MEDIDA DE COAÇÃO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VIOLAÇÃO DE IMPOSIÇÕES
Sumário

I - Para que se aplique qualquer medida de coação têm que ocorrer indícios da prática de um crime.
II – Não se indicia a prática de um crime de violência doméstica quando o recorrente, durante o período de suspensão da execução de pena de prisão aplicada em processo anterior - no qual se decidiu ainda a proibição de contactos com a ofendida -, efetua para o local de trabalho desta várias chamadas telefónicas, atendidas por colegas de trabalho, a partir de um número não identificado, dizendo o seu nome e perguntando pela ofendida, insistindo, sempre sem sucesso, e por vezes usando de linguagem inadequada, por chegar à fala com ela.
III – Tais factos indiciados apenas se subsumem ao crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo disposto no artigo 353.º do Código Penal.
IV - A liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei.
IV - Os princípios da necessidade, da adequação, da proporcionalidade, da subsidiariedade e da precariedade são corolários do princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória.
IV - A medida de coação prisão preventiva não é admissível no caso em que o recorrente está fortemente indiciado pela prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, cometidos durante o período de suspensão da execução de pena de prisão aplicada em processo respeitante à mesma vítima. Atenta a moldura penal abstrata prevista no artigo 353º do Código Penal, não se podem aplicar as medidas de coação previstas nos artigos 202º, 201º, 200º ou 199º do Código de Processo Penal.
V - Existindo evidente perigo de continuação da atividade criminosa, deve a medida de coação prisão preventiva ser revogada e, em sua substituição, ser aplicada a medida de obrigações periódicas.

Texto Integral

Acordam as Juízas Desembargadoras da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
Da decisão
I. Nos autos de inquérito nº 306/25.6GDMFRdo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Instrução Criminal de Sintra, Juiz 2, foi proferida decisão, em 11.06.2025, após diligência de primeiro interrogatório judicial, que determinou que o arguido AA aguardasse a tramitação dos autos sujeito à medida de coação de prisão preventiva, a acrescer ao termo de identidade e residência já prestado.
Do recurso
II. Inconformado, recorreu o arguido AA, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
« I-
O presente recurso tem como objeto toda a matéria da decisão que aplicou a prisão preventiva ao arguido, ora recorrente.
II-
O Recorrente foi presente a 1º. Interrogatório judicial em 11.06.2025, onde lhe foi decretada a medida de coação de prisão preventiva, enquanto suspeito de um crime de Violência Doméstica agravada, p.p. pelo artigo 152º., nº.1, al. b), nºs.2, al. a), 4 e 5, do Código Penal e de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p.p. pelo disposto no artigo 353º., do Código Penal. Pelo que, está preso no ... desde 11.06.2025.
III-
Na sua fundamentação, entendeu a senhora Juiz a quo, que só a medida de coação de prisão preventiva o impedirá de contactar com a queixosa e como tal, invocou que “é premente o perigo de continuação da atividade criminosa porquanto o arguido perpetrou os factos pelos quais vem indiciado em período de liberdade condicional, após condenação no processo mº.148/22.0PBOER, onde lhe havia sido aplicada a pena acessória de proibição de contactos com a vítima por qualquer meio, o que mesmo assim não o coibiu de praticar atos da mesma natureza, quando restituído à liberdade”.
IV-
O tribunal a quo também considerou que a permanência na habitação não se mostra suficiente para acautelar o perigo em causa.
V-
O Recorrente não pode concordar que estejam verificados os pressupostos legais exigíveis para a aplicação de medida tão gravosa como é a prisão preventiva., até pelo facto de não haver prova que se possa valorar.
Porquanto,
VI-
Os factos em investigação nos autos, não têm qualquer sustentabilidade, sendo, alegadamente, chamadas anónimas que se afirmam terem sido feitas, por quem se apresenta como AA, e outra BB, dizendo as próprias testemunhas que não conhecem o AA, nunca o viram ou falaram com ele.
Por outro lado, pode ter sido qualquer pessoa a efetuar tais chamadas, servindo-se do nome do recorrente e de um BB, ou até a própria queixosa a mandar fazê-lo, já que anteriormente também utilizou o mesmo esquema de telefonemas, devendo o tribunal investigar quem seja essa pessoa, se existir, não se entendendo mesmo, por que razão só se chamou aos autos o aqui recorrente, deixando de fora o tal de BB.
VII-
O recorrente NEGA ter feito tais chamadas telefónicas. Por outro lado, o M.P., também não prova que tais telefonemas anónimos foram efetuados pelo arguido/recorrente.
O prender e depois investigar, em casos tão ausentes de prova, não se compagina com os direitos humanos, sendo considerado uma violação destes direitos, pois infringe o princípio da presunção de inocência e o direito à liberdade.
VIII-
A prisão preventiva aplicada injustificadamente, ao recorrente, prejudica claramente a sua reinserção que tem vindo a fazer na sociedade. Este tem trabalho na ..., no programa da ... “...”, e em ..., tem um contrato assinado para trabalhar com a “...”, em especial como ... no programa “...”.
IX-
As falsidades de alegadas chamadas anónimas que se declara, sem prova alguma, serem do recorrente, são algo que a queixosa no passado, já tentou fazer com ele. Na altura, aquela não conseguiu, na medida em que este estava preso em ..., e provou-se não ser verdade, por total falta de provas (conforme doc. que se juntou ao processo). No entanto, aquela voltou a utilizar os mesmos meios, socorrendo-se agora de testemunhas que nem conhecem o arguido nem nunca o viram ou ouviram.
A VD é um flagelo mas, tem-se vindo a assistir também, a muitos aproveitamentos destes processos por aquelas pessoas que usando os meios do estado, criam esquemas para prejudicar o outro, bem sabendo que o conseguem com qualquer argumento, mesmo que sem prova sustentável, tornando-o um eterno condenado e, com isto, retiram tempo aos tribunais para tratar dos verdadeiros processos de V. Doméstica.
X-
Apontam-se chamadas anónimas de AA. mas também de BB.
Porque não se trouxe também o BB, é uma interrogação que se faz.
Certo é que, não é caso para se prender alguém com base em provas que não se podem admitir valorar, como é o caso das chamadas anónimas atendidas por quem diz não conhecer a pessoa que se faz passar pelo nome que indica.
XI-
Alegar-se que o recorrente ligou várias vezes, acrescentando que não atenderam as chamadas, também é ilustrativo da incoerência da afirmação de ser o recorrente que ligou.
XII-
Entende-se até, que as alegadas chamadas anónimas, de que o MP não fez prova cabal se existiram ou de quem as fez, não terão existido, fazendo parte de um qualquer esquema da queixosa, coadjuvado pelas testemunhas, para exercer vingança, levando o recorrente a ficar em prisão preventiva.
