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CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Sumário
Sumário: I. A acusação define o objecto processual, o thema de julgamento, o mesmo querendo dizer que, salvo situações em que possa vislumbrar-se a existência de qualquer causa de exculpação ou justificação, é a acusação que define o objecto da prova. II. Não existe qualquer vício de contradição da sentença, em qualquer das suas formas, quando dela consta como provada e/ou não provada a factualidade que constitui o objecto de prova assim fixado. O objecto do processo, para além de assegurar princípios de certeza e segurança judiciárias, não é susceptível de definição de acordo com o que seja o desejo do arguido, tendo como limite a factualidade por que o Estado, pela mão do Ministério Público, decidiu exercer o seu poder de intervenção, a que acrescem, quando devida e fundamentadamente alegadas na devida altura, as circunstâncias que o arguido leve ao processo quando intervenha no exercício da sua defesa. III. A decisão recorrida tem como objecto de apreciação a acusação pública deduzida [porque a particular foi rejeitada] e esta não relata o que se passou no dia anterior aos factos que considera indiciados, e nem devia fazê-lo, uma vez que os mesmos não estiveram no objecto desta investigação.
Texto Integral
Acordam os juízes da 3ª Sec. Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
Relatório
Pelo Juízo de Competência Genérica da Ponta do Sol foi proferida Sentença que decidiu do seguinte modo: (…) 1. Absolver o arguido BB, da prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 131.º, todos do Código Penal, e 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006 de que vinha acusado; 2. Condenar o arguido BB, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p., pelo artigo 86.º. n.º 1 alínea d), conjugado com os artigos 3.º, n.º 2, alínea ab), e 86.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (Regime Jurídico das Armas e Munições), na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à razão diária de €5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos); 3. Julgar totalmente improcedente, por não provado, o pedido de indemnização deduzido por AA e, em consequência absolver o demandado, BB; 4. Declarar perdida a favor do Estado a arma apreendida nos presentes autos. (…)
Inconformado, o assistente interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões: (…) a. O ofendido/assistente, não se conformando com a decisão proferida. b. Foram incorretamente julgados os factos constantes da acusação existindo vícios da sentença e do julgamento. c. Uma vez que a expressão proferida pelo arguido ao ofendido preenche o tipo do crime de ameaça, previsto no art. 153º e 155.º do CP. d. Considera-se que existe vicio de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão nos termos do artigo 410.º n.º 2, al. b) do CPP. e. Uma vez que se deu como provado que na data dos factos o arguido deslocou-se até ao café “...”, munido de uma faca de cozinha com lâmina de 19 cm de comprimento, e que ficou a aguardar a saída do assistente, e em ato continuo, desembainhou a faca e correu atras do assistente com a faca na mão. f. Existe assim erro notório na apreciação da prova nos termos do artigo 410.º n.º 2, al. c) do CPP. g. Da matéria dos factos provados é incompatível ou irremediavelmente contraditório com o princípio in dúbio pro reo. h. Existe um erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência. i. O assistente e as testemunhas presentes no local declararam o que, o arguido disse, que terá sido uma ameaça, mas o tribunal não fundamenta na decisão, alegando não existir meios de prova. j. Da produção de prova realizada nos presentes autos, nomeadamente dos depoimentos do arguido, do assistente e das testemunhas e, bem assim, da dos autos de notícia de fls. o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa deve chegar a um julgamento quanto à matéria de facto diferente do que chegou o Tribunal a quo no que importa os seguintes pontos concretos das factualidades e considerar os mesmos como provados, o que se requer: e) Na sequência do descrito no facto provado n. º1, 2, 3, 4, 5 e 6, e após o assistente ter saltado da varanda para evitar o confronto com o arguido que estava munido com uma faca de 19 cm, o arguido terá desembainhado a faca e dito: “vou-te matar se não for hoje vai ser outro dia, vou-te tirar as tripas fora”. f) Na sequência do descrito na alínea anterior o assistente ficou receoso pela sua integridade física; g) O arguido quis, pela forma descrita na al. a), coartar a liberdade do assistente, bem sabendo que a sua conduta era idónea para atingir tal objetivo, o que representou e quis levar a cabo; h) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta não lhe era permitida e que a mesma era punida por lei. k. Quanto aos momentos concretos dos depoimentos referidos em 1) que permitem chegar a um julgamento diferente quanto à matéria de facto. Todavia, devido à pequena dimensão temporal de cada um dos quatro depoimentos todos e cada um deles, na sua plenitude, mostram-se importante para se aferir a verdade material, razão pela qual se requer a audição integral da prova por depoimento do arguido, do assistente e das testemunhas referida. l. Todos os depoimentos são claros quanto à existência de uma faca de cozinha de grandes dimensões e resultam dos mesmos que a mesma foi exibida com natureza agressiva pelo arguido ao assistente. m. Uma análise crítica da prova, devidamente enquadrada em juízos de experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova diz-nos que quem exibe uma faca de 19 cm, acompanha a ação com palavras ameaçadoras conforme vem referido na douta acusação publica. n. As próprias declarações do arguido denotam o clima de conflitualidade existente deste para com o assistente. o. Da alteração do julgamento quanto à matéria de direito e. Aqui chegados, i.e., alterada a matéria de facto quanto aos factos referidos pontos concretos da matéria de facto importa concluir que o arguido praticou com elevado dolo direto e elevada censura e culpa factos suscetível de serem s subsumidos nas normas proibitivas de natureza penal previstas nos artigos artigo 153, n. 1, conjugado com o artigo 155, n. 1, al. a), ambos do Código Penal, i.e. crime de ameaça, na forma agravada. f. Pelo que ao arguido deverá ser aplicada uma pena, enquadrável na moldura penal prevista no artigo 155, n. 1 do Código Penal: pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias. g. Pelo que se sugere seja o arguido condenado na pena de 1 ano e 1 dia de prisão, mas suspensa durante três anos subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade, nomeadamente a entrega a uma instituição social a indicar pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa, de valor nunca inferior a 800,00 Euros, no prazo de 6 meses, fazendo-se prova nos autos. h. Assim como ao pagamento do PIC formulado pelo assistente. p. Julgando de outro modo o Tribunal “a quo” vez uma errada aplicação e interpretação das regras que resultam, entre outros, dos artigos 153, n. 1, conjugado com o artigo 155, n. 1, al. a), ambos do Código Penal e ainda as demais normas de direito que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa queira aplicar suprindo as insuficiências do recorrente. Termos em que Deve o presente recurso ser julgado procedente e a sentença recorrida revogada e substituída por douto acórdão deste Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que condene o arguido pela prática do crime de ameaça na forma agravada, na pena concreta de 1 ano e 1 dia de prisão, mas suspensa durante três anos subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e acompanhada de regime de prova se, o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade, nomeadamente a entrega a uma instituição social a indicar pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa, de valor nunca inferior a 800,00 Euros, no prazo de 6 meses, fazendo-se prova nos autos ou outra que de julgue justa e adequada à ilicitude, à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial que o Venerando Tribunal queira indicar. Assim como o pagamento do PIC formulado nos autos a ser pago ao assistente. (…)
O Ministério Público na primeira instância não respondeu ao recurso.
