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ABUSO DE CONFIANÇA
HERANÇA
DESPESAS
ENCARGOS
ACERVO HEREDITÁRIO
Sumário
Sumário: I. O Tribunal a quo deu como provada a factualidade sobre a pendência do inventário [sendo herdeiros a arguida e o assistente], qual era o acervo patrimonial em causa, os trâmites essenciais do processo respectivo, e que na pendência do mesmo a arguida procedeu à venda de bens móveis que pertenciam a esse acervo, sem autorização do assistente e sem prévia informação do processo e também deu como provado que a herança tinha despesas para serem pagas e que a arguida as liquidou. O Tribunal deu como não provado que a arguida se tenha apropriado das quantias recebidas com essa venda e a intenção dessa apropriação. II. Conquanto muito critique a decisão quanto a isso, o assistente não faz aquilo que lhe compete, aqui em substituição do Ministério Público, ou seja, a prova de que a arguida, assim querendo e desejando, se tenha apropriado das quantias referidas, pois que esse é o element chave aqui, desde logo, o benefício próprio quanto a essa vantagem de que se tenha apropriado. Não prova e nem indica qualquer prova de onde se venha a retirar essa conclusão da forma que se exige numa decisão criminal. Pelo contrário, o assistente vem dizer que vendeu sem informar, que nada foi dizendo nas conferências, no que tem toda a razão, diga-se. De facto, o cabeça de casal, podendo exercer os seus poderes de administração de bens da herança, deve informar os herdeiros das despesas e deve informar da necessidade e venda de bens para fazer face a essas despesas. Só que o incumprimento destas determinações é assunto cível e não criminal. III. Sendo sempre exigível no crime que se prove [e não é o arguido que tem de o fazer] que o agente actuou em violação da lei criminal, ou seja, neste caso, que vendeu bens da herança e se apropriou desses proventos em proveito próprio, também é certo que, havendo aqui algum proveito próprio, uma vez que a liquidação de despesas da herança vem beneficiar os herdeiros, de que a arguida faz parte, não é menos certo que beneficiaram também o assistente, pois que a convicção do Tribunal a quo vai no sentido de que a venda foi feita para fazer pagamentos desses encargos. IV. Como estabelece o artigo 2079º do mesmo Cód. Civil, a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal, há-de concluir-se que as despesas pagas pela arguida se inscrevem na administração da herança. E os meios para fiscalizar essa administração, que são de direito civil, estavam à disposição dos herdeiros, desde logo do assistente. As despesas de administração da herança, não sendo dívidas dos inventariados não devem integrar a relação de bens. No entanto, dizendo respeito à administração da herança, constituem encargos da responsabilidade dos herdeiros e não, como se perceberá, do cabeça-de-casal. V. O assistente levou a julgamento a sua irmã, a quem se imputou a prática de um crime que consiste em que o agente ilegitimamente se aproprie de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade (artº 205º, nº 1 do Cód. Penal). Sendo este o objecto do processo crime, e não curando este de resolver os acertos e/ou desacertos próprios do processo de inventário, que são do foro estritamente civil, sempre que se não prove a vontade de apropriação e que foi esta que esteve na base da actuação do visado, é evidente e incontornável a absolvição relativamente ao crime imputado.
Texto Integral
Acordam os juízes da 3ª Sec. Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
Relatório
Pelo Juízo Local Criminal da Amadora – J3 – foi proferida Sentença que decidiu do seguinte modo: (…) I. Pelo exposto, julga-se a acusação particular improcedente por não provada e, em consequência, decide-se: a. Absolver a arguida BB, da prática de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelos artigos 205.º, n.º1 do CP. (…)
Inconformado, o assistente interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões: (…) A. O Tribunal a quo deu como não provados os seguintes factos: “1. A arguida obteve em proveito próprio a quantia mencionada em 6. 2. BB agiu com o propósito deliberado de vender bens que lhe não pertenciam, ciente de que o não poderia fazer sem o assentimento do co-herdeiro. 3. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de vender, em proveito próprio, bens que lhe não pertenciam e por cuja administração era responsável, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.” B. Todos os factos dados como não provados devem ser dados como provados. C. O Tribunal a quo formula a sua decisão num raciocínio meramente conclusivo: que pelo facto da herança ter passivo e, pelo facto da arguida ser credora da herança, que a arguida não fez seu o valor da venda e, como tal, a arguida não agiu em proveito próprio. D. A arguida efetuou a venda de bens alheios entre .../.../2018 e .../.../2020. E. A arguida não deu conhecimento das vendas ao recorrente, apesar de várias oportunidades para o fazer em sede do processo de inventário. F. A arguida ocultou a venda dos bens até ver-se obrigada a revelar o que tinha feito, após a Conferência Preparatória de .../.../2021. G. Conforme consta do texto da Ata da Conferência Preparatória de .../.../2021, já junto como Doc. 5 da Acusação Particular: “Iniciou-se então a escolha por parte do Interessado AA dos bens móveis que pretende que lhe sejam adjudicados, mas tal processo teve de ser interrompido, uma vez que a representante da Cabeça de Casal informou que vários bens já não existem, porque foram vendidos pela Cabeça de Casal.”