I. Na reclamação contra despacho que não admite o recurso, nos termos do artigo 405.º do CPP, a competência do Presidente do Supremo Tribunal, limita-se à apreciação da decisão de não admissão ou retenção do recurso, não podendo conhecer de quaisquer outras questões invocadas.
II. Em processo penal inexiste triplo grau de jurisdição em matéria de facto.
III. O Supremo Tribunal de Justiça, em recurso em 2.º grau, conhece exclusivamente de matéria de direito – art. 434.º do CPP.
IV. Não é admissível revista excecional em processo penal, pelo menos em matéria criminal.
V. O regime dos recursos em processo penal é próprio, completo e independente do processo civil.
VI. “não existe qualquer arbitrariedade, irrazoabilidade ou desproporção na solução legal patente no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, visando este a otimização do sistema penal e a concretização do interesse público na correta administração da justiça, sendo a previsão de um regime único, assente no critério unívoco da gravidade dos crimes refletido na medida da pena, uma forma de evitar a morosidade processual inerente ao iter recursório” - Decisão Sumária n.º 278/2025, do Tribunal Constitucional.
Reclamação – artigo 405.º do CPP
I - Relatório
O arguido AA foi julgado e, por acórdão do tribunal de 1.ª instância, condenado pela prática, em concurso efetivo dos crimes seguintes: --
i. - um crime de associação criminosa, p. e p. pelo artigo 299°, n° 2 do Código Penal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão.
ii. - um crime de recetação, p. e p. pelo artigo 231°, n.° 1 do Código Penal, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão.
iii. - um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86°, n° 1, al.ªs c) e e) da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro; na pena de 1 ano e 3 meses de prisão.
E, em cúmulo jurídico dessas penas parcelares, foi condenado na pena única de 4 anos de prisão.
Foi ainda condenado na pena acessória de proibição de exercício da atividade ou de prestação de trabalho independente ou subordinado, de comércio de metais preciosos, p. e p. pelo artigo 92.°.1 da Lei n° 98/2015, de 18 de agosto, pelo período de 5 anos.
Foi também sancionado pela prática das seguintes contraordenações: -----
iv) - uma contraordenação muito grave ao disposto no artigo 66°, n° 5 da Lei n° 98/2015, de 18 de agosto, punível nos termos do n° 9 daquele artigo, na coima de €2.000,00 (dois mil euros).
v. - uma contraordenação grave ao disposto no artigo 67°, n°s 1 e 2 da indicada Lei n° 98/2015, punível nos termos do n° 4 daquele artigo; na coima de €650,00 (seiscentos e cinquenta euros).
E, em cúmulo jurídico destas coimas, foi condenado na coima única de €2.100,00 (dois mil e cem euros).
O arguido, não se conformando, recorreu para a 2.ª instância.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 26 de junho de 2025, julgando “totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA” confirmou, quanto ao mesmo, o acórdão recorrido.
Renitente, o arguido AA apresentou requerimento de interposição de recurso em 2.º grau, para o Supremo Tribunal de Justiça.
Recurso que não foi admitido por despacho de 22 de julho de 2025, com fundamento no disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP.
O arguido apresentou reclamação do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 405.º do CPP, invocando, em síntese, que o recurso se fundamenta em: -----
- “vícios da decisão proferida pelo Tribunal da Relação que se prendem com o não uso ou uso deficiente dos poderes-deveres de reapreciação da decisão da matéria de facto impugnada”;
- “estarem em causa questões cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, e ainda interesses de particular relevância social”.
E deduz a inconstitucionalidade do disposto na alínea f) do n.º 1 do artº 400º do CPP. se interpretado com o sentido de não admitir recurso do acórdão condenatório proferido, em recurso, pela Relação que confirma decisão da 1ª instância e aplica pena de prisão não superior a 8 anos: ----
- “quando tendo havido impugnação da matéria de facto, se considera que a Relação não cumpriu os deveres que lhe são impostos na apreciação dessa impugnação”;
- “quando estejam em causa questões cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, e interesses de particular relevância social.”
por violação dos direitos ao recurso “consagrado no art.º 32.º” e do “direito a uma tutela jurisdicional efetiva (…) previsto no art.º 20.º” ambos da CRP.
1. Face ao teor da reclamação apresentada impõe-se esclarecer que no âmbito da apreciação da reclamação contra despacho que não admite o recurso, nos termos do artigo 405.º do CPP, a competência do Presidente do Supremo Tribunal, limita-se à sindicância da decisão de não admissão ou retenção do recurso. Daí que, por estranhas aos seus poderes de cognição, não possa tomar conhecimento de quaisquer outras questões que venham invocadas na reclamação.
Tais questões são já de conhecimento do recurso e autónomas da questão da admissibilidade, que apenas tem por referência os critérios objetivos sobre a pena concretamente aplicada.