O arguido não respondeu ao recurso.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a Conferência.
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Objecto do recurso
Resulta do disposto conjugadamente nos arts. 402º, 403º e 412º nº 1 do Cód. Proc. Penal que o poder de cognição do Tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o Tribunal está ainda obrigado a decidir todas as questões que sejam de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem a decisão, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 daquele diploma, e dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do mesmo Cód. Proc. Penal, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito, tal como se assentou no Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995 [DR, Iª Série - A de 28.12.1995] e no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência nº 10/2005, de 20.10.2005 [DR, Iª Série - A de 07.12.2005].
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º, por remissão do artº 424º, nº 2, ambos do mesmo Cód. Proc. Penal, resulta ainda que o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem preferencial:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão (artº 379º do citado diploma legal);
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela chamada impugnação alargada, se deduzida [artº 412º], a que se segue o conhecimento dos vícios enumerados no artº 410º nº 2 sempre do mesmo diploma legal.
Finalmente, as questões relativas à matéria de direito.
O assistente, nas conclusões do recurso, atento a que não cumpriu os requisitos da impugnação nos termos do artº 412º do Cód. Proc. Penal, remanescendo o conhecimento dos vícios decisórios nos termos dos arts. 379º e 410º do referido diploma, fixa o objecto de apreciação requerida nas seguintes questões:
- contradição insanável na fundamentação e entre esta e a decisão;
- erro notório na apreciação da prova;
- consequente erro na apreciação de direito.
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Fundamentação
O Tribunal recorrido fixou a matéria de facto do seguinte modo: (…) 2.1. FACTOS PROVADOS, com relevo para a causa, excluindo matéria argumentativa, conclusiva e jurídica: DA ACUSAÇÃO 1. À data de ...-...-2022, arguido e ofendido AA, residem na ..., a escassa distância um do outro. 2. Em razão de divergências anteriores, no dia ...-...-2022, pelas 14h10m o arguido muniu-se de uma faca de cozinha com lâmina de 19 cm de comprimento, guardou-a no cinto das calças, na zona das costas, ocultando-a com a camisa que tinha vestida e dirigiu-se ao café “...”, na ... a ver se se cruzava com AA. 3. Lá chegado, entrou no café, apercebeu-se que AA lá estava, dirigiu-se ao balcão, comprou um maço de cigarros e saiu. 4. Todavia, ficou no exterior do café a aguardar a saída do assistente. 5. AA saltou a varanda da esplanada do café e correu a refugiar-se em casa. 6. Acto contínuo, o arguido desembainhou a faca e correu atrás do assistente com a faca na mão. 7. Sabia o arguido que a detenção da faca fora do seu local do seu normal emprego não lhe era permitida por lei. 8. Agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente e com conhecimento de que tal lhe era proibido pela lei penal. DA CONTESTAÇÃO 9. O arguido deslocou-se ao café “...”, numa pausa do trabalho de jardinagem. Quanto às CONDIÇÕES SOCIO-ECONÓMICAS do arguido, foi ainda apurado que o arguido: 10. Completou um …, 11. É …, 12. Recebe ordenado mínimo regional, 13. Vive em casa própria com a sua mulher e o filho de 8 anos, 14. Despende mensalmente a quantia aproximada de €600,00 (sescentos euros) para pagamento da prestação da casa. 15. É visto como uma pessoa trabalhadora, honesta, educada, pacífica, bom pai e bom marido. E quanto a CONDENAÇÕES ANTERIORES ficou ainda demonstrado que: 16. À data presente, o arguido não tem averbadas ao seu registo criminal quaisquer condenações. * 2.2. FACTOS NÃO PROVADOS, com relevo para a causa, excluindo matéria argumentativa, conclusiva e jurídica: DA ACUSAÇÃO A. Que arguido e assistente sejam conhecidos um do outro por terem residido próximo um do outro e por frequentarem habitualmente o café “...”. B. Que o salto que AA deu da varanda da esplanada do café tenha tido por finalidade evitar o confronto com o arguido. C. Que o arguido tenha desembainhado a faca quando viu o assistente sair do sobredito café, tendo-lhe dito “vou-te matar se não for hoje vai ser outro dia, vou-te tirar as tripas fora”. D. Com a expressão que lhe dirigiu e o descrito manuseio da faca, o arguido pretendeu criar no espírito de AA a ideia de que estava disposto a ofender-lhe o corpo e a provocar-lhe as lesões que viessem a decorrer da actuação que tivesse e de acordo com o meio que usasse, de modo a tirar-lhe a vida. E. AA entendeu o que ele pretendia dizer e passou a ter medo de que o arguido concretizasse o que prometia fazer. F. Pretendeu o arguido fazer com que AA tivesse medo de que ele concretizasse o que prometia fazer-lhe, o que conseguiu. G. Sabia o arguido que a detenção da faca para provocar os efeitos referidos em AA, não lhe eram permitidos por lei. DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL H. Que o assistente seja de uma família séria, honesta e muito considerada no meio social onde reside. I. Que o assistente tenha ficado atemorizado pelas ameaças de morte que o arguido proferiu, tendo medo sempre que anda na rua e com receio de encontrar o arguido com medo do que ele seja capaz. J. Que o assistente tenha ficado muito abalado, desgostoso e envergonhado pelas expressões proferidas pelo arguido diante das pessoas que se encontravam naquele café. DA CONTESTAÇÃO K. Que quando se encontrava no interior do bar o arguido tenha encontrado o ofendido, seu vizinho, e aproveitou para questioná-lo sobre o motivo pelo qual havia dirigido à sua esposa as expressões: “Puta! Cabra! Nojenta!” durante a madrugada daquele dia (.../.../2022), pelas 03h30, quando esta saía de casa, percorria o caminho para deixar a filha menor na casa dos pais/sogros e que dista cerca de 300 metros de distância, pois entrava ao trabalho pelas 04h15, dia de missa de parto. Inclusivamente, o sogro, que regressava do trabalho, interveio e foi empurrado pelo ofendido. A mãe do arguido estava presente, e segurou o filho, acalmando-o. L. Que o ofendido tenha problemas aditivos com substâncias psicotrópicas, sendo uma pessoa conflituosa, inclusivamente com os pais. M. Que, na sequência do confronto relatado em K. o ofendido não tenha sido capaz de confirmar, nem negar o sucedido. N. Que o assistente tenha dado um grande empurrão ao arguido, com o que fez a faca cair ao chão. (…)