. H. Assim, não é crível que a arguida tenha aguardado mais de dois anos até fazer constar o produto das vendas na relação de bens e que, “por milagre”, só depois da descoberta inadvertida na Conferência Preparatória, se lembre de informar (forçosamente) o co-herdeiro e de retificar (novamente) a relação de bens. I. Devendo ser proferida decisão no sentido de todos os factos não provados serem dados como provados, nomeadamente: “1. A arguida obteve em proveito próprio a quantia mencionada em 6. 2. BB agiu com o propósito deliberado de vender bens que lhe não pertenciam, ciente de que o não poderia fazer sem o assentimento do co-herdeiro. 3. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de vender, em proveito próprio, bens que lhe não pertenciam e por cuja administração era responsável, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.” J. A arguida, ao vender bens da herança, sem o conhecimento e sem o consentimento do assistente, passa a comportar-se como se fosse proprietária dos referidos bens, agindo, deste modo, com animo domini! K. O facto da arguida vir a posteriori relacionar os valores referentes às vendas efetuadas, não constitui restituição ou reparação para efeitos da extinção da responsabilidade criminal prevista no artigo 206.º do Código Penal. L. Por um lado, porque o valor económico do bem, não substitui o valor funcional dos bens. M. Por outro lado, porque alguns bens – tal como referido na tomada de declarações do Assistente – tinham elevado valor sentimental e, como tal, a restituição dos valores da venda dos bens ao acervo hereditário não substitui ou repara o dano infligido ao Assistente, como é defendido pela maioria da doutrina (vide pontos 30 a 41 do presente recurso). N. Como bem refere o Tribunal a quo “Não obstante se requeira que o agente actue com intenção de enriquecimento, a consumação do crime não depende da efectivação do último, verificando-se logo que ocorra o prejuízo patrimonial da vítima, isto é, logo que exista a saída de coisas ou de valores da esfera de disponibilidade fáctica da vítima.”. O. O tribunal recorrido violou a norma jurídica constante do artigo 205.º, n.º 1 do CP ao não considerar os factos praticados pela arguida como subsumíveis à referida norma. P. O tribunal recorrido interpretou a norma legal constante do artigo 205.º, n.º 1 do CP de forma incorreta ao considerar que o dano que tutela não abrange os danos não patrimoniais associados ao valor venal ou afetivo dos bens. Q. Devendo a arguida ser condenada pela prática, em autoria material e na forma consumada, do crime de abuso de confiança p.p pelo artigo 205.º, n.º 1 e 207.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal. Nestes termos e nos melhores de Direito, deve recurso ser julgado procedente por provado como é de inteira JUSTIÇA! (…)
A arguida respondeu ao recurso, concluindo que: (…) 1. Não se conformando o Assistente com a sentença proferida, veio dela interpor o presente recurso, que tem como objeto a matéria de facto e a matéria de direito. 2. A douta sentença proferida pelo tribunal a quo julgou a acusação particular deduzida pelo Assistente, aqui Recorrente, improcedente, por não provada, absolvendo a Arguida da prática de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelos artigos 205.º, n.º 1 do CP. 3. Entendeu, em suma, o tribunal a quo que, apesar de não existirem dúvidas de que a Recorrente procedeu à venda de alguns dos bens do acervo hereditário, não fez seus tais valores, nem os gastou em proveito próprio, tendo apenas o intuito de custear as dívidas da herança, que se continuavam a vencer. 4. Decidindo, assim, que “a factualidade provada não permite a subsunção ao crime em análise, nem, aliás, a qualquer outro tipo de crime”. 5. Considera o Recorrente que todos os pontos de 1 a 3 dados como “Factos Não Provados” foram incorretamente julgados e, por isso, devem os mesmos ser dados como provados. 6. No entendimento do Recorrente, o tribunal a quo formulou a sua decisão num raciocínio meramente conclusivo: “que pelo facto da herança ter passivo e, pelo facto da arguida ser credora da herança, que a arguida não fez seu o valor da venda e, como tal, a arguida não agiu em proveito próprio”. 7. Ademais, nas palavras do Recorrente, “A arguida, ao vender bens da herança, sem o conhecimento e sem o consentimento do assistente, passa a comportar-se como se fosse proprietária dos referidos bens, agindo, deste modo, com animo domini!” 8. Tenta o Recorrente sustentar as suas alegações de recurso no facto de a Recorrida não ter lhe dado conhecimento das vendas, ocultando a mesma até à Conferência Preparatória ocorrida em ........2021. 9. Ora, é ponto assente que a Recorrida, entre ........2018 e ........2020, procedeu à venda de alguns dos bens que integravam o acervo hereditário, pelo valor global de € 1.335,00. 10. No entanto, tal não quer dizer que a Recorrida tenha obtido o valor da venda dos bens para proveito próprio, pois somente o fez para poder custear dívidas da herança. 11. O Recorrente bem sabia que a herança apresentava dívidas e que a herança não tinha ativos suficientes para as saldar e, ainda assim, nunca se preocupou em saber como e se tais dívidas eram pagas. 12. Ora, atendendo ao valor das dívidas da herança e ao crédito que a Recorrida detém sobre a herança, o valor decorrente de tal venda de bens da herança fica bastante aquém daqueles. 13. Pelo que, não faria de todo sentido que a Recorrida quisesse fazer seus os valores decorrentes da venda, quando o que procurava era saldar as dívidas da herança. 14. A Recorrida foi perentória que não fez tais quantias suas, nem tão-pouco atuou com o propósito de o fazer “às escondidas” do Recorrente e, de alguma forma, de praticar algum tipo de conduta ilícita intencionalmente. 