XIII-
Entende o recorrente que terá sido em ... que a queixosa soube de que ele estava em liberdade (mas, já estava desde ..., o que ela pelo que afirma, desconhecia) e, arquitetou o plano para o colocar novamente preso, plano esse que também já antes usou.
XIV-
O recorrente está familiarmente inserido, tem família que totalmente o apoia, nomeadamente a mãe, a quem presta e recebe incondicional apoio.
XV-
Reitera-se que todas as chamadas anónimas que deram origem aos presentes autos, não são prova cabal para sustentar uma prisão preventiva, sendo que, em bom rigor jurídico, não se faz prova nos autos, de que fora o recorrente a tê-las efetuado,
XVI-
Qualquer pessoa pode ligar de número anónimo e dizer que é o arguido, não sendo correto, que a sra. Juiz a quo não tenha colocado em dúvida ter realmente, sido o recorrente a efetuar tais chamadas, e com isso cumprido o princípio do in dúbio pro reu.
XVII-
Um dos princípios basilares de um Estado de Direito é o Princípio da Liberdade do cidadão, o qual está, no nosso ordenamento jurídico, consagrado no art. 27º., nº.1, da Constituição da República Portuguesa. Assim, só em situações de maior gravidade e por imperativo social relevante, tal princípio poderá ser limitado- art. 191º, nº.1, do CPP.
XVIII-
A aplicação da prisão preventiva deverá obedecer a princípios de adequação, necessidade e proporcionalidade, nos termos dos artigos. 191º a 195º., do CPP, e requisitos gerais, nos termos dos artigos 204º., bem como aos específicos consagrados no art. 202º.
XIX-
A Prova não se deve fundar em informações anónimas sem se poder proceder à verificação, nomeadamente, da sua origem. Se assim não for possível, a prova não deve ser valorada, contrariamente ao que foi feito pelo tribunal.
XX-
A prova obtida por meios proibidos, deve ser inutilizada, não devendo servir sequer como notícia do crime, pois é como se não existisse. Mas, tal não foi observado pelo tribunal a quo.
XXI-
Desconhecendo-se quem possa estar por trás de telefonemas anónimos, ou até se eles existiram, se suspeita da veracidade do seu conteúdo. Isto porque se o denunciante ou a autoridade criminal não obtêm as provas através dos meios colocados à disposição pelo Estado de Direito, a própria atuação não merece confiança. Como podemos garantir que a transmissão das informações é verdadeira e não falsificada com alguma intenção subjacente? São, portanto, prova proibida, não se podendo aferir a credibilidade dessa obtenção de prova, de quem estava por trás da mesma, devendo ser considerada como não podendo ser valorada em tribunal.
XXII-
Sem prescindir e admitindo-se por mera hipótese que existissem os perigos plasmados no art. 204º., als. b) e c) do CPP, os mesmos, no caso em análise, nunca teriam a carga atribuída pelo tribunal a quo, não podendo justificar a medida de coação mais gravosa- a prisão preventiva.
XXIII-
In casu, não foram sequer, mencionados factos suscetíveis de permitir a aplicação de medida tão gravosa ao recorrente, tendo os mesmos assentado apenas em chamadas anónimas que não se sabe quem terá efetuado ou mesmo se existiram, mas que se afirma terem sido feitas pelo Recorrente, sem que se faça prova desse facto- art. 204º, do CPP.
XXIV-
O arguido presume-se inocente até ao trânsito em julgado de sentença condenatória, e à luz do sistema penal atual e vigente, é de carácter excecional, a medida de prisão preventiva, o art.° 32º., n. °2 da CRP.
Assim,
Analisando os factos, baseados em prova que não se poderá considera cabal, não se podendo valorar, porquanto assente em chamadas telefónicas anónimas, por quem se desconhece ter feito, ou se realmente existiram, os referidos preceitos, deviam ter sido interpretados no sentido de ser suficiente face às necessidades cautelares em causa, a aplicação de uma medida de coação menos gravosa, nomeadamente apresentações semanais na esquadra policial, ou por aplicação de vigilância eletrónica com botão de pânico, porquanto, não se coloca em causa o perigo de continuação da atividade criminosa, atividade essa inexistente por não comprovada.
Não o fazendo, violou a Senhora Juiz a quo, o princípio do in dúbio pro reu, o da presunção de inocência, bem como, os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade, condições gerais contidas nos arts. 191º a 195º., do CPP, bem como aos requisitos gerais previstos no art. 204º., e aos específicos consagrados no art. 202º, de aplicação da prisão preventiva.
Estado deve garantir que a prisão preventiva seja utilizada de forma excepcional eque a investigação seja realizada de maneira célere e eficiente, respeitando a presunção de inocência e o direito à liberdade de todos.
TERMOS EM QUE, MEDIANTE A INEXISTÊNCIA DE PROVA VALORÁVEL, DEVE O DESPACHO RECORRIDO SER SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE REVOGUE A PRISÃO PREVENTIVA APLICADA AO RECORRENTE, E APLIQUE A ESTE, OUTRA MEDIDA DE COAÇÃO,MENOS GRAVOSA, QUE RESPEITE OS PRINCÍPIOS DA NECESSIDADE, ADEQUAÇÃO, PROPORCIONALIDADE E, MENOR INTERVENÇÃO, DESIGNADAMENTE, A OBRIGAÇÃO DE APRESENTAÇÕES PERIÓDICAS NA ESQUADRA POLICIAL, OU A PROIBIÇÃO DE SE APROXIMAR DA QUEIXOSA, EFETUADA ATRAVÉS DE VIGILÂNCIA ELETRÓNICA COM BOTÃO DE PÂNICO».
Da admissão do recurso
III. Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito devolutivo.
Da resposta
IV. Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
«A. Em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, a Mm.ª Juíza de Instrução criminal aplicou ao arguido AA a medida de coação de prisão preventiva, porquanto indiciam suficientemente os autos a prática, na forma consumada e em concurso real um crime de violência doméstica p. e p. pelo disposto no artigo 152º, n.º1, alínea b), n.ºs 4 e 5 do Código Penal em concurso real com um crime de violação de imposições, proibições e interdições p. e p. pelo disposto no artigo 353º do referido diploma legal.
B. Para tanto, assentou a sua convicção na prova já existente nos autos.
C. Inconformado, o arguido considera que o despacho recorrido viola os princípios da adequação, proporcionalidadeenecessidade esubsidiariedadevertidos nos artigos 193º, 194º, 202º e 204º do Código Penal e 18º, n.º2 e 32º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa.
D. Requerendo, em conclusão, que o despacho que determinou a aplicação da medida de coação de prisão preventiva ao arguido seja revogado e substituído por outro que determine que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito às medidas de coação de obrigação de apresentação periódicas e proibição de contatar, por qualquer forma, com a vítima, ao abrigo do disposto nos artigos 198º e 200º, n.º1, alínea c) ambos os preceitos do Código de Processo Penal, com recurso à fiscalização eletrónica.