O Tribunal recorrido fundamentou a decisão de facto do seguinte modo: (…) A convicção do Tribunal sobre a factualidade considerada provada e não provada radicou na absoluta falta de prova. Quanto ao local e à data dos factos, nunca tendo sido colocados em causa, foi, genericamente confirmado pelos intervenientes ouvidos. Adicione-se desde já que todas as testemunhas falaram num episódio que se terá passado na noite anterior aos factos aqui em julgamento, em que o assistente terá insultado a mulher do ofendido e que terá estado na origem dos factos aqui em causa. Da prova resultaram duas versões contrárias quanto a o arguido ter dirigido ao assistente as expressões “vou-te matar se não for hoje vai ser outro dia, vou-te tirar as tripas fora”: Por um lado, a versão trazida pelo arguido, de que, embora o assistente se tivesse desentendido anteriormente com a família da mulher do arguido, a verdade é que não levou a faca para o café “...” para ameaçar ninguém. Simplesmente, porque havia estado na fazenda a trabalhar com a faca, decidiu sair para comprar tabaco e acabou por levá-la para o local onde ocorreram os factos. Adicionou que inicialmente havia guardado a faca nas botas e que depois a passou para as calças. Negou, no entanto, que tenha ameaçado o assistente, adicionando que quando ia a sair do dito bar o assistente saltou do varandim onde se encontrava, dirigiu-se ao arguido e deu-lhe um golpe de peito, que fez o arguido cair, altura em que o assistente fugiu, tendo chegado os pais do assistente. Afirmou que o assistente se terá desentendido com a família da mulher do arguido, mas que não foi ao bar para qualquer ajuste de contas, tendo mantido sempre a faca guardada. Por outro lado, a versão do assistente, de que se encontrava dentro do bar quando o arguido entrou para comprar tabaco, voltou a sair e fez-lhe uma espera. Quando chegou ao bar não sabia que o arguido estava incomodado por causa dos acontecimentos da noite anterior, só suspeitou que estivesse chateado porque estava a olhar para o assistente “atravessado” e fez um sinal querendo significar que estava à sua espera. Foi nessa altura que a sua prima CC – a testemunha CC – pediu o número dos pais do assistente para lhes telefonar. Porém, na sua versão, saltou do varandim para fugir, nessa altura os seus pais já estavam a chegar, adicionando que o arguido lhe terá dito em português que lhe ia tirar as tripas, se não fosse nesse dia, seria noutro, correndo atrás do assistente com a dita faca. Foram ainda ouvidos DD e EE, cuja credibilidade ficou desde logo afectada, uma vez que DD afirmou que a testemunha FF teve que insistir 3 vezes com o arguido para que este lhe entregasse a faca. Porém, a testemunha FF afirmou de forma pronta a desinteressada que não teve que insistir, uma vez que o arguido não ofereceu resistência a entregar o dito objecto. Ademais, EE asseverou que a testemunha CC telefonou para o seu marido a dar conta do que estava a suceder, precisamente ao contrário do que disse a própria testemunha CC, que garantiu que telefonou para EE e não para DD. A testemunha CC asseverou que não ouviu que expressões proferidas, não tendo o arguido dirigido ao assistente quaisquer palavras no interior do estabelecimento a que se reportam os factos. Já as testemunhas GG e HH não tiveram préstimo para a prova dos factos, por não saberem o que se passou no café “...”. Aqui chegados, merece credibilidade a versão do assistente? Também se entende que não. Repare-se: o assistente começou por dizer que não sabia que o arguido estivesse irritado por causa dos tais acontecimentos da noite anterior, em que terá sido insultada a sua mulher, pretensamente pelo assistente. Porém, a testemunha CC, que não ouviu nada do que o arguido terá dito ao assistente, só sabia que estavam a discutir e que o arguido estava a apontar a faca ao assistente, afirmou de forma clara e segura que o assistente lhe havia contado da tal confusão do dia anterior. Com isto não se pretende significar que nada se passou. Só não se sabe o que se passou. O arguido terá apontado uma faca ao assistente, porém, seria essencial, para o caso, saber o contexto, o conjunto. Saber o que disse o arguido ao assistente enquanto lhe apontava a faca. E isso não se sabe. De todo o modo, adicione-se que a versão do arguido de que o assistente lhe deu um golpe de peito que o fez cair também não colhe. Com efeito, é altamente contrário às regras da experiência que o arguido tenha caído de costas, em cima da faca que trazia nas calças, uma faca com 19 cm de lâmina, mas não tenha ficado ferido – o próprio garantiu que não ficou ferido. Por estes motivos, ficou sem se saber, afinal, quem relatou a verdade. As testemunhas não podem ter a pretensão de contar meias verdades, de relatar uma parte da história e omitir outra e esperar que o tribunal faça uma selecção de factos que convenha à versão da acusação, mais ainda sabendo que houve focos de incoerência na prova produzida quanto às expressões que o arguido tenha dirigido ao assistente. As testemunhas ou são coerentes, ou passam uma versão verosímil dos factos, ou não. Não se é meio coerente, nem meio verosímil. O tribunal não esteve no local e só poderia socorrer-se de uma prova retumbante para afastar qualquer dívida. E não foi essa contundência que as testemunhas da acusação trouxeram quanto às expressões que o arguido terá alegadamente dirigido ao assistente. Ficou sem se saber que expressões foram dirigidas pelo arguido ao assistente. Perante o que, ficou o tribunal colocado na dúvida razoável quanto aos factos respeitantes às expressões “vou-te matar se não for hoje vai ser outro dia, vou-te tirar as tripas fora”, tendo que, por força do princípio in dubio pro reo, dá-los como não provados. Quanto ao mais, não restaram dúvidas de que o arguido tinha na sua posse a faca a que se reportam os autos: é o que resulta do auto de apreensão de fls. 7, do fotograma de fls. 8 e ainda do exame feito pelo OPC de fls. 24, além de ter sido corroborado, em particular pela testemunha FF, agente da PSP que tomou conta da ocorrência. Já quanto ao estado de espírito do assistente após o dia ...