15. O único intuito da Recorrente era saldar dívidas da herança, que continuavam a vencer-se. 16. No caso, estamos perante a venda de bens da herança para pagar dívidas da própria herança, pelo que o respetivo produto não foi aplicado em proveito próprio da Recorrida nem de terceiros. 17. Não podendo, por isso, configurar um crime de abuso de confiança, ainda que tal venda tenha sido realizada sem o consentimento do outro herdeiro. 18. Conforme refere, e bem, o tribunal a quo, seria necessário que a Recorrida tivesse tido a intenção de causar um prejuízo patrimonial ao burlado ou a terceiro, bem como a intenção de conseguir através da sua conduta um enriquecimento ilegítimo próprio ou alheio – o que não se verificou nem ficou demonstrado. 19. E, concluindo, a verdade é que os bens da herança não deixam de responder pelo pagamento das dívidas da mesma (artigo 2068.º do Código Civil), podendo o cabeça-de-casal proceder à venda de bens perecíveis para satisfação das despesas (artigo 2090.º do Código Civil). 20. Por todo o exposto, não restam dúvidas de que se mostram insuficientes os indícios de qualquer responsabilidade criminal que possa ser imputada à Recorrida, devendo a sentença proferida pelo tribunal a quo, manter-se inalterada, com a absolvição da Recorrida da prática do crime de abuso de confiança. Termos em que, Deverá ser negado integral provimento ao recurso interposto pelo Recorrente (…)
E o Ministério Público na primeira instância respondeu também ao recurso do assistente, concluindo do seguinte modo: (…) I. Sustenta o recorrente/assistente que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, concatenada com a prova documental, deveria conduzir a conclusão diversa da obtida pelo Tribunal a quo, a qual ditou a absolvição da arguida BB pela prática de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelos artigos 205.º, n.º1 do CP; II. Contudo, salvo melhor entendimento, a matéria de facto dada como não provada na sentença reproduz, com fidelidade, o teor da prova produzida em sede de audiência de julgamento –prova testemunhal e documental- estando devidamente fundamentada a convicção do julgador, em termos que subscrevemos inteiramente; III. Na verdade, o que é preponderante, na nossa perspectiva, é que tendo em consideração que na apreciação da prova, o Tribunal partindo das regras de experiência é livre de formar a sua convicção, de acordo com a regra consagrada no artigo 127º do Código de Processo Penal; IV. Numa leitura, minimamente atenta da decisão recorrida, nomeadamente da fundamentação de facto e a indicação das provas, não se vislumbra que ao assentar os factos provados e os não provados o julgador tivesse cometido qualquer erro de julgamento; V. Conforme bem se refere na sentença recorrida, não obstante ter ficado demonstrado que a arguida procedeu à venda de alguns dos bens que integravam o acervo hereditário, constando da declaração de bens (rectificada) por si apresentada no processo de inventário, “atendendo ao encontro de contas efectuado no processo de inventário, que consultamos, a arguida é credora da herança em valor muito superior àquele que é acusada de se ter locupletado, pelo que não é minimamente credível, face às dívidas da herança, que tenha feito seu o valor da venda. Assim, sobre a essencialidade dos factos não se fez prova bastante, não se tendo demonstrado que a arguida tenha feito suas quaisquer quantias, muito menos aquelas advenientes da venda dos bens da herança”; VI. Face ao exposto, resulta que o Tribunal recorrido justificou a sua opção, alicerçando a sua convicção numa interpretação plausível das provas produzidas e segundo uma lógica que faz sentido, pois que nada nesses elementos de prova se vislumbra que imponha decisão diversa da que foi tomada relativamente à factualidade que foi dada como não provada; VII. Tendo o Tribunal a quo ponderado cuidadosamente todos os elementos de prova disponíveis, de forma conjugada e crítica, no exercício do poder/dever que a lei lhe confere – de livre apreciação da prova, vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório, decidindo que a prova produzida era cabal no sentido da verificação dos factos que deu como não provados, e evidenciado o percurso lógico utilizado para chegar às conclusões que alcançou; VIII. Não se detecta, pois, qualquer outro erro de julgamento, não havendo motivo para alterar a matéria de facto fixada nos pontos acima referenciados; IX. Alega, ainda, o recorrente que o Tribunal recorrido “violou a norma jurídica constante do artigo 205.º, n.º 1 do CP ao não considerar os factos praticados pela arguida como subsumíveis à referida norma.”, interpretando-a de” forma incorreta ao considerar que o dano que tutela não abrange os danos não patrimoniais associados ao valor venal ou afetivo dos bens”.; X. Ora, salvo devido respeito, não assiste razão ao recorrente; XI. A arguida vinha acusada da prática de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205.º do Código Penal, tendo a mesma sido absolvida do mesmo por não ter ficado provado, conforme bem salientou a Mma Juiz a quo, que a “arguida se tenha apropriado dos bens integrantes da herança, que os tenha feito seus, invertendo, em consequência, o título da posse. A venda por si só não a faz incorrer em responsabilidade penal, sendo irrelevante, além do mais, o valor venal ou afectivo dos bens”; XII. Na verdade, não se encontram provados todos os elementos típicos do crime de abuso de confiança, ou outro tipo de crime, face à prova testemunhal e documental produzida, pelo que não restou outra solução ao Tribunal de primeira instância senão absolver a arguida do crime em apreço; XIII. Conforme bem foi salientado pela Mma Juiz a quo “a factualidade provada não permite a subsunção ao crime em análise, nem, aliás, a qualquer outro tipo de crime. Com efeito, não se demonstrou que arguida se tenha apropriado dos bens integrantes da herança, que os tenha feito seus, invertendo, em consequência, o título da posse. A venda por si só não a faz incorrer em responsabilidade penal, sendo irrelevante, além do mais, o valor venal ou afectivo dos bens. Com efeito, os bens da herança não deixam de responder pelo pagamento das dívidas da mesma (cfr. artigo 2068.