da residência, muitas das quais na presença da filha menor CC.”-, o qual localiza a acção do arguido a qualquer hora do dia, identifica o espaço em que a mesma se verificava – residência, estando igualmente indicada a periodicidade quase diária da conduta.
A este propósito, relembramos o teor do Acórdão da Relação do Porto de 08/09/2020, relatado por José Carreto (disponível in jurisprudência.pt) que reza o seguinte: “Escrevemos no ac RP de 8/7/2015 www.dgsi.pt “…estamos no âmbito do direito penal, o qual revestindo quanto ao processo natureza acusatória, e sendo regido pelos princípios da tipicidade e da legalidade quanto ao crime impõe particulares exigências ao nível da certeza, da clareza e da precisão e da completude dos actos imputados de tal forma que o arguido acusado deles se possa eficazmente defender, e daí que a própria norma processual impunha a narração dos factos imputados e sendo possível “ o lugar, o tempo e a motivação da sua pratica…” artº 283º 1b) CPP, o que é relevante não apenas para eficazmente o arguido/ acusado poder exercer o seu direito de defesa (porque no dia X estava no local Y e não no local A, etc …), mas também para averiguar da ausência de condições de procedibilidade (v.g exercício do dto de queixa) ou factos extintivos do procedimento criminal (v.g. prescrição) ou até da existência de crime. (…) Desde há muito o STJ tem entendido que devendo os factos imputados ser claros e precisos, não podem ser utilizados / imputados na acusação (e consequentemente na sentença) conceitos vagos e imprecisos, genéricos e conclusivos porquanto isso não apenas impede um eficaz exercício do direito de defesa, como impede o exercício do contraditório ínsito naquele. A esse propósito (embora relativo a outro tipo de crime) diz-se no Ac.STJ de 17/1/2007 Proc 06P3644 Silva Flor www.dgsi.pt que “ uma imputação genérica …, sem individualização dos actos integrantes dessa actividade, não podendo relevar para o efeito do enquadramento jurídico-penal dos factos, já que inviabiliza o exercício do direito de defesa consagrado no art. 32.º da CRP.”, por ficar “ impedido de organizar adequadamente a sua defesa, contraditando as provas apresentadas e oferecendo provas de que não cometeu actos …. Este o sentido em que se tem pronunciado alguma jurisprudência deste STJ – Acs. de 06-05-2004, Proc. n.º 908/04, de 04-05-2005, Proc. n.º 889/05, e de 07-12- 2005, Proc. n.º 2942/05, entre outros.”
O que é reafirmado no ac STJ 21/2/2007 Proc 06P3932 ao expressar que:
VIII - O arguido só pode contrariar a acusação ou a pronúncia, de forma adequada e eficaz, se naquelas peças processuais se encontrarem vertidos especificadamente e com clareza os factos imputados, isto é, o caso concreto ou particular submetido a julgamento. De outro modo, ou seja, perante uma acusação ou uma pronúncia constituídas por factos genéricos, não individualizados, fica ou pode ficar prejudicada a possibilidade de o arguido se defender. IX - Com efeito, ninguém pode contestar, eficazmente, a imputação de uma situação abstracta ou vaga, muito menos validamente contraditar a prova de uma tal situação. Neste preciso sentido tem-se pronunciado este STJ, designadamente em matéria de tráfico de estupefacientes, ao defender que não são factos susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, visto que as afirmações genéricas não são susceptíveis de impugnação, pois não se sabe o lugar em que o agente vendeu os estupefacientes, o local em que o fez, a quem, o que foi efectivamente vendido, sendo que a aceitação das afirmações genéricas como «factos» inviabiliza o direito de defesa que ao arguido assiste, constituindo grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32.° da CRP. E … no ac. 15/12/2011 Proc 17/09.0TELSB.L1.S1 Raul Borges www.dgsi.pt se confirma esta Jurisprudência: “XXI - Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante deste STJ, as imputações genéricas, …, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o imputado comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente.” Temos assim que na sequência do expendido, que não podem ser valorados os factos genéricos e vagos sem indicação do tempo, local e modo de cometimento dos factos, tal como não pode ser valorados os factos que não constituíam crime à data da sua ocorrência”
Daí que se siga o também expresso pelo ac. RP de 30/9/2015 www.dgsi.pt : “I- As imputações genéricas sem indicação precisa do tempo, lugar e circunstancialismo em que ocorreram, inviabilizam um efetivo direito de defesa devem considerar-se não escritas” tal ponderação não poderá deixar de estar ligada ao facto fundamental de tal como se expressa no ac. RP de 20/4/2016 www.dgsi.pt :“I - O crime de violência doméstica é um crime habitual, constituindo modalidade dos crimes ou de trato sucessivo, por a realização do tipo incriminador supor que o agente pratique determinado comportamento de forma reiterada. II - Neles é decisiva a conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente”, pelo que como ali se decide: “II - … a interrupção dos actos criminosos durante um determinado lapso de tempo relevante (v.g. um ano) não autoriza a sua unificação. IV - O crime de violência domestica abrange a pratica de uma multiplicidade de condutas, reiteradas (e não sucessivas) ao longo de determinado período de tempo (e sem hiatos significativos) que se praticaram na pessoa do cônjuge ainda que de natureza diversa, desde que todas elas se tenham reportado a maus tratos físicos ou psíquicos, constituindo um estado de agressão permanente como modo de exercício de uma relação de poder ou domínio” ou concluindo o ac RP 17/6/2015 www.dgsi.pt “II – Carece de relevância jurídico-penal a imputação genérica de factos e deve considerar-se como não escrita.”, considerações que consideramos actuais…” .