-...-2022, é verdade que o mesmo disse que “tinha receio, ia às vezes ao bar mas quando o meu pai ia, ou o meu irmão”. Sucede que, nem isso é expressamente alegado no pedido de indemnização civil, nem se pode atribuir credibilidade ao assistente, pela descredibilização da versão que o mesmo trouxe e a que acima se aludiu. As testemunhas II e JJ retrataram o arguido como uma pessoa trabalhadora, honesta, educada, pacífica e um bom pai e bom marido. Os factos provados 7 e 8 retiraram-se da materialidade dos demais analisada à luz das regras da experiência. A ausência de condenações anteriores foi conclusão retirada do certificado de registo criminal junto aos autos. As condições socio-económicas do arguido resultaram das declarações por si prestadas. Os factos não provados resultaram da ausência de prova quanto a eles, ou da contradição em relação aos factos provados. (…)
Especificamente quanto ao enquadramento de direito, considerou o Tribunal recorrido: (…) Importa agora proceder à qualificação jurídico-penal da conduta que ao arguido vem imputada, determinando a tutela jurisdicional que o caso reclama. Como ponto de partida para o apuramento da responsabilidade criminal do arguido, se dirá que, segundo a Teoria Geral da Infracção Criminal, punível é o acto humano que preencha os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime sem que, em simultâneo, se verifiquem causas de justificação e/ou exculpação. * Vem o arguido acusado da prática do crime de AMEAÇA AGRAVADA, previsto e punido nos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, alínea a), este por referência ao artigo 131.º, todos do Código Penal, que consagram, respectivamente, o seguinte: (…) O bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e de acção. Pense-se que a ameaça espoleta um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado e, com isso, afecta a paz individual, que é condição de uma verdadeira liberdade. Ameaça é um mal futuro cuja ocorrência depende da vontade do agente – cf. Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, p. 343. Para o preenchimento do tipo objectivo do ilícito em apreço, é necessário que se verifiquem certas características essenciais do conceito de ameaça: 1. O mal, que pode ser, tanto de natureza pessoal, como patrimonial; 2. O mal não pode ser iminente, tem que ser futuro, ainda que o agente não estabeleça um prazo para o concretizar; 3. Que a ocorrência do mal ameaçado esteja na dependência da vontade do agente; 4. Que o objecto da ameaça seja a prática de um crime contra a vida, contra a integridade física, contra a liberdade pessoal, contra a liberdade e autodeterminação sexual ou contra bens patrimoniais de considerável valor – por acção, ou por omissão; 5. Que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação no sujeito passivo, ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. Quanto à arquitectura do tipo subjetivo de ilícito, a ameaça é um crime doloso, que pode ser cometido sob qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal. Considerando os factos provados, é forçoso concluir que não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo. Não basta, para afirmar que houve uma ameaça, que o arguido tenha corrido atrás do assistente com uma faca. Note-se que há outros tipos no Código Penal cuja prática também se enquadraria num acto de execução semelhante – desde o homicídio, à ofensa à integridade física, à coacção, ao roubo… Não há factos suficientes para permitir concluir que o arguido prometeu um mal1 e não um qualquer outro ilícito com actos de execução limítrofes. importando, por isso, a absolvição do arguido do crime pelo qual vem acusado. * Vem igualmente incurso o arguido na prática de um crime de DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA, importando, no caso, atentar nos seguintes normativos, que servem de base legal à imputação que é feita ao arguido: (…) O tipo em causa, crime de perigo abstracto, situa o desvalor da acção no perigo que a conduta do agente pode acarretar e destina-se a proteger a segurança comunitária, bem jurídico que se reflecte ainda na segurança e tranquilidade públicas, face aos riscos potenciados pela livre circulação e detenção de armas e outros engenhos explosivos, em virtude da sua especial potencialidade ofensiva. Trata-se de um crime de perigo comum e de perigo abstracto, o que é dizer que as condutas descritas não lesam, de modo directo e imediato, qualquer bem jurídico, mas implicam a probabilidade de vir a ocorrer um dano contra um objecto indeterminado; portanto, as condutas são sancionadas independentemente da concretização de qualquer resultado material ou dano – atenta-se unicamente ao potencial de perigosidade que trazem consigo (a consumação dá-se com o preenchimento do facto típico (crime de mera actividade). Do lado objectivo, é elemento deste tipo de crime a detenção de arma, tal qual é configurada pelo legislador, precisamente porque a detenção de armas da classe A é simplesmente ilícita2 , não sendo possível a obtenção de qualquer licença para a sua detenção, uso e porte – cf. artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro. Do lado subjectivo, este tipo de ilícito exige a conduta dolosa, em qualquer das suas modalidades, enquanto conhecimento dos elementos objectivos do tipo e a vontade de realização do facto pelo agente – artigos 13.º e 14.º, ambos do Código Penal, ex vi do artigo 105.º, n.º 1, do RJAM. Descendo ao caso concreto, ficou demonstrado que no dia ...-...-2022, pelas 14h10m, nas redondezas do café “...”, o arguido transportava consigo uma faca de cozinha com lâmina de 19 cm, fora do seu local normal de emprego, conhecendo, além disso, as características supra mencionadas, tendo agido livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei. Pelo que, atenta a conjugação objectiva e subjectiva dos elementos do tipo e a ausência de causas de exclusão da ilicitude e da culpa se impõe a condenação do arguido. (…)
Vejamos, então, na perspectiva desta Relação se merece acolhimento a pretensão do recorrente.