E. Contudo, analisando as conclusões apresentadas pelo arguido/Recorrente não se vislumbra, em momento algum aduzido, em concreto, qualquer argumento de onde resulte evidenciada a violação dos princípios que invoca, nem é apontada qualquer vicissitude processual, designadamente, ao nível da indiciação dos factos e/ou dos perigos concretos em que se fundamentou a aplicação da medida de coação em crise nos autos, que impusesse conclusão diversa daquela a que chegou o Mm.º Juiz de Instrução Criminal.
F. Pese embora o arguido considere que os elementos probatórios em que se fundou a decisão de lhe aplicar a medida de coação mais gravosa prevista no ordenamento jurídico, alegando que a mesma se alicerçou em telefonemas anónimos, sendo tal prova proibida, devendo ser desvalorada, não assiste razão ao arguido /Recorrente.
G. Na verdade, os elementos probatórios que sustentaram a aplicação da medida de coação ora em crise, foram elementos probatórios testemunhais, concretamente, as declarações da vítima e, bem assim, das suas colegas de trabalho que relataram, até com algum melindre, os telefonemas que efetivamente atenderam e em que o autor se identificou como sendo o arguido.
H. Com base na prova testemunhal carreada para os autos, sem que exista qualquer elemento probatório avançado pelo arguido que coloque em causa a veracidade desses mesmos depoimentos, bem andou a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal, na análise dos indícios constantes dos autos ao concluir que aprovatestemunhal carreada paraos autos não deixam dúvidas quanto à identidade do autor dos telefonemas relatados pelas testemunhas.
I. Para além disso, bem assim andou a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal ao considerar que, não obstante o arguido ter-se limitado a negar a sua prática “as suas declarações não resistem ao confronto com as declarações acima referidas, às demais provas carreadas para o processado, nem tampouco às regras da experiência e senso comum até o arguido se limitou a negar a prática dos factos, o que pro si não tem a virtualidade de bulir com o material probatório junto ao processado”.
J. Prosseguindo, quanto à apreciação dos perigos que se faziam sentir, que a circunstância dos factos em apreço nos autos terem sido praticados no período de liberdade condicional após condenação no âmbito do Processo148/22.0PBOER onde lhe havia sido aplicada a pena acessória de proibição de contato com a vítima por qualquer meio, intensificam o perigo de continuação da atividade criminosa, uma vez que oarguido não se coibiu de praticar atos da mesma natureza quando restituído à liberdade.
K. Acrescentado, no que às características de personalidade do arguido que o mesmo “não revela qualquer sinal de arrependimento ou sequer de assunção do desvalor da sua conduta, tendo limitado a negar sem mais a prática dos factos, para além de que é manifesta a indiferença para com a condenação anterior em pena de prisão efetiva”,
L. Concluindo que só uma medida de coação privativa da liberdade seria apta a impedir que o mesmo contatasse com a vítima.
M. Não obstante, ponderou ainda o Tribunal a quo a possibilidade de ao arguido ser aplicada a medida de coação de Obrigação de Permanência na Habitação com vigilância eletrónica tendo, contudo, afastado a possibilidade da sua aplicação por considerar que a premência do perigo de continuação da atividade criminosa por parte do arguido e o modus operandi do mesmo, não ficariam acautelada com a sua aplicação.
N. Aqui chegados, cumpre salientar que, analisando as suas conclusões de recurso, o arguido/Recorrente não aponta qualquer vicissitude processual, designadamente, ao nível da indiciação dos factos e/ou dos perigos concretos em que se fundamentou a aplicação da medida de coação em crise nos autos, que impusesse conclusão diversa daquela a que chegou a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal.
O. Na realidade o arguido recorrente limita-se a afirmar que, do seu ponto de vista, os elementos probatórios em que o Tribunal a quo alicerçou a decisão consubstanciam prova proibida, por constituírem telefonemas anónimos que, sem confirmação, não deveriam ter sido valorados e, bem assim, que existiriam outras medidas de coação menos gravosas do que a prisão preventiva que veio a ser aplicada ao arguido, sendo esta excecional, só podendo ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação.
P. Sucede que, mais uma vez, não assiste razão ao arguido/recorrente.
Q. Por um lado, a decisão ora recorrida fundamentou-se na prova testemunhal existente nos autos e não nos telefonemas anónimos de per si.
R. Por outro, não se limitou a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal a afirmar, de forma isolada e desgarrada, que a única medida de coação adequada, proporcional e suficiente para acautelar os perigos que se faziam sentir nos autos, era a medida de coação de prisão preventiva.
S. A Mm.ª Juíza de Instrução Criminal, considerou, ponderou e, após, afastou, explicando as razões que a conduziram a tal conclusão, a aplicação de outras medidas menos gravosas do que prisão preventiva.
T. Na verdade, como resulta da decisão ora em crise, a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal, com base nos elementos probatórios que considerou suficientemente indiciados explicitou a razão pela qual, face ao disposto no artigo 193º, n.º3 do Código de Processo Penal, amedidadeOPHVEnão serevelavaadequada, nem eficaz pararemover o perigo que considerou existir, com intensidade, nos autos, uma vez que os factos foram praticados através de contatos telefónicos.
U. Assim, consideramos não assistir razão ao arguido recorrente, não merecendo, a decisão recorrida, qualquer reparo quanto à apreciação, quer dos indícios coligidos, quer dos perigos que determinaram a aplicação da medida de coação de prisão preventiva e a adequação, necessidade e proporcionalidade da mesma, princípios norteadores da sua aplicação.
V. Com efeito, a Mm. ª Juíza de Instrução teve em consideração toda a prova existente nos autos e, com base nela, fez uma análise quanto à suficiência dos indícios e, bem assim, quanto à existência e intensidade dos perigos que permitem fundamentar a aplicação das medidas de coação.
W. Temos assim, que a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal, fundamentou devidamente porque entendia que apenas a aplicação da medida de coação mais gravosa para o arguido seafigurava adequadaenecessáriaparaacautelar as finalidades processuais que as medidas de coação visam acautelar.
X. Pelo que, a medida de coação aplicada ao arguido se mostra em obediência com o estatuído nos artigos 202º, n.º 1, alínea a) e 204º, ambos os preceitos do Código de processo Penal.
Y. O despacho ora recorrido fundamentou porque considerava existir intenso perigo de continuação da atividade criminosa e justificou porque considerava que, no caso em concreto, apenas a medida de coação de prisão preventiva se mostrava adequada e necessária para assegurar as finalidades processuais que as medidas de coação visam acautelar.
Z. Face ao tudo o que se expos, é forçoso que se conclua que bem andou a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal, na apreciação da prova e na apreciação da personalidade do arguido e dos perigos que se fazem sentir nos autos.