Analisando a factualidade ora controvertida, por certo, não podemos concordar com o recorrente.
Na verdade, a conduta do mesmo, resultante da factualidade descrita de 5 a 8 dos factos provados, encontra-se claramente descrita (com identificação dos impropérios utilizados), assim como permite localizar no tempo e no espaço a conduta do arguido de um modo suficientemente balizado e, por isso, susceptível de adequado contraditório.
Razão pela qual, ao contrário do que entende o recorrente, a factualidade descrita não assenta em factos genéricos e vagos, sem indicação do tempo, local e modo de cometimento dos factos.
E assim sendo, considera-se não provido este segmento do recurso.
I - Da errada imputação de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, al. d) e e) e 2 do Código Penal perpetrado sobre CC;
Em sua defesa, vem o recorrente, relativamente aos imputados crimes de violência doméstica na pessoa da menor, alegar que a factualidade apurada a esse respeito não é, idónea a terem-se por preenchidos os elementos constitutivos desse tipo de ilícito uma vez que o arguido não praticou qualquer ato diretamente dirigido á menor.
Segundo o mesmo impõe-se a absolvição do arguido do imputado crime de violência doméstica na pessoa da sua filha menor uma vez que esta nunca presenciou nenhum facto, até porque, a tenra idade, (19 meses) não lhe permite compreender o alcance dos eventos em causa, anulando assim o impacto que possa ser gerado pelos comportamentos daquele. Considera ainda que se a presença da menor é considerada pelo legislador como uma circunstância agravante da punibilidade da conduta do agente é porque não considera a presença da criança como um crime autónomo merecedor de um juízo de censura autonomizável.
Vejamos.
Aderimos, no que a esta questão concerne, à posição plasmada no Acórdão da Relação do Porto de 11/09/2024, relatado pela Juíza Desembargadora Lígia Trovão[3] (que assenta também no teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Ac. do STJ de 02/05/2024[4], e que, pela sua clareza e assertividade, passamos a transcrever:
“É dado assente no domínio da psicologia, que a criança vítima de maus tratos é tanto aquela a quem são diretamente infligidas ofensas físicas ou psíquicas, como a que é espectadora de situações de violência familiar.
A Prof. Teresa Magalhães([14]) sobre o tema ensina que, “a exposição de crianças a situações de violência doméstica repetida entre adultos da família, constitui uma forma de abuso emocional. Para além dos danos psicológicos, cria-se um risco acrescido da criança vir a sofrer lesões traumáticas ou doenças, de ter um mau desempenho e aproveitamento escolar, (…), bem como de perpetuar esta violência pela transmissão geracional da mesma. No caso de violência intrafamiliar, estão em jogo afetos intensos que são, por via do abuso, postos em causa”.
Celina Manita([15]), também defende que “o testemunho da violência conjugal pela criança, constitui uma forma de mau trato/abuso psicológico, entendido como um ataque concreto pelo adulto ao desenvolvimento do self e competência social da criança, uma amostra de um comportamento fisicamente destrutivo; uma das formas de mau trato emocional frequente em situações de violência conjugal consiste precisamente em expor a criança a modelos de papéis negativos e limitados, porque encorajam a rigidez, a autodestruição, os comportamentos violentos e antissociais”. Para esta Autora, o impacto da exposição à violência interparental nas crianças pode dar origem a sintomas comportamentais, emocionais e cognitivos, que descreve na obra citada.
Clara Sottomayor([16]) a respeito das crianças que testemunham episódios de violência de um progenitor sobre o outro e o fenómeno da vitimação indireta, defende que “a violência contra a mãe é uma forma de abuso psicológico das crianças. O facto de os filhos assistirem ou meramente se aperceberem da violência conjugal provoca nestes problemas comportamentais, psíquicos e físicos”.
