DECISÃO SINGULAR
RECLAMAÇÃO
Sumário


No caso de recurso para a Relação, a matéria de qualquer recurso intercalar que não caiba na previsão da exceção da parte final da al.ª c) do n.º 1 artigo 400.º, fica definitivamente julgada pelo acórdão proferido em recurso, obtendo, assim, decisão definitiva no grau de recurso constitucionalmente imposto e legalmente admissível.

Texto Integral

Reclamação - artigo 405.º do CPP


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I - Relatório:

No processo n.º 1581/24.9JABRG, o tribunal de 1.ª instância, julgando indiciado o arguido AA pela prática dos seguintes crimes:

- um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 21.º, n.º 1 e 24.º, alíneas b), c) e f), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro;

- um crime de associação criminosa, p. e p. pelo artigo 28.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de Janeiro;

- um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, n.º 1, alínea c) da Lei 5/2006, de 23/2 (RJAM), -------

aplicou-lhe, em primeiro interrogatório judicial de detido, a medida coativa de prisão preventiva.

Decisão judicial que o Tribunal da Relação de Guimarães, em recurso interposto pelo arguido, confirmou por acórdão de 14 de janeiro de 2025.

O arguido AA requereu também providência de habeas corpus que o Supremo Tribunal de Justiça, julgando-a manifestamente infundada, indeferiu por acórdão de 19 de março de 2025.

O Ministério Público, titular do inquérito, requereu ao tribunal de 1.ª instância que declarasse a especial complexidade do processo.

O Juiz de Instrução concedeu ao arguido o prazo de 5 dias para exercer o contraditório.

O arguido, aqui reclamante, ademais de arguir a irregularidade daquele despacho na parte em que fixou prazo inferior a 10 dias para o contraditório, pugnou pela não declaração da especial complexidade do processo.

O tribunal indeferiu a irregularidade arguida e decidiu declarar “os presentes autos de excepcional complexidade, nos termos do artigo 215.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal”.

O arguido AA, não se conformando com esse despacho, interpôs recurso para a 2.ª instância visando as questões seguintes:

- Irregularidade, nos termos do disposto no artigo 118º, n.ºs 1 e 2 do CPP, do

despacho que concede aos arguidos um prazo inferior ao legalmente estabelecido de 10 dias, por violação do disposto nos artigos 105º, n.º 1, e 215º, nº 4, do CPP

- Declaração de excecional complexidade do presente processo.

Recurso que o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 11 de junho de 2025, julgou não provido, mantendo na integra o despacho recorrido.

Inconformado, o arguido AA interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Recurso que não foi admitido por despacho de 4 de julho de 2025, com fundamento nos artigos 432º e 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, uma vez que o acórdão recorrido, proferido em recurso, não conheceu a final do objeto do processo, nem “se reporta ao estatuto processual do arguido e à medida de coação que lhe havia sido aplicada em alteração daquele estatuto”.

O recorrente apresentou longa reclamação do despacho que não admitiu o recurso, dirigida ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, alegando, em síntese, que não se verifica dupla conforme porque o acórdão recorrido “foi o primeiro a conhecer (…) expressamente afirmado a inexistência de qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade, com argumentação própria e nova, que não se encontra, de todo, presente na decisão do tribunal a quo”, “divergência material e substancial de fundamentos [que] afasta liminarmente a verificação da dupla conforme, dado que a Relação apreciou de modo autónomo, e pela primeira vez, matérias de inconstitucionalidade, princípios constitucionais processuais e extensão da prisão preventiva.

Arguiu a nulidade do despacho reclamado alegando que “mesmo que se entendesse que o despacho de não admissão fosse admissível por via do artigo 400.º, n.º 1, al. f), sempre teria de ser revogado por falta de fundamentação bastante, com reenvio do processo ao tribunal recorrido para emissão de novo despacho, devidamente fundamentado.

Rematando: “a decisão ora reclamada não cumpre os requisitos mínimos do acto jurisdicional válido, sendo, na forma como foi proferida, lesiva do direito ao recurso, do dever de fundamentação e do princípio do processo equitativo, numa tríplice violação do disposto nos artigos 20.º, 32.º e 205.º da Constituição da República”.

Deduz a inconstitucionalidade: -----

“- da interpretação do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal no sentido de que obsta à admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, mesmo quando este tem por objecto questões de constitucionalidade das normas aplicadas pela Relação, não conhecidas pela primeira instância;

– Interpretação e aplicação conjugada dos artigos 213.º, n.º 2, 215.º, n.º 4 e 104.º, n.º 1, alínea c), todos do CPP, no sentido de permitir a compressão do prazo de contraditório do arguido para 5 dias úteis sem fundamentação concreta e sem contraditório prévio efectivo, com a automática prorrogação da prisão preventiva.

Alegando que “Tal interpretação e aplicação violam frontalmente os artigos 2.º, 18.º, 20.º, 27.º, 32.º e 205.º da Constituição da República Portuguesa, bem como o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (…)”.


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O despacho reclamado foi mantido.