AA. Nos termos do disposto no artigo 204º do Código de Processo Penal, supracitado, nenhuma medida de coação, à exceção do termo de identidade e residência, pode ser aplicada, se em concreto, não se verificar existir qualquer dos fundamentos previstos numa das alíneas deste preceito. Ou seja, constitui pressuposto essencial e imprescindível para que ao arguido possa ser aplicada uma qualquer medida de coação, que não o termo de identidade e residência, que se verifique no caso concreto, pelo menos, um dos fundamentos das várias alíneas do artigo 204º Código deProcesso Penal, o que, in casu, se verifica.
BB. Face ao tudo o que se expos, é forçoso que se conclua que bem andou o Mm. º Juiz de Instrução Criminal, na apreciação da prova e na apreciação da personalidade do arguido e dos perigos que se fazem sentir nos autos.
CC. Pelo que, considerando tudo o que supra se aduziu, forçoso é de concluir que o presente recurso deve ser julgado totalmente improcedente.
DD. Devendo, por isso, confirmar-se, a decisão recorrida».
Do parecer nesta Relação
V. Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer que, acompanhando a posição assumida pelo mesmo na primeira instância, concluiu pela improcedência do recurso.
Da resposta ao parecer
VI. Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, o recorrente manteve a sua posição.
VII. Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
OBJETO DO RECURSO
O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º/2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar. Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
1. Da insuficiência de indícios.
2. Da adequação, para as exigências cautelares do caso concreto, da decidida aplicação da medida de coação de prisão preventiva.
DA DECISÃO RECORRIDA
Da decisão recorrida consta o seguinte (transcrição):
«DECISÃO SOBRE MEDIDA DE COAÇÃO
**
Julgo válida a detenção do arguido AA porque efetuada a coberto de mandado de detenção emitido fora de flagrante delito pela autoridade judiciária com respeito pelas formalidades legais e tempestiva a sua apresentação em juízo (artigos 254.º, n.º 1, alínea a) e 257.º, n.os 1 e 2, todos do Código de Processo Penal).
**
Indiciam os autos a prática pelo arguido dos factos narrados no despacho de apresentação cujo teor, por questões de economia e celeridade processual, aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
**
A convicção do tribunal fundamenta-se nos elementos de prova arrolados pelo Ministério Público, com particular relevo no depoimento da ofendida, bem assim das testemunhas CC e DD, colegas de trabalha daquela, e que atenderam as chamadas elencadas no auto de apresentação, sendo que o arguido sempre se identificou perante aquelas com AA, pelo que dúvidas não restam quanto à sua identidade.
Quanto ao tê-lo feito no período de liberdade condicional, e em violação clara das obrigações a que estava sujeito [proibição de contactos, por qualquer meio, com a vítima], isso mesmo resulta da prova documental carreada para o processado [auto de notícia por violência doméstica, print da sentença proferida no âmbito do processo n.º 148/22.OPBOER]
O arguido manifestou o desejo de prestar declarações; negou que tenha praticado os factos pelos quais vem indiciado, porquanto, nunca mais contatou com a ofendida, desconhecendo quem possa ter levado a efeito tais telefonemas, até porque não tem inimigos conhecidos e está concentrado em reorganizar a sua vida. Mais relatou que em ambiente prisional também lhe foi aberto um processo disciplinar, com factos da mesma natureza, que foi arquivado – também sabendo explicar o motivo do mesmo.
Acontece que as suas declarações não resistem ao confronto com as declarações já acima referidas, às demais provas carreadas para o processado, nem tampouco às regras da experiência e senso comum – até o arguido se limitou a negar a prática dos factos, o que pro si só não tem a virtualidade de bulir com o material probatório junto ao processado.
**
Os factos de que o arguido vem indiciado consubstanciam a prática de um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), n.os 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal e de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo disposto no artigo 353.º do Código Penal.
Os crimes de violência doméstica integram o conceito de criminalidade violenta (artigo1.º alínea j) do Código de Processo Penal). Socialmente os casos de violência doméstica encontram uma crescente reprovação não só pela consciência do seu elevado número e frequência, como disso dá eco a comunicação social, mas também pela interiorização de que as suas vítimas são normalmente pessoas indefesas merecendo por isso a mais ampla proteção humanitária e jurídica. É, por isso, grande o alarme que estas condutas suscitam na sociedade que reclama por parte dos tribunais uma atitude firme que proteja as vítimas.
No caso em apreço é particularmente premente o perigo de continuação da atividade criminosa; porquanto o arguido perpetrou os factos pelos quais vem indicado em período de liberdade condicional, após condenação no processo n.º 148/22.0PBOER, onde lhe havia sido aplicada a pena acessória de proibição de contato com a vítima por qualquer meio, o que mesmo assim não o coibiu de praticar atos da mesma natureza quando restituído à liberdade.
Para além de que o arguido não revela qualquer sinal de arrependimento ou sequer de assunção do desvalor da sua conduta, tendo limitado a negar sem mais a prática dos factos, para além de que é manifesta a indiferença para com a condenação anterior em pena de prisão efetiva, o tribunal a considerar que só a medida de coação que o prive da liberdade impedirá de contatar com a ofendida.
Por um lado, e sendo premente o perigo de continuação da atividade criminosa, entende o Tribunal que a permanência na habitação também se não mostra suficiente para acautelar o perigo em causa.
De facto, atenta a personalidade do Arguido espelhada nos factos, bem assim o seu modus operandi, que recorre a dispositivo eletrónicos, entende o Tribunal que a permanência em habitação, mesmo fiscalizada por meios de controlo à distância, não garantiria que não prosseguisse com a atividade criminosa.
Destarte, considerando as condições pessoais do arguido, a gravidade dos crimes indiciados e a premência do perigo de continuação da atividade criminosa determina-se que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito, para além do TIR já prestado, à medida de coação de prisão preventiva e proibição de contactos com a ofendida (artigos 200.º, n.º 1, alínea d), 202.º, alíneas b), e) e 204.º alínea c) do Código de Processo Penal».
INCIDÊNCIAS PROCESSUAIS COM RELEVO PARA A DECISÃO
Consta do auto de primeiro interrogatório que os factos que motivaram a detenção do recorrente, a respetiva qualificação jurídica e os meios de prova são os seguintes (transcrição):
«1. O arguido AA e a vítima EE, iniciaram um relacionamento amoroso em data não concretamente determinada, mas que se situa no mês de ....
2. O relacionamento terminou cerca de dois meses depois.
3. Por factos ocorridos durante o período do relacionamento que manteve com a vítima, veio o arguido a ser condenado, no âmbito do Processo n.º 148/22.0PBOER, pelo Juízo Local Criminal de Mafra do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de 3 (três) anos de prisão, bem como na pena acessória de proibição de contatos com a vítima, por qualquer meio, incluindo a proibição de se deslocar a menos de 500(quinhentos) metros da residência e local de trabalho desta, pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, sendo o seu cumprimento fiscalizado por meios de controlo à distância.