Também para Sérgio Miguel José Correia([17]) “Uma forma particular de abuso emocional, é a exposição à violência interparental. A criança, nesta forma de maus-tratos, é indiretamente vitimizada ao testemunhar a violência ou o conflito conjugal que se desenrola na sua presença. Para o devido efeito não é imperativo que a criança assista diretamente às agressões entre os seus pais, bastando que ouça o evento ou constate as marcas que dele resultem. Nestas ocorrências, existe um elevado risco de vitimização direta da criança que intervenha perante o agressor numa eventual tentativa de colocar fim à hostilidade atestada”.
Na publicação da Ordem dos Psicólogos intitulada “Exposição das Crianças à Violência Interparental, Recomendações para Psicólogos”, pode ainda ler-se em “Alguns Mitos e Factos Relacionados com a Violência Interparental”: “Mito. Quanto mais nova for a criança, menos será afectada pela exposição à violência interparental. FACTO. As crianças pequenas não são imunes aos efeitos da violência. As crianças, mesmo as mais pequenas, são sempre profundamente afectadas, especialmente se os agentes de violência são membros da família “. MITO. As crianças esquecem a violência que testemunham. FACTO. As crianças demonstram uma notável capacidade de recordar eventos traumáticos e, mesmo que não recordem, as experiências traumáticas têm impacto no seu desenvolvimento. Relatos vívidos das crianças sobre eventos violentos contrastam com os relatos dos pais de que asseguram que os filhos não presenciaram ou não se aperceberam de situações violentas.(…).
(…)
Vários estudos demonstram que as crianças expostas à violência interparental apresentam problemas de internalização (e.g., ansiedade, depressão, medo) e de externalização (e.g., raiva, agressividade, fugas de casa) que afectam sua capacidade de empatia e de interpretação de situações sociais, o estabelecimento de relações interpessoais, a capacidade de resolução de problemas, a realização escolar e académica, o desenvolvimento de competências e a integração social. Por exemplo, segundo o Relatório conjunto Behind Closed Doors da UNICEF, Body Shop International e do Secretariado Geral das Nações Unidas (2006), as crianças expostas à violência interparental apresentam dificuldades na aprendizagem, competências sociais comprometidas, comportamentos de risco, depressão ou profunda ansiedade.
As crianças em idades precoces encontram-se especialmente vulneráveis: diversos estudos revelam que a violência interparental é mais prevalente em lares com crianças em idades mais precoces do que em lares com crianças e jovens de idades mais avançadas “. (…).
Resumindo, as crianças expostas à violência interparental têm maior probabilidade de: - Apresentar problemas de Saúde Psicológica, como medo e preocupação constantes, baixa auto-estima, stresse e ansiedade, tristeza e depressão, raiva e agressividade, comportamentos de risco – não só durante a infância e adolescência, mas também durante a idade adulta;(…) “.
De acordo com o art. 3º alínea b), da Convenção de Istambul, a «Violência doméstica» abrange todos os actos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou excônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima. E estipula na al. e) do mesmo art. 3º que “«Vítima» é qualquer pessoa singular que seja sujeita a tais comportamentos”.
(…)
Acresce que, no preâmbulo da Convenção de Istambul se refere “Reconhecendo que as crianças são vítimas de violência doméstica, designadamente como testemunhas de violência na família “.
Liliana Soares e Ana Sani([19]), referem que “No que concerne à variável idade, a literatura defende que o ajustamento da criança, independentemente da sua idade, pode ser afetado pela exposição à violência interparental e que a sintomatologia relacionada com o conflito difere em termos da fase desenvolvimental da criança (Cunningham & Baker, 2007; Jaffe, Wolfe, & Wilson 1990; Summers, 2006). Embora os bebés não compreendam o que se passa entre os adultos e não compreendam o conteúdo das discordâncias, eles ouvem o barulho, os gritos, as discussões e conseguem sentir a tensão (Cunningham & Baker, 2007). A sua sensibilidade está apurada e estes podem sentir-se angustiados, chateados ou com medo se não conseguirem ver as suas necessidades satisfeitas prontamente, inclusive podem sentir medo de explorar e brincar ou ainda sentir a angústia das suas mães (Cunningham & Baker, 2007). As crianças em idade pré-escolar tendem a manifestar maiores níveis de problemas emocionais e de comportamento imaturo (Holden, 1998), e devido à sua natureza egocêntrica podem sentir-se responsabilizados pela ocorrência do conflito (Cunningham & Baker, 2007). Estas crianças podem também exibir sintomas regressivos, como enurese, ansiedade de separação e diminuição de verbalização (Cunningham & Baker, 2007; Osofsky, 1995) experienciando, portanto, um maior impacto, comparativamente com as crianças mais velhas (Buehler et al., 1998). (…).