º, do CC), podendo o cabeça-de-casal proceder à venda de bens perecíveis para satisfação das despesas (artigo 2090.º do CC). Fora estes, os actos de venda, enquanto actos de administração extraordinária, devem ser exercidos por todos os herdeiros (artigo 2091.º), podendo a venda ser impugnada, nos termos do disposto no art.º 892.º do CC. A conduta da arguida poderá ter relevância civil, mas não tem, por ausência por um lado da apropriação e, por outro, da intenção de fazer seus tais bens ou o produto destes, relevância penal”; XIV. Por conseguinte, bem andou o Tribunal a quo ao absolver a arguida da prática do crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205º do Código Penal, devendo a sentença recorrida ser mantida na íntegra. Termos em que, decidindo pela manutenção da douta sentença recorrida, nos seus exactos termos e fundamentos, farão V. Exas., como sempre, JUSTIÇA! (…)
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a Conferência.
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Objecto do recurso
Resulta do disposto conjugadamente nos arts. 402º, 403º e 412º nº 1 do Cód. Proc. Penal que o poder de cognição do Tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o Tribunal está ainda obrigado a decidir todas as questões que sejam de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem a decisão, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 daquele diploma, e dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do mesmo Cód. Proc. Penal, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito, tal como se assentou no Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995 [DR, Iª Série - A de 28.12.1995] e no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência nº 10/2005, de 20.10.2005 [DR, Iª Série - A de 07.12.2005].
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º, por remissão do artº 424º, nº 2, ambos do mesmo Cód. Proc. Penal, resulta ainda que o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem preferencial:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão (artº 379º do citado diploma legal);
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela chamada impugnação alargada, se deduzida [artº 412º], a que se segue o conhecimento dos vícios enumerados no artº 410º nº 2 sempre do mesmo diploma legal.
Finalmente, as questões relativas à matéria de direito.
O assistente, nas conclusões do recurso, fixa o objecto de apreciação requerida nas seguintes questões:
- Impugnação da matéria de facto;
- Erro sobre a qualificação de direito.
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Fundamentação
O Tribunal recorrido fixou a matéria de facto do seguinte modo: (…) A. FACTOS PROVADOS 1. AA, assistente nestes autos, e BB, arguida, são irmãos germanos e únicos herdeiros legitimários de seus pais, CC, falecida em ........07 e de DD, falecido em ........10. 2. Em ........17, BB deu início ao processo de inventário no Cartório Notarial da Dr.ª EE, ao qual foi atribuído o n.º .... 3. A arguida é a cabeça-de-casal. 4. No dia ... de ... de 2021 realizou-se a segunda conferência preparatória no âmbito do processo de inventário, estando a arguida representada por FF, na qualidade de procuradora, e pela mandatária, a Sr.ª Dr.ª GG. 5. No âmbito da referida diligência, o assistente tomou conhecimento de que vários bens, integrantes do acervo hereditário haviam sido vendidos. 6. Mais precisamente, a arguida procedeu à venda, entre ........18 e ........20, pelo valor global de 1335,00€, de um frigorífico, de um microondas, das máquinas de lavar a loiça, de lavar a roupa e de secar a roupa, da arca congeladora, do aspirador, do móvel do faqueiro, de 3 quadros, do conjunto de espelho e credência, do móvel do telefone, da cadeira de rodas e do andarilho. B. FACTOS NÃO PROVADOS 1. A arguida obteve em proveito próprio a quantia mencionada em 6. 2. BB agiu com o propósito deliberado de vender bens que lhe não pertenciam, ciente de que o não poderia fazer sem o assentimento do co-herdeiro. 3. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de vender, em proveito próprio, bens que lhe não pertenciam e por cuja administração era responsável, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. (…)
O Tribunal recorrido fundamentou a decisão de facto do seguinte modo: (…) O Tribunal fundou a sua convicção no apuramento dos factos objecto dos presentes autos no conjunto da prova documental coligida e da prova produzida em audiência de julgamento, analisando uma e outra de forma crítica e de acordo com as regras da experiência comum. Da prova documental junta resulta, de forma inequívoca, o falecimento dos pais de assistente e arguida, a instauração do processo de inventário, bem como a qualidade de cabeça de casal, assumida por esta última (cfr. docs. de fls. 89 a 94, em particular habilitação de herdeiros, mas também processo de inventário cuja cópia se encontra junta aos autos com a referência 27171902). O Tribunal para prova dos pontos 4 a 6 teve em atenção não só a digitalização do processo de inventário, mas também fls. 97 a 98 e recibos de quitação de venda de fls. 16 a 24. Assim, afigura-se incontestado que a arguida procedeu à venda de alguns dos bens que integravam o acervo hereditário, constando da declaração de bens (rectificada) por si apresentada (cfr. processo de inventário). A arguida, aliás, não o disputa. O que impugna, todavia, é que tenha feito seus