4. A referida sentença transitou em julgado no dia 23.01.2023.
5. O arguido foi colocado em liberdade condicional no dia 20.01.2025.
6. No dia ... de ... de 2025, cerca das 16h00m, o arguido efetuou uma chamada telefónica, através de número anónimo para o número de telefone do trabalho da vítima, ..., pertencente à ....
7. Ao ser atendido pela colega da vítima de nome CC, o arguido pediu para falar com a vítima, identificando-se pelo nome e acrescentando que a vítima sabia bem quem ele é, proferindo a expressão “Sou o AA. Ela sabe perfeitamente quem eu sou”.
8. Após ter sido informado que a vítima não se encontrava no edifício, o arguido aguardou em modo de espera enquanto a referida colega da vítima a contatava para saber se podia passar a chamada.
9. Entretanto, uma outra colega da vítima, de nome DD, retomou a chamada e informou o arguido que a vítima não se encontrava disponível, tendo o arguido desligado, de imediato, o telefone.
10. Ato contínuo, o arguido voltou a ligar, através de número anónimo para o supra referido número, voltando a ser atendido pela testemunha DD a quem pediu desculpa pelo facto da chamada telefónica ter caído.
11. Seguidamente, questionou-a se a vítima ali trabalhava, se a mesma se deslocava àquelas instalações ou se permanecia em regime de teletrabalho.
12. Quando esclarecido pela testemunha DD que não podia aceder àquele tipo de informação, o arguido voltou a desligar a chamada.
13. Pouco tempo depois, o arguido voltou a efetuar três chamadas telefónicas para o número de telefone do trabalho da vítima, não tendo as mesmas, contudo, sido atendidas por qualquer das testemunhas.
14. O arguido persistiu no comportamento, tendo sido, novamente, atendido pela testemunha DD a quem, aos gritos, proferiu a seguinte expressão “você é uma falsa, uma mentirosa. Eu liguei para os recursos humanos e disseram-me que a EE vai uns dias ao escritório e outros fica em teletrabalho”,
15. Continuando a apelidar a testemunha de “falsa” e “mentirosa”, nunca permitindo que a testemunha falasse.
16. Por último o arguido disse à testemunha DD para transmitir à vítima que entre o dia 27 e ... de ... de 2025 (dia do aniversário da vítima) iria fazer-lhe uma espera que se a testemunha não transmitisse a mensagem ela é que iria ter problemas com o arguido.
17. No dia ........2025, pelas 10h30m, o arguido efetuou uma chamada telefónica, de um número não identificado, para o número de telefone fixo da ..., ..., tendo sido atendido pela colega da vítima de nome FF.
18. No decurso desse telefonema o arguido pediu para falar com a vítima.
19. Ao ser informado que a vítima não se encontrava, o arguido insistiu questionando, várias vezes, se a vítima estava de folga ou de férias,
20. Dizendo que era um amigo e que precisava falar com ela.
21. A determinada altura, a testemunha FF informou-o que poderia deixar o seu nome e contato e que transmitiria à vítima, tendo o arguido respondido que era o BB e que a vítima sabia quem ele era,
22. Continuando, contudo, a perguntar por ela, tendo terminado dizendo “então ela que me ligue. Ela sabe quem eu sou! Caso contrário tenho de ir ter com ela”.
23. Seguidamente, desligou o telefone.
24. Nesse mesmo dia, o arguido efetuou novos contatos telefónicos para o número da ..., pelas 10h49m, 11h00m e 11h15m, não dizendo qualquer palavra quando atendido.
25. O arguido, nos dois dias seguintes, continuou a efetuar chamadas telefónicas, através de número anónimo, para o local de trabalho da vítima não tendo, contudo, voltado a ser atendido.
26. No dia ........2025 o arguido efetuou nova chamada telefónica, tendo a mesma sido atendida, contudo, o arguido manteve-se em silêncio.
27. No dia ........2025, pelas 10h40m, o arguido efetuou novo contato telefónico para o número da ..., tendo sido, novamente, atendido pela testemunha FF.
28. Após ter sido informado que não poderia falar com a vítima, por a mesma não se encontrar no local, o arguido alterou o seu tom de voz, ficando agressivo, e proferiu as seguintes expressões “não está?! Mas agora não trabalha aí? na semana passada não estava! A senhora está a mentir”,
29. Expressão que repetiu, por várias vezes, num tom intimidatório.
30. Por conta das condutas descritas, o arguido provocou medo e receio na vítima, tendo levado a mesma a alterar as suas rotinas diárias e, bem assim, a mudar de residência para morada desconhecida do mesmo.
31. O arguido bem sabe que foi condenado no âmbito do Processo n.º 148/22.0PBOER, pelo Juízo Local Criminal de Mafra do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, transitado em julgado em 23.01.2023, pela prática de um crime de violência doméstica, na pena acessória de proibição de contatos com a vítima, por qualquer meio, incluindo a proibição de se deslocar a menos de 500(quinhentos) metros da residência e local de trabalho desta, pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, sendo o seu cumprimento fiscalizado por meios de controlo à distância e que tal pena acessória ainda se encontra em vigor.
32. Não obstante, através de interpostas pessoas tentou obter informações sobre as rotinas da vítima e transmitiu-lhe mensagens.
33. O arguido agiu com intenção de violar a proibição de contatar com a vítima que foi imposta por sentença.
34. Ao agir da forma descrita atuou, o arguido, atuou ainda com o propósito concretizado de molestar psicologicamente a vítima EE, sua ex-namorada, bem como criar-lhe fundado receio pela sua vida e integridade física, pretendendo atingi-la na sua integridade psíquica, o que logrou conseguir, agindo a coberto de um sentimento de impunidade.
35. Agiu em todas as condutas de forma livre, deliberada e consciente, bem as sabendo proibidas e punidas por lei e tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
36. Para além da referida condenação no âmbito do Processo n.º 148/22.0PBOER, o arguido foi também condenado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo disposto no artigo 152º, n.º1, alínea b), n.º2, alínea ) e n.ºs 4 e 5 do Código Penal, no âmbito do Processo 316/20.0PDAMD, pelo Juízo Local Criminal da Amadora – Juiz 3 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, transitada em julgado em 31.05.2021, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período condicionada ao pagamento de uma compensação à vítima no valor de 8.000€ (oito mil euros) e na pena acessória de proibição de contatos com a vítima, fiscalizada por meios de controlo à distância, por idêntico período.
37. Não obstante as condenações que já sofreu e os períodos de tempo que esteve preso em cumprimento de uma dessas penas de prisão, os atos acima descritos praticados pelo arguido revelam que tais condenações não foram suficientes para o afastar deste tipo de comportamentos.
Com as condutas descritas cometeu o arguido, em autoria material, na forma consumada e em concurso real:
- Um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, alínea b), n.ºs 4 e 5 do Código Penal; e
- Um crime de violação de imposições, proibições ou interdições p. e p. pelo disposto pelo artigo 353º do Código Penal.