A intensidade do conflito parece ser um fator igualmente relevante, já que a exposição aos conflitos que envolvam agressão física parece ser mais perturbadora para a criança, quando comparadas com formas menos intensas de conflito, estando fortemente associada a problemas de comportamento nas crianças, traduzidas em manifestações de raiva, tristeza, preocupação, vergonha e culpa (Cummings & Davies, 1994).
(…)
Outras formas de vitimação da criança podem traduzir-se em desprezo, terror, ameaça, gritos, rejeição, isolamento, humilhação ou em situações em que o ofensor usa a criança para atingir a mãe (e.g., agressão ou ameaça a mãe quando a criança está ao colo dela). A violência psicológica a que a criança está sujeita, pode ser muito cruel, em alguns casos é sugerido pelo progenitor, que a criança assista aos maus tratos sobre a mãe. O ofensor utiliza muitas vezes esta estratégia como uma lição ou aviso à criança para esta se manter obediente (Jaffe et al., 1990).
(…)”
Sedimentando este entendimento encontramos o teor da subalínea iii) do nº 1 do art. 67º-A do CPP, que clarifica que “a criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano por acção ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica; “é uma vítima,ultrapassando-se assim qualquer dúvida no que toca ao facto da criança, «per se» ela própria lesada em bens jurídicos eminentemente pessoais pela mera exposição a tais contextos.
Revertendo ao caso em análise, e perante a factualidade acima evidenciada, temos, para nós, como indiscutível que, no caso da menor CC, a qual assiste a episódios de violência entre os seus dois progenitores, perpetrada no interior da casa de morada de família, é também ela vítima, tendo sido correta a opção do juiz a quo em imputar ao arguido a prática do crime de violência doméstica na pessoa daquela menor sob a égide do artigo 152º, n.º 1, al. d) e e) e 2 do Código Penal.
No seguimento da impugnação da matéria de facto apresentada pelo recorrente,cuja apreciação foi rejeitada nos termos já acima exposto, vem o mesmo pugnar pela convolação do crime de violência doméstico p. e p. pelo art.º152 n. º1 b) e n.º 2 do C.- Penal para um crime de injúrias previsto e punido pelo artigo 181º, nº 1 e um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo 143º, nº 1, ambos do Código Penal.
Na perspectiva daquele, na medida em que, a seu ver, “…não se encontra demonstrado nos autos, que as agressões físicas e as expressões utilizadas pelo arguido constituam o conceito de maus-tratos, no sentido apontado pelo citado artigo 152º do CP, a factualidade apurada não evidencia, à luz da experiência comum, a existência de maus-tratos infligidos pelo arguido à ofendida: que aquele, ao insultar e agredir esta, tenha agido com humilhação, desprezo ou especial desconsideração da mulher(…) Os atos praticados pelo arguido não revelam, ao nível do desvalor da ação e resultado, uma intensidade tal que seja suficiente para lesar o bem jurídico, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana…. Desaparece, assim, o elemento especial e caracterizador do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º do Código Penal em relação aos crimes de injúrias ofensa à integridade física…Não restam, assim dúvidas que o recorrente não praticou os crimes de violência doméstica em que foi condenado.(…)”
Vejamos.
A pretensão do recorrente assente, à partida, na suposição de que a matéria de facto dada por assente pelo tribunal a quo tenha sido alterada mercê da impugnação que faz da mesma, o que, como já o salientamos, não ocorreu.
Na verdade, atenta a rejeição do recurso nos termos supra determinados, a matéria de facto provada e não provada encontra-se definitivamente assente nos exactos moldes delineados pelo juiz a quo.
E tal matéria de facto foi correctamente apreciada e qualificada juridicamente pelo tribunal recorrido, como veremos.
O art. 152º do Código Penal (redacção dada pela Lei n.º 15/2024, de 29/01) é a seguinte:
Artigo152.º Violência doméstica |
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. 3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos; b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos. |
Cumpre analisar, ainda que sucintamente, o tipo legal em causa e da sua inserção sistemática[5].
Com a redacção do supratranscrito preceito legal o nosso legislador respondeu à necessidade que se fazia sentir de punir penalmente os casos mais gritantes de maus tratos a cônjuge ou pessoa em relação equiparada, resposta esta à consciencialização ético-social crescente da gravidade individual destes comportamentos, relativos aos maus tratos (de menores, de incapazes e subordinados e do companheiro/namorado/cônjuge) e da sobrecarga (de menores, incapazes e subordinados).
Diz Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, T. I, Coimbra Editora, pág. 330, que esta criminalização “ (...) foi o resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos e de que a família, a escola e a fábrica não mais podiam constituir feudos sagrados, onde o Direito Penal se tinha de abster de intervir (...)”.