tais valores, que os tenha gasto em proveito próprio antes referindo que procedeu à venda para poder custear as dívidas da herança, designadamente com IMI e condomínio, que se continuavam a vencer, e que não podia, por si, sozinha, e atentos os seus baixos rendimentos, custear. O assistente, por seu lado, é conhecedor das dificuldades económicas da irmã, bem como das dívidas da herança, presente que esteve nas diferentes conferências, e que lhe não são estranhas, tanto mais que, no passado, também ele as suportou, reclamando sobre a herança um crédito, aliás, superior ao da irmã. Assim, a título de exemplo, só entre ........20 e ........21, regista-se uma dívida de condomínio no valor de 736,53€, cujo pagamento foi efectuado a partir da conta da arguida, por transferência bancária. A herança não tinha dinheiro suficiente (não obstante as rendas recebidas do apartamento em time sharing) que pudesse ser utilizado para saldar as dívidas, que se iam vencendo, o que resulta à evidência da consulta do processo de inventário. Explicou arguida que vendeu os bens, para pagamento daquelas, a conselho da advogada, admitindo que não deu conta disso ao irmão. Todavia, também ficou claro que o assistente não curou de saber como e se tais dívidas eram pagas, admitindo que a irmã não tivesse capacidade para as saldar. Ora, atendendo ao encontro de contas efectuado no processo de inventário, que consultamos, a arguida é credora da herança em valor muito superior àquele que é acusada de se ter locupletado, pelo que não é minimamente credível, face às dívidas da herança, que tenha feito seu o valor da venda. Assim, sobre a essencialidade dos factos não se fez prova bastante, não se tendo demonstrado que a arguida tenha feito suas quaisquer quantias, muito menos aquelas advenientes da venda dos bens da herança. A arguida foi ouvida quanto à sua situação económica e pessoal, foi determinada a elaboração de relatório social e o seu CRC foi analisado, mas, considerando o sentido da decisão, optou-se por nada consignar. (…)
Concretamente na fundamentação de direito, decidiu: (…) A arguida vem acusada da prática de um crime abuso de confiança previsto e punível pelo artigo 205.º, n.º1 do CP. Nos termos do disposto no art.º 205.º, n.º1, do CP, comete um crime de abuso de confiança quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel ou animal que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade. Mais é necessário que o agente tenha a intenção de causar um prejuízo patrimonial ao burlado ou a terceiro, bem como que tenha a intenção de conseguir através da sua conduta um enriquecimento ilegítimo próprio ou alheio. Esta intenção tem que se consubstanciar num dos tipos de dolo: directo, necessário ou eventual (art.º 14º do Código Penal). Não obstante se requeira que o agente actue com intenção de enriquecimento, a consumação do crime não depende da efectivação do último, verificando-se logo que ocorra o prejuízo patrimonial da vítima, isto é, logo que exista a saída de coisas ou de valores da esfera de disponibilidade fáctica da vítima. Como facilmente se constata, a factualidade provada não permite a subsunção ao crime em análise, nem, aliás, a qualquer outro tipo de crime. Com efeito, não se demonstrou que arguida se tenha apropriado dos bens integrantes da herança, que os tenha feito seus, invertendo, em consequência, o título da posse. A venda por si só não a faz incorrer em responsabilidade penal, sendo irrelevante, além do mais, o valor venal ou afectivo dos bens. Com efeito, os bens da herança não deixam de responder pelo pagamento das dívidas da mesma (cfr. artigo 2068.º, do CC), podendo o cabeça-de-casal proceder à venda de bens perecíveis para satisfação das despesas (artigo 2090.º do CC). Fora estes, os actos de venda, enquanto actos de administração extraordinária, devem ser exercidos por todos os herdeiros (artigo 2091.º), podendo a venda ser impugnada, nos termos do disposto no art.º 892.º do CC. A conduta da arguida poderá ter relevância civil, mas não tem, por ausência por um lado da apropriação e, por outro, da intenção de fazer seus tais bens ou o produto destes, relevância penal. Pelo exposto, a arguida vai absolvida em conformidade, sem mais considerandos, porque desnecessários. (…)
Vejamos, então, na perspectiva desta Relação se merece acolhimento a pretensão do recorrente.
• Da pretendida impugnação quanto à matéria de facto.
O assistente diz que o Tribunal a quo deu como não provados os factos 1 a 3 sem que essa conclusão se retire da prova, pelo contrário, levando a prova a conclusão diversa, sendo que o Tribunal concluiu apenas de premissas o que não podia concluir. (…) 1. O Tribunal a quo deu como não provados os seguintes factos: “1. A arguida obteve em proveito próprio a quantia mencionada em 6. 2. BB agiu com o propósito deliberado de vender bens que lhe não pertenciam, ciente de que o não poderia fazer sem o assentimento do co-herdeiro. 3. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de vender, em proveito próprio, bens que lhe não pertenciam e por cuja administração era responsável, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.” 2. Tendo o Tribunal de primeira instância fundado a sua convicção, de acordo com a “Motivação” constante da douta sentença, que “atendendo ao encontro de contas efetuado no processo de inventário, que consultamos, a arguida é credora da herança em valor muito superior àquele que é acusada de se ter locupletado, pelo que não é minimamente credível, face às dívidas da herança, que tenha feito seu o valor da venda.”. Portanto, 3. O Tribunal a quo entende que pelo facto da herança ter passivo e, pelo facto da arguida ser credora da herança, que a arguida não fez seu o valor da venda. (…)
Vejamos.