• Quanto aos vícios apontados à decisão: introito.
O ofendido/assistente imputa à decisão dois vícios previstos no artº 410º do Cód. Proc. Penal – contradição na fundamentação e entre esta e a decisão, e erro notório na apreciação da prova.
Comecemos por perceber o que está em causa, desde logo os termos em que solicitou o assistente a intervenção deste Tribunal de recurso que, como se sabe, dependem da forma escolhida para a impugnação que faz da decisão.
Citando o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09.01.20181 [a] impugnação da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº 2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP (é esta última norma que o recorrente invoca na sua impugnação). O sujeito processual que discorda da “decisão de facto” do acórdão pode, assim, optar pela invocação de um erro notório na apreciação da prova, que será o erro evidente e visível, patente no próprio texto da decisão recorrida (os vícios da sentença poderão ser sempre conhecidos oficiosamente e mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito, conforme acórdão uniformizador do STJ, de 19.10.95) ou de um erro não notório que a sentença, por si só, não demonstre. No primeiro caso, a discordância traduz-se na invocação de um vício da sentença ou acórdão e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; no segundo, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar. Na verdade, impõe o art. 412º, nº3 do CPP que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas. Esta especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4 do CPP). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012). O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º, nºs 3 e 4, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.” Nesta parte concordamos com o que diz o Ex. Sr. Procurador Adjunto quando diz:
“Saliente-se, contudo, que o recurso da matéria fáctica dada como assente consubstanciando um duplo grau de jurisdição nesse âmbito não significa no nosso sistema recursivo que se proceda a um segundo julgamento com a nova valoração dos depoimentos prestados. O recurso visa a decisão em concreto e não o julgamento. Deste modo, a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação só é possível em dois planos distintos. O primeiro tem por objectivo aferir da existência dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vícios que têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só conjugadamente com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos. Trata-se da verificação de erros de julgamento que se infiram do próprio texto da decisão, cujo conhecimento aliás é de conhecimento oficioso, independentemente de haver ou não recurso da matéria de facto. Um segundo plano existe no qual é possível “atacar” os factos dados como provados, procurando convencer o Tribunal da Relação a modificar a matéria de facto, pressupondo naturalmente uma reapreciação dos elementos probatórios, fundamento que tem por base o tal erro na apreciação da prova, determinativo de erro judiciário. Em tal vertente, porém, a lei exige na alínea b) do nº 3 do artigo 412º que sejam apresentadas “prova que imponha decisão diversa da recorrida”. Ou seja, neste segundo plano, a reapreciação da prova está contida dentro dos limites impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, que mais não constitui do que um ónus de especificação que impende sobre cada um dos recorrentes, sob pena de, não o fazendo, o respectivo recurso fica inviabilizado. No caso vertente, não se recorta do texto decisório qualquer daqueles vícios, que aliás podem ser conhecidos oficiosamente, nem se mostra minimamente cumprido o procedimento exigido na norma do artigo 412.º do citado compêndio legal. Acrescente-se que, e como é jurisprudência pacífica do S.T.J. (cfr. por todos o douto Sentença do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 02.03.2016 no Pº 81/12.4GCBNV.L1.S1, disponível em ww.dgsi.pt), “(…) Os vícios do n.º 2 do artigo 410º do CPP, todos eles relativos ao julgamento da matéria de facto, têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. – Quanto ao vício previsto pela al. a) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, o mesmo só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada. – Quanto ao vício previsto pela al. b) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação – quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão. – Quanto ao vício previsto pela al. c) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, o mesmo verifica-se quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio. É um vício intrínseco da sentença, isto é, que há-de resultar do texto da decisão recorrida, de tal forma que, lendo-o, logo o cidadão comum se dê conta que os fundamentos são contraditórios entre si, ou com a decisão tomada.(…)” (…)
Deixada a explicação que serve de enquadramento, vejamos então os concretos vícios apontados à decisão recorrida.
• Da alegada contradição da fundamentação e desta com a decisão.