No que se refere à inserção sistemática do artigo 152º da C.P., este insere-se no Título I, dedicado aos “crimes contra as pessoas” e dentro deste, no capítulo III, sob a epígrafe de “crimes contra a integridade física”, sendo a ratio do mesmo, a protecção individual e a dignidade da pessoa humana, incluindo não só, os maus tratos físicos, mas também maus tratos psíquicos.
«Quanto à conduta em causa, continua a exigir-se que sejam infligidos a outra pessoa maus-tratos físicos ou psíquicos.
Trata-se de um crime de execução não vinculada, podendo os maus-tratos físicos ou psíquicos consistir, como se disse, nas mais variadas acções ou omissões, com ênfase para os maus-tratos físicos (as ofensas corporais simples) e os maus-tratos psíquicos (ameaças, provocações, molestações, injúrias). Por isso que nesses casos tem-se entendido que ocorre uma relação de concurso aparente de normas com outros tipos penais, designadamente as ofensas corporais simples (artigo 143.º, nº 1 do Código Penal), as injúrias (artigo 181.º), a difamação (artigo 180.º, nº 1), a coacção (artigo 154.º), o sequestro simples (artigo 158.º, nº 1), a devassa da vida privada [artigo 192.º, nº 1. al. b)], as gravações e fotografias ilícitas [artigo 199.º, nº 2, al b)] – acórdão Tribunal da Relação de Évora de 8-01-2013 (dgsi) – as ameaças simples ou agravadas.[6]
Donde se conclui que a ratio do tipo não reside na protecção da família, da comunidade familiar ou conjugal, mas na protecção da pessoa individual enquanto enquadrada na família, da pessoa que integra a comunidade familiar ou conjugal, na tutela da integridade humana. A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção inevitavelmente comporta e também, claro está, com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna o que se traduz numa multiplicidade de sujeitos passivos inseridos nesse contacto.[7]
No que concerne ao tipo subjectivo, o normativo em apreço prevê um tipo doloso, exigindo-se o dolo genérico, em qualquer uma das suas modalidades previstas no art. 14º do C. Penal.»
Logo, este tipo legal abrange uma globalidade de bens jurídicos pelo que estamos perante um “bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda uma multiplicidade de comportamentos que (...) afectem a dignidade pessoal do cônjuge (...)”. (Ob citada supra). Subjacente ao crime de violência doméstica está, pois, um tratamento degradante ou humilhante que elimine ou limite claramente a condição e a dignidade humanas da vítima (neste sentido Ac. da RP de 29/02/2012, in www.dgsi.pt).
O tipo legal de crime de violência doméstica visa proteger a pessoa individual e a sua dignidade humana. O seu âmbito punitivo abarca os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a referida dignidade. O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a saúde, entendida esta enquanto saúde física, psíquica e mental e, por conseguinte, podendo ser afectada por uma diversidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa e/ou afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge.” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 06-02-2013, in: www.dgsi.pt)
O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física psíquica e mental e a dignidade da pessoa humana em contexto de relação conjugal ou análoga e mesmo após cessar essa relação. Não exigindo o tipo legal uma reiteração de acções, um único acto ofensivo só consubstanciará “maus tratos” se se revelar de tal modo intenso que ao nível do desvalor (quer da acção quer do resultado) seja apto a lesar em grau elevado o bem jurídico pondo em causa a dignidade da pessoa humana.” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 10-09-2014, in: www.dgsi.pt).
Estamos perante um crime próprio ou específico, isto é, um delito que só pode ser levado a cabo por determinadas de pessoas, cuja conduta está adstrita a um conjunto de deveres, a saber, dever de solidariedade conjugal, dever de solidariedade social, os quais a consciência comunitária actual com eco no pensamento do legislador leva a considerar também dever existir nas relações de intimidade como a de namoro, de união de facto, equiparando a lei estas situações às do contrato de casamento. Consequentemente, do lado passivo deste crime terá de figurar a pessoa que seja parte dessa mesma relação.
Para a verificação do elemento subjectivo, basta a constatação do dolo em qualquer das suas modalidades (cf. art.º 14 do C.P.), não sendo exigível, ao contrário do que se verificava na versão originária do C. Penal, a verificação de um dolo específico, que se materializava na motivação por malvadez ou egoísmo.
Ora, no caso sub judice, e no que se reporta à ofendida BB, atenta a factualidade dada como provada, importa concluir, sem qualquer dúvida, que os factos aí descritos denotam desde logo a existência de uma relação análoga à dos cônjuges no período referenciado na decisão recorrida.
Por outro lado, dúvidas não existem quanto ao facto das circunstâncias terem sido presenciadas pela menor CC e ocorreram também no domicilio comum.
O tipo de crime violência doméstica tem como elementos constitutivos do respectivo tipo:
- [Tipo objectivo] – a inflicção de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou ao ex-cônjuge;
- [Tipo subjectivo] – o dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade.