Os poderes para decidir a pertinência e os limites do objeto do recurso, são questões que
não tem que ver com a admissibilidade em si mesma, mas já com o juízo a proferir nos poderes de cognição do tribunal ad quem.
Por outro lado, a reclamação consagrada no artigo 405.º do CPP não é uma via processual que permita submeter a reexame, pelo Presidente do Tribunal Superior, a regularidade das decisões do tribunal da instância reclamada.
Resulta do exposto que aqui apenas está em causa apreciar e decidir se o despacho de 22 de julho de 2025 que não admitiu o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça deve ser confirmado ou se deve determinar-se a sua substituição por outro que admitisse o recurso.
Posto isto, ---------
2. O critério de admissibilidade do recurso para o STJ reporta-se à pena concretamente aplicada, ou seja, a pena em que o arguido foi condenado na decisão recorrida.
A recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões penais está prevista, específica e autonomamente, no artigo 432.º do CPP, dispondo a alínea b) do n.º 1 que se recorre “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.
Preceito este de que se destaca a alínea f) do n.º 1 que estabelece serem irrecorríveis “os acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de primeira instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.
No caso, o acórdão da Relação, julgando totalmente improcedente o recurso do arguido aqui reclamante, confirmou integralmente, no que ao mesmo respeito, o acórdão condenatório da 1.ª instância.
Havendo dupla conformidade, como resulta diretamente das normas adjetivas citadas, o acórdão da Relação, tirado em recurso, só admite recurso ordinário para o STJ se tiver sido aplicada ao recorrente, pena superior a 8 anos.
Não sendo esse o caso dos autos, resulta não ser recorrível em mais um grau, o acórdão confirmatório, conforme decorre do disposto nos artigos 432.º, n.º 1, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea f), ambos do CPP.
3. Ainda que não houvesse dupla conformidade condenatória, o acórdão da Relação, proferido em recurso, também não admite recurso conforme decorre do disposto na norma que se extrai da leitura conjugada do disposto nos art.ºs 432. n.º 1 al.ª b) e 400.º n.º 1 al.ª e), ambos do CPP.
Estabelece esta que não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça “[d]os “acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância.”.
No caso, não se verifica a exceção prevista na parte final deste preceito.
E o arguido foi condenado em penas parcelares e em pena única todas inferiores a 5 anos de prisão.
Razão pela qual não admite recurso o acórdão proferido em recurso pela Relação.
4. Também não admite recurso porque inexiste triplo grau de jurisdição em matéria de facto.
Estabelece o art.º 434.º do CPP que o Supremo Tribunal de Justiça, em recurso em 2.º grau – como é o caso -, conhece exclusivamente matéria de direito.
E, sem prejuízo do conhecimento oficioso, somente conhece de vícios do art.º 410.º do CPP e das nulidades da sentença ou acórdão no recurso per saltum de acórdãos do tribunal coletivo ou do tribunal do júri, contanto neles tenha sido aplicado pena de prisão em medida superior a 5 anos. Que não é o caso.
5. O reclamante invoca, para a admissibilidade do recurso, o regime da revista excecional prevista no artigo 672º, nº 1, alíneas a) do CPC.
Não lhe assiste razão.
No processo penal não é admitida revista excecional, pelo menos em matéria criminal.
O legislador do CPP optou por autonomizar e regular completamente o regime de recursos, ordinário e extraordinários, admitidos e tramitados no processo penal.
A autonomia e completude da regulamentação que afasta a aplicação do sistema de recursos do processo civil. Desde logo, de uma aplicação em bloco, como haveria de impor-se aos que proclamam, a outrance, que o recurso da parte da sentença penal relativa à se rege também pelo sistema e regime de recursos erigido no CPC. Em vez do sistema unitário do CPP, no mesmo processo aplicavam-se dois regimes adjetivos que são bem diferentes. O sistema unitário do processo penal haveria de conformar-se com apelação, com a revista (normal), a revista excecional, o julgamento ampliado da revista, as nulidades do acórdão, a reforma do acórdão, a revisão e todos os incidentes que cada uma dessas espécies de impugnação recursiva comporta no regime adjetivo civil.
Aliás, para os arautos daquela tese, esta reclamação, amparada no disposto no artigo 405º do CPP, seria um procedimento inaplicável que haveria de conformar-se com o regime instituído no art.º 643.º do CPC que comporta resposta, que é distribuída no tribunal superior e decidida por despacho do juiz relator, do qual, a parte prejudicada pode requerer que recaia acórdão que será proferido pela conferência, depois de ouvir a parte contrária.
Enfim, tramitação incomportável pelo processo penal onde a obtenção de decisão final em prazo razoável é e deverá ser sempre um valor nuclear.