Começa por dizer-se que a impugnação é feita nos termos do disposto pelo artº 410º do Cód. Proc. Penal, muito embora sem que se tenham identificado os vícios, atento desde logo o facto de não se mostrarem minimamente reunidos os pressupostos de que depende a impugnação de facto nos termos do artº 412º do citado diploma.
Assim, o Tribunal de recurso conhecerá nos limites da decisão recorrida, ou seja, atento ao que nela se escreveu, coadjuvando-se das regras de normalidade e experiência.
O assistente e a arguida são irmãos, únicos herdeiros dos falecidos pais, sendo que a arguida é cabeça-de-casal no processo de inventário instaurado no Cartório Notariam identificado no processo, iniciado em ........2017.
Na pendência desse processo, a arguida procedeu à venda, entre ........18 e ........20, pelo valor global de 1335,00€, de um frigorífico, de um micro-ondas, das máquinas de lavar a loiça, de lavar a roupa e de secar a roupa, da arca congeladora, do aspirador, do móvel do faqueiro, de 3 quadros, do conjunto de espelho e credência, do móvel do telefone, da cadeira de rodas e do andarilho.
Atente-se.
O Tribunal a quo deu como provada a pendência do inventário, o acervo patrimonial em causa, os trâmites essenciais do processo respectivo, e a venda de bens móveis pela arguida que pertenciam a esse acervo.
Quanto a estes factos, não os discutem nem assistente e nem arguida.
Contra o que o assistente reage é no que tange à factualidade não provada, designadamente a apropriação pela arguida daqueles valores e o elemento subjectivo do tipo legal de crime imputado.
Só que, conquanto muito critique a decisão quanto a estes factos, o assistente não faz aquilo que lhe compete, aqui em substituição do Ministério Público, ou seja, a prova de que a arguida, assim querendo e desejando, se tenha apropriado das quantias referidas, pois que esse é o elemento chave aqui, desde logo, o benefício próprio quanto a essa vantagem de que se tenha apropriado.
Não prova e nem indica qualquer prova de onde se venha a retirar essa conclusão da forma que se exige numa decisão criminal.
Pelo contrário, o assistente vem dizer que vendeu sem informar, que nada foi dizendo nas conferências, no que tem toda a razão, diga-se.
De facto, o cabeça de casal, podendo exercer os seus poderes de administração de bens da herança, deve informar os herdeiros das despesas e deve informar da necessidade e venda de bens para fazer face a essas despesas.
Só que o incumprimento destas determinações é assunto cível e não criminal.
Ao contrário, é sempre exigível no crime que se prove [e não é o arguido que tem de o fazer] que o agente actuou em violação da lei criminal, ou seja, neste caso, que vendeu bens da herança e se apropriou desses proventos em proveito próprio.
Ora, sendo certo que há aqui algum proveito próprio, uma vez que a liquidação de despesas da herança vem beneficiar os herdeiros, de que a arguida faz parte, também é certo que beneficiaram o assistente, pois que a convicção do Tribunal a quo vai no sentido de que a venda foi feita para fazer pagamentos desses encargos: (…) O que impugna, todavia, é que tenha feito seus tais valores, que os tenha gasto em proveito próprio antes referindo que procedeu à venda para poder custear as dívidas da herança, designadamente com IMI e condomínio, que se continuavam a vencer, e que não podia, por si, sozinha, e atentos os seus baixos rendimentos, custear. O assistente, por seu lado, é conhecedor das dificuldades económicas da irmã, bem como das dívidas da herança, presente que esteve nas diferentes conferências, e que lhe não são estranhas, tanto mais que, no passado, também ele as suportou, reclamando sobre a herança um crédito, aliás, superior ao da irmã. Assim, a título de exemplo, só entre ........20 e ........21, regista-se uma dívida de condomínio no valor de 736,53€, cujo pagamento foi efectuado a partir da conta da arguida, por transferência bancária. A herança não tinha dinheiro suficiente (não obstante as rendas recebidas do apartamento em time sharing) que pudesse ser utilizado para saldar as dívidas, que se iam vencendo, o que resulta à evidência da consulta do processo de inventário. Explicou arguida que vendeu os bens, para pagamento daquelas, a conselho da advogada, admitindo que não deu conta disso ao irmão. Todavia, também ficou claro que o assistente não curou de saber como e se tais dívidas eram pagas, admitindo que a irmã não tivesse capacidade para as saldar. (…)
Ou seja, o Tribunal assenta a sua convicção nos termos com que a motivou, sem que dessa fundamentação decorra alguma incoerência ou contradição.
O assistente, discordando do método usado pela arguida, pretende alterar os factos.
No entanto, nenhuma prova apresenta que contrarie aquela convicção.
Limitada a questão a uma divergência, como se percebe, nada haverá a apontar à decisão recorrida que, não contendo contradições ou erros aparentes, se formou de acordo com os princípios ínsitos no artº 127º do Cód. Proc. Penal.