Prova:
Toda a dos autos, designadamente:
- Documental:
- Auto de notícia por violência doméstica de fls. 4 a 6;
- CRC de fls. 30 a 37;
- Print da Sentença proferida no âmbito do Processo 148/22.0PBOER cuja junção supra se determinou.
- Testemunhal:
- Auto de Inquirição de CC, de fls. 55;
- Auto de Inquirição de DD, de fls. 59;
- Auto de Inquirição de EE, de fls. 63;
- Auto de Inquirição de FF, de fls. 118».
FUNDAMENTAÇÃO
1. Da insuficiência de indícios
Para que se aplique qualquer medida de coação têm que ocorrer indícios da prática de um crime.
O recorrente alega que não existem provas da prática dos factos, cuja autoria é por si negada. Que apenas se lhe apontam chamadas telefónicas anónimas, que não podem ser valoradas por consubstanciarem prova proibida.
Verdadeiramente, está em causa saber se existem indícios da prática dos factos pelo recorrente, já que, em sede de aplicação de uma medida de coação, o juiz está perante indícios.
A decisão recorrida tem a seguinte fundamentação:
“A convicção do tribunal fundamenta-se nos elementos de prova arrolados pelo Ministério Público, com particular relevo no depoimento da ofendida, bem assim das testemunhas CC e DD, colegas de trabalha daquela, e que atenderam as chamadas elencadas no auto de apresentação, sendo que o arguido sempre se identificou perante aquelas com AA, pelo que dúvidas não restam quanto à sua identidade.
Quanto ao tê-lo feito no período de liberdade condicional, e em violação clara das obrigações a que estava sujeito [proibição de contactos, por qualquer meio, com a vítima], isso mesmo resulta da prova documental carreada para o processado [auto de notícia por violência doméstica, print da sentença proferida no âmbito do processo n.º 148/22.OPBOER]
O arguido manifestou o desejo de prestar declarações; negou que tenha praticado os factos pelos quais vem indiciado, porquanto, nunca mais contatou com a ofendida, desconhecendo quem possa ter levado a efeito tais telefonemas, até porque não tem inimigos conhecidos e está concentrado em reorganizar a sua vida. Mais relatou que em ambiente prisional também lhe foi aberto um processo disciplinar, com factos da mesma natureza, que foi arquivado – também sabendo explicar o motivo do mesmo.
Acontece que as suas declarações não resistem ao confronto com as declarações já acima referidas, às demais provas carreadas para o processado, nem tampouco às regras da experiência e senso comum – até o arguido se limitou a negar a prática dos factos, o que pro si só não tem a virtualidade de bulir com o material probatório junto ao processado”.
Foram, portanto, as declarações da ofendida e os depoimentos das testemunhas CC e DD que alicerçaram a convicção do tribunal recorrido.
Como é bom de ver, e assim resulta da análise dos factos, não está em causa chamadas anónimas. O que está em causa são chamadas telefónicas feitas a partir de um número não identificado. Mas a pessoa que efetuou tais chamadas identificou-se com o nome do recorrente. Mais do que uma vez.
O recorrente nega, alegando que qualquer pessoa pode fazer uma chamada telefónica servindo-se do seu nome. É verdade. Da mesma forma que, acrescentamos, em abstrato, uma pessoa pode fazer uma chamada telefónica, identificando-se a si própria, e depois negar a prática dos factos. Não é por isso que não se podem considerar os indícios que resultam dos depoimentos de quem atendeu os telefonemas. O contrário equivaleria à descoberta uma forma engenhosa de obstar à prova de um crime cometido por meios à distância.
É tudo uma questão de credibilidade dos indícios existentes. Credibilidade essa que não foi retirada aos depoimentos das testemunhas que atenderam as chamadas telefónicas.
E não se vê que estejamos perante prova proibida.
Na verdade, dispõe o artº 125º do CPP que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, assim se consagrando o princípio da não taxatividade dos meios de prova legalmente atendíveis, subordinados aos limites constitucionais e legais de admissibilidade, como por exemplo, os resultantes do artº 126º do CPP, o qual, sob a epígrafe «Métodos proibidos de prova», dispõe nos seguintes termos:
«1 - São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2 - São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível.
3 - Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular.
4 - Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.»
A admissibilidade de uso da prova decorrente do relato, pelo destinatário, daquilo que ouviu numa chamada telefónica por si atendida, cujo número de origem era não identificado, não é prova proibida. Aliás, o recorrente limitou-se, nesta sede, a alegar sem sequer apontar a norma legal que agasalharia a sua tese.
Portanto, aquando da aplicação da medida de coação, existiam indícios de que o recorrente praticou os factos.
2. Da adequação, para as exigências cautelares do caso concreto, da decidida aplicação da medida de coação de prisão preventiva
Justificam-se umas considerações prévias.
A aplicação da prisão preventiva, no nosso ordenamento processual, está sujeita não só às condições gerais contidas nos artigos 191.º a 195.º, do CPP, de que se retiram os princípios da adequação e da proporcionalidade, como dos requisitos gerais previstos no artigo 204.º, como ainda dos específicos atinentes àquela concreta medida de coação, constantes do artigo 202.º.
Explicitando o princípio da legalidade ou da tipicidade das medidas de coação, o artigo 191.º, nº 1, dispõe que a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei.
As medidas de coação estão ainda subordinadas aos princípios da adequação e da proporcionalidade (cfr. artigo 193.º, nº 1), não devendo ser aplicada qualquer medida de coação quando houver fundados motivos para crer na existência de causas de isenção de responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal (vide artigo 192.º, nº 2).
Nos termos do artigo 204.º, alíneas a), b) e c), do CPP, as medidas de coação, com exceção do termo de identidade e residência, não podem ser aplicadas se, no caso em concreto, não se verificar:
- fuga ou perigo de fuga;
- perigo de perturbação do decurso do inquérito e nomeadamente, perigo para aquisição, conservação ou veracidade da prova;
- perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
Não se belisca aqui o princípio da presunção da inocência do arguido, nomeadamente em detrimento de necessidades de prevenção geral.
Na verdade, em sede de medidas de coação, estão em causa, por um lado, a proteção de direitos fundamentais, v.g. o direito à liberdade e à segurança, (artigo 27.º, nº 1, da CRP) e por outro, a eficácia da investigação criminal (artigo 32.º, nº 5, da CRP) de estrutura acusatória, ainda que mitigada pelo princípio da investigação, sendo, portando, necessário, em cada caso concreto, fazer uma ponderação dos interesses em conflito para determinar a respetiva prevalência e grau e medida de restrição.
O artigo 32.º, nº 2, da CRP, consagra o princípio da presunção de inocência, dizendo que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.”
Trata-se de um direito fundamental, como ainda decorre dos artigos 11.º, nº 1, da DUDH, 6.º, nº 2, da CEDH e 48.º, nº 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da EU – Jornal Oficial da EU, de 2007/Dez./14, C 303.