O legislador processual penal quis que o recurso em processo penal obedeça a uma tramitação harmoniosa, orientada a obter uma decisão final em prazo razoável e que não se revela disforme ou contraditória.
Que em processo penal não é admissível a revista excecional mesmo no que tange à parte da sentença relativa à indemnização civil resulta evidenciado pelas múltiplas intervenções que o legislador tem vindo a fazer no CPP.
A revista excecional foi introduzida no processo civil em 2007 – cfr. DL n.º 303/2007. Ano em que o CPP recebeu a 19.º alteração. E desde então mais 30 (a última foi a 49.ª) e em nenhum delas o legislador introduziu ou se pronunciou sobre a admissibilidade da revista excecional no processo penal, não obstante ser questão discutida na jurisprudência e na doutrina.
Nota-se também – porque complementar – que um legislador minimamente razoável que tivesse querido admitir o recurso de revista excecional em processo penal ainda que restrito à parte da sentença relativamente à indemnização civil, jamais descriminaria negativamente os Conselheiros das secções criminais, como sucederia se, não prevendo em lado algum, nem sequer por remissão, uma formação especial integrada pelos três Juízes mais antigos destas secções, tivessem de “submeter-se” ao veredito último de uma formação especial integrada unicamente por juízes das secções cíveis ou, estando em causa questões emergentes de direito laboral, da formação especial das referidas secções.
Assim, no processo penal, não é aplicável o correspondente regime processual civil, não havendo lugar para o recurso de revista excecional.
6. O reclamante deduz a inconstitucionalidade da norma do art.º 400.º n.º 1 al.ª f) do CPP na interpretação que impede o recurso em 2.º grau, para o Supremo Tribunal de Justiça, para reapreciação do julgamento da matéria de facto.
Deduz ainda a inconstitucionalidade daquela norma na interpretação de que obsta à admissibilidade de recurso de revista excecional por violação dos mesmos preceitos da Constituição da República.
Mas, sem razão.
Com a aplicação daquela norma – conjugada com o disposto no art.º 432.º n.º 1 al.ª b) CPP -, apesar de constituir um primeiro fundamento e critério da decisão da reclamação (o segundo fundamento foi a norma das alíneas e) do n.º 1 do mesmo artigo e o terceiro fundamento foi o da norma do art.º 434.º também do CPP) não pode considerar-se infringido o estabelecido no art.º 20.º da Constituição da República.
O direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva obriga o Estada a instituir uma organização judiciária com tribunais que possa satisfazer a demandas dos cidadãos e a estabelecer um modelo de intervenção processual, razoável, proporcional e adequado para defesa dos respetivos direitos e interesses legítimos, não cabendo na dimensão e no respeito da essência constitucional do direito a exigência exacerbada e repetida de meios que se sobreponham e que perturbem a regularidade da evolução processual e dos prazos de de obtenção de decisão definitiva em tempo razoável.
O preceito constitucional em referência não consagra o direito ao recurso em processo penal, o qual tem guarida expressa no art.º 32.º n.º 1 da Constituição da República.
Está, assim, completamente fora de causa a violação, no caso, do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
Quanto à alegada violação da norma do n.º 1 do artigo 32.º da CRP, o acórdão do Tribunal da Relação constitui já uma segunda pronúncia sobre o objeto do processo, pelo que não há que assegurar a possibilidade de aceder a mais uma instância de controle, a qual resultaria num duplo recurso, com um terceiro grau de jurisdição.
O Tribunal Constitucional, incidindo sobre a dimensão e graus de recurso tem decidido uniformemente e reafirmou, entre muitos, também no Acórdão n. 33/2025 “não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena de prisão não superior a 8 anos e inferior à que foi aplicada pelo tribunal de primeira instância” - cfr. também os muitos acórdãos identificados na Decisão Sumário n.º 670/2024 que aquele acórdão confirmou.
Com uma reapreciação jurisdicional, independentemente do seu resultado, revela-se satisfeito esse direito de defesa do arguido, pelo que a decisão do tribunal de recurso já não está abrangida pela exigência de um novo controle jurisdicional.
Impõe-se, pois, concluir que não é constitucionalmente censurável, neste caso, a exclusão do terceiro grau de jurisdição e que a interpretação normativa objeto de fiscalização não viola o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Quanto a não admissão da revista excecional reafirma-se que a opção do legislador processual penal de instituir um regime de recursos, ordinário e extraordinário, próprio, completo e independente do processo civil, situando-se na margem de discricionariedade própria que lhe é concedida, não se revela arbitrária nem ofensiva do mais amplo direito de defesa.
4. Pelo exposto, indefere-se a reclamação deduzida pelo arguido AA.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.
Notifique-se.
O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Nuno Gonçalves