O assistente diz que: (…) 5. Considera-se que existe vicio de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão nos termos do artigo 410.º n.º 2, al. b) do CPP. 6. Uma vez que se deu como provado que na data dos factos o arguido deslocou-se até ao café “...”, munido de uma faca de cozinha com lâmina de 19 cm de comprimento, e que ficou a aguardar a saída do assistente, e em ato continuo, desembainhou a faca e correu atras do assistente com a faca na mão. 7. Quando da prova produzida as testemunhas foram todas claras em afirmar que tinha havido um desentendimento no dia anterior entre o assistente e a esposa do arguido e que terá sido este o motivo, que levou ao arguido procurar o assistente munido com a faca naquele dia. 8. Tendo afirmado o assistente e as testemunhas que se encontravam naquele local, e que foram inquiridas na PSP, mantendo sempre as mesmas declarações, ao contrário do arguido que foi alterando as mesmas, onde afirmaram em sede de julgamento que o arguido proferiu a expressão: “vou-te matar se não for hoje vai ser outro dia, vou-te tirar as tripas fora”. (…)
Porém, a decisão recorrida tem como objecto de apreciação a acusação pública deduzida [porque a particular foi rejeitada] e esta não relata o que se passou no dia anterior aos factos que considera indiciados, e nem devia fazê-lo, uma vez que os mesmos não estavam, para o Ministério Publico, no objecto desta investigação.
Em rigor, não se percebe onde encontra o assistente a oposição entre o que acabou de se citar, uma vez que basta a leitura do que antecede para perceber que não existe nenhuma contradição naqueles factos.
Nada resulta daquele primeiro resumo que faz dos factos provados [em 5 das conclusões] que esteja em oposição com o resto, pois que o Tribunal a quo não afirmou que nada aconteceu no dia anterior, tendo-se limitado a dizer, repete-se, como devia, o que se passou no dia dos factos que estão a ser julgados.
Quanto a essa contradição, como tal, improcede a alegação, bem como no que respeita à fundamentação da prova que a esse respeito consignou o Tribunal recorrido, bastando a leitura dessa fundamentação para se perceber que ela está em harmonia com os factos que se consideraram provados.
Assim como também se não entende que o assistente diga: (…) 10. O tribunal não fundamenta tal facto na decisão, limitasse a dizer que “não se sabe o que se passou”. Quando TODOS, inclusive o arguido e as suas testemunhas tentaram explicar o que tinha acontecido no dia anterior e o tribunal insistiu, que essa matéria não era tida na acusação. Vide gravações. 11. Alegando ainda o tribunal a quo de que: “ficou sem saber, afinal, quem relatou a verdade”. (…)
Quando, de facto, não sabe o que se passou no dia anterior e nem isso estava a ser julgado aqui.
O objecto da prova é o objecto do processo que, por sua vez, neste caso, foi fixado pela acusação do Ministério Público.
Tudo o resto não é objecto de julgamento e não pode ser objecto de prova, a menos que daí possa decorrer alteração de factos essenciais, substanciais ou não, ou factos que enquadrem eventuais causas de exculpação ou justificação.
O facto de, no Tribunais nacionais, se ter criado o hábito – e apenas porque a direcção de audiência permite – de se trazer para os julgamentos crime tudo aquilo que se entenda repartir com o mundo, não significa que o Tribunal possa conhecer desses factos, uma vez que o thema decidendum está fixado com a acusação.
Os factos do dia anterior apenas serviam aqui para ilustrar a circunstância de o arguido e assistente considerarem, ou um deles considerar, que teria havido um facto perturbador nos dias imediatamente anteriores.
Por outro lado, o Tribunal forma a sua convicção livremente, respeitando os princípios da legalidade/admissibilidade da prova.
O Tribunal não decide como parece melhor a um dos Intervenientes processuais.
E quando o Tribunal a quo diz: (…) Foram ainda ouvidos DD e EE, cuja credibilidade ficou desde logo afectada, uma vez que DD afirmou que a testemunha FF teve que insistir 3 vezes com o arguido para que este lhe entregasse a faca. Porém, a testemunha FF afirmou de forma pronta a desinteressada que não teve que insistir, uma vez que o arguido não ofereceu resistência a entregar o dito objecto. Ademais, EE asseverou que a testemunha CC telefonou para o seu marido a dar conta do que estava a suceder, precisamente ao contrário do que disse a própria testemunha CC, que garantiu que telefonou para EE e não para DD. A testemunha CC asseverou que não ouviu que expressões proferidas, não tendo o arguido dirigido ao assistente quaisquer palavras no interior do estabelecimento a que se reportam os factos. Já as testemunhas GG e HH não tiveram préstimo para a prova dos factos, por não saberem o que se passou no café “...”. Aqui chegados, merece credibilidade a versão do assistente? Também se entende que não. Repare-se: o assistente começou por dizer que não sabia que o arguido estivesse irritado por causa dos tais acontecimentos da noite anterior, em que terá sido insultada a sua mulher, pretensamente pelo assistente. Porém, a testemunha CC, que não ouviu nada do que o arguido terá dito ao assistente, só sabia que estavam a discutir e que o arguido estava a apontar a faca ao assistente, afirmou de forma clara e segura que o assistente lhe havia contado da tal confusão do dia anterior. Com isto não se pretende significar que nada se passou. Só não se sabe o que se passou. O arguido terá apontado uma faca ao assistente, porém, seria essencial, para o caso, saber o contexto, o conjunto. Saber o que disse o arguido ao assistente enquanto lhe apontava a faca. E isso não se sabe. De todo o modo, adicione-se que a versão do arguido de que o assistente lhe deu um golpe de peito que o fez cair também não colhe. Com efeito, é altamente contrário às regras da experiência que o arguido tenha caído de costas, em cima da faca que trazia nas calças, uma faca com 19 cm de lâmina, mas não tenha ficado ferido – o próprio garantiu que não ficou ferido. Por estes motivos, ficou sem se saber, afinal, quem relatou a verdade. (…)
e atendendo a que a impugnação se cinge aos termos do artº 410º citado, não decorre da leitura desta fundamentação qualquer contradição.