Tal injunção constitucional e fundamental da presunção da inocência em relação à pessoa suspeita ou perseguida criminalmente assenta num pressuposto estruturante das sociedades democráticas, que é o respeito pela dignidade da pessoa humana, o qual passou a moldar de modo inexorável todo o processo penal. Relativamente à extrapolação do seu sentido vinculador, cuja incidência é exclusivamente jurídico-legal, tem-se entendido que o mesmo não deve ser interpretado de modo puramente literal, como muitas vezes tem sido efetuado.
A adotar-se essa literalidade, nunca seria possível efetuar-se qualquer juízo indiciador ou de culpabilidade da prática de um crime e muito menos decretar-se uma medida de coação. Esse argumento estritamente literal esbarraria com outras disposições constitucionais, tais como o artigo 27.º, nº 2, que admite várias situações de restrição do direito à liberdade; o artigo 28.º, que admite prisão preventiva, ainda que com carácter excecional, e o artigo 18.º, nº 2, que permite a restrição dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos nos casos expressamente previstos na Constituição, mas sempre mediante um “princípio de intervenção mínima”.
Partindo-se do o princípio da presunção da inocência consagrado no artigo 32.º, nº 2, da CRP, exige-se que apenas sejam aplicadas as medidas de coação que ainda se mostrem comunitariamente suportáveis em face da possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente.
Mesmo o artigo 5.º, nº 1, alínea c) da CEDH admite a privação da liberdade “quando houver suspeita razoável de ter cometido uma infração, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infração ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido.”
Os princípios da necessidade, da adequação, da proporcionalidade, da subsidiariedade e da precariedade são, assim, corolários do princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória.
A aplicação da prisão preventiva encontra-se sujeita a critérios de legalidade, sendo a sua natureza excecional e subsidiária expressamente estatuída no artigo 28.º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
Essa subsidiariedade e excecionalidade mostra-se densificada na lei processual penal, dispondo o artigo 193.º do Código de Processo Penal, na parte que aqui releva, que:
“Princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade
1 - As medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
2 - A prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação.
3 - Quando couber ao caso medida de coação privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares.”
Os casos de admissibilidade da prisão preventiva encontram-se estabelecidos no art. 202.º do Código de Processo Penal, dependendo a sua aplicação da inadequação e insuficiência das demais medidas de coação previstas na lei processual penal, devendo ser aplicada apenas como ultima ratio.
Assim, ainda que ao caso deva ser aplicada medida de coação privativa da liberdade, sempre deverá ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação quando esta medida se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares que no caso se façam sentir (artigo 193.º, nº 3, supra transcrito).
Por outro lado, como resulta expressamente do disposto no artigo 202.º, nº 1, do Código de Processo Penal, a prisão preventiva pressupõe a verificação da existência de fortes indícios da prática do crime imputado e que este se enquadre no elenco daqueles aí previstos, ou seja:
«a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos;
b) Houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta;
c) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
d) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de ofensa à integridade física qualificada, furto qualificado, dano qualificado, burla informática e nas comunicações, abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, recetação, falsificação ou contrafação de documento, atentado à segurança de transporte rodoviário, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
e) Houver fortes indícios da prática de crime doloso de detenção de arma proibida, detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos ou crime cometido com arma, nos termos do regime jurídico das armas e suas munições, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
f) Se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão».
A decisão recorrida subsumiu os factos num crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), nsº 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal e num crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo disposto no artigo 353.º do Código Penal.
Dúvidas inexistem de que, ao telefonar para o local de trabalho da vítima, o recorrente incorreu na prática do segundo crime referido.
Porém, não se nos afigura que os factos indiciados vão além deste crime de violação de imposições, proibições ou interdições.
Vejamos porquê.
Sobre o crime de violência doméstica, dispõe o artº 152º do CP que:
«1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos».
Como se escreveu no acórdão desta 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.06.2025, processo nº 646/22.6T9ALM.L1, Relatora Sandra Oliveira Pinto, que seguimos de perto:
«Entre nós, o tipo de ilícito em apreço, integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, dentro deste, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, visa tutelar, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, abarcando, por isso, os comportamentos que lesam esta dignidade. O bem jurídico protegido por este tipo de crime – a saúde física, psíquica e mental – é complexo e pode ser atingido por todos os comportamentos que afetem a dignidade pessoal do cônjuge (ou de pessoa com quem o agente mantenha, ou tenha mantido, relação de namoro ou relação análoga à dos cônjuges, com ou sem coabitação, ou de progenitor de descendente comum).
O preenchimento do tipo legal não se basta com qualquer ofensa à saúde física, psíquica e emocional ou moral da vítima: «O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus tratos».
Por outro lado, tal crime pode unificar, através do elemento da reiteração – embora este seja, hoje, um requisito não imprescindível – uma multiplicidade de condutas que, consideradas isoladamente, poderiam integrar vários tipos legais de crime, mas que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma. A unidade de ação típica não é excluída pela realização repetida de atos parciais, quer estes atos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime. O tipo legal inclui na descrição da ação uma pluralidade indeterminada de atos parciais.
Importa, assim, analisar e caracterizar o quadro global da agressão de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, o que por si mesmo, constitui, nas palavras de Nuno Brandão, “o desvalor potencial fundamentalmente tomado em consideração para justificar esta específica modalidade de incriminação se prende com os sérios riscos para a integridade psíquica da vítima que podem advir da sujeição a maus tratos físicos e/ou psíquicos, sobremaneira quando se prolonguem no tempo”, ou seja, um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima, e impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.
O que releva é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é suscetível de se classificar como «maus tratos».
Como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30.06.2015, «essa conduta deverá revelar ainda um “plus” de danosidade, quando, face ao restante entorno factual se pode concluir pela sua adequação a afectar a dignidade pessoal do outro elemento do casal». Em síntese: «A imagem global do facto e a apreensão/percepção de todo o episódio de vida em apreciação relevam na delimitação da fronteira entre condutas que têm dignidade punitiva à luz do tipo de crime de violência doméstica e aquelas que não devem relevar para o direito penal, aqui».
Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa e que de outra forma seriam consumidos por aquele.
Por outro lado não pode deixar de ser tido em conta, como se expõe no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.01.2013, que “[a]quilo que o legislador pretende não é - apenas - evitar que a pessoa inserida na relação de convivialidade seja «sovada», objecto de torturas, actos cruéis e vingativos, de ofensas que deixem mossas, sim que a sua dignidade individual como pessoa humana que estabeleceu voluntariamente uma relação como igual seja tratada como digno igual, evitando o tratamento como objecto de agressões, de fácil humilhação, de achincalhamento, de menosprezo pela sua dignidade individual e veja negada a sua importância familiar e social através da prática dos factos descritos no tipo. Assegurado isto, a dignidade, assegurado fica o respeito e o evitar da escalada para a crueldade.”