De facto, e conquanto, repete-se, se reconheça razão ao assistente no sentido de que os herdeiros deviam ter sido informados, também é certo que se desconhece o tipo de relação entre herdeiros [podendo presumir-se da participação aqui feita que não é boa], nada se sabe sobre a razão por que acharam que nada tinham a pagar para manter a herança, descurando saber junto da arguida o que deviam, ou não, pagar para esse efeito, ou da razão por que a própria arguida, se tinha despesas que eram de todos sem que ninguém as quisesse pagar, não acionou os mecanismos legais inerentes.
Aliás, neste circunspecto, os meios, que são de direito civil, estavam à disposição de ambos.
Das considerações tecidas pelo assistente no seu recurso não resulta prova que inverta o sentido da motivação dos factos dados por provados pelo Tribunal a quo.
A impugnação de factos pressupõe isso mesmo, que os factos sejam demonstradamente de considerar mal julgados.
Não é o que aqui temos, razão por que improcede nesta parte o recurso.
• Do alegado erro sobre a interpretação do artº 205º do Código Penal.
O assistente vem também dizer que o Tribunal a quo errou quando não subsumiu os factos à norma por que vinha acusada a arguida.
É certo que esta alegação vem no pressuposto da procedência que requeria quanto à questão anterior, que foi julgada aqui improcedente.
Mas, ainda assim, ainda que seja de sumária valia no presente aspecto, vamos analisar ainda.
Como estabelece o artº 1326º do Cód. Proc. Civil, o processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária ou a relacionar os bens que constituem objecto de sucessão e que devam ser partilhados entre os herdeiros.
Por outro lado, constituem dívidas da herança aquelas que os falecidos tinham à data da sua morte, a que a lei equipara as despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, os encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, e o cumprimento dos legados (artº 2068º do Cód. Civil), o que significa que as despesas de que fala a decisão terem sido pagas pela arguida não se classificam como tal.
No entanto, atento a que, e como estabelece o artigo 2079º do mesmo Cód. Civil, a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal, há-de concluir-se que as despesas pagas pela arguida se inscrevem na administração da herança.
Assim, tal como, por exemplo, o pagamento do IMI, que seja efetuado pelo cabeça de casal, em data posterior ao óbito dos inventariados, deve ser pagas pelos herdeiros, constituindo despesas de administração da herança, tal aplica-se às demais despesas com a administração e conservação do acervo hereditário
Não sendo dívidas dos inventariados não devem integrar a relação de bens. No entanto, dizendo respeito à administração da herança, constituem encargos da responsabilidade dos herdeiros e não, como se perceberá, do cabeça-de-casal.
Competindo ao cabeça de casal a administração dos bens da herança até à sua liquidação e partilha (artº 2079º Cód. Civil), é por isso que se diz que, por exemplo relativamente a frutos, havendo-os, como rendas, podem eles ser efectos ao pagamento das referidas despesas, ao pagamento de obrigações tributárias ou à realização de despesas de conservação, ou de despesas urgentes a realizar em imóveis, entre o mais.
Quanto a este ponto, não podem ser suscitadas dúvidas.
O que, no entanto, não significa que o cabeça de casal não tenha que prestar contas sobre os mesmos.
No entanto, há aqui duas situações a ter em consideração, complementando-se aqui a resposta ao primeiro ponto recursivo acima analisado.
Primeira: estamos num processo crime em que, por participação do assistente recorrente, se levou a julgamento a sua irmã, a quem se imputou a prática de um crime que consiste em que o agente ilegitimamente se aproprie de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade (artº 205º, nº 1 do Cód. Penal).
Este processo, como tal, destina-se exclusivamente a apurar a existência de um crime, circunstância demasiado grave para poder ser confundida com um ajuste de contas de natureza meramente civil, por exemplo.
Tratando-se de processo crime, tratando-se de concluir pelo preenchimento de um tipo legal de crime, o Ministério Público e o assistente têm por função demonstrar que a aqui arguida cometeu esse crime, ou seja, que sonegou bens hereditários de cujo provento (resultante da venda) se apropriou em seu exclusivo benefício, querendo actuar com esse exacto propósito e assim o conseguindo.
Ora, nos termos da impugnação de facto que foi feita, longe dos padrões do artº 412º do Cód. Proc. Penal, e estando nós no âmbito de apreciação permitido pelos arts. 379º e 410º do Cód. Proc. Penal, buscando-se no texto da decisão qualquer vício que a invalide, nada se nos afigura que encaixe no referido limite.
Ou seja, o recurso não vem demonstrar qualquer contradição ou insuficiência, excesso ou defeito de apreciação ou, finalmente, como se viu, erro de avaliação da prova.
Posto que assim seja, a ter os factos como certos, também não se encontra razão para que, em termos de fundamentação de direito, seja criticada a decisão recorrida.