O que decorre à a avaliação do Tribunal de julgamento, primeiro sobre a credibilidade das testemunhas, depois sobre a contribuição dos seus depoimentos para o esclarecimento dos factos.
O Tribunal explicou porque razão considerou menos valiosos ou mesmo sem qualquer valia algumas declarações e porque razão entendeu que as testemunhas não esclareceram suficientemente os factos.
Nenhuma contradição resulta da leitura desta fundamentação.
Por outro lado, também nenhuma contradição resulta desta fundamentação com a decisão, uma vez que, como expressamente refere o Tribunal a quo, os factos que não apurou em julgamento são o motivo da absolvição por que decidiu a final.
E aqueles de que considerou haver prova são aqueles que sustentam a condenação.
Mais uma vez, nada de contraditório resulta da exposição dos motivos por que se considerou provada e não provada a matéria de facto nos termos em que se fez decisão essa que se harmoniza, a final, com a decisão.
Improcede, como tal, este fundamento de recurso também.
A decisão recorrida não evidencia, pois, o vício apontado e previsto no artº 410º, nº 2, al. b) do Cód. Proc. Penal.
• Quanto ao invocado erro notório na apreciação da prova.
O recorrente diz2: (…) 12. Existe assim erro notório na apreciação da prova nos termos do artigo 410.º n.º 2, al. c) do CPP. 13. Considera-se que existe um erro evidente, crasso, escancarado a luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da analise feita por um tribunal de recurso ou um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para duvidas, que a prova foi erroneamente apreciada, quando se dá como não provado um facto que notoriamente está errado, que quando usando um processo racional e lógico, dos factos se retira uma conclusão ilógica, arbitraria e contraditória, ou até notoriamente violadora das regras da experiencia comum. 14. Da matéria dos factos provados é incompatível ou irremediavelmente contraditório com o princípio in dúbio pro reo. 15. Existe um erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência. 16. Um individuo, que se desloca a um Café com uma faca de 19 cm, que fica no exterior a espera que o assistente saia e depois corre atras deste com a faca empunhada, alguma coisa disse ao assistente, para este saltar de uma varanda com alguns metros de altura. 17. O assistente e as testemunhas presentes no local declararam o que, o arguido disse, que terá sido uma ameaça, mas o tribunal não fundamenta na decisão, alegando não existir meios de prova. (…)
A resposta que demos supra já responde a esta questão.
No entanto, vejamos ainda.
O assistente mistura aqui, como sai evidente, a contradição com o erro.
O que invoca é contradição, a que já antes se deu enfoque negativo.
E também já se disse que uma coisa é a discordância do recorrente quanto àquilo que entende que o Tribunal deia dar como provado, e outra coisa é a concreta verificação do vício decisório.
O Tribunal forma livremente a sua convicção (artº 127º do Cód. Proc. Penal) na concretização daquele que é um princípio estruturante do processo penal democrático.
O que o Tribunal tem de fazer, por imposição constitucional e legal é fundamentar, ou seja, explicar o seu processo decisório de modo a que seja claramente percepcionado pelos destinatários.
O Tribunal, repete-se, explicou porque razão deu valor a uma prova em detrimento de outra e explicou também porque razão não foi persuadido pelas declarações do ofendido/assistente.
Nada na sua explicação evidencia que ponderou mal esse aspecto.
Quanto à existência e dimensões da faca, que o recorrente teima em apontar à decisão como omissão de avaliação desta, fica muito claro logo no facto provado inicial que o Tribunal deu como provada a sua existência e dimensão, pelo que nem se percebe a associação de ideias que o recurso faz entre essa factualidade e as apontadas contradições ou erros do Tribunal.
E quando o Tribunal «salta» da presença da faca na posse do arguido [e que, aliás, levou à sua condenação pela posse dela] para a circunstância de o ofendido ter abandonado o local pela janela, é porque, como explica, não apurou de forma que considerou convincente, a restante factualidade. (…) Da prova resultaram duas versões contrárias quanto a o arguido ter dirigido ao assistente as expressões “vou-te matar se não for hoje vai ser outro dia, vou-te tirar as tripas fora”: Por um lado, a versão trazida pelo arguido, de que, embora o assistente se tivesse desentendido anteriormente com a família da mulher do arguido, a verdade é que não levou a faca para o café “...” para ameaçar ninguém. Simplesmente, porque havia estado na fazenda a trabalhar com a faca, decidiu sair para comprar tabaco e acabou por levá-la para o local onde ocorreram os factos. Adicionou que inicialmente havia guardado a faca nas botas e que depois a passou para as calças. Negou, no entanto, que tenha ameaçado o assistente, adicionando que quando ia a sair do dito bar o assistente saltou do varandim onde se encontrava, dirigiu-se ao arguido e deu-lhe um golpe de peito, que fez o arguido cair, altura em que o assistente fugiu, tendo chegado os pais do assistente. Afirmou que o assistente se terá desentendido com a família da mulher do arguido, mas que não foi ao bar para qualquer ajuste de contas, tendo mantido sempre a faca guardada. Por outro lado, a versão do assistente, de que se encontrava dentro do bar quando o arguido entrou para comprar tabaco, voltou a sair e fez-lhe uma espera. Quando chegou ao bar não sabia que o arguido estava incomodado por causa dos acontecimentos da noite anterior, só suspeitou que estivesse chateado porque estava a olhar para o assistente “atravessado” e fez um sinal querendo significar que estava à sua espera. Foi nessa altura que a sua prima CC – a testemunha CC – pediu o número dos pais do assistente para lhes telefonar. Porém, na sua versão, saltou do varandim para fugir, nessa altura os seus pais já estavam a chegar, adicionando que o arguido lhe terá dito em português que lhe ia tirar as tripas, se não fosse nesse dia, seria noutro, correndo atrás do assistente com a dita faca. Foram ainda ouvidos DD e EE, cuja credibilidade ficou desde logo afectada, uma vez que DD afirmou que a testemunha FF teve que insistir 3 vezes com o arguido para que este lhe entregasse a faca. Porém, a testemunha FF afirmou de forma pronta a desinteressada que não teve que insistir, uma vez que o arguido não ofereceu resistência a entregar o dito objecto. Ademais, EE asseverou que a testemunha CC telefonou para o seu marido a dar conta do que estava a suceder, precisamente ao contrário do que disse a própria testemunha CC, que garantiu que telefonou para EE e não para DD. A testemunha CC asseverou que não ouviu que expressões proferidas, não tendo o arguido dirigido ao assistente quaisquer palavras no interior do estabelecimento a que se reportam os factos. Já as testemunhas GG e HH não tiveram préstimo para a prova dos factos, por não saberem o que se passou no café “...”