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Cumpre decidir:

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II - Fundamentação:

1. Face ao teor da reclamação apresentada impõe-se esclarecer que no âmbito da apreciação da reclamação contra despacho que não admite o recurso, nos termos do artigo 405.º do CPP, a competência do Presidente do Supremo Tribunal, limita-se à sindicância da decisão de não admissão ou retenção do recurso. Daí que, por estranhas aos seus poderes de cognição, não possa tomar conhecimento de quaisquer outras questões que venham invocadas na reclamação.

Tais questões são já de conhecimento do recurso e autónomas da questão da admissibilidade, que apenas tem por referência os critérios objetivos sobre a pena concretamente aplicada.

Os poderes para decidir a pertinência e os limites do objeto do recurso, são questões que

não tem que ver com a admissibilidade em si mesma, mas já com o juízo a proferir nos poderes de cognição do tribunal ad quem.

Por outro lado, a reclamação consagrada no artigo 405.º do CPP não é uma via processual que permita submeter a reexame, pelo Presidente do Tribunal Superior, a regularidade dos despachos do tribunal da instância reclamada, como vem pretendido.

Como está expressamente consagrado no Código de Processo Penal – art.º 379.º n.º 2 -, as nulidades que os sujeitos processuais queiram imputar aos acórdãos, sentenças e despachos de um tribunal que não admite recurso têm de arguir-se perante o próprio tribunal que proferiu a decisão visada. E se admitir recurso terá de ser o tribunal ad quem a delas conhecer e decidir. Não tem cabimento legal a arguição de nulidades no âmbito da reclamação prevista no artigo 405.º do CPP.

Resulta do exposto que aqui apenas está em causa apreciar e decidir se o despacho de 4 de julho de 2025 que não admitiu o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça deve ser confirmado ou se deve determinar-se a sua substituição por outro que admitisse o recurso.

Posto isto, ---------

2. A recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões penais está prevista, específica e autonomamente, no artigo 432.º do CPP, dispondo a alínea b) do n.º 1 que se recorre “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.

Preceito este de que se destaca a alínea c) do seu n.º 1 que estabelece serem irrecorríveis os “acórdãos proferidos, em recurso pelas Relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º”.

No caso, não se verifica a exceção prevista na parte final do preceito transcrito.

O acórdão da Relação que julgou improcedente o recurso interposto do despacho interlocutório proferido em 1.ª instância, não cabe na previsão da referida norma.

Com efeito, o acórdão recorrido, ao manter o despacho da 1.ª instância, que indeferiu a arguição de nulidade e declarou a especial complexidade do processo não conheceu e muito menos a final, do objeto do processo.

Efetivamente, o objeto do processo penal é delimitado pela acusação ou pela pronúncia e constitui a definição dos termos em que vai ser julgado e decidido o mérito da causa – ou seja, os termos em que, para garantia de defesa, possa ser discutida a questão da culpa e, eventualmente, da pena.

No caso de recurso para a Relação, a matéria do recurso intercalar que não caiba na previsão da exceção da parte final da al.ª c) do n.º 1 artigo 400.º, fica definitivamente julgada pelo acórdão proferido em recurso, obtendo, assim, decisão definitiva no grau de recurso constitucionalmente imposto e legalmente admissível.

ou seja, obtêm decisão definitiva no grau admissível - que constitui a regra geral do artigo 427.º, em conjugação com o artigo 399.º, ambos do CPP.

Assim sendo, o recurso não é admissível em mais um grau. O acórdão da Relação não admite recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, conforme estatui o disposto nos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea c), ambos do CPP.

3. O arguido ampara a reclamação ficcionando que a não admissão do seu recurso se fundou na existência de dupla conforme.

Mas não é assim.

Como se notou, o despacho reclamado decidiu não admitir o recurso com fundamento na norma que se extrai da leitura conjugada do disposto nos artigos 432.º n.º 1 al.ª b) e 400.º n.º 1 al.ª c), ambos do CPP.

4. Por não ter sido aplicada a norma do art.º 400.º n.º 1, al.ª f), do Código de Processo Penal, nem no despacho reclamado, nem nesta decisão, não se conhece da inconstitucionalidade que o reclamante lhe imputa.

Recordando-se que a norma que serviu de ratio decidendi para não admitir o recurso foi a que resulta da leitura conjugada, legalmente imposta, do disposto na al.ª b) do n.º 1 do artigo 432.º e na alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP

5. Pelas mesmas razões também não se conhece inconstitucionalidade que o reclamante atribui às normas artigos 213.º, n.º 2, 215.º, n.º 4 e 104.º, n.º 1, alínea c), todos do CPP, realçando-se que o objeto do recurso se cingia à questão da regularidade do encurtamento do prazo do contraditório relativamente a promoção do Ministério Público acima indicada e a questão da declaração da especial complexidade do processo.


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III - Decisão:

6. Pelo exposto, indefere-se a reclamação deduzida pelo arguido AA.

Custas pelo reclamante fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.

Notifique-se.


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Lisboa, 23 de agosto de 2025

O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Nuno Gonçalves