Note-se que, no processo criminal, os factos relevantes são os que permitem a integração típica [ou se causas de justificação ou exculpação], e não outros. Porque é essa a finalidade do processo (arts. 1, al. a), 9º, 283º e 69º do Cód. Proc. Penal), a averiguação da existência, ou não, de crime. O crime de abuso de confiança “é, segundo a sua essência típica, apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio; é, vistas as coisas por outro prisma, violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção” (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, II, pág. 94). Uma definição que leva já consigo, acentua Costa Andrade, RLJ nºs 3931 e 3932, pág. 315, “a acção e o resultado típicos da infracção”. O agente apropria-se de coisa móvel alheia por descaminho ou dissipação, como se dizia no domínio do Código de 1886, decidindo já então o Supremo, em jurisprudência uniforme, que o crime se consumava quando o agente, que recebera, por título lícito não translativo de propriedade, dinheiro ou coisa móvel, para lhes dar determinado destino, deles se apropria, passando a agir animo domini. E já então igualmente se reclamava que “a inversão do título carece de ser demonstrada por actos objectivos, reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como se dono fosse” (Maia Gonçalves, Código Penal Português, 3ª ed., 1977, pág. 775), necessidade que a doutrina estrangeira não deixa igualmente de acentuar, já que a simples decisão que permanece no íntimo não corresponde à ilegítima apropriação de coisa móvel que ao agente foi entregue, tornando-se necessária uma manifestação externa, reconhecível de fora, uma “indizielle Publizität” (cf. M-Schroeder, apud Eser, Strafrecht IV, pág. 49; e Otto, Jura 1996, pág. 383, e 1997, pág. 472). Apropriação significa assim a intenção, “manifestada através de um comportamento que a realiza ou executa, de passar a dispor da coisa como própria, comportando-se em relação a ela uti dominus” (Costa Andrade) ou, como ensinava o Prof. Eduardo Correia (“O efeito da entrega como elemento constitutivo do crime de abuso de confiança”, RDES, ano VII (1954), pág. 57; e Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 93º, pág. 35), “porque o agente já detém a coisa por efeito da entrega, a apropriação há-de radicar-se, eminentemente, numa certa intenção, numa certa atitude subjectiva nova, o dispor da coisa como própria, a intenção de se comportar relativamente a ela como proprietário, uti dominus”. Exige-se porém que o animus se exteriorize, através de um comportamento que o revele e execute. No que agora interessa, essa disposição do agente se apropriar da coisa que recebeu por título não translativo da propriedade pode ser revelada por um conduta externa incompatível com a vontade de restituir ou de dar o destino certo à coisa: “venda, desvio, ocultação ou negativa expressa de não devolvê-la a quem de direito”, na expressão de Júlio Fabbrini Mirabete, Manual de Direito Penal. Parte Especial, vol. 2, 17ª ed., p. 286.1
Servindo este destaque para concretizar aqui dois pontos que constituem a segunda questão relevante.
Por um lado, o «alheio» aqui não é mais do que a compropriedade em quinhão ideal, porque a partilha não foi concretizada ainda.
Depois, essa circunstância impede que, sem esforço adicional conseguido, para alguns, através do tipo subjectivo, se possa considerar que a inversão do título de posse não existe efectivamente por duas outras razões: quer porque a posse é exercida em nome próprio do cabeça de casal, quer porque, sendo ele herdeiro, é co possuidor natural, pelo que nada se inverte de facto.
Acresce a isto a circunstância de a referida apropriação exigida pelo tipo legal, mesmo que fosse teoricamente considerada, teria de ser manifestada externamente por actos que a deixassem inequivocamente demonstrada e o que temos neste processo é que os documentos que a decisão menciona como tendo ajudado a formar a sua convicção serem expressos em dizer que a arguida vende na qualidade de cabeça de casal.
Ora, em nenhum momento anterior ao recebimento do produto da venda daqueles bens fica demonstrado que a mesma venda foi feita com inversão do título, ainda que assim se entendesse possível, com que se exercia a mesma posse. E em nenhum momento se prova que o provento dessa venda foi usado pela arguida para seu exclusivo benefício.
Pelo contrário, como refere o Tribunal a quo na fundamentação, o que resulta da prova é que a arguida teve de fazer face ao pagamento de despesas que nem esse montante recebido chegava para cobrir.
Finalmente, concluiu o Tribunal a quo, e bem nessa perspectiva, que, tendo a venda sido feita para cobertura de despesas, não haveria como dar como provado o elemento típico subjectivo. Nada, repete-se, se tendo provado contra isto e nenhuma prova se tendo indicado que contrarie essa conclusão.
Assim, o que temos, no rigor das coisas, é a manifesta falta de prova dos elementos típicos essenciais.
Isto importa a absolvição da arguida do crime por que vinha acusada, tal como concluiu o Tribunal de julgamento.
Saber se a arguida, enquanto cabeça de casal, devia ter procedido de outro modo, desde logo pedindo ao processo de inventário a notificação dos herdeiros para pagarem o que era devido por todos ou se devia ter accionado os meios injuntivos próprios, é uma questão que diz respeito ao processo de inventário ou a outro que se decida instaurar no foro civil.
Aqui, no processo crime, averigua-se a existência, ou não, de crime.
O que não se provou.
Pelo que a decisão absolutória será para confirmar.
Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto pelo assistente AA, mantendo-se intocada a decisão do Tribunal a quo.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC’s e demais encargos legais.
Notifique.
Lisboa, 14 de Julho de 2025
Texto processado e revisto.
Redacção sem adesão ao AO
Hermengarda do Valle-Frias
Maria da Graça Santos silva
Ana Rita Loja
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1. Veja-se Ac. Tribunal da Relação de Guimarães de ........2005 [Relat. Desembargador HH] – www.dgsi.pt\trg, sendo os destaques nossos.