. Aqui chegados, merece credibilidade a versão do assistente? Também se entende que não. Repare-se: o assistente começou por dizer que não sabia que o arguido estivesse irritado por causa dos tais acontecimentos da noite anterior, em que terá sido insultada a sua mulher, pretensamente pelo assistente. Porém, a testemunha CC, que não ouviu nada do que o arguido terá dito ao assistente, só sabia que estavam a discutir e que o arguido estava a apontar a faca ao assistente, afirmou de forma clara e segura que o assistente lhe havia contado da tal confusão do dia anterior. Com isto não se pretende significar que nada se passou. Só não se sabe o que se passou. O arguido terá apontado uma faca ao assistente, porém, seria essencial, para o caso, saber o contexto, o conjunto. Saber o que disse o arguido ao assistente enquanto lhe apontava a faca. E isso não se sabe. (…)
Aceitando que, na sua perspectiva, as duas versões em oposição sobre os factos, a do arguido e a do ofendido, não tinham, qualquer delas, obtido consenso nos depoimentos das testemunhas, pelos motivos que também deixa claros, decidiu pela sua não prova.
Aliás, o Tribunal a quo diz mesmo mais3: (…) As testemunhas não podem ter a pretensão de contar meias verdades, de relatar uma parte da história e omitir outra e esperar que o tribunal faça uma selecção de factos que convenha à versão da acusação, mais ainda sabendo que houve focos de incoerência na prova produzida quanto às expressões que o arguido tenha dirigido ao assistente. As testemunhas ou são coerentes, ou passam uma versão verosímil dos factos, ou não. Não se é meio coerente, nem meio verosímil. O tribunal não esteve no local e só poderia socorrer-se de uma prova retumbante para afastar qualquer dívida. E não foi essa contundência que as testemunhas da acusação trouxeram quanto às expressões que o arguido terá alegadamente dirigido ao assistente. Ficou sem se saber que expressões foram dirigidas pelo arguido ao assistente. Perante o que, ficou o tribunal colocado na dúvida razoável quanto aos factos respeitantes às expressões “vou-te matar se não for hoje vai ser outro dia, vou-te tirar as tripas fora”, tendo que, por força do princípio in dubio pro reo, dá-los como não provados. (…)
Nada de errado se vislumbra nesta decisão. Aliás, em face da motivação que deixa, nem sequer outra poderia ter sido a conclusão do Tribunal.
Não existe, como tal, também nenhum erro na apreciação da prova.
Assim, tal como refere a decisão recorrida, o Tribunal de julgamento ficou na dúvida sobre os acontecimentos, sendo que não se prefigura como despicienda a mesma, uma vez que os factos sobre que existem certezas não permitem uma configuração típica além do que foi decidido em primeira instância. Pelo que também não há qualquer incompatibilidade, como se alega, entre a prova e a dúvida quanto à valia da mesma manifestada pelo Tribunal de julgamento.
Como tal, da decisão não decorre aparente qualquer erro notório na apreciação da prova, improcedendo também este fundamento de recurso.
• Finalmente, o invocado errado enquadramento de direito.
Esta seria uma decorrência da procedência dos apontados vícios que, no entanto, não se verificou.
De facto, atenta a factualidade provada que, como já se disse antes, nada tem que se lhe aponte, não pode proceder esta pretensão do recorrente porque dos factos provados nada resulta mais do que aquilo a que se deu procedência, e que é a posse da faca (arma) pelo arguido naquelas circunstâncias.
Ou seja, dos factos que o Tribunal recorrido considerou provados não decorre a imputação, objectiva ou subjectiva, de qualquer crime do artº 153º e 155º do Cód. Penal, como pretende o recorrente.
Nem as circunstâncias objectivas se provaram, e a posse da arma não chega para esse efeito, e nem se provou qualquer intenção de ameaçar por parte do arguido.
Aliás, tal é assim mesmo quando se considere o facto provado em 6, uma vez que se desconhecem as concretas circunstâncias disso. Não podendo concluir-se que o assistente fugiu por causa disso, já que da conjugação do facto 5 com o 6 resulta evidente que a fuga se deu antes, e nem se pode retirar que o assistente disso sabia, se tenha disso apercebido, sentindo-se ameaçado com essa circunstância, até porque se colocou em fuga do local antes dessa perseguição.
Portanto, mesmo na perspectiva dessa factualidade, desconhece-se o que efectivamente aconteceu para que se considerasse a tipicidade desse ou de outro crime preenchida.
Como tal, também nesta parte é de confirmar a decisão, improcedendo o recurso.
Nada havendo, como tal, ainda, a apontar à improcedência do pedido de indemnização deduzido no processo, que é também de manter.
Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto pelo assistente AA, mantendo-se a decisão do Tribunal a quo.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC’s e demais encargos legais.
Notifique.
Lisboa, 14 de Julho de 2025
Texto processado e revisto.
Redacção sem adesão ao AO
Hermengarda do Valle-Frias
Ana Paula Grandvaux
Ana Rita Loja
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1. Relat. Desembargadora Ana Maria Barata Brito – www.dgsi.pt\tre. e com destaques nossos a bold.
2. Destaque nosso
3. Ainda destaques nossos.