O crime previsto no artigo 152.º do Código Penal é um crime de resultado quanto ao objeto da ação, uma vez que a consumação do crime pressupõe que haja uma alteração do mundo físico ou emocional, um evento material, distinto da conduta. Trata-se de um crime específico impróprio uma vez que a qualidade do agente ou o dever que sobre ele impende agravam a ilicitude do facto. O agente tem uma forte relação de proximidade com a vítima em virtude do vínculo familiar, parental ou de dependência. Ao aproveitar-se dessa relação o agente maltrata a vítima, física ou psicologicamente, afeta a sua integridade física ou moral/psicológica, justificando-se assim a agravação da ilicitude do facto e a consequente autonomização do crime.
Note-se que a «uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, foi apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana» (cfr. «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal», Revista do CEJ, nº 8 (especial), 1º semestre de 2008, p. 304 a 308).
Para André Lamas Leite, «o fundamento último das acções abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo» (in «A violência relacional íntima», Julgar, nº 12 (especial), novembro de 2010, p. 49).
Para que haja preenchimento do tipo previsto no artigo 152.º n.º1 als.b) e n.º 2 al.a) do Código Penal é necessário que o sujeito passivo apresente uma relação de proximidade (familiar, parental ou de dependência) com a vítima com a qual coabita ou não, e que com a sua conduta, reiterada ou única, lhe inflija maus-tratos físicos ou psicológicos e que atue com dolo.
O artigo procede a uma enumeração exemplificativa das condutas que preenchem o tipo. O tipo objetivo inclui todas as condutas de violência física, psicológica, verbal ou sexual que não sejam punidas com pena mais grave por força de outra disposição[8]legal. A violência física engloba todas as condutas que sejam praticadas, com recurso à força, com o objetivo de causar dano físico à vítima e correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples. As ofensas à integridade física grave são puníveis pelo próprio tipo. A violência emocional, psicológica e verbal pode assumir várias formas, tais como insultar, menosprezar, criticar, humilhar, criticar negativamente ações, características de personalidade e atributos físicos, ameaçar e intimidar. A violência sexual consiste na prática de atos sexuais contra a vontade da vítima, seja na forma de violação, importunação ou abuso, e mais uma vez, desde que a conduta não seja mais gravemente punida por outra disposição legal
Sublinhe-se ainda que para que se verifique o crime em questão não é necessário que se tenham produzido efetivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima; basta que se pratiquem atos em abstrato suscetíveis de provocar tais danos.
Certo é que as condutas do arguido, provocaram dano na saúde física assim como perigo para a saúde psíquica e emocional da ofendida e, também pelo que representa de vontade de subjugação, atingiu a sua dignidade de pessoa, a qual receou pelo seu bem-estar.
O arguido actuou com consciência da ilicitude, pois sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Não se verifica qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Ora, face ao acima exposto, dúvidas não se apresentam a este colectivo de juízes que a factualidade provada configura, no que aos elementos objetivos e subjectivo do tipo legal importa observar, a prática de maus tratos psíquicos e físicos infligidos a BB e, portanto, que o arguido é, efectivamente, autor de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1 b) e n.º2 a), do Código Penal.
Do exposto decorre a improcedência deste segmento do recurso.
Revolta-se a ora recorrente contra a decisão tomada em primeira instância no que concerne à não condenação do arguido na pena acessória de inibição das responsabilidades parentais tal como o prevê o art.º 152 n. º6 do C. Penal.
Reza este preceito que “6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos.”
Importa não esquecer que estamos perante uma limitação relevante a um principio constitucional cujo alcance importa apreciar dadas as implicações e consequências que a inibição de um direito parental acarreta.
Reza o artigo 36 da Constituição da República Portuguesa:
“Família, casamento e filiação
1. Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade.
2. A lei regula os requisitos e os efeitos do casamento e da sua dissolução, por morte ou divórcio, independentemente da forma de celebração.
3. Os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos.
4. Os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objeto de qualquer discriminação e a lei ou as repartições oficiais não podem usar designações discriminatórias relativas à filiação.
5. Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos.
6. Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.
7. A adoção é regulada e protegida nos termos da lei, a qual deve estabelecer formas céleres para a respetiva tramitação.
Somos então direccionados para o n.º 6 do mesmo preceito, que refere que “Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial”, estabelecendo, assim, o princípio da unidade familiar.