E mais adiante, ainda no mesmo aresto, “(…) aceitando os critérios propostos por Nuno Brandão, entendemos ser exigível que a análise - fazendo apelo essencial à «imagem global do facto» - se debruce, no pólo objectivo, pela existência de uma agressão ou ofensa que revele o mínimo de violência sobre a pessoa, intensidade ou reiteração; subjectivamente e da parte do agressor uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo; da parte da vítima o reflexo negativo e sensível na sua dignidade, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual.
E quer-nos parecer que esta questão tem que ser ponderada à luz do equilíbrio que se pretende ver estabelecido entre a afirmação de uma igualdade jurídica consagrada e uma desigualdade de estatuto económico e social que se imponha como realidade factual.
Este desequilíbrio é a pedra de toque para o entendimento do tipo (da sua própria existência) e, logo, da necessidade de sinonímia simples entre «maus-tratos» e «ofensas» ou «agressões» no tipo contido no artigo 152º do Código Penal.”
Quanto aos concretos comportamentos suscetíveis de integrar o crime em apreço, refere Nuno Brandão: “Entre a multidão de acções que à partida podem ser tidas como maus tratos físicos contam-se todo o tipo de comportamentos agressivos que se dirigem directamente ao corpo da vítima e em regra também preenchem a factualidade típica do delito de ofensa à integridade física, como murros, bofetadas, pontapés e pancadas com objectos ou armas, só para citar os exemplos mais correntes, mesmo que se não comprove uma efectiva lesão da integridade corporal da pessoa visada. Mas entram ainda na esfera dos maus tratos físicos agressões de vários tipos que as mais das vezes são excluídas do âmbito do ilícito-típico das ofensas corporais, como empurrões, arrastões, puxões e apertões de braços ou puxões de cabelos.
Por sua vez, estão em condições de ser qualificados como maus tratos psíquicos os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens e serviços de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação ou de partes da habitação comum, as privações da liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc. Para se assumirem como actos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância típica específica no seio de outros tipos legais de crime. Seja no sentido de que nem remotamente poderiam ser integrados em qualquer outra previsão típica, seja no de que a conduta seria de molde a preencher um específico tipo-de-ilícito, mas fica aquém do necessário para esse efeito, como se costuma enfatizar em relação às ameaças.”
E, discorre, ainda o mesmo autor “Como quer que seja, é hoje inequívoco que a tutela da violência doméstica prevista no art. 152.º-1 do CP se projecta não apenas sobre os casos de reiteração ou habitualidade de comportamentos violentos, mas é também potencialmente aplicável a uma única conduta violenta.
Provavelmente, na maior parte das vezes este problema nem se colocará, tal é a predominância dos casos de autêntico terror doméstico que são submetidos à apreciação dos nossos tribunais. Na verdade, compulsada alguma jurisprudência, rapidamente se conclui que os tribunais nacionais são quase sempre confrontados com cenários de tirania doméstica, para usar a expressão alemã, com uma galeria de horrores que inclui o habitual cortejo das injúrias e humilhações quotidianas, das constantes agressões físicas, das ameaças de morte e das proibições de entrar ou sair de casa. Para além destes casos extremos, também não levantarão dificuldades de maior aqueles ditos de microviolência continuada, em que a opressão de um dos (ex-)parceiros sobre o outro é exercida e assegurada normalmente através de repetidos actos de violência psíquica que apesar da sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação».
Os factos descritos e indiciados não integram a prática, pelo recorrente, de um crime de violência doméstica.
Não se pode concluir que, apenas com os telefonemas feitos em que disse o seu nome (e sem prejuízo de a investigação se robustecer de mais elementos que não constavam aquando da aplicação da medida de coação), o recorrente atingiu sobremaneira a dignidade da vítima, designadamente infligindo-lhe maus tratos psíquicos.
O que o recorrente fez foi, em vão, tentar contactar a ofendida, assim violando a proibição de contactos.
Nem sequer os factos indiciados, mormente os descritos nos pontos 16 e 22, permitem indiciar um crime de ameaças, já que não se concretiza qual o mal futuro que o recorrente poderia estar a anunciar que iria praticar e, em rigor, nem se alega que o conteúdo das chamadas foi transmitido à ofendida.
Por isso, quedamo-nos na indiciação do cometimento de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo disposto no artigo 353.º do Código Penal, a que corresponde uma moldura penal abstrata de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
Este crime não permite a aplicação da medida de coação de prisão preventiva.
Há, assim, que aferir se existem perigos a acautelar e, na afirmativa, qual a medida a aplicar.
Evidente é o perigo de continuação da atividade criminosa, já que o recorrente está fortemente indiciado de ter praticado os factos durante o período de suspensão da execução da pena aplicada no processo n.º 148/22.0PBOER, onde foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de 3 (três) anos de prisão, bem como na pena acessória de proibição de contactos com a vítima, por qualquer meio, incluindo a proibição de se deslocar a menos de 500 (quinhentos) metros da residência e local de trabalho desta, pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, sendo o seu cumprimento fiscalizado por meios de controlo à distância.
A vítima do processo nº 148/22.0PBOER é a mesma destes autos.
O recorrente não cumpre regras, viola a proibição de contactos.
Por isso mesmo, o recorrente está fortemente indiciado da prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições p. e p. pelo disposto pelo artigo 353º do Código Penal.
Atenta a moldura penal abstrata atrás mencionada, não se podem aplicar as medidas de coação previstas nos artigos 202º, 201º, 200º ou 199º do Código de Processo Penal.
Assim, deverá o recorrente aguardar os ulteriores termos do processo sujeito a termo de identidade e residência, já prestado, e à obrigação de se apresentar diariamente no posto policial mais próximo da sua residência (artigo 198º do Código de Processo Penal).
Na decorrência do que vem de se expor, deverá proceder parcialmente o presente recurso.

DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, acordam as juízas desembargadoras deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente provido o recurso interposto pelo arguido AA, revogando a decisão recorrida na parte em que o sujeitou à medida de prisão preventiva e determinando que o mesmo aguarde os ulteriores termos do processo sujeito ao termo de identidade e residência, já prestado, e à obrigação de se apresentar diariamente no posto policial mais próximo da sua residência.
Sem custas - artigo 513.º, nº 1, a contrario do Código de Processo Penal.
Emitam-se mandados de libertação do recorrente.
Notifique e comunique de imediato à primeira instância.
O presente acórdão foi integralmente processado a computador e revisto pela signatária relatora, seguindo-se a nova ortografia excetuando na parte em que se transcreveu texto que não a acolheu, estando todas as assinaturas apostas eletronicamente – art. 94º, nº 2, do CPP.

Lisboa, 9 de setembro de 2025
Ana Cristina Cardoso
Ana Lúcia Gordinho
Ester Pacheco dos Santos