Este é um direito subjetivo dos pais e, correspondentemente, um direito dos filhos à não privação do contacto e da convivência entre ambos. Esta garantia constitucional explica-se pelo facto de serem os pais aqueles que terão um papel essencial e, em princípio, insubstituível na condução da vida dos seus filhos. Este direito e dever dos pais encontra ainda concretização constitucional nos arts. 67º al. c) e 68º da CRP, nos quais também se materializa uma vinculação positiva do Estado de auxílio na sua realização. O primeiro dos preceitos prevê deveres de agir por parte do Estado, nomeadamente de proteção da família enquanto instituição constitucionalmente reconhecida. Por isso, deverá o legislador ordinário adotar as políticas públicas que entender adequadas para alcançar esse fim. Para o efeito, o n. º 2 indica de forma exemplificativa algumas ações que o Estado poderá tomar, tendo para este ponto especial relevância a al. c).
Não obstante este direito ser um verdadeiro direito fundamental dos pais, a 2.ª parte do art. 36º n.º 6 demonstra que o nosso texto constitucional não proíbe que os pais sejam impossibilitados de o exercer.
Note-se, no entanto, que este afastamento apenas pode ser ditado em situações limite e sempre sob reserva de lei, exigindo ainda o preceito que haja decisão judicial prévia. Daqui resulta que a separação dos filhos dos seus pais é uma medida de ultima ratio, exigindo-se por isso que seja submetida a um crivo de proporcionalidade, só podendo ser imposta quando o superior interesse da criança o exija, o que se compreende, dado que estamos perante uma medida particularmente gravosa, porque restritiva de direitos fundamentais.
As responsabilidades parentais consistem no conjunto de situações jurídicas que, geralmente, emergem do vínculo de filiação, incumbindo aos pais o seu exercício, de modo a assegurar-se a proteção e promoção do desenvolvimento integral do filho menor não emancipado- Art. 1877º do CC.
Nos termos do art. 36º, n.º 6, 2.ª parte da CRP, o titular das responsabilidades parentais pode ser alvo de restrições quanto ao exercício das mesmas ou ser judicialmente privado do seu exercício sempre que esteja em causa o incumprimento, culposo ou objetivo, de deveres fundamentais para com os filhos.
A inibição do exercício das responsabilidades parentais afeta, tal como a sua limitação, o exercício das mesmas pelos progenitores, mas não exclui a titularidade das mesmas por parte daqueles (vd. C.P.C. Abilio Neto, 2013, p. 1526).
A inibição judicial será, de acordo com o fundamento do tribunal, total ou parcial, consoante abranja a generalidade das situações contidas nas responsabilidades parentais ou somente a representação e administração dos bens do filho. Pode referir-se a um ou ambos os pais e, ainda, a um só filho ou a mais do que um. Esta inibição pode ser requerida pelo MP, por qualquer parente do menor ou por pessoa a cuja guarda ele esteja confiado, de facto ou de direito, com fundamento em causas subjetivas e objetivas. Como causas subjetivas podem assinalar-se a infração culposa dos deveres dos progenitores com grave prejuízo para os seus filhos e, como causas objetivas, enumeram-se a inexperiência, enfermidade, ausência ou outra razão que demonstre que o progenitor não se encontra em condições de cumprir os deveres que lhe incumbem enquanto tal. Esta inibição cessará quando terminem as causas que lhe deram origem ou a pedido - Art.s 1915º e 1916º, nºs 1 e 2 do CC.
No quadro das causas objectivas encontramos a prevista no n. º6 do art. º152 do C. Penal.
Deparamo-nos assim com o instituto da inibição das responsabilidades parentais no quadro das penas acessórias, revestindo a mesma, nesses casos, natureza penal.
Surgem como medidas que reforçam a eficácia da decisão penal, no seu todo, no que se reporta às garantias de prevenção geral e especial que urge acautelar.
Note-se, porém que, no quadro do crime de violência doméstica, ao contrário do que ocorre perante a prática de crimes sexuais contra menores, esta pena acessória não é automática. de acordo com o referenciado n. º6 do art. º152 do C. Penal, o juiz, por um lado, atender à gravidade do facto praticado pelo agente tendo em conta o princípio da culpa e necessidades de prevenção e, por outro lado, ponderar a conexão existente entre o efeito de privação do direito em causa e o facto criminoso praticado[9].
Em matéria de interdição do exercício das responsabilidades parentais a decisão do Tribunal deve ser sempre norteada pelo interesse do menor, atendendo às circunstâncias concretas do momento em que é proferida. Tal interesse passa necessariamente pela garantia de condições materiais, sociais, morais e psicológicas que possibilitem à criança/jovem um desenvolvimento afectivo integral, estável e harmonioso.
No caso em apreço, considerando o contexto em que os factos ocorreram e a sua gravidade, concordamos com a decisão do tribunal recorrido de não aplicar a pena acessória de inibição das responsabilidades parentais.
Vejamos porque:
Desde logo, porque na determinação de tal pena acessória é fulcral que a mesma não venha causar mais danos ao menor do que vantagens. É ao superior interesse da criança, em contraposição a outras razões de prevenção geral ou especial, que o julgador deve atender.
No caso em apreço, ponderadas as circunstâncias concretas, nomeadamente, a idade do menor (18 meses), os especificas condutas perpetradas pelo arguido (que não abrangem atos direccionados especificamente contra o menor), o período de tempo durante o qual foi mantida a conduta), não podemos retirar a conclusão de que o comportamento do arguido, ainda que grave, reclame a sua inibição do exercício dos seus deveres e direitos parentais, entendendo-se antes que tal pena acessória, no caso em apreço, acarreta mais danos do que vantagens ao desenvolvimento harmonioso do menor, o qual ainda de tenra idade. Estamos antes em crer que a presença da figura masculina no quadro da parentalidade, no caso concreto, é essencial para o desenvolvimento emocional do menor, a exercer nos moldes em que o tribunal de família e menores o considerar mais adequado, não sendo necessária, nesta fase, intervir em termos penais, sendo do conhecimento geral que a existência de uma condenação criminal no quadro de relacionamento pai-filho, é, por si só, já uma mancha estigmatizante na relação daqueles, sendo, no caso concreto, precipitada, a opção pelo instituto da inibição das responsabilidades parentais.
Concordamos, pois, com a decisão recorrida, razão pela qual improcede também este segmento do recurso.
Pelo exposto, acordam as/os Juízes na 1ª Secção Criminal da Relação do Porto em:
a) Rejeitar o recurso interposto pelo arguido AA no que concerne à impugnação da matéria de facto por força do preceituado no art.º420 e 417, n. º6 b) do C.P.Penal.
b) Julgar não provido e improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.
c) Julgar não provido e improcedente o recurso interposto pela Assistente BB, por si e em representação da sua filha menor CC.
d) Confirmar, no mais, a decisão recorrida.
Assim, e dada a tramitação processual ocorrida, fixa-se a taxa de justiça devida em 3 (três) Unidades de Conta, nos termos do disposto no artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais.
As custas da responsabilidade da assistente, atenta a natureza da causa recursória fixam-se em 2 Ucs – art. º515 n. º1 b) do C.P.Penal.
Comunique, de imediato, à primeira instância.
Elaborado e revisto - 94. º n. º2 do C.P.P.
Porto, 10/9/2025,
data e assinaturas electrónicas no topo do documento.
Maria Ângela Reguengo da Luz
Pedro M. Menezes
Amélia Carolina Teixeira
_______________________________
[1] acórdão do TRP de 17.09.2003, relatado por Fernando Monterroso (disponível in www.dgsi.pt) “O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no artigo 127º do CPP. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, ed. 1974, pág. 204).
Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema da prova legal” (…) – Anotado, Vol. IV, págs. 566 e ss.”
[2] relatado por Jorge Gonçalves e acessível in www.dgsi.pt;
[3] disponível in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/;
[4] https://www.dgsi.pt/
[5] Como é referido no acórdão deste Supremo Tribunal de 07-02-2018, proferido no processo n.º 312/15.9POLSB.S1- 3.ª Secção[10]: «O crime de violência doméstica é um caso paradigmático de neocriminalização fundamentada, revelando a preocupação do legislador em recorrer à via repressiva para erradicar tanto quanto possível esta forma de violência, muito disseminada na sociedade, onde ainda persistem resquícios de uma mentalidade patriarcal hoje completamente anacrónica, sendo embora certo que o fenómeno é transversal a toda a sociedade, e não específico de certos estratos sociais, que geralmente incide sobre as mulheres, e que até há pouco tempo não merecia uma censura social correspondente à sua danosidade e à sua reprovabilidade. Este tipo de violência é com efeito de enorme gravidade: praticada geralmente na sombra do lar, sem testemunhas, dirigida contra pessoas indefesas, quer pela fragilidade física, quer pela idade (menoridade ou idade avançada), quer pela “hierarquia” de posições (no caso de o ofendido ser filho), quer pela relação de domínio psíquico que o agressor consegue, pela violência ou pela astúcia, estabelecer sobre a vítima, acabando na grande maioria das vezes por reduzi-la a um ser sem vontade própria, sem capacidade de afirmação pessoal, muito menos de reacção perante qualquer agressão, inclusivamente sem capacidade de denúncia junto das autoridades, ou mesmo de familiares ou confidentes, das violências sofridas.»
[6] Catarina Sá Gomes, “O crime de maus tratos físicos e psíquicos infligido ao cônjuge ou a convivente em condições análogas às do cônjuges, pág. 59, AAFDL, 2002.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de 02-07-2008, proferido no processo n.º 07P3861.
[8] (FERREIRA 2016, 184-188) 21 (ALBUQUERQUE 2015, 597) 22 (TAIPA DE CARVALHO 2012, 515)
[9] Ac. do TC 442/93, proc. n.º 108/93.;